Um passeio pelo universo da transformação: relações que surgem na experimentação drag
índice
- 1. RESUMO
- 2. CRIANDO UM PAINEL DE INSPIRAÇÕES
- 3. O COMEÇO DA MONTAÇÃO
- 3.1 PREPARAÇÃO DA PELE: LIMPANDO OS CAMINHOS E CRIANDO A BASE
- 3.2 COBERTURA DA PELE: DA BASE AOS CONTORNOS
- 3.3 APLICAÇÃO DA MAQUIAGEM: ILUMINADOR, SOMBRAS, LÁPIS, BLUSH, BATOM E OUTROS DETALHES QUE FAZEM BRILHAR
- 4. TRAÇANDO OS CAMINHOS PARA A RUA
- 4.1 UM PASSEIO NOS BASTIDORES DA EXPERIÊNCIA DRAG
- 4.2 A FORÇA INTERNA QUE COMEÇA A BROTAR
- 4.3 ABRE-SE A PORTA
- 4.4 TRÂNSITO PELAS RUAS: O OLHAR DE FORA
- 4.5 CHEGA-SE À FESTA: GRUPALIDADE QUE FORTALECE
- 4.6 É HORA DO SHOW: O PALCO E SEUS ATRAVESSAMENTOS
- 4.7 BORRANDO O BATOM
- 4.8 DA HOUSE/HAUS PARA A CASA
- 4.9 HORA DE SE DESMONTAR: UM CORPO QUE NÃO É MAIS O MESMO
- 5. GUARDANDO A MAQUIAGEM, PERUCA, ROUPA E ADEREÇOS
- 6. DURMO SABENDO QUE NÃO ESTOU SÓ
- 7. OS RASTROS DESSA TRAJETÓRIA
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1. RESUMO
Com a expansão da cultura drag e sua recente popularização midiática, essa expressão artística vem conquistando cada vez mais adeptos à experimentação. O que move alguém a fazer/ser drag? O presente trabalho busca explorar as relações que se fundam a partir da experimentação drag. Parto da minha própria vivência e introdução à temática, inspirado no que Haraway chama de “saberes localizados” e na sua importância enquanto produção de conhecimento parcial. A partir daí, recorro ao percurso histórico do surgimento da arte drag em paralelo ao teatro, baseando-me nos estudos de Amanajás; seguindo de um recorte da realidade brasileira, utilizando como base o livro “Devassos no Paraíso” de Trevisan; e acrescentando novos contornos e expressões da cena drag contemporânea. O material utilizado para análise foi colhido a partir de entrevistas semi-estruturadas realizadas com quatro drags brasileiras que realizam performances. Com essas narrativas, pude investigar as relações que surgem dessas vivências em oito aspectos centrais, e dar luz a esses afetos em um passeio pela perspectiva drag de ocupar os espaços públicos.
Palavras-chave: drag, afetos, performance, expressão artística
ABSTRACT
As drag culture expands and becomes popular in the media, this artistic expression has been gaining more adepts to experimentation. What makes someone want to do/be a drag? This study aims at exploring the relationships that are founded on drag experimentation. I start from my own experience and how I was introduced to drag culture, inspired by what Haraway calls “situated knowledge” and its importance as partial knowledge production. Then, I resorted to Amanajas’ studies to explore a historical path on the emergence of drag in parallel to the history of theatre; followed by the Brazilian reality, using Trevisan’s book “Devassos no Paraíso” as a base; and adding new contours and expressions from the contemporary drag scene. The material used for analysis was collected from semi-structured interviews with four performing Brazilian drags. From these narratives, I was able to investigate the relationships that emerge out of the drag experience in eight key aspects, and I shed light on such emotions in a walk through the drag perspective of occupying public spaces.
Keywords: drag, emotions, performance, artistic expression
2. CRIANDO UM PAINEL DE INSPIRAÇÕES
Escrever sobre a experiência drag é me deparar com um processo de escrita que já carrega uma limitação imposta pela ausência de limites que o próprio drag visa promover. Tentar trazer aqui uma leitura que se pretenda universal e abrigue as múltiplas expressões dessa performance é um percurso fadado ao fracasso. Cada vez mais indivíduos se dispõem a essa experimentação, e para isso trazem suas subjetividades que tensionam e promovem transformações no que se entende enquanto arte drag.
Para essa escrita, tomo a proposta de ressignificação de Haraway (1995) ao termo objetividade a partir do olhar feminista, entendendo a importância de localizar o saber que se propõe construir. Nesse sentido, a objetividade se refere à uma corporificação específica, uma localização limitada que promove um conhecimento localizado, não se buscando mais a transcendência dos limites, a partir de uma divisão entre sujeito e objeto, e a promoção de um saber universal. Entende-se que a única maneira de produzir uma visão ampla é a partir de um lugar particular, o que a autora denomina saber localizado.
Não perseguimos a parcialidade em si mesma, mas pelas possibilidades de conexões e aberturas inesperadas que o conhecimento situado oferece. O único modo de encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular.(HARAWAY, 1995, p.33)
Meu ponto de partida, então, se dá na minha experiência singular enquanto drag queen. Foram os afetos que a própria experimentação produziu no meu corpo que solicitaram esse encontro com a escrita. Desde a infância ouvindo que eu era gay demais ou afeminado demais, e sempre tendo que lidar com isso sob a lógica de algo a ser corrigido ou escondido, o universo drag aparece como um lugar de experimentação possível, uma vez que ele pressupõe por si só algo que extrapola. Monteiro (2020) destaca que “compor com nossas emoções não é algo determinado; flutua e nos faz flutuar nos espaços de coafetação gerados para, no fim das contas, nos constituir como sujeitos emocionados”. Se antes a ideia de ser gay demais ou afeminado me aparecia enquanto um inimigo a ser combatido ou neutralizado, foi possível reassociar essas percepções a partir do momento em que ocupei espaços que possibilitavam outras relações afetivas. Um desses espaços se constituiu para mim a partir do fazer drag.
Para pensar a minha relação com o universo do transformismo, preciso fazer um pequeno resgate no tempo. Cresci em uma família de classe média branca do Nordeste, marcada por certo tradicionalismo, onde as noções de normalidade e normatividade imperaram por muito tempo. Lógica essa que perpassava não apenas como a minha família encarava a sociedade, mas também o modo como olhava para a vida. Um dos movimentos de quebra mais difícil que precisei fazer foi o de me assumir homossexual para a minha família, em 2008, logo após o meu aniversário de 17 anos. Em meio aos conflitos da adolescência e as pressões de um colégio católico tradicional conteudista nas às beiras do vestibular, a única convicção que eu tinha é de que dentre todas as prisões às quais eu me percebia a pior delas era a da sensação de que havia algo em mim que eu não concebia mais enquanto um erro e que eu estava cansado de ter de esconder1.
Ao sair do armário para meus pais, a repressão/negação não me deixou seguro para começar a exercer a minha sexualidade. Tomou-se um tempo para eu então começar a frequentar espaços e me envolver afetivamente com outros rapazes. Aí, algo desse corpo “gay demais” começava a aparecer de uma maneira mais confortável – diferente de quanto anteriormente essas manifestações escapavam e eu me sentia mal por isso –, mas esses afetos ainda eram muito incipientes.
Até pouco tempo antes disso, o que eu percebia enquanto drag queen era algo que me assustava. Não entendia a razão pela qual homens “se vestiam de mulher” e saiam por aí se mostrando e levantando bandeiras de sexualidade. Se a sexualidade por si só era um quadro da minha vida que me assustava, não poderia ser diferente naquelas pessoas que escancaravam isso.
Por outro lado, houve alguns pequenos contatos com essa cultura que apareceram sem eu sequer perceber. Um desses foi através da personagem clássica do humor pernambucano que me cativava desde novo, a drag queen Cinderela, protagonizada pelo ator Jeison Wallace. Ela surge a partir do teatro, no espetáculo “Cinderela – a história que sua mãe não contou”2, uma das peças mais vistas em Recife nos anos 1990 e que ficou em cartaz por nove anos consecutivos, aumentando sua popularização a partir do ingresso na televisão. Inicialmente com o quadro mensal “Papeiro da Cinderela” em 2002 enquanto parte do programa Muito Mais Especial, e em 2004 virando um programa autônomo de caráter semanal.
São muitas as lembranças da televisão ligada na TV Jornal e eu acompanhando o Papeiro às voltas do meu almoço. Com o lançamento do CD “Me dá teu caneco”, além de replicar os clássicos bordões da comediante como “oxe, mainha!”, eu também passei a ouvir frequentemente as músicas e a cantar empolgadamente as letras.
Esse cara é um tremendo chupão
Chupa tudo que vê pela frente
De tanto chupar picolé
Ele tá com a língua dormente
Ele chupa cana, ele não faz careta
Só falta agora chupar... chupeta!
Ele chupa cana, ele chupa caju
Só falta agora chupar... umbu!
(CINDERELA, 2004)
Não sei exatamente o que fazia com que a minha percepção do que era drag queen na época me trouxesse um certo distanciamento desses artistas, mas que por outro lado me aproximava desta maneira de Cinderela. O reconhecimento disso se torna uma questão para mim, principalmente quando penso na inserção do drag nos espaços públicos e como isso pode produzir afetos tão contrastantes: ora levando para um desconforto com distanciamento, ora para um embaraço que aproxima, ou mesmo diversas outras combinações de afetos. Seja por protagonizar uma comédia besteirol, pelo humor ligado à sexualidade vir sempre na linha do duplo sentido, ou simplesmente pela marca muito clara que há da existência de uma personagem ali (uma vez que Jeison Wallace tem o reconhecimento enquanto aquele que a personifica), Cinderela não apenas não me assustava, como foi um dos meus grandes ícones midiáticos.
Em 2006, outra música capturou meus ouvidos e passou a ser replicada por mim em alguns círculos sociais: Mais Glitter da drag queen Dimmy Kieer. A ode que ela fazia às “bichas” através de uma música-falada sobre um ensaio fotográfico trazia uma energia que ultrapassava qualquer negação da minha sexualidade. Algo da bicha, sem dúvidas, começava a encontrar caminhos para desabrochar ali.
Por mais que nesse percurso eu tivesse me conectado a filmes como Gaiola das Loucas, Priscilla – a rainha do deserto, e outras obras cinematográficas que trouxeram o drag para cena, foi apenas em 2013, quando uma amiga, Thaís Leandro, me introduz ao seriado RuPaul’s Drag Race3, que eu de fato fui capturado por essa expressão artística.
Pereira (2016) destaca o papel da mídia pop no processo de identificação dos sujeitos em uma era de deslocamentos identitários. A autora comenta sobre uma entrevista feita por RuPaul a ABC News na qual ele atrela a popularidade do programa à identificação criada com os participantes.
Na entrevista supracitada, RuPaul explica a popularidade do programa devido à essência de sua narrativa, basicamente sobre a tenacidade do espírito humano. Ao abordar personagens que foram afastadas da sociedade, que precisaram trilhar um caminho difícil para serem reconhecidos através da arte e expondo suas histórias de vida, criamos um laço de identificação dentro das narrativas individuais e acabamos por projetar nossas próprias vivências nos relatos dos personagens. O telespectador cria um sentimento de pertencimento, o que gera a fidelização do consumo deste produto: em vez de ser um simples programa de entretenimento, é algo que ele assiste por se identificar com o que é mostrado. (PEREIRA, 2016, p.54-55)
O vínculo que estabeleci com o programa a partir das cinco temporadas lançadas até então fez borbulhar dentro de mim o desejo da experimentação. O mundo das perucas já havia se aberto anteriormente, pois no meu encantamento por festas à fantasia eu já havia protagonizado alguns personagens que exigiram esses recursos. Inclusive, antes mesmo de conceber que iniciei uma vivência enquanto drag queen, já havia me montado de personagens femininos, como o caso da vilã de Kill Bill, Elle Driver, na minha celebração de aniversário em abril de 2014.
Entretanto, foi apenas em setembro de 2014, na primeira vez que uma participante do programa, a Jujubee, veio à minha cidade natal, que eu vi a oportunidade de levar essa ideia adiante. Impulsionado por uma amiga que lançou a pergunta “por que tu não vais montado?”, acolhido por outra que se disponibilizou a me receber em sua casa para o processo, emprestando roupa e ofertando seus conhecimentos em maquiagem, e na sensação de segurança por estar acompanhado de outras pessoas, a montação finalmente ocorreu. Daisy Dolphin nasceu.
Nesses 7 anos, nunca vi no drag uma função principal ou algo que me convocasse a estar sempre me montando e performando. Pelo contrário, o processo de montação e pisar nas ruas exige muito de mim, e nisso também encontro a potência das vezes em que me propus a isso. Apesar do caráter esporádico com que nutri minha Margarida, nesse fazer/estar/ser drag, muitos afetos foram produzidos da simples experimentação, e do estar em contato comigo mesmo e com o outro.
Ao escolher esse tema como motor para o meu trabalho de conclusão de curso, inicialmente fui tomado por algo que considerei ser mais caro à existência e impor certa resistência: o momento em que a personagem drag coloca seu corpo nas ruas da cidade e provoca estranhamentos e incômodos. Entretanto, ao ouvir as narrativas das pessoas entrevistadas, percebi que até mesmo os afetos provocados pela rua não são uniformes, e tive então de reposicionar minha questão.
Fui atravessado por uma pergunta que me intrigou ainda mais: que relações se fundam no experimentar a arte drag? Percebi dois modos de encará-las: as que surgem em si - e como essa forma de expressão retorna ao corpo daquele que a personifica; e as que se dão com o outro – o desconhecido que habita a rua, o conhecido que rechaça ou dá suporte dentro de casa, o que está junto de você nessa experimentação, e tantos outros em cruzamento.
O que faz com que uma pessoa busque na arte drag uma possibilidade criadora, e que afetos entram nesse circuito que tornam possível (ou impedem) esse corpo enfrentar as ruas? Como que a existência de um outro pode potencializar ou minguar a experimentação? Há diferença nos afetos produzidos no outro dependendo da intenção do criador? Como se dá essa “fronteira flutuante”4 entre personagem e aquele que cria? O que entra em jogo nessas relações consigo e com o outro? Essas foram algumas das questões que pulsaram na minha mente e no meu corpo durante a exploração desse estudo.
No capítulo dois, “O começo da montação”, proponho um resgate histórico dos movimentos que deram as bases para o que hoje se entende enquanto arte drag. Primeiro parti de uma visão geral (“Preparação da pele: limpando os caminhos e criando a base”), tomando a história do teatro no mundo e utilizando a pesquisa de Amanajás (2014) como fio condutor. Em um segundo momento (“Cobertura da pele: da base aos contornos”), fiz um recorte brasileiro da construção da identidade transformista, recorrendo ao livro “Devassos no Paraíso” de Trevisan (2018) como base principal. Finalmente (“Aplicação da maquiagem: sombras, lápis, delineador, iluminador, blush, batom...”) dei luz a algumas interpelações e mudanças atuais que o movimento drag tem passado, em relação tanto ao modo de se fazer como quem pode fazer, quebrando com uma noção inicial de “homem que se veste de mulher para fins de entretenimento”.
No capítulo três, “Traçando os caminhos para a rua”, faço a apresentação da metodologia utilizada neste trabalho e considerações acerca do modo como discorro os meus resultados.
No capítulo quatro, “Um passeio nos bastidores da experiência drag”, abordo, finalmente, as relações que se fundamentam na experiência drag, tendo como base as entrevistas realizadas. Para tal, tomo um paralelo com os caminhos traçados ao sair de casa de modo a aproximar-me da experiência das ruas e dos afetos que surgem na ocupação desses espaços. Esse capítulo se subdivide em oito partes, cada uma a discorrer sobre uma relação diferente: com o desejo interno, com o outro experiente que introduz, com o outro de fora da cena, com o coletivo, com o palco e espectador, do modo como isso opera dentro dos relacionamentos amorosos/sexuais e do ambiente familiar, e da que se dá entre pessoa e personagem.
No capítulo cinco, “Guardando a maquiagem, peruca, roupa e adereços”, concluo meu trabalho retomando os eixos de relação explorados a partir das entrevistas para compartilhar a minha experiência de relações no universo drag.
Uma vez que estou lidando com um fenômeno de vivências múltiplas, e que marca os sujeitos que fazem e consomem de modos muito distintos, reinforço a importância de se perceber esse trabalho como uma análise específica e localizada – tal como trazido anteriormente ao invocar os Saberes Localizados da Donna Haraway (1995). O trabalho realizado explora realidades singulares, e não se pretende de forma nenhuma enquanto uma produção de objetividade neutra e absoluta.
3. O COMEÇO DA MONTAÇÃO
Para falar do universo drag, seja pela minha experiência ou pelas vivências alheias, sinto que é essencial fazer um resgate histórico de como isso surgiu na nossa sociedade. Uma vez que o próprio termo drag é algo difícil de se definir frente às diversas manifestações dessa expressão artística, traçar um ponto de partida único também não me parece possível. A dificuldade se amplia também na limitação de bibliografia disponível para isso. Alguns trabalhos, entretanto, resgatam algumas transformações na sociedade e na arte importantes para entender melhor esse movimento.
3.1. PREPARAÇÃO DA PELE: LIMPANDO OS CAMINHOS E CRIANDO A BASE
Um dos principais estudos brasileiros foi o de Amanajás (2015), em que ele traçou um percurso histórico do surgimento do drag que se dá em paralelo à história do teatro, com os homens desempenhando papeis femininos. Em seu desenvolvimento, o drag apresentava-se duas vias: a pagã, aparecendo de modo satírico para dar voz ao indizível perante a sociedade; e a sagrada, que se responsabilizavam por viver as personagens trágicas inscritas numa certa narrativa. A ilusão de criação feminina a partir do artista masculino não se deu apenas no Oriente, mas se apresentava também em expressões artísticas do Oriente, como o teatro Topeng da Indonésia, o Kathakali da Índia, e as criações do teatro Kyogen (clássico cômico) e do Nô (dramático) no Japão.
A drag queen começou a ser associada ao homem homossexual no século XVIII, com a aparição de crossdressers5 no meio da sociedade europeia. Nesse período, as transformações socioculturais permitiram que as mulheres ocupassem os palcos, além de acesso às leituras, às novelas e outros aspectos culturais, e os homens passam a se montar para cena apenas por motivos cômicos. (AMANAJÁS, 2015, p.11-12)
Com o surgimento da dama pantomímica no século XX, podemos perceber uma criação que se assemelha a algumas das expressões drag da atualidade. Eram personagens cômicas e carismáticas, por volta de seus quarenta anos, que traziam problemáticas das mulheres da época, e um discurso que se relacionava diretamente à classe média e trabalhadora. (AMANAJÁS, 2015, p.13)
A posição do drag na sociedade sofreu inúmeras flexões durante esse tempo, ora estando nos holofotes, ora sendo vedada sua ocupação aos espaços da sociedade. Os anos 50 foi um desses períodos, quando começou a borbulhar o movimento anti-homossexual e reposicionou as drag queens novamente para o anonimato. Seu ressurgimento se deu na década de 60, nos novos bares gays, quando a comunidade gay começou a desenvolver uma busca de identidade própria através da música, moda e gírias – a partir da expansão da cultura pop – nos cenários multifacetados das metrópoles. Com a cultura pop, aumentava-se o repertório com a qual as drags poderiam se comunicar com seu público. Nas décadas de 70 e 80 isso se expande com aparições em rádio, televisão, na Broadway, e no cinema – não apenas como participação, mas como condutores de narrativa. (AMANAJÁS, 2015, p.16-17)
Segundo Baker (1994 apud AMANAJÁS, 2015, p.18), ao final da década de 70 em Londres e Nova Iorque, se viam estabelecidas duas vertentes para o drag: as cômicas e as que se espelhavam nas divas pop. Até então, as temáticas políticas não possuíam centro nas performances pois o drag era significado de diversão. Entretanto, com os anos 70, a drag queen desponta como símbolo de luta.
Em meados dos anos 70, contudo, ser gay se tornou um ato político e, uma vez que ser artista é, em si, um ato político e social, mesmo que não intencional, a drag queen despontou como um dos maiores símbolos da luta pelos direitos gays. Nasce daí uma nova categoria de drag: a drag queen radical. (AMANAJÁS, p.18)
Em 1969, a Rebelião de Stonewall6, em Nova Iorque, foi um marco para o movimento de libertação gay e dos direitos LGBT7. Nelson (2015) destaca que existe um equívoco de que o Stonewall Inn. era um bar para drag queens, pois apenas poucas delas podiam entrar, ao menos que fossem famosas na comunidade ou amigas dos seguranças. Apesar disso, muitas drags marcaram presença na rebelião como símbolo de luta.
Amanajás (2015) aponta a virada da década de 80, com a disseminação da AIDS, que escanteou as drag mais uma vez para longe dos holofotes. Os anos 90, entretanto, abraçam novamente essa expressão artística, e o drag retorna à cena com a função de entretenimento: em dublagens, no vogue8, em stand up – abordando de maneira cômica a cultura e o universo gay –, etc. Além disso, os artistas drags seguem se posicionando no ativismo político e se tornam um símbolo significativo nas paradas LGBTQIA+ por todo o mundo. Uma grande personalidade na cultura drag pop desde a década de 90 tem sido RuPaul, uma drag queen que se impõe enquanto supermodelo, e marca presença em diversas mídias da sociedade: filmes, videoclipes, editoriais fotográficos, passarelas, além de ter seus próprios singles e programas de TV.
3.2. COBERTURA DA PELE: DA BASE AOS CONTORNOS
Por mais que o Brasil sofra grandes influências dos movimentos europeus e norte-americanos, e com isso muito dessa trajetória da cultura drag também reflita aqui, é possível perceber movimentos propriamente brasileiros de desenvolvimento da arte do transformismo.
No livro “Devassos no Paraíso”, Trevisan (2018) aponta que desde os autos catequéticos dos jesuítas, os raros papéis femininos eram todos interpretados por homens. Isso foi reforçado no século XVIII, quando a profissão ator/atriz era vista com muito desprezo e vergonha, e foi lançado em 1780 um decreto proibindo a presença de mulheres no palco, para evitar “abusos dessa gentalha contra elas”. As personagens femininas da época eram interpretadas por homens e, considerando a estabilidade dos elencos, muitos desses precisaram se especializar em papeis femininos. O “travestismo” teatral9 não apenas era um costume perfeitamente inserido nos padrões de moralidade da época, como até mesmo atraía público – incluindo a família real. Por andarem contra a corrente num ambiente predominantemente masculino, encontrava-se uma relação mais ou menos subterrânea entra a profissão cênica e a homossexualidade.
Mesmo com a liberação da presença de mulheres no palco, muitos homens seguiram assumindo papeis femininos. O teatro revista carioca, a dança popular nordestina bumba meu boi e os reisados populares eram alguma das manifestações que reforçavam personagens femininos a serem interpretados por homens. Essa modalidade de travestismo teatralizado evoluiu por duas vertentes: a carnavalesca – lúdica, com homens vestidos com roupas de suas esposas, irmãs, mães ou amigas, durante pelo menos três dias ao ano; e a profissional, com o surgimento nos palcos do ator-transformista (TREVISAN, 2018, p. 231-233)
Os atores-transformistas encontraram um espaço profissional mais amplo com o desenvolvimento do teatro-revista a partir de meados do século XIX, gênero teatral oriundo da França e transformado no Brasil, que explorava os acontecimentos, ideias e costume da época de forma cômica. Com o tempo, já no século XX perde-se o luxo e qualidade, ficando a obscenidade e passando ao chamado teatro de rebolado, com piadas pornográficas associadas a críticas políticas, que absorveu bem esses atores. (TREVISAN, 2018, p.234)
Na década de 60, algumas grandes cidades traziam elencos regulares de transformistas em suas boates. Bragança (2019) destaca a velocidade com a qual essa cultura se desenvolveu, comentando que em uma pesquisa no acervo digital da Folha de São Paulo utilizando o termo “transformismo”, a década de 1960 aparece com apenas 2 resultados, enquanto a década de 1970 já possui 181 citações sobre essas performances.
Essa abertura do cenário musical e teatral brasileiro acabou sendo uma das maiores influências para a entrada do transformismo nas casas noturnas e, finalmente, chegar à televisão. O programa Show de Calouros, apresentado pelo Silvio Santos no SBT, de 1977 a 1996, criou uma categoria específica – o concurso das transformistas – para essa performance, que se tornou um dos grandes destaques do programa. (BRAGANÇA, 2019, p.10)
Em 1972, o grupo de dança e teatro Dzi Croquettes criava espetáculos irreverentes, com uma estética transgressora, e alinhados com o movimento de contracultura, quebrando vários paradigmas em plena ditadura. Utilizavam “figurinos ousados, maquiagem pesada e o contraste dos corpos masculinos em trajes femininos trazendo aos seus espetáculos tons de grotesco, de deboche e espírito ferino”. (DZI, 2021)
Na região da Cinelândia, no Rio de Janeiro, Rogéria, Valéria, Jane Di Castro, Camille K, Fujika de Holliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios se consagraram enquanto a primeira geração de artistas travestis do Brasil e formaram o grupo que passou a ser conhecido como Divinas Divas10.
Na década de 80, a maioria das revistas em cartaz no Rio de Janeiro eram de shows de transformistas, em uma estrutura com poucas variações e recursos, o que levava a transformista a se desdobrar entre a comicidade, dança e música. Laura de Vison foi um dos grandes nomes da época. As drag queens entraram em cena na década de 90, atuando a partir de um conceito mais flexível de travestismo, entendendo esse à luz da performance artística. Casos raros como o de Laura de Vison, que era professor de história de dia e animador de shows à noite, começam a crescer11. (TREVISAN, 2018, p.235-236)
A atuação das drag queens foi facilitada por englobar um componente lúdico e satírico semelhante ao das caricatas do Carnaval, o que as levou a transitar por áreas jamais imaginadas, como as concorridas festas de socialites, shows beneficentes e colunas sociais da grande imprensa. Em muitos casos, elas eram contratadas por boates, como agitadoras da noite, responsáveis por animar o público em suas estripulias. (TREVISAN, 2018, p.237)
A repaginada da estética e cultura drag vinha em parte pelas influências internacionais midiáticas da década de 90: músicas da RuPaul (a partir de 1993); filmes como Priscilla, a Rainha do Deserto (1994); Para Wong Foo, Obrigada por Tudo! Julie Newmar (1995); e o remake de A Gaiola das Loucas (1996). Por outro lado, ela também visou o alinhamento às novas demandas das casas noturnas. Surge aí o bate-cabelo, estilo de dança criado pela drag queen paulistana Márcia Pantera – que consiste em girar o cabelo em velocidades impressionantes, inspirada no modo como os roqueiros rodavam seus cabelos longos ao som das guitarras (os chamados headbangers). (BRAGANÇA, 2019, p.10)
Silvetty Montilla, Nany People e Léo Áquila foram nomes presentes não apenas na televisão brasileira, mas também no cinema e em peças cômicas. Silvetty inclusive lançou uma websérie chamada “Academia de Drags”, inspirada no programa RuPaul’s Drag Race. Na última década, houve uma popularização das drags no cenário musical, e nomes como Pabllo Vittar, Gloria Groove e Lia Clark estouraram com singles e parcerias.
Não só no campo do entretenimento e da mídia, Trevisan (2018) destaca também a participação das drag queens brasileiras no terreno político, nas Paradas de Orgulho LGBTQIA+ e no reforço de algumas candidaturas políticas não-conservadoras. Algumas drag queens famosas inclusive já se lançaram a cargos políticos como Salete Campari, Dimmy Kieer e Léo Áquila.
3.3. APLICAÇÃO DA MAQUIAGEM: ILUMINADOR, SOMBRAS, LÁPIS, BLUSH, BATOM E OUTROS DETALHES QUE FAZEM BRILHAR
O processo de retomar a história do movimento drag nos ajuda a entender melhor a realidade que o cerca atualmente. Ele torna possível visualizarmos os caminhos que foram tomados e as transformações que ocorreram durante o tempo, ora nos fundamentando com respostas, ora com mais questões. A memória histórica é essencial para fornecer as bases de sobrevivência – mantém-se com o passado uma relação ativa, e se lança para o futuro pelo caráter que a história tem de eterna mudança e transformação. O que eu trato por drag hoje não é a mesma concepção que tínhamos no ilusionismo feminino levado pelos atores aos palcos do teatro ou às damas pantomímicas, por exemplo, mas essas noções não deixam de constituir e de terem sua importância para pensarmos essa expressão na atualidade.
O universo drag se expandiu de tamanha maneira que qualquer tentativa de defini-lo corre o risco de ser reducionista. Arrisco-me, entretanto, a tomar o drag como um termo guarda-chuva utilizado para expressões artísticas de subversão de gênero (seja mesclando, negando ou “brincando” de alguma outra forma). O ponto de partida é o próprio corpo do indivíduo, que serve de base para a construção de uma identidade outra (a personagem drag). O modo como isso opera, a forma (ou o amorfo) que se estabelece, e o fim que se busca atingir, entretanto, vão diferir em cada construção.
Há quem leve as noções de gênero ao seu limite, há quem vá quebrar essas barreiras através de um entrelaçamento, há quem vá utilizar na sua criação a negação de gênero criando identidades visuais outras... As formas que a personagem tomará dependerão dos atravessamentos daquele que a constitui, e do que esse indivíduo leva para esse jogo de relação entre o “eu” e a “personagem” que se cria.
Santos (2017), ao estudar o processo criativo da drag Alma Negrot, destaca a noção do corpo como montagem artística. Para Alma, que se define enquanto drag queer12, a caracterização parte de um devir, de algo que aparece e mexe com a “alma” de Raphael Jacques13. A maquiagem, a indumentária, os processos e materiais viram o corpo de Alma Negrot e possibilitam que essa “alienígena” seja posta para fora.
A figura de Alma assume, assim, uma postura de resistência frente a esses padrões estanques do drag tradicional: não se pretende bela nos parâmetros culturalmente impostos como ideais, nem parte da feminilidade para construir sua persona. Ela vai além disso, pretende transformar o gosto e o olhar sobre a partir do universo drag: quer que suas construções estranhas, inusitadas, caóticas, sejam consideradas belas. (SANTOS, 2017, p.35)
Luz & Vieira (2019) comentam sobre a diversidade da cena drag nacional. Embora muito modelada por referências norte americanas, os autores destacam um movimento singular que tem ocorrido na região Norte, onde drags despontam exibindo corporalidades marcadas características, inspirações e referências vindas do contexto amazônico ao qual fazem parte. Sobre o grupo “themonias”, que atua em Belém do Pará, os autores comentam:
A expressão do fazer drag themonia atua enquanto uma união do rompimento de paradigmas que o drag naturalmente já executa, mas incluindo-se aí perspectivas regionais e narrativas específicas, tais como a influência da cultura amazônica, as lendas, mitos, costumes, modos de ser, as condições sócio econômicas e políticas da região e as práticas de sociabilidade dos indivíduos atravessados por este contexto. (LUZ & VIEIRA, 2019, p.3-4)
O papel das mulheres no contexto do drag também é uma das marcas das expressões contemporâneas. O coletivo Riot Queens se formou a partir da união de algumas mulheres do Brasil que fazem drag, estabelecendo-se não apenas de modo a ajudarem umas às outras, mas também enquanto movimento de ruptura e resistência às críticas de grupos de homens que tentam negar esse espaço às mulheres14, e servindo de referência a várias outras que apresentam o desejo de se montar. Em uma postagem na página do facebook do grupo, em resposta às críticas de “apropriação cultural”, a drag queen Vlada Vitrova, uma das Riot Queens, destaca:
Drag é MUITO mais do que mimetizar o "feminino", drag é discutir e perverter o binarismo de gênero e todo o mecanismo de opressão que existe na ideia de gênero em si (novamente a questão do "feminino", como exemplo, "escola de princesas" - então quando uma mulher se monta, sobre num palco, e dá a cara a tapa, ela também está sim lutando contra a ideia de feminilidade e do que é esperado de nós dentro de toda a estereotipação de gênero). (RIOT QUEENS, 2020)
Por mais que a maioria das apresentações drags ocorra em ambientes de cultura LGBTQIA+, essa expressão artística não está ligada diretamente nem mesmo às questões de orientação sexual, tampouco às de identidade de gênero (AMANAJÁS, 2015).
O panorama do drag hoje é muito mais complexo do que um simples “dressed a girl”15 pode compor, seja em relação a quem está por detrás da máscara, seja em relação à máscara criada. Não podemos, com isso, deslegitimar o papel das antigas e tradicionais expressões drag que seguem em atividade, ou das novas criações que surgem tomando essas premissas. Apostar em um entendimento mais subjetivo é apenas ampliar a gama de possibilidades, abrindo caminhos expressivos da arte drag para incluir a libertação dos códigos engessados de feminilidade.
Tomar uma definição que me retire de ser determinístico também é uma aposta do meu trabalho. Não pretendo aqui encaixotar ou definir o que é ou não drag, pois a discussão dentro do meio LGBTQIA+, onde essa expressão artística se mostra presente e representativa, já se encarrega dessa demanda. Nesse trabalho, busco tomar a arte drag a partir da visão do artista e dos sentidos que ele atribui a essa experiência.
4. TRAÇANDO OS CAMINHOS PARA A RUA
A abordagem adotada para realização desta pesquisa foi a qualitativa, utilizando-se de entrevistas semiestruturadas com quatro drags brasileiras. Manzini (2004) destaca que a entrevista semi-estruturada foca em um assunto a partir de um roteiro com perguntas principais, complementado com questões que surgem a partir da própria entrevista. Isso permite que as informações apareçam de forma mais livre e as respostas não estejam condicionadas a uma padronização de alternativas. A utilização do roteiro, para além de coletar informações básicas, é um importante recurso para que o pesquisador se organize no processo de interação.
A escolha das pessoas entrevistadas se fez com o recorte de serem drags que transitam pela rua (excluindo dessa forma aquelas que só operam pelos meios virtuais ou que se montam sem circulação16) e que tenham alguma experiência com performances ou contato com público, ainda que em caráter esporádico.
Inicialmente a minha intenção era ter uma amostra maior e mais plural de artistas. Conforme discutido no capítulo anterior, entendendo os diversos modos como essa expressão pode tomar forma e a importância que o artista tem na produção da personagem drag, tentei pluralizar os perfis em termos de localidades, gênero e estilos de drag/artista, de modo a ter um quadro mais amplo de relações. Devido à pandemia, que impediu que os circuitos noturnos seguissem em atividade, o contato que pude utilizar para acessar muitos destes artistas ficou restrito às redes sociais. De um total de 15 drags procuradas, 10 chegaram a responder, mas apenas 4 de fato tiveram interesse e disponibilidade para contribuir com esse trabalho.
Por muito tempo, na dificuldade de acesso às pessoas, caminhou comigo uma certa frustração por perceber que eu não estava contemplando a experiência das mulheres cis, homens trans, pessoas dos cinco cantos do Brasil, e tantos outros artistas que fazem drag e trazem essas particularidades identitárias no jogo de relação que cria a personagem e fomenta suas performances. Percebi então que estava querendo dar conta de um “mundo” e tive de aceitar o que tomei como ponto de partida no meu texto e trabalho de pesquisa: tentar trazer uma objetividade universal é um percurso fadado ao fracasso. Desta maneira, o que vou explorar são as relações fundadas pela arte drag no recorte das experiências localizadas de quatro artistas – que carregam consigo suas singularidades. A tabela abaixo apresenta o perfil das pessoas entrevistadas:
Tabela 1 – Perfil das pessoas entrevistadas
Nome |
Drag |
Gênero / Sexualidade |
Idade |
Tempo de drag |
Localidade |
Diogo17 |
Co Kendrah (CK) |
Indeterminado18 |
26 anos |
7 anos |
Rio de Janeiro (RJ) e Londres (Reino Unido) |
Rafael19 |
Thânya Tulmuto (TT) |
Indeterminado20 |
37 anos |
16 anos |
Recife (PE) |
Arlon21 |
Madame Zâmbia (MZ) |
Homem cis bissexual |
23 anos |
3 anos |
Rio de Janeiro (RJ) |
Anna22 |
Satyne Haddukan (SH) |
Mulher trans23 |
46 anos |
19 anos |
Fortaleza - CE |
Para guiar as entrevistas, utilizei um roteiro de perguntas que acabou se modulando a partir das próprias conversas, por pontos que suscitaram e considerei importantes serem adicionados enquanto questões nas entrevistas posteriores. O roteiro se estabeleceu em dez perguntas: (i) como surgiu seu contato com o mundo drag?; (ii) como e quando se deu sua primeira montação?; (iii) como foi sair na rua pela primeira vez e que afetos/sensações vivenciou nessa experiência?; (iv) como você costuma fazer o trânsito e deslocamento nas ruas?; (v) há algum episódio muito marcante da experiência drag, seja positivamente ou negativamente, que você gostaria de compartilhar?; (vi) o que há de comum e diferente entre você e sua drag?; (vii) que tipos de apresentações você costuma realizar?; (viii) o que você busca provocar através de suas performances?; (ix) como você visualiza a aceitação/representatividade do drag na atualidade?; (x) o que o processo de montação significa para você?
As entrevistas foram transcritas integralmente e, a partir de uma análise dos pontos em comuns que essas narrativas carregavam, dividi fragmentos das entrevistas em uma planilha. As colunas da divisão foram: (i) surgimento; (ii) porta de entrada; (iii) atravessamentos da rua e episódios marcantes; (iv) o que busca com a performance/drag; (v) entendimento acerca da receptividade; (vi) relação familiar; (vii) relação de grupalidade; (viii) relação pessoa-personagem; (ix) significado do processo de montação; (x) impacto nos relacionamentos); (xi) pandemia e projeções; (xii) informações adicionais.
Dessa organização inicial, fiz uma segunda extração do material, colhendo os trechos que se relacionam diretamente com os pontos avaliados pelo trabalho, e utilizei essas falas para condução dos resultados da pesquisa. No decorrer do texto, as citações referentes a cada uma das entrevistas serão apresentadas sempre em itálico, acompanhadas das siglas presentes na coluna “drag” da Tabela 1 (CK, TT, MZ e SH) entre colchetes.
A partir dessas narrativas, busco compreender como se dão as relações fundadas nessa experimentação, trazendo luz ao que há de semelhante e diferente a essas múltiplas experiências e formas de se fazer drag.
4.1. UM PASSEIO NOS BASTIDORES DA EXPERIÊNCIA DRAG
Quando comecei esse trabalho, estava direcionado para pensar os atravessamentos do sair na rua, pensando exclusivamente no olhar externo que vem daqueles que rechaçam a arte drag e entendem como uma afronta indevida à sociedade. As entrevistas que fiz me proporcionaram ampliar essa percepção ao reconhecer outras camadas de relações que se criam no fazer drag para além da interpelação negativa. Relações essas que ao pensar na minha experiência de montação também sempre estiveram ali.
Para condução desse texto, desta forma, pretendo fazer um paralelo entre os caminhos ao sair de casa e as relações que se fundam no contato com o drag. O ponto de partida que tomo aqui é o que precede a montação em si: o momento em que o drag começa a causar borbulhas e pulsar dentro do artista, que não vê outro modo de lidar com isso senão extravasando.
4.2. A FORÇA INTERNA QUE COMEÇA A BROTAR
Nesse caminho que há até a vontade de se montar, nem sempre o drag aparece como algo agradável ou convidativo. Por muitas vezes, submetidos aos padrões de normas impostos pela sociedade, o único afeto que aparece é o de estranhamento dessas figuras que tentam romper com algo. Para Rafael, foi o ato de começar a frequentar locais LGBTQIA+ que possibilitou um deslocamento de medo para admiração: “eu fiquei encantado com os shows das drags. Eu tinha medo de drag, Victor. Eu tinha medo. Mas começou a me encantar, encantar, encantar…” [TT].
Como a arte drag não está posta na sociedade (ainda que na atualidade tenhamos algumas referências ocupando importantes espaços midiáticos), às vezes apenas o reconhecimento da existência dessa forma de expressão já trará o estímulo necessário para que a pessoa entre em contato com isso e encontre aí um lugar de criação. Anna comenta o papel do universo feminino na sua vida e como o impulso que a fez se montar pela primeira vez foi importante:
Eu acho que eu já tinha desde a infância uma leve atração pelo universo feminino. Uma leve não, uma forte né? Porque eu desejava coisas de meninas. Só que eu suprimia aquela coisa, eu abafei por muito tempo porque eu tive de viver dentro de um parâmetro cisgênero heteronormativo, e eu demorei para me assumir enquanto “gay”. Eu tive um período pseudo-gay. (…) Naquela época eu não tinha consciência de que eu era trans, porém o universo feminino me atraiu. Porém eu tinha que quebrar alguns paradigmas interiores meus. (...) E naquela época eu tive um impulso, sabe? Não sei... foi um desejo provocado por um impulso de dizer assim: “eu vou encarar me montar para o Halloween para ver”. Como uma fantasia, né? Só que quando eu me maquiei, coloquei a peruca, vesti a roupa, fui para a festa, eu tinha a intenção de só me montar naquele dia e depois não mais fazer nada, né? (...) Quando eu entrei dentro daquele personagem, parece que foi a luva entrando na mão: eu senti que aquele universo era meu. [SH]
Uma vez que a existência do drag não está dada e a descoberta é um elemento importante na relação do indivíduo com isso que se inaugura, o programa estadunidense RuPaul’s Drag Race apareceu como uma forte influência para drags que surgiram nos últimos anos. É através do reality show que muitos jovens tomaram conhecimento de uma cultura drag e despertaram um interesse por conhecer mais esse universo – seja de um aprofundamento enquanto admirador, seja de se encontrar enquanto artista nisso.
Meu primeiro contato com drag foi o que a maioria das pessoas teve, que foi o Drag Race. Mas quando eu comecei a assistir o Drag Race eu falava que eu não ia fazer drag, que não tinha vontade, nem nada. Eu só era um espectador. [MZ]
O nascimento mesmo foi tipicamente assistindo RuPaul. Antes eu não sabia nada de drag, não tinha nenhum conhecimento do que era drag. Em 2013/14, eu comecei a assistir RuPaul e falei “caraca, eu quero começar a fazer drag. [CK]
Superados os conflitos internos ou o processo de cultivo de um desejo, abre-se o espaço para se montar. Enquanto para alguns artistas a personagem drag surge desde a primeira montação, para outros os processos iniciais ficam no campo de uma experimentação que só se constitui enquanto personagem após algum tempo.
Aí a gente fez umas fases experimentais que, pra cá nós, eu não me considero… eu não me vi drag nesses primeiros momentos. Por isso que eu digo, 1 de outubro de 2004 foi quando eu disse: “bora, agora tá começando”. Foi quando entrei para trabalhar num segundo turno de João Paulo e Cadoca em Recife, se não me engano. Na Praça do Entrocamento, chegou Thânya. Aliás, não tinha nome ainda. Chegou a drag e aí se chamava ‘no name24’, de peruca loira, roupinha coloridinha, um oculão na cara.,, [TT]
A primeira vez que eu me montei, a primeiríssima assim que eu sentei e falei: “beleza, vou me montar, ver o quê que é isso de drag” foi em... janeiro de 2016, que foi para aquele aniversário dessa minha amiga. E a primeira vez que eu me montei firme de drag, onde eu consegui ver uma ilusão e falei: “beleza, isso aqui é drag”, onde parou de ser tentativa, que eu considero minha primeira vez foi essa vez com Melissa25, que foi em agosto de 2018. [MZ]
Por mais que possa parecer, em um primeiro momento, que existe uma relação linear entre esse cultivo da vontade que há de se montar e a concretude desse processo, existem intermediários importantes que aparecem em algumas experiências. Às vezes não se há o conhecimento necessário de maquiagem, não se dispõe de trajes e adereços que caibam na proposta, não se conhece a cena drag local, ou mesmo há algo inexplicável que ainda prende sua execução. Alguém precisa abrir os caminhos para esse novo universo.
4.3. ABRE-SE A PORTA
É comum que o pontapé para a primeira experiência de montação venha a partir de uma nova relação que se inaugura: entre um “eu” com potencial criador, e o estímulo por um outro que já tem um contato maior com essa arte ou com os meios necessários para a montação.
Junior, que faz Nadarc Fashion Camaleoa, me disse: “Ô Rafael, tu tem uma altura boa. Eu acho que tu vai dar uma drag legal”. Aí eu disse “Bicha, num rola, bicha. Eu faço monstro no Mirabilândia, no Playcenter na época”. (…) Aí ele fez “bicha, vamo tentar!”. Aí a gente fez umas fases experimentais que, pra cá nós, eu não me considero… eu não me vi drag nesses primeiros momentos. (...) Aí ele disse “vá simbora que tu tem um perfil legal para isso”. Mas assim, ele só me maquiou uma vez, depois ele disse “toma, vai timbora, aprenda”. Sofri para caramba, tenho essas fotos ainda. [TT]
Frequentemente se atribui o nome de mãe ou pai drag (drag mother/father26) a essa pessoa que fornece os recursos iniciais de acesso a esse universo, inaugurando um sistema de “família” muito presente nas vivências drags. Haraway (2016) aposta em um deslocamento da ideia de parentesco a de ancestralidade ou genealogia. Fazer parentes é fazer pessoas. Ainda que inspirado em sistemas familiares, o que se funda no drag é um outro tipo de arranjo, tal como a aposta de Haraway. É a formação de um parentesco que surge do próprio vínculo, e não de um laço sanguíneo ou genes transmitidos. Não é a família de berço e sangue, é uma família que se escolhe e cria.
A disseminação da informação e o fácil acesso a conteúdo voltado a maquiagem, costura e outros elementos que compõem a experiência de ser drag acabou diluindo um pouco esse papel de mother/father na inserção no meio drag. Tutoriais do Youtube/Instagram e referências drags midiáticas assumiram um importante papel nos últimos anos para que uma pessoa que deseje se montar consiga juntar o conhecimento necessário para um ponto de partida.
Mesmo com essas novas modulações que a tecnologia e as redes sociais promovem, o artista mais experiente segue presente na experiência da pessoa iniciante, uma vez que para além do papel importante na concepção estética do personagem – com dicas acerca de maquiagem, roupa, peruca, etc. – esse também aparece como porta de entrada para a própria cena drag. É a partir dos vínculos desse artista mais experiente que os novos artistas pisam no palco pela primeira vez. Para Arlon, as redes sociais foram fundamentais para construção de vínculos com drags locais, e a amizade construída entre ele e Melissa L’Orange – sua drag mother – foi o que abriu sua porta para o universo das performances.
Eu saía adicionando todas as drags do Rio de Janeiro que eu conseguia encontrar. E aí por ter um monte de drag adicionadas, outras drags começaram a me adicionar. Aí uma dessas drags foi a Melissa L’Orange. A gente se teve no facebook por um tempo. A gente trocava comentários. Até que a gente começou a conversar e aí pegamos amizade. E aí foi que um dia Melissa me mandou uma mensagem: “E aí, vamo se montar, vamo para uma festa!” E eu fiz: “pô, vamos!”. E surgiu a Zâmbia. (...) a Melissa, minha mãe drag, estava com um show semanal no Buraco da Lacraia27 chamado “Salvem a Professorinha”. E aí vira e mexe ela contratava a gente da família para fazer performances. Tinha sempre uma convidada toda a noite, e aí para ir preenchendo as semanas a gente ia lá e fazia várias performances também. [MZ]
Nos entrevistados, não apenas o papel do outro para a sua inserção no meio drag apareceu como também o papel que essa pessoa desempenhou por introduzir outro nesse universo. Diogo conta sobre a relação que desenvolveu com um garoto que conheceu em uma das festas onde se apresentava, que se tornou seu amigo e filho drag.
Ele começou a ir nuns rolês drags lá na Queens, e aí ele me seguiu no Instagram, eu segui ele de volta, e aí com o tempo a gente foi conversando. Aí ele mudou para Portugal logo depois. Só que pouco antes dele se mudar, eu montei ele de queen lá em casa. E aí foi tipo uma brincadeira, e isso pra ele foi tipo “cara, eu quero começar a fazer drag”, só que era “eu quero começar a fazer drag king”, e eu tipo “bora então!”. Aí fiquei ajudando, falando um pouco mais de coisas de drag, porque ele sabia se maquiar e tal, mas ele não sabia sobre peruca, essas coisas, e aí eu fui ajudando. Aí a primeira vez que ele performou foi comigo na Realness de alguém que eu não lembro28, que eu pari um bebê-demônio no palco e ele era o demônio. Então tipo... foi a primeira vez que ele subiu no palco e foi comigo, então foi maravilhoso, e depois disso a gente saiu aqui29 em drag algumas vezes. Eu performei num lugar aqui e consegui contato para ele performar também, e aí ajudei ele. Então tipo... ele é o meu melhor amigo hoje em dia, e ao mesmo tempo é o meu filhotinho drag que eu ajudo com questões tipo performance e tal, processo criativo, que é o que eu consigo fazer à distância. [CK]
Anna, que já está nesse meio há quase 20 anos, comenta sobre o individualismo que encontrou no meio drag quando começou. Como matriarca da família Haddukan, ela viu em Satyne a possibilidade de acolher e abrir os caminhos para as novas drags.
Eu tinha uma família drag muito grande, né? Porque na época tinha a questão da fama e eu sempre acolhi as pessoas. A minha casa... tu assistiu a série Pose? Era muito parecida com aquilo. Eu tinha uma casa e eu acolhia um monte de bicha na minha casa, e todas elas se montavam. Muitas não tinham condição, aí eu emprestava uma peruca, eu jogava num palco, sabe? E eram filhas, né? E hoje elas tão... a maioria na Alemanha, umas na França... fizeram a fama fora, entendeu? E tinha um especial na boate que era a Família Haddukan, que era sempre no primeiro final de semana de janeiro. Era esperado todos os anos esse especial. (...) Então as minhas meninas elas atingiram patamares altos, graças a Deus. E eu dei a primeira chance, né? Não teve ninguém... não teve uma drag que me deu a primeira chance. No meu tempo as drags eram muito individualistas. Mas eu nunca tive aquela coisa de dizer assim: “eu quero tudo para mim!”. [SH]
Nesse processo de entendimento da vontade de se montar e da construção de uma personagem drag, um importante passo para muitos artistas está no levá-la às ruas.
Se dentro de casa – ou da casa desse “outro” que acolhe e fornece os recursos necessários para a montação – existem quatro paredes que filtram o mundo externo e trazem um certo espaço de conforto, pisar na rua é quebrar com esses limites. Independentemente do quanto se protege a essa interferência (pessoas que acompanham, meios de transporte, horário de trânsito, etc.), há algo do mundo externo que atravessa. Essas possibilidades se amplificam quando colocamos outros personagens ou quanto mais nos vemos expostos ao espaço público. Aí surge uma nova relação: o “eu”, agora preparado para sair montado de casa, e o “outro”, muitas vezes desconhecedor da arte drag.
4.4. TRÂNSITO PELAS RUAS: O OLHAR DE FORA
Imagine uma rua comercial do centro de sua cidade fervendo de comerciantes e clientes. Provavelmente por ali também tem uma parada de ônibus ou van com algumas pessoas a espera, ou um ponto de táxi com alguns motoristas aguardando passageiros. O barulho é grande, e a circulação de pessoas também. Se você fechar os olhos e imaginar nesse cenário os passos de uma drag queen, com uma peruca volumosa e um salto alto, inevitavelmente outros indivíduos da sua cena imaginária direcionarão o olhar para essa criatura. Drag nas ruas – independentemente do perfil e de suas características – não é algo que passa despercebido.
Fora dos meios onde drags já costumam se fazer presentes, como festas LGBTQIA+ ou chás de revelação/panela por exemplo, a circulação da drag em outros espaços vai provocar afetos em quem estiver ali, e de alguma forma esses atravessamentos vão retornar para a pessoa montada. Medo, raiva, empoderamento, satisfação, alegria... o conjunto de afetos é tanto amplo quanto difuso, e num mesmo trânsito pode se flutuar entre vários. Na primeira vez que Diogo saiu montado de casa, o empoderamento se viu atravessado pelo medo no caminho de ida, e foi substituído pela satisfação proveniente de estar montado no evento, que foi um sucesso. Essa multiplicidade de sensações não fica restrita à primeira vez, e se repete em outras montações e outras experiências do se colocar em drag.
Eu morava numa acomodação. E aí o lugar onde ia acontecer o evento era tipo três minutos da minha residência. Só que eu ia sozinho. (...) Ao mesmo tempo em que foi muito empoderador sair dessa forma como eu tava querendo, ainda rolou um pouco de um medo. Uma coisa meio “caralho, o que será que vai acontecer na rua? Eu estou sozinha, minha primeira vez em drag, com uma maquiagem bem cagada (...) Será que vão falar? Será que vão gritar? Será que vão fazer alguma coisa?”. Então teve muito desse receio do que poderia acontecer nesse caminho de três minutos. (...) Acho que esse medo meio que da vida como é aí no Brasil. Andar na rua já como eu e poder ouvir coisas, e que era elevado por estar em drag, né? Aí lá no evento foi maravilhoso. (...) Então foram muitas emoções positivas, mas nesse início tinha esse medo de possibilidade de acontecer alguma coisa ruim. (...) Voltar foi muito bom, porque todo mundo voltou comigo. Então foi mais tranquilo. Eu já tinha vivenciado aquilo, então eu já estava mais convicto de mim. Eu voltei com meu ex para casa, então foi muito mais tranquilo. O caminho. [CK]
Aqui eu saí mais pela rua andando. No Brasil eu nunca tinha essa coragem. Era sempre pegar um uber, pegar alguma coisa para chegar aonde eu precisava chegar, porque eu sempre tinha um medo. Eu tive experiência de sair em drag para fazer ensaio na Saens Pena no meio da tarde, e aí tem os olhares, tem as coisas de tipo… famílias e tal. Mas aí a ideia era exatamente essa: causar no meio daquilo tudo. [CK]
Apesar dessa sensação de falta de segurança proveniente de transitar ou estar em certos espaços, é comum a satisfação que se obtém ao ocupar locais previamente não frequentados por drags. Para Diogo e Arlon, levar a arte drag para o meio acadêmico é essencial, e uma aposta que ambos fazem sempre que possível.
Eu adoro estar nesses lugares que não são da drag em drag. Eu já fui para faculdade em drag, eu já performei na choppada da faculdade em drag. Então falou que eu não posso estar em drag num lugar? Eu vou estar em drag naquele lugar. (...) Quando eu me inscrevi para o mestrado eu já falei “eu vou defender esse mestrado montado não importa o perrengue que seja”, porque para mim seria o ápice de tudo: eu defender a minha tese em drag. [CK]
Eu fui para a faculdade montada três vezes. Uma foi no IACS. Eu fui apresentar um trabalho de uma matéria de artes que eu fiz, e as pessoas adoraram, paravam, olhavam, “quê que é isso”, tananan, enfim... E as outras duas vezes foram no meu prédio, onde as pessoas sabem quem eu sou, onde as pessoas me conhecem, onde os professores me conhecem. E assim... a recepção foi uma coisa de louco. [MZ]
Eu já andei na rua montada. Já andei... já fiz pequenos caminhos, mas a maioria das vezes é Uber. (...) Eu sei que existem pessoas que vão virar o nariz, que vão falar alguma merda, mas eu não encontrei essas pessoas ainda. Elas não cruzaram o meu caminho. Elas existem. Existem na Pedagogia, existem na UFF e existem na rua. Eu não bati com elas ainda. [MZ]
Para Rafael, desde a primeira vez em que pisou na rua sua trajetória é marcada por bons encontros e muita admiração por onde passa. Ele aponta a sensação de liberdade que encontrou em sua drag, além do poder que a arte da transformação lhe dá de encantar as pessoas, entendendo também que com isso se carrega uma grande responsabilidade.
Foi uma experiência massa. Porque quando a gente subiu no ônibus, tipo assim, é um poder muito grande que a gente ganha por estar de drag. E é incrível como a gente tem o poder de encantar as pessoas. Sem fazer nada. Só o fato de estar ali, a gente tem esse poder de encantar as pessoas. (...) Aquela sensação de liberdade… É uma sensação muito boa porque é tipo: você quem manda no pedaço. É uma responsabilidade da gota, e tem que saber dosar para não exagerar demais essa liberdade, e as pessoas não confundirem com algum tipo de ousadia ou close errado. [TT]
Olha, eu já peguei vôo vestido de drag para Petrolina, Petrolina-Recife, Recife-Natal, Recife-Rio de Janeiro… Olha, eu já fui de drag para um bocado de canto, e eu nunca tive problema. Pelo contrário, eu já arretei para caramba. [TT]
Ainda que marcada majoritariamente por bons atravessamentos e episódios de admiração por parte do público, a presença de Thânya nos espaços públicos também já foi fonte de incômodo. Um dos episódios marcantes aconteceu quando Rafael e outra amiga drag foram barradas de entrar no Shopping para realizar uma ação do McDia Feliz.
Discriminação houve sim. E foram muitas. Mas as que eu destaco, eu vou falar uma que teve do Shopping Guararapes . Em 2017, tava indo eu e Macarrão Flyer, outra drag, para o McDia Feliz, um evento de cunho social onde a gente se doa para estar no espaço, para arrecadar tickets para a instituição e tudo o mais. E quando a gente chegou no Shopping Guararapes a segurança barrou a gente: “vocês não podem entrar aqui assim”. Aí eu “como assim, querida?”. (...) Mas aí a gente não deitou, eu falei para ela que ela estava pegando em bomba chiando. A gente levou para o Ministério Público, teve o apoio do SATED, do Instituto Boa Vista. A gente botou para dentro, o Shopping se retratou. E a gente não parou por aí, hein!? Fizemos um dragaço! Chamamos as manas e rodamos o Shopping a tarde todinha. E os seguranças quando viam a gente, naqueles carrinhos deles, davam meia volta, parecia que a gente era um pacman do mal. (...) Foi ótimo! Eu mostrei para o Shopping que drag queen não é bagunça, e que a gente tem o direito de vestir-se como a gente quiser, e de estar onde a gente quiser. [TT]
Por mais difusos que sejam os afetos que aparecem ao ocupar as ruas e transitar por um ambiente público, tanto o medo e a falta de segurança diante do modo como expressões de gênero e sexualidade são tomados pela sociedade são frequentes, quanto as sensações de poder e satisfação que aparecem a partir de um reconhecimento não esperado, da expressão de admiração desse outro interpelado ou de uma conquista proporcionada pela própria força que a personagem lhe traz.
Muitas vezes o alívio só aparece quando se chega novamente em um lugar de conforto, o destino da noite. O lado de fora das baladas LGBTQIA+, normalmente lotadas pelos seus frequentadores que bebem e conversam antes de entrar no espaço, já provocam sensações agradáveis e permitem “baixar a guarda” e se deixar levar pela experiência do ser/estar em drag naquela noite. Nessa coletividade, encontra-se um respiro necessário.
4.5. CHEGA-SE À FESTA: GRUPALIDADE QUE FORTALECE
Dentro da cena drag, uma importante relação que se constrói está na grupalidade. As trocas não ficam restritas a esse "outro” que acolhe inicialmente e dá o suporte para entrada nesse circuito. Ao frequentar o meio, drags vão se conhecendo e criando vínculos fundamentais para sustentar suas atividades. Para Haraway, viver e morrer bem depende de “unir forças para reconstituir refúgios, para tornar possível uma parcial e robusta recuperação e recomposição biológica-cultural-política-tecnológica” (HARAWAY, 2016, p.141). São esses refúgios – através das conexões criadas – que fortalecem a própria existência de uma cena drag.
Eu não podia trazer roupa feminina para a casa, maquiagem... Aí eu deixava tudo na casa de um amigo, e a gente se reunia, um grupo de drag, e olha o interessante: a gente se montava num motel que era atrás da boate. Ia todo mundo de mochila, todo mundo chegava umas 18h30, 19h, e aí umas ajudavam as outras na maquiagem, aí era peruca pendurada no quarto do motel... era muito legal, sabe? A gente se divertia, dava risada. (...) Tinha uma mágica, sabe? Aí quando terminava tudo, a gente esperava a última se montar, a gente virava a esquina da boate e o povo esperava a nossa chegada, sabe? Aí ficava o povo na calçada batendo palma e beijando a gente, falando com a gente... aquilo era muito legal. (...) Umas vão apresentando as outras, aí tinha os encontros na praça. A gente tinha um encontro na praça geralmente era às 18h. A gente ia comer um lanche na praça, no centro. Aí todas se encontravam, e a gente recebia as fotos, né? Porque naquela época não tinha máquina digital, não tinha celular. Aí as fotos eram impressas, né? E a gente recebia de uma drag que era fotógrafa. (…) a gente ia receber as fotos do final de semana, aí ficava reunida aquele monte de drag desmontada na Praça do Ferreira, aqui no Ceará, em Fortaleza, no centro. [SH]
Esses encontros narrados por Anna potencializavam a formação de laços que iam para além da “vida noturna”. O compartilhamento de vivências e momentos de descontração que aconteciam tanto montadas quanto desmontadas, permitia que essas trocas fossem sobre o universo da personagem, mas que não ficassem apenas nisso. Conhecia-se a drag, mas também o indíviduo que a corporeifica.
Foi a partir de um aprofundamento de laços – não necessariamente desses que ela cita nesse fragmento, mas dos que vieram a surgir dentro da cena – e do amadurecimento de sua drag que Anna pôde construir a família Haddukan. Sobre o pertencimento a uma casa/família drag, Diogo e Arlon também reforçaram a importância que isso tem para suas trajetórias.
É muito maravilhoso! Eu nunca imaginei que eu ia ter uma família drag, que eu teria pessoas para compartilhar da arte drag. E se você parar para olhar, cada uma de nós é muito diferente uma da outra. Não tem nenhuma semelhança. E isso é o que é mais incrível, sabe? A gente dá umas dicas uma para outra, ajuda com algumas coisas, porque cada uma tem uma visão tão diferente sobre o que é drag, e sobre o que a gente pode fazer, que a gente se completa. [MZ]
A gente vai se ajudando como dá, e é muito bom. Acho que é muito importante ter algumas dessas relações para ajudar, porque sempre que você vai performar rola uma insegurança: “será que eu tô fazendo certo, será que eu vou agradar?”, e aí você quer pelo menos uma pessoa que você confia para te dar um feedback e compartilhar depois: “não foi o que esperava”, ou “foi o que eu esperava”. E é sempre bom ter essa galera do seu lado, que te dá um apoio. Se for tudo ruim, tem esse apoio. Se foi tudo bom, tem alguém para comemorar junto. Então acho que é muito importante, é muito gostoso e muito necessário. Para o crescimento como drag, mas também para a vida, porque acaba que a gente fica amigo fora da drag também. Então vai rolando muitos tipos de relações que vão se interpondo. [CK]
O papel desses vínculos modula uma outra relação abordada anteriormente, os atravessamentos da rua. Muitas vezes, é o fato de se estar em coletivo que permite que muitas drags consigam transitar pela rua minando um medo e fortalecendo a sensação de poder.
Eu procuro sempre fazer questão de estar acompanhado, quando estou montado. Quando eu saio em família, é sempre um monte de gente. As vezes em que eu estive sozinho foram quando fui para a faculdade. Mas foi tipo assim... eu saí de casa, peguei Uber na porta de casa e desci na faculdade onde eu já encontrei outras pessoas. [MZ]
Georg Simmel, ao apontar questões fundamentais para a Sociologia no que tange à inserção do indivíduo em sociedade, aponta a tendência natural que os indivíduos têm de se agruparem, e como a reunião de pessoas com interesses individuais trabalhando para atingir objetivos coletivos produz efeitos significativos em sua vida social, agregando um valor sentimental de satisfação. (LUZ & VIEIRA, 2019, p.2)
A grupalidade na perspectiva drag não apenas introduz um suporte que alivia parte do que é transitar pelas ruas, como também reaparece enquanto fonte de apoio para ocupar um palco sabendo que tem alguém na plateia – ou ao seu lado, no caso de uma performance conjunta – para te dar uma sustentação. Como Diogo fala em seu relato sobre a importância da sua família drag, seja para você ter um apoio posterior a uma performance que não atendeu suas expectativas, seja para celebrar uma boa apresentação. Com essa segurança de estar “entre os seus”, é hora de aquecer o frio na barriga e subir ao palco para transmitir sua mensagem.
4.6. É HORA DO SHOW: O PALCO E SEUS ATRAVESSAMENTOS
“Não existe um lugar mais seguro na minha vida que não seja o meu quarto e um palco. São os dois lugares mais seguros que eu já estive”. [MZ]
Peixoto (1998), ao tentar definir o que é o processo teatral, parte da relação entre um espaço, uma pessoa que ocupa esse espaço e uma pessoa que observa30. Na arte drag, não estamos falando necessariamente de uma encenação, mas quando a drag sobe aos palcos esse mesmo tripé costuma se estabelecer – a relação entre artista-palco-espectador.
A princípio eu não queria fazer show, eu não queria subir em palco, eu era tímida para isso. (...) Eu ia lá maquiar uma drag que fazia show e não sabia se maquiar. Um dia ela se desentendeu com o dono. E ela usava roupas e coisas que eram minhas, de ‘close’. Aí o dono falou: “vai lá tu fazer o show”. Eu: “eu? Eu nunca fiz show, eu nunca apresentei nada.” Mas eu sabia dublar as músicas, né? Selecionei uma música no CD. Me maquiei, coloquei peruca, coloquei a roupa que ia ser da drag. Subi no palco. Nisso eu ia ter que performar, e apresentar também a noite fazendo humor. Tudo funcionou como se eu tivesse feito aquilo a minha vida toda. [SH]
Anna comenta a importância que subir ao palco trouxe na construção de sua drag. O que antes ficava apenas no close – que ela define como o ato de só se montar para ir para boate se divertir – toma novos contornos após o momento em que ela sobe ao palco e encontra esse lugar de fala.
Eu consegui criar um personagem no palco que... assim... Eu acho que se for comparar com uma entidade, baixou em mim um ser artístico, um personagem que talvez eu já tinha construído do meu tempo de close, mas eu não tinha exteriorizado. Mas o palco, o microfone me deu um espaço de fala, e saiu a drag que talvez eu passei dois anos construindo dentro da minha mente. [SH]
Anna comenta uma particularidade da cena drag cearense, onde normalmente as apresentadoras têm que fazer um show antes. Para ela, acaba sendo cansativo, e ela preferiria fazer apenas o show, ou apenas a apresentação. Isso não aparece tão marcado em algumas outras cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro, na qual existe alguma separação numa mesma noite entre drags que apresentam e drags que fazem show/performance.
Se encontramos nos afetos de circulação nas ruas uma pluralidade difusa, também vemos essa mesma constituição nas sensações de se assistir uma performance drag. Isso porque cada um, em sua arte, tem uma mensagem para passar e visa produzir algo muito específico no espectador.
O meu objetivo é que uma pessoa saia de uma performance minha com medo e com tesão. Esse é o meu objetivo. (...) Eu gosto da sensação que o medo provoca nas pessoas. Eu gosto da antecipação que o medo traz. De você olhar para Zâmbia e você não saber o que ela pode fazer com você. Você não saber o que ela pode fazer ali na performance, que pode vir qualquer coisa. [MZ]
Eu gosto de causar sensações não-tradicionais nas pessoas. Eu adoro quando eu causo essa “ah, o Bowie é maravilhoso31”, mas eu acho que eu gosto mais quando as pessoas olham para mim tipo… “o quê que tá acontecendo?” (...) Acho que isso por si só já é uma performance. Você estar lá fazendo a pessoa questionar o que é isso. [CK]
A sensação que eu gosto de passar para o público, primeiro é que eles podem acreditar em si mesmos. Porque a minha história é de superação. (....) Eu digo que eu sou uma depressiva em eterna recuperação (...) e a minha drag conseguiu primeiro me tirar desse estado, né? E eu falei: “por que não eu transmitir alegria, e proporcionar essa sensação para o público de que eles podem também?” [SH]
Rafael conta um episódio em que trabalhava de drag como animadora de uma festa de aniversário de um senhor que celebrava seus 82 anos, e foi interpelado pelo filho dele, um coronel reformado. Ao ouvir ele gritar “na nossa família não tem festa com viado não”, optou por ignorar e seguir sua apresentação, apostando numa reversão disso dentro de seu próprio show.
Fiz a festa, brinquei com o senhorzinho, aí depois fiz: “vamo brincar com os caba macho”. Era a hora da vingança. Aí chamaram oito pessoas, mas eu fiz “eu quero aquele ali, venha cá”. Aí eu fiz: “como é seu nome?”. Ele: “Joel32”. Aí eu fiz “Venha, Joel”. Ele: “Ei, pô, tire onda não”. Eu disse: “fique na sua porque o palhaço aqui sou eu, apenas obedeça”. Fiz a brincadeira, todo mundo se divertiu. Ele ficou meu fã. Foi o meu maior fã na festa. (...) Nessa história da arte da transformação eu aprendi isso de saber contornar e devolver aquilo ali de outra forma. (...) quando eu tava saindo dessa festa, aí eu saí toda cagada no maiô. Porque seu Joel33, o aniversariante, ele disse: “olha, antes de sair, vamos todo mundo aqui bater palma para o animador dessa festa, Thânya, porque se não fosse ela essa festa não seria isso e telhe-telhe-telhe…” Menino, as lágrimas ficaram aqui no cantinho... [TT]
Thânya, por ser uma drag que circula por eventos, como animadora de festas de aniversário, chás de revelação, formaturas ou ações de cunho social, inevitavelmente constitui uma relação com o público que dilui as barreiras de um palco tradicional. E, nesse modo de fazer apresentação, Rafael consegue lançar mão de recursos que subvertem os padrões estabelecidos da sociedade e introduzem algum tipo de fissura ou reflexão para aqueles que não estão em contato com questões de gênero e sexualidade34.
Aí é onde eu vejo o poder que a gente enquanto drag queen tem… aquele poder na mão de saber educar as pessoas. Então é isso. É viver com consciência, sabe? Com bastante sabedoria e ter um olhar bem amplo para cada passo que está dando. [TT]
Nessa relação que se cria entre drag e espectador, Anna pontua a importância de sentir a energia do público e produzir algo na sua relação com o palco a partir disso. A improvisação é um recurso necessário para drags que fazem apresentações, pois esse é um momento crucial para trabalhar os afetos que emergem na plateia.
A drag improvisa no palco na hora de fazer humor porque o público nem sempre reage de uma maneira... às vezes você não tá bem e faz um show não tão bom, aí você já tem que pesar mais no humor. Ou às vezes você faz um show muito bom, e o público grita tanto que você já não consegue fazer tanto humor. Então varia muito.” [SH]
Enquanto Rafael e Anna apostam num palco que quebra com frequência a quarta parede35, pelo próprio trabalho que desempenham tornando isso uma condição inevitável, Arlon busca produzir um outro tipo de palco e relação com o espectador. É no resguardo dos limites entre palco e plateia que ele consegue se entregar completamente para suas performances e é isso que permite que sua mensagem seja transmitida ao seu público.
Eu sinto que quando eu estou no palco, com a pessoa que eu escolhi para performar comigo, eu posso fazer o que eu quiser, retratar o que eu quiser, essa pessoa pode fazer o que eu quiser, o que ela quiser, porque ali vai ser um lugar seguro. Ninguém da plateia vai interferir. As pessoas só vão olhar uma performance com começo, meio e fim. (...) Como é um lugar seguro, eu gosto de testar esse lugar seguro. (...) meu objetivo é sempre ir dando um passo a mais dentro dos limites do que pode ser feito.” [MZ]
Nessa relação criada com o palco de experimentação, Arlon comenta a importância de uma performance que fez em que ficava sem roupa na frente de várias pessoas. “Foi um marco em quem eu sou (...) agora sou uma pessoa confortável com quem eu sou, sou confortável com meu corpo” [MZ]. A arte drag aí aparece como um campo de possibilidades que se solidifica na performance: algo que o sujeito tem vontade de fazer, mas que só consegue dar vazão ao pôr sua máscara – a drag – e subir no palco.
Nesse sentido, a experiência de Arlon se aproxima do que Cohen (2009) destaca ser o papel do palco para o ator-performer. Ele comenta que o que está em jogo na preparação do ator-performer é a busca de um desenvolvimento pessoal a partir de seus processos artísticos. Nesse sentido, o que se tem é um palco de experiências ou de tomada de consciência para utilização na vida, não podendo se traçar um limite formal entre arte e vida.
Tal como o campo da performance em geral ou experiências mais contemporâneas de teatro, ainda que o palco facilite a produção de uma intervenção, ele não é condição necessária para atividade da drag. Diogo expõe essa sensação ao falar sobre uma de suas apresentações, tecendo o olhar não para ela, mas pelo que antecedeu sua chegada ao palco.
Teve uma vez também que eu fui fazer uma performance de sereia na Queens36 e eu precisava de uma cadeira de rodas porque eu não conseguia ficar em pé, então eu tinha que ser carregado numa cadeira de rodas pelos lugares. Desde o táxi, o motorista já veio tipo “meu Deus, deixa eu levar essa pessoa porque ela não consegue andar”, e me pegou no colo e me deixou dentro do carro. Lá na Fosfobox37 foi toda uma mobilização porque eu tive que entrar por outra entrada, e o segurança me levou. Foi uma paralisação do tipo “tem uma gay de sereia em uma cadeira de rodas sendo carregada de um lado por outro, o quê que tá acontecendo?”. Então tipo, eu gosto disso: da performance começar na rua, no lugar onde ninguém espera que talvez tenha uma performance. [CK]
Ainda que isso tenha acontecido “ao acaso”, é possível também produzir esses espaços. Ao pensar no espaço teatral – e aqui tomo esse paralelo para pensar o local onde se dão as apresentações realizadas por drags –, dois caminhos são possíveis: "utilizar os espaços tradicionalmente reservados aos espetáculos ou negá-los, inventando quaisquer outros” (PEIXOTO, 1998, p.30). A escolha feita repercute tanto no nível da linguagem quanto de ideologia, trazendo implicações e modulando a mensagem que será transmitida.
No processo de reinvenções, a pandemia do COVID-19 escancarou uma necessidade de readaptação de várias atividades artísticas, e o fazer drag não ficou de fora disso. Na busca de “palcos” possíveis, as mídias virtuais acabaram aparecendo como um recurso importante, e muitas drags passaram a se comunicar e expressar através de lives, videoclipes, ensaios fotográficos, etc. O palco vira a tela de um computador ou celular.
Engraçado é que fazia quatro anos que eu tinha parado com a drag, e eu resgatei a drag na pandemia. Não somente por mim mesma (...), mas também porque o povo começou a pedir: “ah, por que tu não volta a fazer show pela internet? Faz alguma coisa”. E também bateu com os 18 anos de carreira. Aí eu quis voltar, né?” [SH]
Anna, que estava com sua drag parada há 4 anos, encontrou nesse espaço uma oportunidade de se relançar e continuar o percurso que trilhou com sua drag anos atrás. Entretanto, muitos artistas que estavam em atividade se viram na frustração das novas condições e perde-se muito do estímulo para montação. Para esses, sem a troca de energia presencial artista-público, parte do sentido da performance drag se perde.
Eu não gostei muito da vibe de performar em casa, sabe? Foi muito estranho não ter uma plateia, pois como eu falei eu gosto de ser o centro das atenções. (risos) Eu gosto de quando eu tô fazendo uma performance de ter pessoas ao meu redor, gritando... [CK]
Bom, o que eu mais queria era um lugar igual ao que eu tinha no Buraco38, onde eu poderia ter a ideia qualquer que eu tivesse e ir lá performar, porque esse é o futuro que eu vejo para Zâmbia. Eu vejo a Zâmbia em palco. Eu vejo a Zâmbia fazendo performances para as pessoas consumirem. Eu não vejo a Zâmbia, por exemplo, como uma drag de clipe. [MZ]
O drag como expressão artística possibilita diversas maneiras de relação com o público e com aquilo que se entende por “palco”. Isso tanto é modulado pelo que se busca transmitir enquanto mensagem, quanto essa mensagem também se modula pelas condições com as quais se depara e que possibilitam (ou produzem em si) uma performance.
Performance realizada, desce-se do palco: é o momento de apreciar o que resta da festa39. Embalados pelos bons drinks, sendo alvos de pedidos de fotos, gargalhando com os amigos e sentindo a música penetrar seus corpos. Um flerte, quem sabe...
4.7. BORRANDO O BATOM
Eu sou péssimo para flertar em balada. Eu nunca conseguia pegar ninguém. E aí acabou que eu falei: “brother, é isso, eu vou para aproveitar a festa”. Só que eu gosto de conversar com as pessoas em tipo… área de fumantes e tal, mesmo não fumando eu vou lá para conversar. E quando você não está montado acho que tem uma barreira de “pô, esse viado tá chegando para conversar comigo, ele quer me pegar“, então eu acho que as pessoas não se abrem completamente. E aí quando você está como drag eu sinto que a galera é mais aberta tipo “pô, uma pessoa para eu conversar, para eu rir”, e é exatamente isso que eu quero. [CK]
Diogo comenta que sair desmontado perdeu um pouco a graça para ele. Ao estar de Co Kendrah, ele consegue se desvincular de uma concepção prévia externa de que qualquer aproximação é vista com segundas intenções e, nessa abertura, ele consegue interagir melhor com os desconhecidos. Entretanto, parece-me que isso só se dá porque, em geral, a drag não ameaça esse espaço afetivo/sexual40. Os contornos da personagem nesse sentido ficam bem-marcados num primeiro momento e apartados da pessoa por debaixo da montação, ainda que isso possa se quebrar eventualmente dentro do próprio vínculo que venha a se estabelecer ali.
Essa separação entre pessoa e personagem se enquadra de forma diferente quando o que está em análise não é mais perceber uma pessoa por detrás da personagem, mas sim descobrir uma personagem por detrás de uma pessoa. Embora a relação afetivo/sexual41 não seja fundada pela experimentação drag, objetivo central de análise desse trabalho, essas relações acabam sofrendo interpelações e tensionamentos provocados por essa prática, e por isso a necessidade que senti de também abarcá-las nesse percurso.
Rafael comenta sobre se encontrar com uma nova “saída do armário” ao ter que revelar sua profissão de drag quando está começando a se envolver com alguém, e com a qual muitos não lidam bem: “Parece que você traz um fantasma quando você fala que tem um personagem drag” [TT]. Anna também passou por essa experiência quando fazia drag antes da transição: “Eu tinha até um namorado na época que ele detestava o fato de eu fazer isso. Ele tava na mesma festa e nem falou comigo. E a gente acabou terminando porque eu tomei gosto pela arte” [SH].
Para outros relacionamentos, entretanto, a descoberta da personagem não deturpa o reconhecimento da pessoa, e ao invés de ser um elemento a contrastar, ele apenas se soma. O drag é percebido tal como é, enquanto força de expressão artística, e muitas vezes toma os contornos de admiração e, em alguns casos, até mesmo de estímulo para experimentação.
Mas também, conheci pessoas que aceitaram até demais, que até se vestiu de drag, e foi uma onda (...) montei ele aqui em casa, ele jogou cabelo para lá, para cá, aí eu fiz: “Deixa eu dar um beijo em tu, que eu nunca beijei uma drag”. Vê que onda! Aí a gente ficou aqui, ficou tirando a maior onda. Aí eu fiz “gente, é muito estranho beijar uma drag”. Eu disse isso pra ele! Porque eu vejo como um trabalho [TT]
Eu tive um namorado que durou dois anos, e a gente saía montados juntos, era legal, eu me divertia. Eu sempre fui muito desconstruída, sabe? As pessoas ficavam falando assim “ah não, tu vai montar teu namorado?”. Eu dizia: “ah, eu me divirto!”. Eu me divertia muito com meu namorado montado. Era legal. [SH]
Com a percepção desse campo de possibilidades onde o drag não é tomado enquanto um “fantasma” ou algo a ser rechaçado pela pessoa com quem se envolve afetivamente, e entendendo o papel que essa arte tem para sua vida, Rafael pôde construir uma outra relação com esse processo de revelação do fazer drag.
Eu confesso que a partir desse último relacionamento, agora que estou com meus 37 anos… eu digo: “olha, eu sou ator, tenho um personagem drag, minha vida é essa, é uma bagunça. Tu topa chegar nessa bagunça? Beleza. Se não, passarás. (...) Porque eu não vou parar jamais o que eu gosto de fazer, o que me trouxe só coisas inimagináveis [TT]
Quando se soma, o parceiro afetivo/sexual se torna mais um dos elementos que trazem à experiência drag uma certa leveza. Isso aparece na fala de Diogo sobre o retorno para casa após a sua primeira vez montado na rua: “Eu já tinha vivenciado aquilo, então eu já estava mais convicto de mim. Eu voltei com meu ex para casa, então foi muito mais tranquilo” [CK]. A junção da sensação de liberdade que a montação promove, a força da coletividade, a energia da performance, os laços afetivos de apoio são algumas das forças que possibilitam alguma segurança – ou pelo menos diminui o peso – dos atravessamentos negativos que a rua pode provocar.
O cansaço nas pernas de tanto dançar de salto aparece. A festa termina. É chegada a hora de regressar para casa. Nesse percurso que muitas vezes funda uma nova família e/ou vínculos de apoio e segurança, o retorno para a família nuclear nem sempre representa um conforto. Para artistas que ainda moram com a família, às vezes, a casa pode não ser um sinônimo de lar quando se trata da personagem drag.
4.8. DA HOUSE/HAUS PARA A CASA
Na época era interessante: os pais eram menos flexíveis para os filhos se montarem em casa (...) Eu morava com minha avó na época, minha avó materna, que foi quem me criou. E eu não podia trazer roupa feminina para a casa, maquiagem, porque eu não era assumido42 [SH]
Um processo semelhante ao que Rafael chamou de “sair do armário” com relação a revelar sua personagem drag para as pessoas com quem se envolve afetivamente acontece também dentro do ambiente familiar. Por se tratar de uma forma de expressão comum no meio LGBTQIA+, muitos artistas integram algum aspecto dessa comunidade, e os embates com a família já se dão por conta da opressão de identidade de gênero e/ou orientação sexual. A personagem drag, nesse sentido, pode aparecer como mais uma faceta daquilo que ameaça uma certa normatividade.
Nascimento & Comin (2018) comentam os preconceitos velados que aparecem quando uma família pede para que o(a) filho(a) guarde sua homossexualidade entre eles, reforçando o aspecto da intimidade como restrita ao ambiente privado43. Algumas vezes isso é um reflexo de medo por parte dos pais que apresentam dificuldades para conversar e lidar com questões ligadas à sexualidade de um modo geral44. Essa mesma dinâmica opera também na revelação de que uma pessoa se expressa através de uma personagem drag. As dificuldades também se mostram pelo campo do desconhecimento. Por mais que a arte drag esteja aparecendo cada vez nas mídias tradicionais, ainda se tem uma incompreensão muito grande das pessoas sobre do que se trata e o que isso representa45.
Quando eu falei que era drag para minha mãe, ela perguntou se eu era travesti ou transexual. E aí eu ensinei a ela o que era. (...) É muito doido porque ao mesmo tempo que ela fala que tem uma amiga que vende peruca e me dá objetos, ao mesmo tempo ela fica com um “mas você já parou de fazer isso, né?”, aí eu não entendo muito bem. Ela sabe que existe e que eu faço, acho que ela tenta aceitar (...) ela fala tipo assim: “ai, pra mim não tem problema, meu maior problema é o meu medo do que vão fazer com você na rua”. Tanto que quando eu contei pra ela que me montava, a preocupação dela foi “você sai assim de casa?”, aí eu falei “saio”, aí ela “tem como você fazer isso quando você chegar no lugar?”. Essa foi a única preocupação dela, sabe? E nunca passou disso. (...) Eu sinto que tem aí alguma coisa que ela aceita, ou tenta aceitar, ou tenta encontrar motivos aí… não sei. (...) E meu pai, eu acho que ele finge que não sabe. Porque no início, quando eu tava aqui na Inglaterra, eu postei umas fotos no facebook de Diogo, e eles ligaram possessos, porque foi a primeira vez que eles souberam e pediram para apagar, e tal. E aí foi quando eu comecei a fazer o meu perfil de Co Kendrah e bloqueava eles. E aí nunca mais falei sobre isso com ele. Então rola isso de “eles não ligam”, mas ninguém fala no assunto, sabe? Sabem que tem, mas ninguém toca no assunto. [CK]
Quando eu comecei a trabalhar de drag, eu ficava naquelas entocas, aí começou o zum-zum-zum na rua, e minha mãe soube, ai eu disse para ela. Foi até quando eu recebi meu salário da campanha política. (...) Aí ela: “não quero isso, porque os vizinhos já estão falando, e não sei o quê, não sei o quê... (...) Como eu vi que ela não estava preparada para participar, eu contei no início, e depois eu me recolhi. Então… eu acho que o gás maior para estar em drag foi o que ela me disse: “o que os vizinhos vão falar?”. Eu fiz: “os vizinhos não pagam as nossas contas”. Então foi o gás, sabe? [TT]
Estou no nível onde eu não escondo as coisas, mas eu também não vou lá e mostro. Tá ali. Os meus saltos tão no meu guarda-roupa, os meus vestidos tão no meu guarda-roupa, as minhas maquiagens estão aqui. (...) Nunca aconteceu uma resistência, nunca aconteceu uma represália. Minha família sempre me apoiou bastante. Mas, por exemplo, o meu pai não sabe que eu faço drag. Eu nunca cheguei e falei “pai, eu faço drag”, e nem nunca vou chegar porque eu não vejo a menor necessidade nisso. Eu e meu pai, a gente não tem esse tipo de relação. [MZ]
Na falta de possibilidades de associar a casa ao processo de montação, muitos recorrem aos parentescos46 criados como refúgios que podem possibilitar o processo de montação. Dentro do ambiente familiar, muitas vezes o que fica é um vazio. O tema não é retornado e, por consequência, é como se não existisse.
Eu passei muito tempo me escondendo, me montando na rua, no ônibus, nas festas, sabe? Tirando a maquiagem na rua. Aí conheci Ivone, que ficou uma amigona minha, que me ajudou para caramba… (...) Ela me acolheu na casa dela, no apartamento. Vixe, por uns 5 anos, Ivone me colocou nos prumos. [TT]
Mas mesmo nos casos em que não se tem suporte do pai ou mãe, e por conseguinte a casa – para os que ainda dividem esse teto – não se torne um lugar possível de montação, às vezes é possível estabelecer uma relação que passe pela experiência drag e encontrar apoio para dividir experiências com outros membros da família. Uma figura que aparece com certa recorrência é a fraterna. Em alguns casos, inclusive, é através dessa entrada de irmãos que o tema drag deixa de ser um grande tabu e passa a ocupar algumas possibilidades dentro da lógica familiar.
Meu irmão nunca ligou pra nada. Para ele é assim “mano, se é o que você quer fazer, faz”, sabe? Não tem problema. Se dá merda, ele tenta conversar com minha mãe, ele compra assim minha briga. Então é muito bom que tem ele para me apoiar sempre. [CK]
Minha irmã mais velha lavava minha roupa. Aí minha irmã do meio, que é crente, dava um ponto na roupa. Aí com o tempo minha mãe passou a fazer minha roupa. No meu aniversário de dez anos ela quis ir para o teatro, que foi uma parceria que eu fiz com o NACC (...) Então tipo assim… eu acho que foi bom fazer parte do processo não ter comprado briga com minha família. (...) minha mãe tem esse quadro47 na casa dela! Ela não quer me dar! Ela pegou! Ela já se vestiu de peruca, botou roupa, figurino, foi para um evento da Tupperware no ano retrasado. Então assim… o processo foi tão natural que minha família hoje todo mundo gosta, aplaude, reconhece, e são todos fãs do trabalho da personagem Thânya Tulmuto. [TT]
Apesar da dificuldade de aceitação e legitimidade da expressão artística dentro do ambiente familiar, é comum também que, com o tempo, a família se reposicione quanto à arte da transformação. Às vezes pelo próprio reconhecimento a partir da popularização, em outros casos ao perceber o grau de seriedade com o que se lida com aquela personagem, ou mesmo pelo próprio entendimento da independência e liberdade de escolhas que aquele indivíduo carrega consigo. Anna comenta o modo como a mãe e a tia, com quem mora, acolhem sua drag atualmente: “Elas aceitam numa boa. Elas são as pessoas que eu mais amo e mais respeito na face da terra (...) E eu fico fazendo a drag nas lives, né? Em casa” [SH]. Não vamos, entretanto, romantizar e achar que todos os casos vão ter como desfecho algum nível de aceitação e suporte: muitos artistas seguem invisíveis dentro do ambiente familiar mesmo com anos de trajetória artística.
Por outro lado, há drags que já conseguem ter seu espaço dentro de casa e o apoio da família desde o início. As figuras maternas, que são recorrentemente fontes de inspiração para construção de drag queens, aparecem marcadas nas diferentes narrativas colhidas tanto na recusa quanto na aceitação. Arlon destaca não apenas o suporte da mãe, como também sua aproximação do processo de transformação: “A minha mãe ama. Minha mãe já foi me ver na boate, eu já montei minha mãe na quarentena, ela adorou, botei ela para fazer dublagem” [MZ].
Diante das distintas vivências de residência, alguns farão todo o processo de se desmontar fora de casa: seja ainda no espaço de apresentações, na casa de alguém, ou mesmo na rua no percurso de retorno. Aqueles que chegam ainda montados, pisar em casa é iniciar um processo ritualístico que revela a pessoa por detrás da máscara. Calçados, meias-calças, roupas, acessórios, peruca, maquiagem... tudo se vai e o que fica é o ser criador, atravessado pela experiência do contato com sua criação.
4.9. HORA DE SE DESMONTAR: UM CORPO QUE NÃO É MAIS O MESMO
Chegamos à última, e talvez a mais singular relação que se cria na prática drag: aquilo que se dá entre pessoa e personagem. Para Chidiac & Oltramari (2004), essas duas identidades não devem ser entendidas como algo estático ou fixo, mas sim encaradas como uma fronteira flutuante, um hibridismo, na qual características da identidade do sujeito também se tornam presentes na composição das personagens, e algo das personagens também pode ser evocado quando o sujeito não está montado48.
Na constituição da personagem, vários aspectos originários do sujeito que cria podem passar por transformação e a drag adquirir um novo modo de andar, gesticular, se posicionar, um timbre de voz diferente e, até mesmo, uma linguagem própria49.
Podemos dizer que a drag é uma entidade evoluída. Porque é incrível! Muda o olhar, muda a voz, muda muita coisa. Nesse processo de mudança, a personagem (Thânya) está mais humana. É incrível. Eu consigo me lembrar praticamente a primeira vez que eu me montei para a última vez agora. Então é assim… uma diferença muito grande. (...) Se antes era o personagem só por ser personagem, então hoje eu vejo o personagem politizado, humanizado, mais racional. Não só a arte, mas também a questão do saber estar e ser naquele momento. [TT]
Anna utiliza o termo “encarnar” para dar lugar ao momento em que a personagem drag aparece. Ela destaca a fluidez com que isso acontece e permite que esse personagem tome vida.
Quando eu tô incorporada do meu personagem, caracterizada, a coisa flui de uma maneira que... não só eu, sabe? Que constrói realmente uma personalidade. É incrível como a indumentária, a maquiagem, causa um poder de tirar de dentro, do interior da pessoa, um outro eu, né? Ou um eu que é seu, e cria vida própria. Não sei. É basicamente assim a drag, né? [SH]
Diogo comenta não sentir muita diferença entre ele e Co Kendrah. Em seu processo criativo, ele empresta completamente não só suas características básicas como também seus hábitos e desejos, mas dá um contorno artístico para aquilo. Para ele, é como se fosse apenas “uma outra roupa para sair de casa”.
Eu acho que no fundo a personalidade é a mesma. Tanto que já me falaram isso, que eu em drag e fora de drag sou tipo a mesma pessoa. E eu concordo plenamente, porque eu não tento mudar: mudar minha voz, minha personalidade… (...) É a mesma coisa que eu faço como Diogo, só que levando isso para uma forma artística. (...) Eu acho que só pega, e eu trabalho de outra forma tudo que há dentro de mim para o palco. [CK]
Já para Arlon, as diferenças entre ele e Madame Zâmbia são muito marcantes. Ele a encara como uma “gladiadora”, e ao processo de se transformar ele associa a ideia de montar uma armadura – através da qual ele consegue expressar sensações internas em uma produção artística.
Zâmbia é minha armadura (...) Somos muito diferentes. Eu sou bem introvertido, Zâmbia não é nada introvertida. E eu acho que a nossa semelhança é na nossa assertividade. A gente sabe o que a gente quer, a gente sabe o que a gente precisa (...) então a gente consegue se posicionar. E a diferença é... a coragem, eu acredito. A cara de pau. [MZ]
Eu gosto de me utilizar da Zâmbia para expressar coisas que eu gosto, coisas que eu sinto, coisas relacionadas ao sexo, ao fetichismo (...) eu uso a Zâmbia como um meio de expressar essas coisas que ocorrem tanto nela quanto no Arlon, e me utilizo do palco sendo um local seguro para poder potencializar isso. (...) Drag é a expressão de todos os meus demônios. É tudo que tem dentro de mim que eu arranco e coloco estampado na minha cara. Gosto muito de... eu pinto as minhas emoções no meu rosto. (...) Eu gosto de trazer à tona o que está dentro de mim para o meu rosto, para as roupas que eu visto, para as apresentações que eu faço. (...) Então esse é o lugar do drag na minha vida: é a coisa com a qual eu mais consigo expressar tudo que tem dentro de mim. [MZ]
Com relação ao processo de montação, Diogo afirma que, enquanto no início era algo voltado a trazer um lado seu à tona que não conseguia expressar frequentemente – e, através da maquiagem, ir além da sua personalidade –, atualmente é sobre testar e se desprender: “é mais um processo de descobrir a arte no meu corpo, sabe? Meio que deixar ir acontecendo para ver para onde aquele momento me leva sem muita pretensão” [CK].
Para Rafael, estar montado é como permitir que duas almas habitem o mesmo corpo: “Eu acho que de drag eu me posiciono melhor do que de cara limpa. É incrível. Eu não sei se é porque eu me sinto com uma dupla-alma ali: é eu e Thânya, Thânya e eu” [TT]. Para ele, a proposta da arte da transformação não é de um mero “fazer” ou “estar”, mas de um saber “ser”.
Nesse processo de duplo pertencimento, Rafael ressalta a importância de produzir uma separação entre pessoa e personagem. Isso aparece marcado ao comentar sobre sua candidatura a deputado na última eleição, e a postura que adotou de não a associar a Thânya. Ele destaca durante a entrevista que ao mesmo tempo em que sua drag lhe dá um poder enorme, carrega-se com ela também muitas responsabilidades em seu uso e a necessidade de uma maestria para conduzir isso.
Na política eu achava bem sedutor (sobre usar o poder que a drag tem), aí eu: “eu não vou fazer isso”. O povo: “usa, usa!” e eu “não quero! (...) gente, é muito delicado essa história. Eu não quero entrar na política para ser mais um palhaço da vez”. Então eu guardei a drag na caixinha “bicha, até daqui a pouco, depois a gente se vê”, porque quem era militante era a drag, quem era de colocar a cara no sol por direitos humanos era a drag, então aí tive eu que sair do armário. Eu, Rafael, pedi licença a Thanya para dizer: “agora é minha vez”. (...) muita gente ficou surpreso: “por que tu não tá usando Thanya?”. E eu disse: “é o meu trabalho”. E eles vinham “e se tu ganhar?”. E eu respondia “vou trabalhar pro povo, e vou continuar com meu trabalho, normal, de boa”. Eu gosto do que eu faço, não é só pelo dinheiro, é fazer por amor à arte, porque eu gosto mesmo, me sinto bem. Me sinto bem." [TT]
Charro (2012) comenta que o ator não é apenas a pessoa do ator ou mesmo o ator-personagem, mas “uma multiplicidade de vozes e experimentações; uma multiplicidade aberta e conectada com a exterioridade, impulsionada por seus desejos”50. Assim, a experiência de atuação se produz a partir dos agenciamentos que se formam nos encontros com o outro e consigo. Rafael percebe como sua drag foi constituída a partir de influências naturais que vieram tanto de sua família quanto de si.
Eu vejo a personagem, ela tem um pouco o perfil da minha irmã mais velha, bem aguçadinha. (...) É na irmã, um pouquinho na mãe, né? E também vai um pouquinho de mim ali, porque eu gosto de brincar (...) essa coisa do feeling de pegar coisa no ar e devolver rápido assim. [TT]
Segundo Silva (2000), “a identidade que se forma por meio do hibridismo51 não é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas”52. O hibridismo promove uma diferença que tensiona a fixação e estabilidade da identidade. É na possibilidade de “cruzar fronteiras” e “estar nas fronteiras” que questionamos a imposição das identidades fixas, denunciando sua artificialidade53. Anna destaca a mistura que a compõe de drag, trans e madre54, e como tudo isso está interligado não só na sua experiência de vida, mas também na sua arte – questionando uma lógica de rigidez e normatividade.
Se você for olhar meu facebook tá muito misturado isso de drag, trans, madre, e tem gente que fica falando: “afinal, quem tu é?” (...) eu falo: “gente, eu sou a Anna Valentina, eu performo a drag como arte, mas eu tenho um trabalho religioso como madre, eu sou a madre Valentina”. As coisas podem parecer contrastantes para uma normatividade, que geralmente demoniza o drag queen no âmbito cristão, mas a minha vertente cristã não demoniza. (…) minha drag é o quê? É aquela que me tirou da depressão, é aquela que me causa alegria quando estou me maquiando, automaticamente aquilo ali é divino também, é um trabalho espiritual (…) não sei se existe diferença entre a Valentina, a Satyne, mas eu sei que eu sou uma integralidade. Talvez algumas pessoas pensem que são várias personalidades, mas não. São manifestações do meu eu, e são uma coisa só. (...) Eu sou tudo isso ao mesmo tempo e eu não vejo diferença, sabe? Uma vez eu celebrei uma missa. Como madre eu celebro, né? E eu celebrei de drag, né? E eu dublei uma música. E isso impactou muita gente. [SH]
Belizário (2016) ressalta a provocação que a teoria queer55 faz de se desconfiar da estabilidade identitária do sujeito e seus corpos sexuados, instaurada em sistemas de classificações, hierarquizações e normalizações que produzem ficções identitárias56.
No limite, isso esbarra no corpo, e o corpo promovido pela teoria queer é um corpo que provoca afetos e é afetado. É um corpo que “negocia seus limites físicos com as fronteiras de sua identidade. O corpo como lugar da identidade, da opressão e da resistência”57.
Através do uso desse corpo – que carrega consigo suas marcas e trajetórias – é que a drag pode transmitir sua mensagem e produzir algum efeito no outro, e em si. “O performer acaba expressando partes de si mesmo e de sua visão do mundo de forma que essas partes possam ecoar de diferentes maneiras no público” (CHARO, 2012, p.24). Diante disso, Rafael aponta o papel que vê na drag de produzir algum movimento de transformação no mundo: “Eu acho que a minha missão aqui é fazer parte desse processo de mudança, e deixar uma história, uma sementinha plantada.” [TT]
5. GUARDANDO A MAQUIAGEM, PERUCA, ROUPA E ADEREÇOS
Passear por todas essas narrativas não me levou apenas a entrar em contato com outras perspectivas do universo drag, mas também tecer um novo olhar para o que eu mesmo construí. No desdobrar das entrevistas, me vi capturado várias vezes na sensação de déjà vu, e fui arremessado pela experiência do outro à minha própria vivência.
Em 05 de setembro de 2014, minha primeira montação só pode existir porque eu tive a ajuda de um “outro” com os meios necessários, uma amiga chamada Thaísa que trabalhava em uma loja de maquiagem. Ela foi quem me emprestou um look e pintou minha face pela primeira vez, possibilitando alguma concretude para aquele desejo que borbulhava dentro de mim.
Dentro do táxi, encontrar um grupo de pessoas conhecidas – minha amiga Bárbara e suas amigas – para enfrentar esse caminho comigo foi o que me deu um mínimo de segurança e possibilitou que eu abandonasse uma zona de conforto e embarcasse com Daisy Dolphin nessa experiência.
O papel do coletivo se mostrou fundamental para mim outras inúmeras vezes, sendo sempre um estímulo suficiente e necessário para que eu colocasse Daisy nas ruas. Ainda em 2014, fui interpelado por colegas do restaurante onde trabalhava que descobriram que eu me montava e revelaram que também tinham interesse. Juntamo-nos na casa do nosso chefe para podermos sair todos juntos para a balada. No meio de 2016, uni-me a outras pessoas da Psicologia que tinham interesse em se montar. Com Paola Rolnik, Giselle Lione e, posteriormente, Lilly Mazzon, o agrupamento que intitulamos Haus of Psi não apenas marcava presença em festas do curso de psicologia da UFF e em algumas saídas pontuais pela noite carioca, como também utilizava as oportunidades que encontrava para levar a temática drag para a universidade. Tal como apareceu marcado nas entrevistas o valor atribuído às famílias e aos agrupamentos que o drag promove, para mim também foi fundamental fazer parte de um coletivo como esse. O espaço que construímos de nos montarmos juntos, compartilhando vestuário e adereços, dicas de montação e performance, e momentos de descontração, deixava a experiência de montação sempre mais completa.
A primeira vez que performei, entretanto, não estava com minha house. O meu palco era uma tábua de madeira que estava no chão de paralelepípedos. O local era o pilotis do bloco das Ciências Humanas da UFF no campus do Gragoatá. O meu público eram colegas de sala e pessoas que passavam por ali. Era um sarau proposto como método avaliativo da disciplina de Motivação e Processos Afetivos, conduzida pela professora Ana Cláudia. A mesma pessoa que abriu espaço para a minha primeira apresentação, no final de 2016, é a que hoje também me estimula a escrever esse trabalho a partir de uma escrita tão pessoal. No sarau, trouxe falas da estudante secundarista Ana Júlia na Assembleia Legislativa em defesa do movimento de ocupações das Universidades, costurando com as músicas “Maria, Maria” e “Brasil”, buscando enfatizar no sentimento de luta e resistência pela democracia. Do frio na barriga que me dominava antes de fazer minha performance, passando pelo calor que transbordou durante a apresentação, ao aconchego da temperatura ambiente da satisfação pelo dever cumprido e diante do retorno de quem assistiu: todos esses afetos ficaram marcados em mim.
Uma das pessoas que me assistia ali era um amigo de faculdade, Caique, que posteriormente veio a se tornar meu namorado. Por mais esporádica que seja minha relação com a arte drag – uma vez que ela não se inscreve sob uma relação profissional, ou seja algo que me exija montar com frequência –, sempre foi muito esquisito o momento em que eu tinha de compartilhar isso com as pessoas que estava conhecendo na aposta de uma relação afetiva. Por vezes aparecia um estranhamento que me deixava inseguro de falar mais sobre isso. Entretanto, por mais esporádico que seja, como deixar de lado algo tão importante para a minha constituição subjetiva? O beijo que inaugurou meu namoro com Caique veio intermediado de um lápis de olho verde que usei como batom (a famosa gambiarra). Nessa parceria de vida, sempre senti um acolhimento também da minha performatividade drag.
Dentro do meu ambiente familiar, essa relação com a expressão drag se apresenta de forma mista e indefinida. Minha irmã marca bem a posição de apoiadora e enaltecedora da minha drag58. Minha mãe é uma eterna icógnita, e ao ouvir a narrativa que Diogo trouxe sobre sua relação com a mãe me vi acolhido nesse campo de incompreensão. Ao mesmo tempo em que ela nutre um estranhamento e apresenta um desconforto de saber que sigo me montando, isso tudo parece se inscrever no campo do medo do que pode me acontecer por eu sair montado de casa. Além disso, ela também me presenteia aleatoriamente com itens que já não utiliza mais: foi o caso de um estojo de maquiagem, brincos, além de um macacão que falou que irá me dar quando parar de usar59. Fora desse eixo, não sei dizer muito bem como fica a relação dos demais membros da família quanto a isso – e muitos eu sequer sei se têm esse conhecimento. Recentemente, pude revisitar isso a partir de uma nova experiência de montação.
Nessa pandemia, em um período de desconforto com a impossibilidade de sair de casa, encontrei no drag um refúgio. Em outubro de 2018, fiz uma oficina de performance drag, e como resultado de um dos exercícios, senti encarnar em mim uma senhora de 72 anos – a partir das divas de inspiração que levei como provocador do exercício: Dercy, Hebe, Lady Di e minha mãe. Na pandemia, pude revivê-la sob um novo olhar, e elaborar um pouco da relação que nutri com minha casa nesse período de isolamento a partir da personagem Geri Panterona. Diferente de Daisy, que em muitos aspectos se aproxima da minha personalidade fora de drag, Geri encontra essa fronteira muito mais apartada de mim, ainda que inevitavelmente carregue elementos de quem sou. Essa senhora que flerta com a comédia e tem inspiração em minhas tias-avós e avós, teve uma passabilidade dentro da minha família muito maior. Todos amaram Geri.
Ao decidir fazer esse trabalho, como já relatei anteriormente na introdução, meu ponto de partida eram os afetos de estranhamento que a rua provoca e os desafios que é para a drag ocupar os espaços urbanos. A questão “por que as pessoas, incluindo eu, se submetem a experimentar uma expressão artística que tem tanta rejeição pela sociedade?” ficava rondando meu corpo. Enquanto esperava ônibus, já recebi risadas de grupos que passavam, buzinadas de carro com comentários debochados, e até mesmo um tapa na bunda por um ciclista que passava – forte ao ponto de ficar ardendo posteriormente, e me relembrando a sensação horrível que aquilo me causou por todo o trajeto de Niterói ao Rio de Janeiro. Já tive motorista de Uber recusando a viagem quando entramos no carro, olhares de discriminação por onde passava a pé, dentre várias outras situações desconfortáveis que é de ser um corpo estranho em meio a uma sociedade com fixidez de identidades e códigos bem instituídos.
Curiosamente, ao encerrar esse trabalho, a questão inicial sequer faz mais sentido. Transitar por essas quatro perspectivas do que é fazer/ser drag, associado a tantos outros relatos que vi nas referências que naveguei por esse tempo, me fez perceber que esses atravessamentos negativos são apenas um pequeno recorte da arte drag. Ao abrir esse quadro, contemplando essas outras relações, percebo a beleza que é esse processo de inventividade. Embarcar no universo drag é se propor a uma criação singular, a partir de trajetórias, vivências e desejos pessoais, mas que encontra ressonância em outros artistas da transformação, e que reverbera em tantos outros que passam pelo nosso caminho. Faço (ou sou) drag porque a drag me faz ser quem sou.
Fotografia: Daisy Dolphin no sarau de Motivação e Processos Afetivos (UFF)
Fonte: Luísa Perez (2016)
6. DURMO SABENDO QUE NÃO ESTOU SÓ
Peço licença para romper com o padrão monográfico que contempla os agradecimentos no início do trabalho e me inspiro no padrão da literatura, que a maioria das vezes os inclui ao término de um livro. Acho que faz muito mais sentido fazer referência às pessoas que trilharam esse caminho comigo depois de efetivamente escrever sobre o que me pulsava: relações.
Para falar sobre isso, tomei a experiência drag como elemento-central, mas essas relações poderiam ter sido fundadas das mais diversas maneiras: da experiência de bar, de grupos de teatro, do uso de transportes públicos, da dificuldade de se esperar algo começar ou uma fila andar... Estamos criando (ou sendo criados por) relações o tempo inteiro, e agradecer é permitir dar vazão a esse turbilhão de afetos que viver em sociedade nos arremessa. E se nesse texto caminhamos juntos por oito aspectos relacionais que surgem do (ou são atravessados pelo) fazer/ser drag, não tenho como abandoná-los agora.
Começo então da força interna que me move e agradeço a mim mesmo, sem medo de parecer narcísico. Foi a minha paixão pelo universo drag e pelos afetos que as relações provocam que me dispôs a pensar essas questões e ser atravessado por narrativas tão potentes.
Agradeço à abertura de portas desses quatro artistas maravilhosos que tive a oportunidade de entrevistar. Diogo, Rafael, Arlon e Anna, sou apenas gratidão pela disponibilidade de vocês e todo o carinho que tiveram ao me permitirem “entrar em suas casas” e conhecer um pouco a história de vocês, me relacionando com essas criações tão valiosas que são a Co Kendrah, Thânya Tulmuto, Madame Zâmbia e Satyne Haddukan.
Agradeço também à outra abertura de portas – a da escrita - que a minha orientadora, Ana Cláudia, me proporcionou. Se em muitos casos escrever um trabalho acadêmico é entrar em um processo de sofrimento e martírio, Ana me fez perceber que outros trajetos são possíveis, e me senti livre para caminhar por uma escrita leve e contemplativa. Foi muito importante também fazer parte de um grupo de orientação, mais uma aposta de Ana, que possibilitou trocas muito frutíferas e a diluição da sensação de solidão que a escrita monográfica por vezes carrega. Obrigado “Hi, Lorena”! No meio de um quadro nada favorável de pandemia e do cansaço de estar sempre referido à tela de computador, os nossos encontros – mesmo que submetidos à lógica virtual – não apareciam como mais uma obrigação e um lembrete de que estamos todos apartados, mas sim como um espaço de acolhimento que trazia a sensação de estarmos todos juntos.
E por falar em grupalidade, não há como pensar os agradecimentos de um trabalho de conclusão de curso sem pensar em toda a trajetória que precedeu e os grupos que me acolheram nesse percurso. Haus of Psi, Shady Bitches, Sex and the Chico, Compulsivos por fazer A+ (ou Realeza em Podcast), Bang, Enquanto esperávamos a Páscoa. Por detrás desses guarda-chuvas, vários indivíduos que têm suas marcas em mim, e que em algum momento durante todo esse percurso de graduação se fizeram presentes e me abraçaram às suas maneiras.
Relembrar esses grupos e suas origens é me transportar para minha experiência de estar em sociedade, na rua. E que saudades de uma vida sem pandemia! Um filme passa em minha cabeça enquanto transito pelo curso de psicologia da UFF, pelas vivências de ensinar inglês no Red Balloon, pela minha vizinhança em Recife, pelos cursos de teatro que fiz. E isso me leva a pensar outros espaços de formação e acolhimento que também estiveram presentes nesse período: bons encontros na Cantareira no início da faculdade; o grupo de pesquisa Equilíbrio e Movimento; as sessões de sociodrama e os consultórios de terapia; os estágios de observação; os estágios na DGD/CPTA, IFSM, CAPSi Monteiro Lobato e Ambulatório de Pendotiba; as festas LGBT+; os passeios em São Paulo e demais viagens; as idas a Recife e os reencontros com meus amigos que embora distante espacialmente seguiram sempre presentes; e tantos outros espaços de convivência e trocas.
E o que seria do meu show sem o papel da arte na minha vida? Nos cursos de teatro da OST e ECOA; na imersão em teatro ritual; no treinamento de atores Ilha Flutuante; nos processos de construção dos espetáculos Sonho e Plaster; no FENTA; na direção de espetáculos do Red Balloon; nas criações independentes quando me uno a outros colegas artistas... Minha chegada à Niterói acompanha minha entrada no teatro, e todas as relações que surgiram desses espaços têm sido fundamentais para mim, e para construção da minha identidade artística, que por sua vez foi uma percepção fundamental na construção de parte deste trabalho e na maneira como experimentei meu curso de psicologia. Finalizo esse parágrafo agradecendo a uma das pessoas mais importantes da minha trajetória teatral e que sempre estará presente em mim, Erika Ferreira.
Agradeço também ao meu companheiro de todas as horas, Caique, meu porto seguro de quando tudo está indo errado, certo ou simplesmente indo. Aquele que no abraço encobre muito das minhas inseguranças e me dá força para sustentar o que por vezes parece insustentável. Aquele que me permite sentir a leveza que pode ser o amar e ser amado.
Agradeço ao meu principal alicerce, minha família. Agradeço, em especial, a Olga, Zé, Rafa, Thiago e Zeza. Agradeço também às minhas sobrinhas Soso e Lulu, pelo brilho que trouxeram à minha vida. Aproveito também esse espaço para marcar a importância e as saudades que carrego do meu avô Milet, que com certeza teria sido um de meus maiores apoiadores durante essa jornada no curso de psicologia. Durante os últimos anos, me vi cada vez mais cortando o “cordão umbilical” na busca da minha própria independência e amadurecimento, e com isso também revendo meus posicionamentos e princípios, construindo minha própria relação com o mundo. Tive de abandonar parte do que aprendi com minha família e por vezes isso foi um processo árduo e difícil. Mas nisso também pude descobrir a potência e a força do que eles me ensinaram, e seguem me ensinando, e que carregarei comigo para o resto da minha vida. Com eles, aprendi acima de tudo a importância das relações. Sem isso, não existiria esse trabalho. Sem minhas relações, eu não existiria.
Por fim, agradeço a Daisy Dolphin e Geri Panterona por me completarem, e fazerem eu me orgulhar de quem eu sou e dos caminhos que trilhei junto a todas essas pessoas.
7. OS RASTROS DESSA TRAJETÓRIA
AMANAJÁS, I. Drag queen: um percurso histórico pela arte dos atores transformistas. Revista Belas Artes, 16ª edição, São Paulo, 2015.
BELIZÁRIO, F. Por uma teoria Queer Pós-Colonial: colonialidade de gênero e heteronormatividade ocupando as fronteiras e espaços de tradução. Atas do V Congresso Internacional em Estudos Culturais. Aveiro: Grácio Editor, 2016.
BRAGANÇA, L. A multifacetada arte drag e transformista: cartografando aspectos teatrais. VII COLARTES 2019: Há um lugar para a arte? Centro de Artes, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, p. 12, 2019.
CHARRO, A. A encenação do Outro e o ator-personagem. Leitura Flutuante. Revista do Centro de Estudos em Semiótica e Psicanálise, v. 4, p. 3-40, 2012.
CHIDIAC, M.; OLTRAMARI, L. Ser e estar drag queen: um estudo sobre a configuração queer. In: Estudos de psicologia, Florianópolis, v.9, n.3, p.471-478, 2004.
CINDERELA. O chupão. In: Me dá teu caneco?. Recife, Ôxe Mainha Produções, 2004.
COHEN, R. Performance como linguagem. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
DOURADO, R.; PRYSTHON, Â. Mulheres com H: estereótipos ambivalentes, representações tensionadas e identidades queer no programa de TV Papeiro da Cinderela. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, p. 160, 2009.
DZI Croquettes. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: . Acesso em: 28 de Fev. 2021.
HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7–41, 1995.
HARAWAY, D. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes*. ClimaCom Cultura Científica. Campinas, SP, ano 3, n. 5, 2016.
LUZ, M.; VIEIRA, M. Corpos em chamas: o fazer drag themonia em Belém do Pará e o uso do corpo-performance como instrumento de luta política na Amazônia. In: Anais do VI Fórum Brasileiro de Pós Graduação em Ciência Política. Anais...Belém(PA) UFPA, 2019.
MANZINI, E. J. Entrevista semi-estruturada: análise de objetivos e de roteiros. Seminário Internacional sobre pesquisa e estudos qualitativos, 2, 2004. Bauru. A pesquisa qualitativa em debate. Anais... Bauru: USC, p. 10, 2004.
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PEIXOTO, F. O que é teatro? 14ª ed, 1ª reimpressão – São Paulo: Brasiliense, 1998.
PEREIRA, L.; NEPOMUCENO, M. Bitch, I'm from Recife: a influência do programa "RuPaul's Drag Race" na cena pós-moderna da cidade de Recife. Monografia (graduação em Jornalismo) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, p. 101, 2016.
RIOT QUEENS. "MULHER DRAG É APROPRIAÇÃO CULTURAL", é o que a gente tem lido por aí, então vamos lá ser didáticas: 15 de dezembro de 2016. Facebook: riotqueens. Disponível em: <https://www.facebook.com/riotqueens/photos/a.598126767033735/649196945260050/>. Acesso em 16 dez. 2020.
SANTOS, D.; SCHENKEL, C. Drag Queer Alma Negrot: o corpo como montagem artística. Trabalho de conclusão de curso (graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Curso de Artes Visuais, Porto Alegre, p. 116, 2017.
SILVA, T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. (org.); HALL, S.; WOODWARD, K. Identidade e diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 200p, p. 73-102, 2000
TREVISAN, J. Devassos no paraíso: homossexualidade Brasil, da colônia à atualidade. 4ª ed, rev., atual e amp. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
1 Nascimento & Comin (2018) diferem a revelação da orientação sexual em dois movimentos: o outness refere-se ao processo de autoaceitação, em que o homossexual se reconhece enquanto tal; e o coming out se refere ao processo de levar essa revelação para outros (comumente chamado de “sair do armário”).
2 “A montagem transpõe para o universo da periferia recifense o conto de fadas original. [...] Na versão da Trupe do Barulho, todas as personagens, à exceção do Príncipe, são defendidas por atores-transformistas.” (DOURADO & PRYSTHON, 2009, p.15)
3 Reality show anual comandado pela drag queen RuPaul desde 2009 (mas que começou a se popularizar no Brasil com sua entrada no serviço de streaming Netflix em 2013), que busca escolher a “America's Next Drag Superstar” a partir de provas que exploram a versatilidade das drags: costura, maquiagem, atuação, comédia, dança, impersonação, canto, etc.
4 Termo utilizado por Chidiac (2004) ao explorar o limite entre as identidades sujeito montado e sujeito não-montado em seus entrevistados.
5 “Homens vestidos de mulher em suas mais luxuosas roupas de moda (aqui inicia-se a concepção da vestimenta como moda nos parâmetros dos dias de hoje, pois, na era Elizabetana, o código de vestimenta era relacionado ao status social e ao gênero) passeavam pelas ruas da França, Itália e Inglaterra” (AMANAJÁS, p.11)
6 A Rebelião de Stonewall foi uma série de manifestações, em junho de 1969, de membros da comunidade LGBT em resposta às investidas da polícia ao bar Stonewall Inn, famoso pela clientela marginalizada perante a sociedade americana da época. As marchas de orgulho LGBT iniciaram no ano seguinte, e por isso que até hoje seguem celebradas em meados de junho.
7 Opto pela utilização dessa sigla uma vez que é a predominante nos textos que abordam o Stonewall, e dado que outras identidades de gênero ou orientações sexuais ainda não apareciam de forma tão marcada na sociedade. Nas demais partes do texto alternarei o uso entre LGBT, LGBTQ+ e LGBTQIA+ a depender dos referenciais utilizados e contextos de aplicação.
8 Estilo de dança surgido nos Ballrooms de Nova Iorque – uma espécie de baile na qual diversas pessoas, em geral em situação de marginalização social, se reúnem para disputar em diversas categorias, valendo troféus e prestígio – influenciado pelas poses que as modelos faziam na revista Vogue. A dança ganhou certa notoriedade ao ser apresentada por Madonna, em uma canção de mesmo nome. O documentário Paris is Burning, lançado em 1991, explora tanto o Vogue quanto a realidade dos frequentadores dos Ballrooms de Nova Iorque. Série atuais como Pose (HBO) e o reality show Legendary (HBO Max) também são boas referências para a temática.
9 Tenho algumas questões com o termo, mas opto por manter a nomenclatura utilizada pelo autor.
10 Leandra Leal dirigiu o documentário “Divinas Divas”, lançado em 2017, que explora a trajetória dessas artistas.
11 Até então, muitos atores-transformistas viviam sua experiência de cotidiano como travestis. A entrada da noção de drag queen na década de 90 tensiona isso, afirmando a possibilidade de se estar no seu papel cotidiano de uma maneira, e na sua expressão artística de outra. Mais recentemente, com a afirmação de mulheres cis, pessoas trans e não-binárias como drag queens, esse entendimento dos papeis de gênero desempenhados no cotidiano vs. em drag inaugura uma nova tensão que expande ainda mais o universo drag.
12 Essa afirmação enquanto drag queer marca uma posição entre o universo noturno e fantástico do drag e o sentido político e social queer de suas performances, que engloba tanto o sentido de estranho e de freak, quando as reflexões sobre gênero e identidades. (SANTOS, 2017)
13 Nome de quem dá vida a Alma Negrot.
14 O termo “faux queen” era utilizado de maneira a diminuir a importância das mulheres que fazem drag queen. De maneira a diferir das que performam masculinidade (drag king) e dar destaque ao papel das mulheres no contexto do drag queen, foi cunhado o termo lady queen.
15 Algumas pessoas atribuem ao termo drag esse significado. Outras teorias vão associá-lo ao fato de que os longos vestidos do século XIX faziam com que os homens vestidos de mulher se arrastassem (drag enquanto arrastar em inglês) ao deslocar.
16 Como o meu ponto de partida eram os atravessamentos da rua, optei por continuar com esse recorte. Entendo que a rua é um espaço relevante na relação com o outro, e que muitas interpelações (positivas e negativas) importantes podem suscitar da simples ocupação desse espaço.
17 Entrevistado em 12 de novembro de 2020.
18 Diogo relata que não se entende enquanto nada, mas que se for no campo de facilitar o trabalho eu poderia colocar “não binário e pan”. O não-enquadramento também deve ser um lugar possível, e nessa fala fica a marca clara do quanto a academia em seu tradicionalismo pode ser um lugar de opressão às identidades não tradicionais.
19 Entrevistado em 19 de novembro de 2020.
20 Rafael prefere não se enquadrar em nenhum rótulo de gênero e sexualidade. Para ele, “na questão de gênero e sexualidade, eu acho que a sociedade da gente é tão cricri por causa dos rótulos (...) hoje, ao meu ver, se a gente não tivesse os rótulos para essa sociedade que tanto fere, aponta e mata, a gente viveria bem. Mas necessário ter para que as pessoas entendam de fato o que é o outro, o indivíduo e possa respeitá-los.” (informação verbal)
21 Entrevistado em 10 de fevereiro de 2021.
22 Entrevistada em 12 de fevereiro de 2021.
23 Anna destaca que prefere não se enquadrar no campo da sexualidade: “eu sou uma pessoa meio descontruída em relação à minha orientação sexual. Já namorei mulheres, já namorei homens, já namorei pessoas de diversos gêneros... eu não me rotulo muito em relação a isso.” (informação verbal)
24 Sem nome, em inglês.
25 Refere-se à primeira vez que se montou para sair de casa – estimulado pelo amigo que se tornou sua drag mother, Melissa L’Orange. Esse episódio será descrito na seção seguinte.
26 Como eventualmente vou falar da mãe/pai biológico, e o nome “drag mother/father” é apropriado do inglês e circulado também no meio drag local, utilizarei esse termo no inglês para facilitar a diferenciação.
27 Casa noturna localizada na Lapa, bairro do Rio de Janeiro, voltada ao público LGBT, que funcionou de 1993 a 2020.
28 Realness era uma festa da noite carioca com performances de diversas drags locais, além de toda edição trazer uma convidada famosa (muitas vezes participantes do programa RuPaul’s Drag Race).
29 Refere-se ao Reino Unido, onde Diogo está atualmente.
30 O autor quebra essa noção durante seu texto trazendo outras experiências teatrais que fazem questionar esse modelo. Ainda que tome o mesmo ponto de partida nesse texto, irei explorar também experiências de apresentações que deslocam essa noção tradicional de um artista se apresentando em um palco com um espectador assistindo.
31 Anteriormente, Diogo comentou sobre um episódio em que saiu montado inspirado em David Bowie. Ao pegar o metrô em Liverpool, várias pessoas pararam para elogiar, pedir para tirar foto, enaltecer e conversar sobre David Bowie. Ele contrasta isso à experiência de ter feito um ensaio fotográfico com um bebê-demônio no meio da praça Saens Peña (localizada no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro), no qual crianças demonstraram curiosidade em saber se ele era alguém famoso, e famílias em circulação e idosos jogando baralho lançavam olhares de estranhamento.
32 Nome fictício.
33 Nome fictício.
34 Rafael comenta que a maior parte dos seus clientes são heteronormativos. Por mais que ele perceba um movimento LGBTQIA+ descentralizado, e tenha várias ressalvas e questões quanto a isso, ele deixa as “briguinhas das letrinhas em casa” e sempre que alguém fora do meio traz uma questão ou comentário problemático, ele busca esclarecer ou trazer sua percepção para aquilo. Um dos exemplos que ele traz é sobre a Parada da Diversidade, onde ele teve alguns atritos com a organização, mas que não impede que ele promova e enfatize a importância. ”É assim que esse coletivo me retribui? Cobrando para eu ser um artista que tá aqui peitando a Avenida Boa Viagem? Eu tenho ‘n’ clientes que perguntam: ‘tu vai para essa baixaria?’, e cabe a mim educar a eles e mostrar que não é baixaria, que a gente está falando de direitos humanos, da garantia do direito de ir e vir”.
35 A “quarta parede” é um termo frequentemente utilizado no teatro para definir uma divisão imaginária que existe entre palco e público, que separa os atores da plateia, que assiste a cena enquanto espectadores numa relação passiva com o que ocorre no palco. A quebra da “quarta parede” é um recurso muito utilizado para trazer o espectador para uma posição ativa, é a interação da plateia na ação dramática.
36 Festa carioca semanal, voltada para o público LGBTQ+, com temática drag, tendo como atração principal um concurso para drags iniciantes, com várias etapas, em que elas mostram seus talentos em performances no palco com temas pré-selecionados.
37 Bar club da cena alternativa do Rio de Janeiro, localizado na Zona Sul.
38 Sobre não ter mais esse espaço no Buraco da Lacraia, Arlon comenta: “A Melissa não ficou mais no Buraco porque ela ia se mudar para São Paulo. Se mudou e tal, mas a pandemia aconteceu. E aí encerrou o show lá. E, com a pandemia, o Buraco fechou. Agora a gente não tem mais o Buraco da Lacraia.” [MZ]
39 Estou me valendo desse caminho por conta da narrativa que optei por seguir, mas muitas drags ao finalizarem suas performances entendem que seu trabalho finalizou ali e costumam já se dirigir de volta para casa.
40 Em alguns casos, entretanto, o drag pode ser tomado pelo campo do fetiche, tal como traz Rafael em um de seus relatos: “ah, já teve casal também querendo pagar para sair com a drag” [TT]. Acredito que isso se aproxime da relação que algumas práticas sexuais possuem com o campo da representação de papeis, mas prefiro não me aprofundar nessa questão pela ausência de referências teórico-conceituais e por ter sido algo que apareceu apenas pontualmente em uma das entrevistas.
41 Tal como a relação familiar que discorrerei a seguir.
42 Nesse trecho, Anna utiliza o gênero masculino por estar se referindo a um momento do passado ao qual ela denomina de “fase pseudo-gay”.
43 NASCIMENTO & COMIN (2018, p.1533)
44 Ibid., p.1529
45 “Obviamente que tem algum tipo de impacto ver Pabllo Vittar no Faustão. (...) mas eu não sei se isso muda a percepção e o entendimento do que é drag. Por mais que eles vejam que tem a drag lá, se eu virar para minha avó e falar “vó, eu sou drag”, mesmo que ela tenha visto a Pabllo no Faustão, eu acho que para ela vai ser o mesmo choque que ela teria se não tivesse visto a Pabllo no Faustão, porque eu acho que às vezes não tem essa abordagem do quê que é.” [CK]
46 No entendimento a partir de HARAWAY (2016), apresentado anteriormente.
47 Rafael comenta sobre um quadro da sua personagem Thânya Tulmuto ao narrar uma de suas histórias de relacionamento, na qual o rapaz com o qual ele estava se envolvendo descobriu sobre sua profissão de drag através desse quadro que ele tinha em casa e, assustado, decidiu por ir embora.
48 CHIDIAK; OLTRAMARI (2004, p.474)
49 Ibidem.
50 CHARRO (2016, p.22)
51 O artigo toma o hibridismo na perspectiva da teoria cultural contemporânea enquanto o movimento que coloca em xeque processos que tendem a conceber as identidades como fundamentalmente separadas, divididas, segregadas. Constitui-se da mistura, conjunção, intercurso entre diferentes nacionalidades, etnias, raças, etc. (SILVA, 2000, p.87). O modo como me aproprio dessa noção é de pensar que o drag é um hibridismo por ele se propor enquanto uma arte de subversão de gênero que quebra com as noções cristalizadas de identidade masculino/feminino, mas também de que ele produz um hibridismo a partir do momento em que se mescla com sua identidade criadora originária.
52 Ibidem.
53 Ibid., p.89.
54 Anna ocupa a função de madre na igreja Humanidade Livre. Formada pelo padre ex-comungado Roberto Francisco Daniel, com sede em Bauru, ela se propõe enquanto uma igreja sem doutrina, tomando apenas Jesus Cristo e o amor como paradigma, e buscando inclusão de diferentes crenças religiosas, visões de mundo, sexualidade, raça, etc. Anna comenta que essa vertente segue o rito básico da igreja católica, mas utiliza outros recursos adicionais, uma vez que não promove uma separação entre divino/profano.
55 “A teoria queer é um projeto político e teórico que busca construir o espaço de desestabilização, subversão e emancipação para os fenômenos relacionados com sexualidade e gênero, não mais entendidos de forma linear e regular, mas antes instáveis, fluidos, tão reais quanto imaginados, e sempre politizados” (SANTOS, 2006 apud BELIZÁRIO, 2016, p.387). Reconheço a importância dos estudos da teoria queer no campo do gênero e da sexualidade, mas opto por apenas utilizar alguns de seus desdobramentos entendendo que explorar a teoria a fundo não é o foco deste estudo.
56 BELIZÁRIO (2016, p.387)
57 Ibid., p.391.
58 Inclusive já me presenteou com corpetes lindíssimos, vale ressaltar.
59 O que não necessariamente é para minha drag, uma vez que tenho alguns macacões de “moda feminina” que utilizo desmontado – afinal, roupa não tem gênero – mas entendo que isso faz parte desse movimento de aceitação de um modo não-normativo de sair de casa.
FERREIRA, Victor. Um passeio pelo universo da transformação: relações que surgem na experimentação drag. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, p. 65. 2021.
Publicado por: Victor Ferreira
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