As Redes Sociais: Percursos do gozo no discurso do capitalista

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1. RESUMO

Este trabalho tem por objetivo um estudo, através de revisão de literatura, de como podemos trabalhar nas redes sociais alguns conceitos psicanalíticos do ensino de Freud e mais extensivamente, de Jacques Lacan. Essa teorização terá como eixos principais os conceitos de desejo, gozo, mais-de-gozar, pulsão, os quatro discursos de Lacan e o que ele chamou de campo de gozo. E também, usaremos os assim chamados teóricos da pós-modernidade como Lipovetsky, Baudrillard, Debord, Bauman e Chul-Han, que nos darão um suporte teórico para que possamos situar as redes sociais em seu contexto histórico e social. Nesse trabalho procuramos refletir de uma maneira não extensa, mas específica, sobre as redes sociais como um evento ou fenômeno típico da era contemporânea, a qual nomeamos ora pós-modernidade ora capitalismo tardio, e algumas vezes, “era digital”, à guisa de procuramos uma especificidade eficiente, e, dentro desse contexto, fazermos uma ligação entre os conceitos psicanalíticos e os dos teóricos da pós-modernidade.

PALAVRAS-CHAVE: rede-social; gozo; discurso-do-capitalista; pós-modernidade

2. Introdução

As redes sociais como as conhecemos hoje, são o produto da evolução sócio-econômica no contexto muito mais amplo do que muitas vezes é chamado de capitalismo tardio, modernidade líquida, pós-modernidade, entre outros. E para entendermos como se deram essas transformações, precisamos fazer um breve percurso pela própria evolução do capitalismo e suas ramificações ideológicas e sociais, para assim termos a oportunidade de poder ver como os conceitos psicanalíticos de gozo e desejo se manifestam nas redes sociais, peças hoje indissociáveis do capitalismo tardio contemporâneo.

Pensamos que um estudo do surgimento e da consolidação das redes sociais como parte indissociável do que chamamos de cultura digital ou digitalismo, estudadas através de uma revisão de literatura orientada por um viés psicanalítico e sociológico (em relação à pós-modernidade), poderá nos mostrar como a relação intrínseca entre desejo, gozo, corpo e as chamadas novas formas de subjetividade estão entrelaçadas no capitalismo tardio ou pós-modernidade

Foucault nos mostra como o iluminismo e seus “produtos” mais elementares e imediatos, a revolução francesa e a revolução industrial, mudaram de maneira radical as relações de produção, sociais, e também, o viés psicológico de uma visão de mundo e de um viver no mundo. O biopoder visto no contexto mais amplo da biopolítica, é um conceito elaborado por Foucault que nos permite entender como o eixo das relações do homo economicus e do homo faber se transformaram ao longo do século XIX para criar o que entendemos como modernidade.

Dessa forma, biopolítica é um conceito que nos mostra as transformações do poder para uma gestão da vida em todos os seus aspectos e modos através de dispositivos disciplinares. “ [...] a biopolítica – por meio dos biopoderes locais – se ocupará, portanto da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram preocupações políticas” (REVEL, 2005, p. 26).

O que chamamos de modernidade foi uma ruptura (entre muitas) de um poder centralizado para um poder descentralizado e poderíamos dizer, mais eficiente nessa “disciplina dos corpos “ como nos diz Foucault. Assim:

Uma técnica que é pois, disciplinar: é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como força de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer em uma massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso que compensar seus efeitos (FOUCAULT, 1999, p. 297).

Foucault (1975/1997) enfatiza a questão do que ele chama de epistemes, ou seja, o fato de que o poder está disseminado em uma rede de micropoderes que se estendem por todas as instâncias do corpo social, formando uma rede densa que trabalhará para manter essa sociedade disciplinar funcionando com uma intensidade eficiente, a serviço do estado e dos poderes que o compõe o estado. Esse é um poder que se exerce sobre os sujeitos, sobre as massas. E, embora Foucault não o diga explicitamente, há todo um componente psicológico dessa dominação no contexto dos sujeitos como massa. Freud (1921/1997), nos diz, citando Le Bom, como os sujeitos tornados massa, pensam e agem de maneira diversa do que pensariam e agiriam individualmente, e esse será um fator de grande importância para analisarmos a era digital.

A sociedade disciplinar, característica da modernidade, vai, por assim dizer, caminhar paralela às transformações sociais do século XIX e da primeira metade do século XX. Tais transformações vieram também ao custo de um mal-estar, não só das privações e agruras econômicas de grande parte da população, mas de um custo psíquico, de um sofrimento mental.

Freud foi testemunha ocular dessa contínua transformação da modernidade ao longo de sua extensa vida e procurou dar um diagnóstico do mal-estar que a permeava, seus processos de subjetivação e suas psicopatologias. Em “O mal-estar na civilização” (1930), Freud analisa as razões do mal estar humano na cultura e nos mostra que o imperativo do princípio do prazer coloca vários empecilhos à felicidade humana. E também, ao analisar os avanços técnicos do que ele chama de ciências naturais, Freud observa que “ [...] a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que [os homens] poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes ( FREUD, 1930, p. 39)

Podemos afirmar certamente, que o progresso extraordinário das sociedades, especialmente, as sociedades ocidentais, veio com custos das mais diferentes naturezas: a perda de uma identidade grupal, a introdução de uma mais-valia (o produto se separa materialmente de seu produtor), como teorizou Marx, o crescimento de um imaginário paralelo ao crescimento dos meios de comunicação de massa, e um gradual enfraquecimento dos laços familiares e sociais.

Zygmunt Bauman (2001), nos fala da modernidade e da transição para a pós- modernidade (que ele vai chamar de modernidade líquida). Essa transição não se dá somente em um nível social, econômico ou político. Ela se dá também no contexto do imaginário, das percepções que as rápidas mudanças de muitas formas, como que se inscrevem nos sujeitos. Silva (2012, p. 61), afirma que Bauman “propõe então que o homem contemporâneo trocou uma cota de segurança por um quinhão de felicidade, o que traz um grande mal-estar.”

A passagem da modernidade para a pós - modernidade adquiriu um caráter mais nítido, de mudanças de paradigmas em todas as áreas, a partir do final da segunda guerra mundial. Em um período relativamente curto de cerca de 70 e poucos anos (quase nada na história da evolução humana), tudo se transformou muito rapidamente. A famosa expressão de Marx “tudo que era sólido se desmanchou no ar” aplica-se muito bem aqui. Uma nova era chegava, onde nada era mais rígido e certo, nada mais era fixo ou palpável. A era da modernidade líquida (Bauman), do vazio (Lipovetsky), da queda do nome do pai (Lacan), do mal-estar generalizado como parte estrutural e motor da sociedade estava inaugurada.

2.1. A pós-modernidade e seus dilemas

A época moderna se esgota como modelo sócio- econômico com o advento da guerra fria. É engendrado um novo tipo de sociedade, em que uma suposta liberdade civil, de pessoas dotadas de direitos impensáveis na época do antigo regime, surge como um modelo essencial para o consumo de massas: para consumir é necessário sujeitos dotados de vontade própria, a quem uma liberdade mínima de escolha seja dada.

Christopher Lasch em sua hoje, clássica obra sobre o fim da modernidade, “A Cultura do narcisismo “(1979), ressalta que:

Viver para o momento é a paixão predominante- viver para si, não para os que virão a seguir, ou para a posterioridade. Estamos rapidamente perdendo o sentido de continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e se estenderão ao futuro (LASCH, 1979, p.25)

Lasch mostrou  essa fratura entre a modernidade, em que o que chamamos de processo histórico ainda era habitado por certezas e uma coesão mínima para um equilíbrio social que para Foucault (2017), passa pelo o que ele chama de “submissão dos corpos”, para uma sociedade de consumo plena em que a perspectiva histórica se quebrava, se destituía como parâmetro, para investir, podemos assim dizer, toda pulsão em energia de consumo, se possível.

Pois o controle disciplinar se transmuta, no advento do capitalismo tardio, em relação ao que Foucault chama de biopolítica ou biopoder: ele não desaparece, simplesmente se transforma para ser mais eficiente e coerente com o princípio básico dessa modernidade líquida que diz ao sujeito: goze.

Lipovetsky, ao expressar essa mudança de esquema, de referência, nos fala que:

negativamente o processo de personalização remete à fratura da sociedade disciplinar; positivamente, ele corresponde ao agenciamento de uma sociedade flexível baseada na informação e no estímulo das necessidades, no sexo e na consideração dos “fatores humanos”, do culto ao natural, da cordialidade e do humor. Assim opera o processo de personalização, nova maneira de a sociedade se organizar e se orientar, novo modelo de gerenciamento de comportamentos, não mais pela tirania dos detalhes, mas com o mínimo de constrangimento e o máximo possível de escolhas privadas, com o mínimo de austeridade e o máximo possível de desejo, com o mínimo de coerção e o máximo possível de compreensão. (LIPOVETSKY,2005, p. XVI)

E ainda, podemos ressaltar, toda uma era de narrativas, sejam elas subjetivas, de massa ou artística, vai lentamente, se desvanecer nesse impositivo de um prazer do aqui agora, pois “ viver livre e sem pressões, escolher seu modo de existência são os pontos de mais significativos no social e no cultural do nosso tempo[...] (LIPOVETSKY, 1993/2005, p. XVIII). Dessa forma, os laços sociais criados na era moderna para uma consolidação mais eficaz do capitalismo, se esgarçam em nome de nome de uma liberdade do sujeito. Lipovetsky (2005) nos fala dessa perda do ímpeto modernista em relação a um futuro possível, do desencanto e apatia que como que adiam indefinidamente esse futuro

Dufour (2003) vê a pós-modernidade como “declínio do grande Sujeito”. Para Dufour, o declínio da imago paterna do modo como Lacan a teorizou como conceito da lei, não mais se aplica na modernidade tardia:

Em suma, na pós-modernidade, não há mais Outro no sentido do outro simbólico: um conjunto incompleto no qual o sujeito possa verdadeiramente enganchar uma demanda, formular uma pergunta ou apresentar uma objeção. Nesse sentido, é idêntico dizer que a pós-modernidade é um regime sem Outros, ou que a pós-modernidade é repleta de semblantes de Outros, que imediatamente mostram o que são: tão cheios de presunção quanto as tripas. (DUFOUR, 2003, p. 59)

Ainda Lipovetsky (2005) ressalta que essa passagem da modernidade para a era pós-moderna os sujeitos resvalam para o narcisismo, e “o narcisismo revela, tanto aqui quanto em outros aspectos, a sua conivência com a ausência de substância pós-moderna, como a lógica do vazio”(p. XXIV)

Podemos destacar pontos sensíveis desse pós-modernismo da era digital: o individualismo, o narcisismo, o consumo como objetivo em si mesmo, a questão do corpo, as chamadas “novas formas de subjetivação “erigidas em teorias identitárias e supostamente libertárias, a volatilidade, a instabilidade como marca intrínseca do sistema do digitalismo, e, pensamos, a mais curiosa característica desse digitalismo: a precariedade de tudo: dos laços sociais, do trabalho, da vida psíquica, da fantasia,enfim.

O que Bauman (2001), Lasch (1979) e Lipovestky (2005), têm em comum é a questão de uma identidade, que à guisa de ser “liberada”, perde seu sentido histórico: o Outro se torna não só o simbólico, mas uma narrativa fantasmática. Na modernidade, “a apresentação dos membros, [da sociedade] como indivíduos é a marca da sociedade moderna. Essa apresentação, porém, não foi uma peça de um ato: é uma atividade reencenada diariamente” (BAUMAN, 2001, p. 4)

Diferentes dispositivos de poder irão, regular, controlar, e modular as sociedades, seja através do poder disciplinar, do biopoder ou da biopolítica. Mas, como veremos, o quadro conceitual dos teóricos do poder do século XX, já não conseguem inferir as profundas mudanças sistemáticas do capitalismo que caracterizam a era digital. E muito mais que mudanças sócio-econômicas, essas mudanças se dão na própria relação desejante e do gozo dos sujeitos inseridos nessa sociedade global.

3. Desenvolvimento

3.1. A Era digital: conceitualização e contextualização

O surgimento da rede mundial de computadores ou internet, resultou não só de um resultado de anos de inovação tecnológica, mas de um reflexo bastante evidente que a chamada globalização caminhava para um novo recorte, um novo momento de reorganização das forças do chamado “capitalismo tardio”. Antonio Negri e Michael Hardt teorizaram essa nova reorganização capitalista em “Império” (2001). Byung-Chul Han comenta:

Segundo Michael Hardt e Antonio Negri, a globalização desenvolve  duas forças opostas. De um lado, ela erige uma ordem de domínio capitalista descentralizada, desterritorializada, a saber, o “ Império”. De outro lado, ela produz uma assim chamada “Multidão”, uma composição de singularidades que se comunicam por meio da rede e agem conjuntamente. Ela se opõe, no interior do Império, ao [próprio] Império. (SHUL-HAN, 2018, p.31)

Martin e Schumann, ao falar da globalização (1996), usam a expressão “tudo em toda parte”. De fato, é possível afirmar que o mundo global, do qual a internet é a mais evidente característica, é um mundo de não- território, um território sem centro, ou melhor, um território de todos os lugares, atemporal, sem fronteiras, acrítico e amorfo. E nesse mundo, as representações sociais, a própria construção social da realidade, passa por fragmentações sociais inéditas, pois precisamos levar em consideração, nesse ponto, a ascensão do neoliberalismo como ator preponderante da pós- modernidade

Não é nosso propósito aqui, um estudo do neoliberalismo como protagonista socio- econômico e financeiro do capitalismo tardio, mas como produtor eficiente de um imaginário cuja performance se dá na rede mundial de computadores e seu produto de controle social de eficiência máxima: as redes sociais. É significativo e fundamental para nós, caracterizar esse lugar do neoliberalismo em seu amálgama de “Império” e “Multidão” como o caracterizam Negri e Hardt (2001). Os autores ressaltam ainda, a importância, nesse cenário, do que chamam de “valores universais”. Dessa forma, o capitalismo tardio neoliberal encontra na internet e nas redes sociais, um meio de grande eficácia para a reprodução de valores amalgamados aos produtos e supostos estilos de vida que viriam com eles. Ao reproduzir esses valores “espontaneamente”, fica evidenciado que:

O neoliberalismo é um sistema muito eficiente – diria até inteligente –  na exploração da liberdade: tudo aquilo que pertence às práticas e às formas de expressão da liberdade (como a emoção, o jogo e a comunicação) é explorado. Explorar alguém contra sua própria vontade não é eficiente, na medida em que torna o rendimento muito baixo. É a exploração da liberdade que produz o maior lucro (SHUL-HAN, 2018,p. 11)

Lipovetsky (1993/2005), nos chama a atenção para o modus operandi dessa nova era:

No reinado da mídia, dos objetos e do sexo, cada qual se observa, avalia-se, volta-se mais para si mesmo à espreita de sua verdade e do seu bem-estar , cada qual se torna responsável pela própria vida e deve administrar da melhor maneira o seu capital estético, afetivo, psíquico, erótico, etc. Aqui a socialização e a dessocialização se identificam, no auge do deserto social se ergue o indivíduo soberano, informado, livre, o prudente administrador da própria vida. (p. 7)

O sujeito neoliberal é o empresário de si mesmo como afirma Shul-Han (2018). Não existe nenhuma ligação destituída de alguma expectativa, “não há amizade desinteressada”. E algo ser “bem-sucedido”, é a finalidade única a ser buscada. Podemos assim, afirmar, que em todos os aspectos da vida, a frustração ou qualquer coisa próxima de um desenlace mal-sucedido devem ser mantidos à distância.  A aparência ilusória das coisas toma aqui a forma de necessidade, de fim em si mesmo, tendo o ideal de uma felicidade fantasmática como motor primário: “[...] o mito da felicidade é aquele que recolhe e encarna, nas sociedades modernas, o mito da Igualdade.” (Baudrillard, 1995, p. 47).

Em sua teorização da modernidade tardia como “sociedade do espetáculo”,  Debord ( 1967/2003), nos mostra como em sua conceituação, o mundo social, o mundo das coisas se torna essa  sociedade do espetáculo, a economia nos molda e nos define de múltiplas formas de mais-valia e até além da mais-valia: “o espetáculo submete para sim os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. [...] é o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. (p. 18).  E surge, como efeito dessa sociedade, que age, como afirma Shul-Han como “enxame” (2018), uma apatia, uma destituição dos valores públicos e a ascensão de uma suposta “liberdade social” que se revela em uma fixação no corpo e no sexo. (Lipovetsky, 2005).

Ainda para Shul-Han (2018), “a liberdade do capital se realiza por meio da liberdade individual” (p. 13). Uma estabilidade do sistema precisa ser sempre procurada e sempre reproduzida em um looping infinito, o looping do algoritmo. A repetição é uma característica da era digital que é condição sine qua non para sua existência. Ainda Shul-Han (op.cit.), cria o conceito de panóptico digital, ecoando o panóptico de Jeremy Bentham, reconceitualizado por Foucault e Jacques Alain-Miller. No panóptico digital de Shul-Han, seus habitantes (os habitantes do mundo digital), se comunicam entre si livremente. A coação é a coação da liberdade, do expor-se, da autorrevelação constante e onipresente,e, principalmente, voluntária. “na verdade, ela [a transparência], não é nada mais do que um dispositivo neoliberal. Ela vira tudo violentamente para fora, para que possa produzir informação” (SHUL-HAN, 2018, p. 19).

Se Foucault, nos conceitos de biopoder e dispositivo, teorizava um momento específico do poder e do que podemos chamar de sociedade repressiva, nas quais, em determinados momentos, fora necessário o controle dos corpos e do tecido social, desde Lipovestky até Shul-Han, podemos verificar a transformação desses mesmos conceitos e sua diluição em , para usar o termo foucaultiano, epistemes mais eficientes e mais tentaculares, por assim dizer. O mundo hiper-conectado das redes sociais, da vida em “ tempo real”, do presente infinito é a vida da “ditadura da transparência” como bem conceitualiza Shul-Han (2018). Estar no mundo é ser consumidor e ser consumido por uma sociedade em que tudo é hiper- conectado, tudo está aí para ser consumido e descartado com idêntica eficiência.

O dilemas da pós-modernidade e do capitalismo tardio, estão interligados, e dada á proporção da inserção do novo capitalismo de consumo global e da predominância universal da internet, urge analisarmos como o produto mais visível e porque não poderoso dessa nova reconfiguração, as redes sociais, define essa nossa época do narcisismo, do imperativo do gozo, da chamada “pós-verdade” e como elas se configuram e redefinem ao infinito, o desejo dos sujeitos seus meandros.

3.2. As Redes Sociais e as novas formas de subjetivação: cartografias digitais

As redes sociais, que se consolidaram nos anos 2000, com o advento do Facebook e do Twitter, como modelos de comunicação “online”, ou seja, em tempo real, se projetam como o corolário de um novo tipo de meio de comunicação de massa, um evento que ultrapassa o mero “noticiário” que caracterizava os meios tradicionais como jornais, rádio ou televisão.

Instagram ou aplicativos instantâneos como Snapchat levaram a um outro patamar questões tão premente nas redes sociais como o corpo e a mediação que envolve o ver e as relações simbólicas que se estabelecem com esse ver e ser visto, especificamente a pulsão escópica; o tema dos discursos aparece aqui como o próprio motor, razão de ser das redes sociais. O imperativo do gozo aparece como característica marcante e definidora dessas redes sociais que fazem das chamadas novas formas de subjetivação um impulsor de um consumo que sempre exige mais gozo à custa de um laço social, poderia- se dizer, cada vez mais distendido e amorfo.

O que se convencionou chamar de exposição nas redes sociais, se revela uma faceta inerente a essas novas formas subjetivas de expressão, que passam por uma demanda constante do Outro:

Ao se projetar nas redes socias, o sujeito nada mais demanda que o amor do Outro, ser fonte de desejo desse Outro, e é por meio de “curtidas”, “comentários”, que vai se sentir desejado e amado, o que seria chamado de gozo exibicionista, onde a fonte de satisfação olhar. Ao se voltar a esse Outro ele quer algo, algo para preen cher aquilo que lhe falta. Um grande engano, pois todos os sujeitos são constituídos pela falta, ou seja, nada poderá tamponar esse vazio da humanidade. (ROCHA E SOUZA, 2017, p. 5)

Anda-se como que em círculos nesse mundo das redes sociais, onde o Outro está em toda parte, e paradoxalmente, em nenhum lugar: falamos desse mundo como de uma cartografia sem centro, sem demarcações, pois os sentimentos e afinidades se diluem e “tudo se desmancha no ar”.

Os novos modos de subjetivação do capitalismo tardio e suas ramificações no consumo de produtos e porque não, no consumo de si mesmo e de imagens, formam o que Baudrillard e Lipovetsky chamam de “hipermodernidade”. Gomes (2016, p.20), nos diz: “Desde a época de Freud já era por ele vivenciado na clínica situações relacionadas ao ver/ser visto, que desse modo traziam para o sujeito um enlace com suas afecções”

As redes socias são as duas faces de uma mesma moeda: um gozo que em seu imperativo, traz o mal-estar. Pois se os modos de representação dessa hipermodernidade demandam uma exposição incessante de afetos, esses mesmos afetos se entrechocam em seu semblante que é negativo e ao mesmo positivo, expondo a nu a contradição entre o desejo e seu corolário de impossibilidade que pertence a todos nós, sujeitos divididos, sempre em busca da “coisa original”, que viverá para sempre na dimensão do impossível, por assim dizer.

Quinet (2004, p. 284) nos diz do “sou visto, logo existo”, o que nos remete à dimensão escópica vigente nas redes sociais, que aliada à linguagem em si mesma, instituem essa dimensão de vida à parte, de “império do efêmero”. A relevância da pulsão escópica não pode deixar de ser levada em consideração em qualquer análise das redes sociais pela ótica da psicanálise. As imagens e a linguagem nesse universo agem não só como mediação simbólica, mas como substrato mesmo do tecido social e imaginário da internet como um todo.

Freud (1905) já nos dizia:

Por “pulsão” podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do “ estímulo”, que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos de delimitação entre o anímico e o físico. (p. 159)

Desse modo, a pulsão escópica nos leva, ainda segundo Quinet, a uma sociedade escópica, o novo panóptico vislumbrado por Miller em Silet (2008). Nesse padrão social, que é o da rede social, os sujeitos assumem-se ao mesmo como objeto de desejo e sujeito que observa (Santos, 2016). “Nas redes sociais o sujeito se dá a ver e assistir e, nesse palco querem ser protagonistas, coloca-se em tela um gozo em que todos gozam e se tornam objetos de gozo.” (Santos, 2016, p. 10). Ainda Quinet afirma que “nessa separação entre o olho e o olhar encontra-se a esquize do sujeito em relação ao campo escópico no qual se manifesta a pulsão.” (QUINET, 2002, p. 41)

A questão da pulsão escópica está estreitamente conectada ao tema do corpo e da linguagem. E ao falarmos de linguagem nos remetemos ao corpo marcado pelo significante como nos ensinou Lacan. Sternik (2010, p. 31) nos lembra que:

Lacan, leitor de Freud, não busca a equivalência do corpo investigado no modelo freudiano como pulsional, erógeno e nem tampouco orgânico – embora nenhum desses seja desses seja desconsiderado por ele, mas o corpo vinculado ao gozo, advindo da consequência do significante fornecido pelo Outro e incorporado pelo sujeito, cabendo ao sujeito nomeá-lo através da linguagem.

Se fizermos essa amarração como uma tríade: pulsão escópica, linguagem e por fim o narcisismo, poderemos nos dar um roteiro específico de nossa análise das redes sociais e da constituição desse sujeito digital. Para Melo, Sacchq e Reis (2019), o narcisismo se constitui, na sociedade atual, em um modo de atingir a felicidade, que se reflete nas redes sociais como legitimação de si mesmo, como espelho que precisa de ser constantemente legitimado pelo outro. Para Pizzimenti (2019), o narcisismo, tal qual elaborado na trajetória do ensino de Freud, tem como ideia básica a noção de que “o eu é portanto, dominado pela preocupação com sua integridade enquanto imagem, e tem como missão, a conservação de si” ( p. 91)

Os dois tópicos que dominam a amarração do imaginário das redes sociais são o corpo e a linguagem. Couto, Goellner at al. (2009, p. 79) sublinham como o homem, “órfão dos grandes ideais e das certezas que norteavam a humanidade, [...] é estimulado a voltar-se para o individualismo, para a própria imagem, para o culto ao próprio corpo, último reduto de apego, fidelidade e adoração”. O corpo e suas representações nos dizem que juntamente com a linguagem, formam, nas redes sociais, uma narrativa que é perpassada pelo imaginário, em uma dinâmica essencialmente caracterizada pela performance. Se no senso comum, performance é como uma tarefa destinada a um conduzir a um determinado resultado, a performance segundo o dicionário Aulete online, também é “o desempenho de uma exibição”.

Assim, nessa performance do sujeito das redes sociais, podemos ver uma dinâmica de repetição que nos remete a um “sujeito das redes sociais”, imerso em um discurso em que o desejo e o gozo formam um campo de discurso imprescindível para a compreensão desse mesmo sujeito.

3.3. Desejo e gozo nas redes sociais: perspectivas teóricas

Para Valas (2001), Freud nos diz que

A satisfação do desejo (wunschbefriedigung) é primeiramente uma satisfação subjetiva (onírica ou fantasística), independente de sua realização efetiva em um prazer de órgão que poderia acompanhá-la, independente também do seu encontro com o objeto sexual. A satisfação do desejo tem um valor sexual, na medida em que, por definição, o desejo (wunsch) tem sempre uma polaridade sexual. [...] quanto à busca do objeto sexual na realidade, ele é sempre orientado pelos traços mnêmicos a partir dos quais o desejo insconsciente e indestrutível é determinado. (p. 12)

Nas redes sociais, o desejo flutua, está sempre à espreita, está sempre á procura de um objeto. E nesse âmbito, a libido é uma parte inerente à narrativa que se tece nas redes sociais. De acordo com Freud (1914 apud VALAS, 2001, p. 14), “o Eu é o grande reservatório da libido”, e “partir do Eu, a libido se transfere para os objetos, mas fundamentalmente o investimento do Eu pela libido permanece.” (VALAS, op. cit., p. 14)

Roudinesco (1998, p. 474), ao falar de como Freud criou o conceito de libido, clarifica que

Contrariando os sexólogos que, a reduziam ao sexual no sentido genital, ele estendeu a libido a uma pulsão sexual generalizada, e opondo-se a Jung, que, ao contrário, pretendia dissolvê-la numa instância assexual, inscreveu-a como componente central de um Eros enfim reencontrado [...]

Se pensarmos as redes sociais como um “campo libidinal”, podemos levar em consideração que a libido pode também se fixar, se concentrar em objetos, ou então, deixá-los, substituindo um objeto por outro, como apontam Laplanche e Pontalis (1991). Valas nos diz que “a libido para Freud conjuga o que será encontrado mais tarde em Lacan, e conjuga-se na sua conceituação do desejo e do gozo, e mais especialmente, no nível do gozo fálico” (VALAS, 2001, p.15)

Para Valas ( 2001), Lacan elaborou uma teoria do desejo que se estrutura em dois princípios: um psicanalítico, baseado no desejo como Wunsch  da maneira que Freud o concebeu e como um princípio filosófico retirado da Fenomenologia do espírito de Hegel, que fala que nos reconhecemos a partir de um outro, o qual “serve de suporte para meu desejo; isso quer dizer que eu o tomo como objeto do meu desejo, negando-o como consciência” (Valas, p. 15). Desse modo, o “primeiro Lacan” vai definir o desejo como reconhecimento do desejo do outro.

Mas, para Valas (2001), desde o texto “A instância da letra no inconsciente”, de 1958, Lacan modifica sua teoria do desejo (e do sujeito) em direção a um sujeito dividido pelo significante e do desejo do Outro do significante. “Daí resulta que, quanto mais o sujeito avança no caminho de realização de seu desejo, mais ele sofre os efeitos de sua destituição subjetiva”. (VALAS, 2001, p. 16). Há essa “fragmentação” do sujeito e de seu desejo.

Em redes sociais como o Twitter, Facebook e principalmente no Instagram, podemos perceber como o desejo faz esse movimento que poderíamos chamar de circular e recorrente. A linguagem e as imagens agem como a superfície de um campo onde circula o Outro, “tão longe e tão perto”, envelopado em um imaginário em que o sujeito dividido deseja sem cessar, e sem cessar esbarra nessa impossibilidade de não termos acesso ao todo.

A conceituação do gozo (passando pela relação de objeto, pulsão, repetição, narcisismo) no ensino de Lacan se dá por etapas distintas. Podemos situá-la a partir do seminário 4 (1956-57), onde, Miller (1998), adverte sobre “a conjunção do narcisismo com a relação de objeto [que] transita pelo objeto privilegiado, o fálico. (Miller, 1998, p. 149). No seminário 7, “A ética da psicanálise”, (1959-60), “ [Lacan] afirma logo de saída sua hipótese da captura do gozo pelo significante” (Valas, 2001, p. 28), assim, “ o seminário 7 se organiza em torno da definição da Coisa, correlata ao real do gozo e da sua função na economia subjetiva; [...] Lacan introduz o gozo de modo conceitual no seu ensino. (ibidem, p. 30). Danziato afirma que

A ideia central de Lacan é que no momento em que o sujeito entra no mundo simbólico – campo da linguagem – algo de uma perda originária se dá, já que o simbólico não é completo, pois fundado numa falta. Toda problemática da falta e da perda do sujeito está referida, portanto, a uma relação estutural do sujeito com o campo da linguagem, ou, como sugere, em sua relação com “o significante e a lei do discurso.(DANZIATO, 2012, p. 153)

Para melhor compreendermos o conceito de gozo em Lacan, precisamos enumerar as diferentes formas em que ele expressa em seu ensino, o termo “gozo”. Nasio (1993), enumera: o gozo fálico, o mais-gozar e o gozo do Outro. Dessa forma, “o gozo fálico corresponderia à energia dissipada durante a descarga parcial, tendo como efeito um alívio relativo, um alívio incompleto da tensão inconsciente” (Nasio, 1993, p. 27). O “mais-gozar permanece retido no interior do sistema psíquico, e cuja saída é impedida pelo falo. (...) “mais” indica que a parcela de energia não descarregada, o gozo residual, é um excedente que aumenta constantemente a intensidade da tensão interna”. E “o gozo do outro, estado fundamentalmente hipotético que corresponderia à situação ideal em que a tensão fosse fundamentalmente descarregada, sem entraves de nenhum limite”. (p. 27). Falo, na psicanálise lacaniana, “é o nome de um significante, que tem por função significar tudo que depende, de perto ou de longe, da dimensão sexual. (Nasio, op. cit., p. 31)

No seminário 7, Lacan trabalha extensivamente o conceito da chamada “coisa freudiana” (Das Ding). Para Fink (1998), a “coisa” originária de Freud, que a princípio, é explicada em termos neuronais em “Projeto para uma psicologia científica” de 1895 (como algo imutável nas percepções “que a criança tem do seio’ (p. 121), é “traduzida” por Lacan para significantes e suas ligações em uma cadeia de significantes. Aí, “encontramos alguma coisa (...), que permanece isolada ou sem contato com o resto da cadeia significante, embora a cadeia necessariamente circule ao redor dela: a Coisa, apelidada objeto a. (Fink, ibidem, p. 121).

No seminário 16, Lacan, no contexto amplo da discussão do gozo, equipara os conceitos de objeto a e mais-valia de Marx. Ele nos diz:

Assim como o trabalho não era novo na produção de mercadoria, a renúncia ao gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é nova. (...) O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de gozar. É essa a essência do discurso analítico. ( LACAN,1968/2008, p. 17)                                         

Será no seminário 17, “O avesso da psicanálise”(1969-70), que Jacques Lacan irá inserir a noção de gozo em um “campo de gozo”, e, ao conceituar os “quatro discursos”, Lacan irá explicar como o sujeito faz sua amarração no laço social. Lacan teve como objetivo “propor uma nova forma de entender o estabelecimento do laço social entre os sujeitos, no qual há uma articulação inovadora entre o campo da linguagem e o campo do gozo” (Coelho, 2006, p. 108).

4. Os quatro discursos e o campo lacaniano: o discurso do mestre como marca das redes sociais

Quinet (2009) faz sucintamente um resumo da trajetória do ensino de Lacan: o dos anos 50 (linguagem, o significante), os anos 60 (o conceito de objeto a partindo de Das Ding) e o ensino dos anos 70, o do gozo, da topologia e dos matemas.  Nos diz Quinet:

Nesses três períodos, Lacan parte de Freud, prolongando-o; esquematicamente, no primeiro ele parte do conceito de in-consciente e de suas leis da fala e da linguagem; no segundo, dos conceitos de angústia e de pulsão; e no terceiro período, dos conceitos da repetição, pulsão de morte e seus sucedâneos (o supereu, o mal-estar, o masoquismo). (QUINET, 2009, p. 24)

Desta forma, podemos afirmar que para Lacan, “a psicanálise é uma operação no campo da linguagem, (...) definida como uma operação no campo do gozo, ao qual Lacan batizou com o qualificativo de seu nome: o campo lacaniano” (Quinet, ibidem, p. 25). Discurso é “o que faz laço” (Coelho, 2006, p. 108), e esse laço percorre o sujeito não só na sua dimensão social, mas fala do sujeito como falasser ( parlêtre).

Os diferentes discursos de Lacan: o da histérica, o do universidade, o do analista e o do mestre, são “(...) modalidades do laço social que representam uma estrutura necessária, as quais ultrapassam em muito a palavra.” (MONTEIRO, 2019, p. 165). Se no seminário 11 (1964), Lacan ainda insistia no significante que é representação do sujeito para um outro significante, a partir do seminário 16 (1968/69), haverá uma mudança de eixo, pois Lacan irá inserir o gozo nessa estrutura (Monteiro, 2019). E esse mesmo autor vai nos dizer:

O que demarca o real da estrutura discursiva é o objeto a mais-de- gozar. Este objeto sinaliza o gozo, aquilo que o sujeito tem de irre- presentável e, portanto, sempre fracassa ao tentar representa-lo na linguagem. Trata-se de um excesso que não cessa de não se relizar. quanto mais falamos e produzimos palavras, mais deixamos para trás um resto, um mais-de-gozar. (MONTEIRO, 2019, p.166)

No Seminário 17, “O avesso da psicanálise” (1969/70), Lacan trabalha extensivamente, junto aos discursos, o conceito de mais-de-gozar. Quinet afirma que nessa estrutura dos discursos e do campo do gozo,

Lacan estabelecerá a identificação principal do sujeito com um traço unário vindo do Outro, o S1, o significante-mestre, matriz da identifi- cacão simbólica, e o S2, o significante binário, como um outro significante para o qual o sujeito está representado. O sujeito está entre dois significantes. (QUINET, 2009, p. 25)

Se nos lembrarmos que as redes sociais são regidas não só pelo imaginário mas também por um vazio faltoso, faz sentido que “uma vez imersos no discurso, produz-se uma perda, uma entropia de gozo. O mais-de-gozar, nessa perspectiva, inaugura na teoria lacaniana o campo do gozo, [...] (MONTEIRO, 2019, p. 166).  Nas redes sociais, no mundo da internet o discurso do Outro, aparece como um catalizador das trocas simbólicas mediadas pelo mais-de-gozar. Fazendo a analogia com a mais-valia de Marx, Lacan reitera que “ o mais-de-gozar é uma função de renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que que dá lugar ao objeto a.” (LACAN, 1968/2008, p. 19)

Se não há uma consistência no Outro (uma consistência lógica), segundo Lacan, o próprio mais-de-gozar é quem mostrará essa incongruência, pois quando o sujeito se estabelece no campo do Outro, uma perda sempre acontecerá, e a repetição tentará ad infinitum recuperá-la (Monteiro, 2019). Se, ao usar um rede social, através de uma bateria de significantes, ao de certa forma, produzir e acessar um saber, haverá necessariamente um gozo, envolvido, e gozo, esse que mais-de-gozar, aponta inexoravelmente para uma repetição que fará laço social no discurso, mas gerando um vazio sintomático, o vazio do preço a pagar pela impossibilidade do gozo. E precisamos nos lembrar que o Outro das redes sociais também pode ser descrito dessa forma como “(...) aquilo que diante do qual vocês se fazem reconhecer. Mas vocês só podem se fazer reconhecer por ele porque ele é em primeiro lugar reconhecido”. (LACAN, 1954/1985, p. 63).

Os quatro discursos de Lacan, como já mencionamos, são definidos por ele como: “os discursos nada mais são que a articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras”. (LACAN, 1969-70/1992, p. 177). Usando de formas algébricas, Lacan cria matemas (uma escrita algébrica que exprime a teoria psicanalítica), e ao elaborar os discursos, usa os símbolos S1, S2, $ e a.  Monteiro (op. cit., 2019, p. 166) nos diz que

A estrutura do discurso é coordenada por quatro elementos,os quais podem mudar de posição de acordo com cada dis-curso. Estes elementos são distribuídos em quatro lugares diferentes e imutáveis: o agente, o outro, a verdade e a produção.

Assim, temos no discurso do mestre, por exemplo: agente ----------à outro

verdade-------à produção

Monteiro (ibidem, 2019, p. 168), ressalta que “ Marx falou de mais-valia e Lacan (1968-69/2008) falou de mais-gozar para apontar o índice do mal-estar da civilização” Sustentamos que o que é chamado de rede social, visto como Shul-Han (2018) e outros como “um sintoma da era do vazio” (cf Lipovetsky, 2005), é um dispositivo em que a conclamação neoliberal do goze! (e consuma/consuma-se), se faz em um universo entrópico,em que a “desordem” do sistema é essencial para que esse funcione. Mas o mais-de-gozar também é uma marca inerente a esse dispositivo, pois se há um imperativo do gozo, há também a impossibilidade desse gozo de efetivar, pois “o corpo é algo que se goza, e esse gozo (...) é, por assim dizer, produto da articulação significante, que depende da existência do Outro. “(Arenas, 2010, p. 237, tradução nossa).

Lacan parte do discurso do mestre para elaborar o discurso do capitalista. Para Fink (1998, p. 161), o discurso do mestre “ocupa um lugar privilegiado nos quatro discursos, constituindo um discurso primário (tanto filogenética quanto ontogeneticamente). É a matriz do vir a ser do sujeito através da alienação. O mestre S1, dirige-se ao escravo S2 o trabalhador). Fink (ibidem, p. 161) afirma que “o escravo, ao trabalhar duro para o mestre, aprende algo: ele vem encarnar o saber (...) representado aqui por S2. O mestre não se preocupa com o saber conquanto seu poder aumente”.

S1--------------------à S2

$--------------------à a

“O discurso do mestre nos mostra o gozo como vindo ao Outro – é ele que tem os meios. O que é linguagem não o obtém a não ser insistindo até produzir a perda de onde o mais-de-gozar toma corpo”. (LACAN, 1969-70/1992). E “o mais-de-gozar aparece como um bônus, como um modo de recuperar fragmentos do que não se perdeu, (...) não corresponde ao gozo, mas a fragmentos de gozo”. (MONTEIRO, op.cit., 2019) Lacan nos lembra: “o significante, então, se articula por representar um sujeito junto a outro significante. É daí que partimos para dar sentido a essa repetição inaugural, na medida em que ela é repetição que visa o gozo” (LACAN, 1969-70/1992).

O discurso do capitalista, que acreditamos, rege a esfera do capitalismo tardio neoliberal da contemporaneidade, desenvolveu-se a partir do conceito do discurso do mestre, no ensino de Lacan. Quinet (2009) afirma que todo discurso é discurso de dominação e que “os discursos de dominação se utilizam da propriedade do poder de comando do significante em seu caráter impositivo e até mesmo ditatorial, seja sob a forma de poder (S1) ou de saber (S2). (ibidem, p. 36). Assim sendo, afirma, esses discursos de dominação têm como ápice o discurso do capitalista.

A internet e as redes sociais se validam em um espaço onde não há centro, e sua mais-valia é o mais-de-gozar, pois elas vivem de um imperecível autoconsumir-se que nos mostra que a incompletude do desejo é, nelas, valor máximo de consumo. Lacan já nos advertia:  “a falta já está aí quando falo do desejo do sujeito humano no que se refere à sua imagem, quando falo desta relação imaginária extremamente geral que se chama narcisismo. “(1954-55/1985, p. 402-403). O narcisismo vai de encontro a esse sujeito das que deseja e quer gozar, mas por ser castrado e dividido, fica com um resto, a repetição agindo circularmente como em um mecanismo inédito, o que Chul-Han (2018) chamou de “panóptico digital”, onde a grande moeda de e troca é expor-se. O “lacrar”, “a lacração”, nos remete a esse narcisismo e a pretensão da realização dos desejos. Mas estes se dissolvem na bruma do mais-de-gozar: “não há circulação do mais-de-gozar. [...] não há somente a dimensão da entropia no que se passa pelo lado do mais-de-gozar”. (LACAN, 1969-70/1992, p. 77)

O matema do discurso do capitalista “é composto a partir do discurso do mestre, invertendo-se os elementos da primeira fração. (Quinet, op. cit., 2009, p. 38))

$             S2

S1           a

Quinet acrescenta que “este sim, corrige-se Lacan, é o laço social dominante em nossa sociedade (ibidem, p. 38), sendo características desse discurso, o sujeito só relacionar-se com os objetos-mercadoria , os quais são dominados pelo significante mestre S1, que já não é simplesmente e meramente o senhor, mas o capital ele mesmo. “O sujeito é reduzido a um consumidor ($) de objetos. [...] suas relações sociais não estão centradas nos laços com outros homens, diz Baudrillard, e sim na recepção e manipulação de bens e mensagens” (QUINET, ibidem, p. 39)

O sujeito da rede social, porta-se com se ele mesmo fosse um “gadget”, uma mercadoria de carne e osso, perseguindo o desejo e o gozo impossíveis: esse sujeito é o sujeito do discurso do capitalista. As imagens que circulam nas redes sociais não são somente imaginário e suas narrativas subjetivas implícitas, seus “biografemas”, mas lembranças permanentes das chamadas novas formas de subjetivação e seus avatares, típicos da pós-modernidade e da era digital.  O lugar social de muitas vezes “vale tudo” das relações nas redes, nos remete ao que ainda Quinet (2009) chama de discurso da impessoalidade ou “discurso do excluído”. Nas redes, o discurso social do mestre se fragmenta no discurso brutal do capitalista que faz vínculo somente ao apelar para uma mais-valia atrelada a um mais-de-gozar que circula, mas como em um espelho multifacetado, que reflete a incompletude, a falta e a repetição.

5. Considerações Finais

A internet e as redes sociais estão indelevelmente presentes como uma espécie de espinha dorsal do neoliberalismo vigente. Suas características intrínsecas de hiper-realidade, circularidade e impessoalidade nos chamam a atenção tanto para sua “arquitetura “de grande rede que conecta a tudo e a todos, mas também de, porque não, um triunfo da técnica e do gênio humanos. Essa arquitetura panóptica ou máquina virtual de narrativas sem fim, nos leva a várias constatações, muitas delas óbvias: as redes socias ao mesmo tempo conectam e afastam os sujeitos devido, principalmente ao fato de que não há contato direto, real com o outro. (Shul-Han, 2018). Para este mesmo autor, “ o digital submete a tríade lacaniana do real, do imaginário e do simbólico a uma reconstrução radical. Ele desconstrói o real e totaliza o imaginário”. (ibidem, p. 44-45, grifos do autor).

Como rede mundial de computadores, operando “online”, 24 horas por dia, a internet e seu produto mais bem acabado, as redes sociais, vai modificando para o bem e para o mal as relações entre os sujeitos. E se ao as analisar como gadget impessoal, dispositivo máximo de consumo, lugar do gozo onde reina o discurso do capitalista e seus imperativos, poderíamos também pensar em como “Freud afirma o caráter contingente e material da gênese de um desejo. As experiências fundamentais de constituição subjetiva – prazer e dor- dependem das circunstâncias” [...] (FREUD,1895 apud IANNINI, 2013, p. 29). Dessa forma, o modo operante tanto das redes sociais como a utilização dessas redes por esse “sujeito do discurso do capitalista”, poderão quiçá em um futuro qualquer, em um evento da mudança do arcabouço do capitalismo, convergir para um ponto onde o dispositivo novamente se transmute. E se Foucault (1975/2017) nos lembra sempre que o poder é cambiante e submetido às mudanças do imaginário e das convenções sociais,é preciso que vejamos a rede social (agora no singular, como um dispositivo ou evento humano),  com o olhar, quem sabe do atravessamento da fantasia.

As redes sociais cumprem seu papel de aproximar, mas em seu binarismo constitutivo, também mergulham no engano do gozo impossível e do automatismo de uma repetição que é seu próprio mecanismo de sobrevivência e de reinvenção constante. Shul-Han (2018, op. cit.,) afirma que o poder da era digital se chama psicopoder, e fala mesmo de um inconsciente digital (grifos do autor). Se a eficiência do dispositivo das redes sociais se evidencia em sua multi-presença e sua efetividade em criar desejos e gozos das mais variadas formas, caberia a nós perguntar: se adoecemos dessa presença, o que faremos com ela? Se a repetição e a circularidade se dão como sintomas muito públicos, como viveremos assim? Iremos continuar a tentar capturar esse gozo que não passa de um efeito do corpo, do significante?

Todas essas perguntas são pertinentes. Se as redes sociais são o lugar do mais-de-gozar são também o do saber. Para onde iremos daqui?

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Publicado por: Jesse James Penido

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