O PATRIMONIALISMO NO BRASIL DA COLÔNIA AO FIM DO SEGUNDO REINADO
índice
O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Monografias. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.
1. Introdução
O objetivo do presente trabalho é o de analisar sucintamente o fenômeno patrimonialista no período da história brasileira que se estende da época colonial até o fim do 2º Reinado, ou seja, entre o início do século XVI e o final do século XIX.
Primeiramente, tentar-se-á conceituar o patrimonialismo, buscando-se respaldo no pensamento de Max Weber. Em seguida, vai se proceder à análise do fenômeno patrimonialista no Brasil na fase colonial. Posteriormente, será feita a análise do período caracterizado tanto pelo ápice da influência do patrimonialismo na vida nacional como pelo início de sua decadência, a fase pós-Independência, imperial, na qual ocorreram fatos que contribuíram para reduzir a influência patrimonialista nos assuntos internos, tais como o início do processo de formação do Estado nacional, de diferenciação social, com o ulterior aburguesamento de parte da classe senhorial e o lançamento das bases para o surgimento da sociedade de classes e do capitalismo em nosso país, e, por fim, o exercício de certos preceitos liberais por parcela das elites nacionais. Por último, será apresentada uma conclusão sintética sobre a evolução do patrimonialismo no Brasil durante a fase em questão.
Antes de iniciar a análise referente ao período colonial, definir-se-á patrimonialismo como sendo o “sistema de dominação política ou de autoridade tradicional em que a riqueza, os bens sociais, cargos e direitos são distribuídos como patrimônios pessoais de um chefe ou de um governante” (Sandroni, 1987: 317). Para este autor, a característica principal do patrimonialismo é a não distinção entre a esfera pública e a privada (Sandroni, 1987: 317).
O autor Paulo Sandroni, em sua caracterização do patrimonialismo, menciona o “sistema de dominação política ou de autoridade tradicional” (Sandroni, 1987: 317), o que nos remete à questão dos tipos de dominação, mais especificamente à dominação tradicional, que foi estudada por Max Weber. Reinhard Bendix analisa a dominação tradicional no capítulo XI de seu livro, e tece algumas considerações a respeito. Segundo ele, “Weber empregou o termo “patriarcalismo” – em termos gerais, a autoridade de um senhor sobre seu grupo familiar- para designar o tipo puro de dominação tradicional” (Bendix, 1.986 : 260). Bendix caracteriza o tipo de dominação tradicional nos informando que um traço básico da mesma, em todas as suas formas, é a dupla ênfase no poder arbitrário do senhor e a restrição desse poder pela tradição sagrada, sendo a dominação tradicional tão usual quanto a autoridade do pai em relação ao núcleo familiar, que é seu paradigma (Bendix, 1.986 : 260 - 261). Posteriormente, Bendix nos informa que Weber considera o patrimonialismo uma espécie de patriarcalismo dilatado, o que faz com que o exercício da dominação tradicional pressuponha a existência de um quadro administrativo que se caracterizará pela já aludida mistura de tradicionalismo e discricionariedade pessoal do governante (Bendix, 1.986 : 262).
Por fim, para tornar precisa a caracterização do patrimonialismo, Bendix nos informa que, no mesmo, o exercício do poder pelos governantes se caracteriza pelo fato de se apresentar como se fosse propriedade pessoal dos antes referidos, sendo semelhante à autoridade que o chefe patriarcal exerce sobre a família. O mesmo autor enfatiza o fato de as repartições públicas terem origem na administração doméstica, da casa do governante, sendo os administradores públicos, originariamente, empregados pessoais do detentor do poder. (Bendix, 1986 : 262).
Para finalizar esta parte, será feita a transcrição de um trecho de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, no qual o autor estabelece diferenças importantes entre o Estado patrimonial e o Estado burocrático, ressaltando a extrema dificuldade de se conceber no Brasil uma organização política e pública de caráter impessoal:
“Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formadas por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático ” (Holanda, 1.948: 211, 212).
2. O patrimonialismo na Colônia
Pode-se considerar que, além do legado patrimonialista do Estado português (“Estado patrimonial, portanto,e não feudal, o de Portugal ...” (Faoro, 1.976: 20)), trazido para o Brasil mediante a implantação da administração colonial lusitana no território brasileiro, tomando por base a argumentação de Caio Prado Júnior em “Evolução Política do Brasil e outros Estudos”, o patrimonialismo exerceu significativa influência na época colonial no Brasil, principalmente nos primeiros 150 anos da colonização, devido ao fato de que, nesse período, a presença da Coroa portuguesa no território brasileiro foi diminuta e residual, cabendo aos proprietário de terras, por intermédio das Câmaras Municipais, o exercício do poder político de fato (Prado, 1953: 29). Isto estaria relacionado à significativa presença do patrimonialismo na vida do Brasil – Colônia nessa época, no sentido de que, ao serem os colonos e donatários os delegados e os depositários da autoridade pública a eles atribuída pela metrópole lusa, tinham estes uma tendência inexorável a considerar que, em sendo eles o “Estado”, os assuntos relativos a este último seriam, na sua percepção, assuntos de natureza privada. Fica configurada, desta forma, uma das características centrais do patrimonialismo, que é a não distinção, por parte dos detentores do poder público, da esfera pública da esfera privada, ou seja, os negócios públicos, de Estado, seriam tomados como negócios de natureza particular. Desta forma, pode-se atribuir, em parte, o vulto que o patrimonialismo assumiu, pelo menos no primeiro século e meio de colonização lusitana no Brasil, ao fato de a metrópole portuguesa ter delegado aos colonos e donatários aqui residentes importantes funções políticas e administrativas. Convém ressaltar que, apesar de o primeiro governo – geral ter sido instituído pela Coroa portuguesa em 1548 (Faoro, 1976: 144), Caio Prado Júnior considera que, na época colonial, principalmente no período compreendido entre 1.500 e 1650, aproximadamente, o poder político de fato era exercido pela camada senhorial, por intermédio das Câmaras Municipais. A esse respeito, pode-se considerar que o poder e a autonomia de que desfrutavam as instituições acima referidas, representavam uma menor lealdade e fidelidade dos colonos ao monarca português, na medida em que este último delegava aos primeiros a administração da colônia, e estes, como conseqüência, se sentiam desobrigados a prestar contas de seus atos e de serem fiéis e leais ao soberano lusitano, dado que os administradores efetivos do Brasil colonial eram eles próprios. Além disso, é relevante assinalar, também, que a autoridade real lusitana agia de forma patrimonialista em associação com a grande propriedade.
Para respaldar o que foi escrito, relativamente à influência política dos donos de terras e à escassa presença metropolitana no período considerado, será transcrito o seguinte trecho de “Evolução Política do Brasil e outros Estudos”:
“Até meados do século XVII pode-se afirmar que a autoridade desta (a Coroa) somente se exerce dentro dos estreitos limites da sede do governo-geral. Mantinha ela na colônia apenas uma administração rudimentar, o estritamente necessário para não perder com ela todo contato, e atendia a seus pedidos com a relutância e morosidade de quem não se decide a fazer grandes gastos com o que não lhe pagava o custo. Via-se, por isso, a administração colonial desarmada, a braços com a turbulência e arrogância dos colonos. (...) que maior autoridade podiam nestas condições exercer governadores e capitães-mores? Não raro por isso fechavam os olhos a toda sorte de abusos que não tinham forças para reprimir ou castigar. (...) tais circunstâncias condicionam a estrutura política da colônia. São elas que explicam a importância das Câmaras Municipais, que constituem a verdadeira e quase única administração da colônia. (...). O poder das Câmaras é, pois, o dos proprietários . (...). Se dentro do sistema político vigente na Colônia só descobrimos a soberania, o poder político da Coroa, vamos encontrá-lo, de fato, investido nos proprietários rurais , que o exercem através das administrações municipais ” (Prado, 1953: 28,29).
A respeito da questão relativa à redução da lealdade dos colonos para com o Rei de Portugal, e sobre a associação entre a Coroa e os donatários na condução patrimonialista dos negócios públicos no Brasil – Colônia, Caio Prado, neste mesmo livro, nos informa que as autoridades coloniais portuguesas ignoravam toda a sorte de desmandos cometidos pelos colonos no Brasil nessa época, e que “Deixavam – lhes carta branca para agirem da forma que melhor entendessem” (Prado, 1953:29). Tal situação, conforme já foi abordado, contribuía para a diminuição da lealdade dos donatários para com o Rei. Com referência à outra característica destacada no relacionamento Metrópole - colonos, qual seja, o fato de a primeira adotar uma conduta patrimonialista na condução dos assuntos governamentais em associação com os grandes proprietários rurais, pode ser respaldada pelo argumento de que, ao delegar a administração colonial aos donatários, a monarquia lusa era compelida a corroborar e sancionar as práticas políticas patrimonialistas dos colonos latifundiários, já que dependia deles para manter a sua possessão no Brasil. Esta dependência do Rei de Portugal em relação à administração do Brasil fica caracterizada no trecho do livro antes referido no qual Caio Prado nos informa acerca da passividade da Metrópole em relação à onipotência dos colonos, destacando a coincidência que havia entre os interesses régios e os das classes dominantes no Brasil colonial como justificativa para Portugal dar liberdade de ação aos colonos, tendo em vista que eram estes últimos que desbravavam o território (Prado, 1953:29).
A condição de colônia de Portugal ensejou que fosse transferida para o Brasil uma parcela expressiva do Estado português, da administração pública portuguesa, ao longo de mais de trezentos anos de colonização, e, juntamente com isso, foram transferidas para cá certas características deste aparato estatal, entre elas, a mais importante para o presente estudo, o patrimonialismo. O primeiro elemento mencionado no início desta seção como sendo uma das causas do relevo que o patrimonialismo logrou obter na época colonial no Brasil, o legado patrimonialista do Estado absolutista português, deve ser detalhado, mediante a caracterização deste último. Caio Prado Júnior, em “Formação do Brasil Contemporâneo”, ao discutir as causas da incapacidade lusitana de reformar o seu sistema colonial, assim se refere ao caráter patrimonial do absolutismo português:
“A monarquia absoluta portuguesa tem por figura central e convergente de toda vida dela, o Rei; e com ele a corte, esta chusma de palacianos que cercam o trono e constituem, quase todos, uma nobreza togada que ocupa os empregos, comissões e outras funções mais ou menos ligadas à estrutura administrativa da monarquia. (...). Os usufrutuários são o rei e sua corte que ele mesmo constitui e com quem reparte os seus proventos; não a nação portuguesa, que só indiretamente se beneficiava das possessões imensas da monarquia. (...) podemos concluir relativamente ao conteúdo da política lusitana, em particular, no que diz respeito ao Brasil, que ela é antes de tudo um “negócio” do Rei, e todos os assuntos que se referem à administração pública são vistos deste ângulo particular”(Prado, 1989: 362).
Referindo-se também ao conteúdo patrimonialista do Estado colonial luso, Raymundo Faoro nos informa que, quando da transmigração da família real portuguesa para o Brasil, no início do século XIX, “Organizar o Império, para o ministério, seria reproduzir a estrutura administrativa portuguesa no Brasil e colocar os desempregados. O eixo da política era o mesmo, secularmente fundido: o reino deveria servir à camada dominante, ao seu desfrute e gozo. Os fidalgos ganharam pensões, acesso aos postos superiores os oficiais da Armada e do Exército, empregos e benefícios os civis e eclesiásticos” (Faoro, 1976: 251).
A propósito, é relevante fazer referência a uma categoria central da análise de Faoro, que é o conceito de estamento burocrático. Este seria uma camada social existente no interior do aparelho de Estado lusitano, intensamente associado ao soberano, e que se aproveitaria dessa proximidade e de seu prestígio junto ao monarca para auferir benefícios, em proveito próprio, das atividades desempenhadas pelo Estado, em detrimento dos demais segmentos da sociedade. Para Faoro (1958:262), o estamento burocrático era o árbitro da nação e das classes sociais, regulador da economia e proprietário da soberania nacional. Aprofundando a definição de estamento burocrático, podemos considerá-lo uma forma de burocracia patrimonial que se caracteriza por ser uma conjugação de altos ocupantes de cargos públicos, burocratas e segmentos da classe política, atuando em conjunto, em benefício próprio, e em desrespeito aos princípios da impessoalidade e do universalismo de procedimentos. A mencionada camada, quando da transferência da família real lusa para o Rio de Janeiro, em 1.808, foi transplantada para o Brasil, onde deixou sua marca indelével. Ou seja, o estamento burocrático seria a “camada governante” que Faoro considera que, ao longo da história brasileira, tem sido o protagonista da história nacional, valendo-se do domínio que exerce sobre o aparelho de Estado para auferir benefícios, se reproduzindo e perpetuando–se na direção dos assuntos nacionais.
Entretanto, há autores, na historiografia nacional, que questionam a consistência do citado conceito de Faoro (1.958 e 1.976). O mais destacado é José Murilo de Carvalho (1.980) que, na sua obra “A construção da ordem – A elite política imperial”, submete a categoria analítica faoriana a um teste empírico. Outro autor que critica a tese faoriana, só que em termos bem mais indulgentes, é Lessa (2.001), que argumenta que a categoria do estamento burocrático de Faoro tem poder explicativo demasiadamente ampliado pelo seu autor, que o considera uma explanação suficiente para explicar quinhentos anos da história do Brasil, conforme Faoro escreve no último capítulo de seu livro. Agora, examinaremos as análises destes dois autores mais detidamente.
Carvalho (1.980:118) argumenta que Faoro, ao se referir genericamente ao “estamento burocrático”, estava fazendo alusão àquele que era o órgão supremo da administração imperial, qual seja, o Conselho de Estado, o qual era, simultaneamente, um órgão político e administrativo. A respeito do assunto, Carvalho nos informa que o mencionado Conselho era integrado por conselheiros, desembargadores, presidentes de província, professores, generais, que se elegiam deputados e senadores, e ocupavam cargos ministeriais, os quais eram ocupados cumulativamente. Carvalho (1.980:118) contesta a análise de Faoro afirmando que “não se tratava, no entanto, de um estamento, mas de uma elite política formada em processo bastante elaborado de treinamento, à qual se chegava, principalmente, pela via da burocracia e da magistratura. Ao correr do período imperial, outros caminhos se abririam além da burocracia, como as profissões liberais – advocacia e medicina – o magistério, quando não o simples favor imperial. O segredo da duração dessa elite estava, em parte, no fato de não ter uma estrutura rígida de um estamento, de dar a ilusão de acessibilidade, isto é, estava em sua capacidade de cooptação de inimigos potenciais” (Carvalho, 1.980:118). Relativamente ao trecho transcrito acima, convém esclarecer que o processo de treinamento referido consistia no fato de que a parte majoritária dos integrantes da elite imperial brasileira, na primeira metade do século XIX, era composta de bacharéis em Direito formados na Universidade de Coimbra, onde obtinham os conhecimentos que iriam aplicar exercendo funções dirigentes na administração pública brasileira.
Além da categoria de estamento burocrático, outro postulado de Faoro (1.958,1.976,1.993) contestado por (Carvalho, 1.980) é o pertinente ao fato de que o autor gaúcho considera que, ao longo da história pátria, houve sempre a preeminência do Estado sobre a sociedade civil, conforme se depreende do trecho em que Faoro escreve que, em nosso país, “em lugar de uma débil sociedade civil, tolhida pelo Estado, houve a presença motora de uma camada governante burocrática” (Faoro, 1993:16). Ou seja, para este último, no Brasil, o Estado seria preponderante e a sociedade civil amorfa. Carvalho (1.980) contradiz este ponto de vista, afirmando que “Além da divisão interna, outra característica da burocracia imperial contribuía para reduzir seu poder de controle e de direção da sociedade. Trata-se da distribuição dos funcionários pelos vários níveis de poder – central,, provincial e local. Esta distribuição acompanhava a própria estrutura do aparato estatal e revelava, ao mesmo tempo, aspectos da natureza do Estado. As reformas de 1.840-1.841 levariam à exagerada centralização política e administrativa, (...). A conseqüência dessa estrutura centralizada era o acúmulo de funcionários e atividades administrativas em nível do governo central, e sua reduzida presença em nível provincial e quase ausência no nível local” (Carvalho, 1.980, 118). Pode se depreender pelo trecho transcrito que, em oposição a Faoro, Carvalho considera que a excessiva concentração geográfica e espacial de funcionários públicos em nível central, decorrente do Regresso conservador de 1.840, com a antecipação da maioridade de Dom Pedro II pelos conservadores, e a diminuta presença do Governo nos níveis provincial e local, debilitava o poder de controle da burocracia sobre a sociedade civil, ao contrário do que Faoro propugna.
Lessa (2.001) escreve que Faoro tem a pretensão de “abarcar, num lance geral, a ampla e contraditória realidade histórica”. Lessa afirma que, na obra de Faoro, “uma única tese percorre todas as obras do texto e conecta os incontáveis fragmentos e personagens que se dispõem ao longo do tempo: a existência histórica brasileira é marcada de forma indelével pelo selo da dominação patrimonial, transposta de Portugal para essas plagas ultramarinas, durante o processo de colonização”. A palavra “única” escrita por Lessa nos dá, em certa dimensão, a idéia de que este último considera relativamente pobre a explicação faoriana para as mazelas brasileiras. Entretanto, Lessa (2.001) também tece elogios à argumentação de Faoro, quando afirma que “No caso de Faoro, o gigantismo do empreendimento toma a forma de uma regressão quase infinita ao passado. Quanto mais recuamos no tempo, maior será a nossa capacidade de detecção de um momento, evento ou circunstância matricial, da qual todo o devir não faz senão atualizar e repor sob novas roupagens. Trata-se, afinal, de considerar um longo período, que vai do Mestre de Avis a Getúlio Vargas, e que valoriza as raízes portuguesas da nossa formação política”. Mesmo neste trecho, encontra-se uma crítica bastante velada às teses de Faoro, quando Lessa afirma que “da qual todo o devir não faz senão atualizar e repor sob novas roupagens”, denotando que a explicação de Faoro para o atraso nacional seria monotemática e repetitiva.
Um outro fator que ajuda a entender a dimensão significativa assumida pelo patrimonialismo no Brasil - Colônia foi o fato de que, durante essa época, “imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal ”(Holanda, 1948: 211), o que fez com que o Estado fosse encarado como um prolongamento, uma extensão da família, do ambiente familiar, o que provocou, conforme trecho de “Raízes do Brasil” já citado, uma dificuldade “aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público” (Holanda, 1.948: 212). Prosseguindo a sua análise sobre a relação entre a preponderância da família patriarcal rural e o patrimonialismo, Sérgio Buarque de Holanda nos informa que “é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados “contactos primários”, dos laços de sangue e de coração - está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós ” (Holanda, 1.948: 212, 213).
Para finalizar, pode-se considerar que outro fator explicativo da dimensão expressiva do patrimonialismo no período colonial foi o fato de, nessa época, não existir uma burocracia pública que exercesse, em nome das classes dominantes agrárias, a dominação patrimonial no então Estado colonial português no Brasil. Tal dominação era exercida diretamente pela aristocracia agrária, a partir da autarquia agrária, o que reforçava ainda mais o caráter patrimonialista do aparato estatal então existente no Brasil. Registre-se que tal mediação burocrática somente começou a ocorrer com maior intensidade a partir da Independência, principalmente em decorrência do processo de formação do Estado nacional.
3. O patrimonialismo no Império
Pode-se considerar que, entre outros fatores, os seguintes elementos contribuíram para explicar a redução da influência do patrimonialismo na vida nacional, a partir do período posterior à Independência: a formação de um Estado nacional, a redução do isolamento do senhor de engenho, que teve que se ausentar da “autarquia agrícola” (Faoro, 1.976:241) e se dirigir às cidades, “a ruptura da homogeneidade da “aristocracia agrária”” (Fernandes, 1.975:27), que é a forma pela qual Florestan Fernandes se refere ao “aburguesamento” de parcela da classe senhorial brasileira, a urbanização de fração da camada proprietária, e, como conseqüência do “aburguesamento” e da urbanização de parte do segmento dominante da sociedade nativa, a ocorrência de uma maior diferenciação social, e o decorrente enfraquecimento da estrutura estamental no Brasil de então. Além destes, pode-se apontar o lançamento das bases para a formação da sociedade de classes, da burguesia e do capitalismo no Brasil, citados por Florestan Fernandes nos dois primeiros capítulos de seu livro, a tentativa de “instauração da ordem social competitiva” (Fernandes,1.975:29), a “burocratização da dominação patrimonialista” (Fernandes,1.975:55) e a assimilação de preceitos liberais por parte das elites políticas, como fatores que contribuíram para a diminuição da preponderância patrimonialista na época imperial.
Entretanto, é relevante assinalar que, a despeito de o lançamento das bases do surgimento da burguesia, da sociedade competitiva e do capitalismo no Brasil ter ocorrido no Império, no 2º Reinado , o patrimonialismo atingiu o apogeu de sua influência na vida brasileira exatamente nesse período, por volta de 1.850.
Pode-se inferir, com base na argumentação de Florestan Fernandes nos dois primeiros capítulos de seu livro, que a decadência do patrimonialismo se verificava à medida que se materializavam e se fortaleciam, na sociedade brasileira, os elementos que constituiriam a “Revolução Burguesa” no Brasil, tais como aqueles aludidos no parágrafo anterior.
Com referência à redução da segregação do senhor de engenho nas fazendas, e sua relação com a decadência do patrimonialismo, Florestan Fernandes nos informa que “pela organização de um Estado nacional, gradualmente uma parcela em aumento crescente de "senhores rurais " é extraída do isolamento do engenho ou da fazenda e projetada no cenário econômico das cidades e no ambiente político da Corte ou dos Governos Provinciais. Por aí se deu o solapamento progressivo do tradicionalismo vinculado à dominação patrimonialista e começou a verdadeira desagregação econômica, social e política do sistema colonial" ( Fernandes, 1.975:27).
Com referência ao aburguesamento e à urbanização de parte da elite senhorial, assim se refere o sociólogo paulista ao assunto: “Essa porção de senhores rurais tendeu a secularizar suas idéias, suas concepções políticas e suas aspirações sociais; e, ao mesmo tempo, tendeu a urbanizar, em termos ou segundo padrões cosmopolitas, seu estilo de vida, revelando-se propensa a aceitar formas de organização da personalidade, das ações ou das relações sociais e das instituições econômicas, jurídicas e políticas que eram mal vistas e proscritas no passado. Em uma palavra, ela “aburguesou-se”” (Fernandes, 1.975: 27, 28).
Neste contexto, foi importante, também, o surgimento de novos agentes econômicos ligados ao setor de serviços, o que, segundo Florestan, ocorreu “muito antes da extinção da escravidão e da universalização do trabalho livre” (Fernandes, 1.975:28). Pode-se fazer a ilação de que, em virtude desse processo de maior diferenciação social interna, o incipiente Estado brasileiro passou a congregar uma variedade maior de representação de interesses de grupos sociais distintos, pelo menos em nível das elites, e, deixando de ser um “feudo” exclusivo da classe senhorial agrária tradicional, tornou-se menos propenso à dominação patrimonialista.
Outros elementos apontados como causas do amesquinhamento do patrimonialismo no império foram o início da formação, no Brasil, do capitalismo e do segmento burguês da sociedade. Para Florestan Fernandes, é da esfera dos serviços que se desenvolveram nas regiões produtoras de café e recebedoras de imigrantes “que procediam os representantes mais característicos e modernos do “espírito burguês” – os negociantes a varejo e por atacado, os funcionários públicos, (...), os banqueiros, os vacilantes e oscilantes empresários das indústrias nascentes de bens de consumo ...” (Fernandes, 1.975:28). Para caracterizar o antagonismo entre estes setores e o patrimonialismo estamental, Fernandes escreve que “ele (o “espírito burguês”) se volta, específica e concentradamente, contra o que havia de “arcaico” e de “colonial” tanto na superfície como no âmago da ordem social patrimonialista” (Fernandes, 1.975:29).
Os demais elementos apontados como tendo concorrido para o declínio do patrimonialismo na era imperial foram a “burocratização da dominação patrimonialista”, a assimilação de idéias oriundas do liberalismo por parte de setores das classes dominantes brasileiras, e, finalmente, a tentativa de implantação da ordem social competitiva, base da “bifurcação” (Fernandes, 1.975:48) social e econômica do período pós - emancipação política. Estes três elementos estão relacionados entre si.
Por “burocratização da dominação patrimonialista”, entende-se a utilização do Estado para favorecimento da camada senhorial , mediante a utilização de um corpo de funcionários públicos designados para tal finalidade. A dominação patrimonialista exercida pelo extrato senhorial sobre o Estado brasileiro era, antes da Independência, exercida diretamente pela aristocracia agrária, sem a mediação burocrática; a partir da emancipação política, passa a haver tal mediação, conseqüência do avanço da “Revolução Burguesa” e da implantação do capitalismo, e, com isso, reduz-se o espaço da dominação patrimonialista, abrindo terreno para a introdução de elementos de dominação racional-legal no âmbito do incipiente Estado nacional brasileiro.
Depreende-se da argumentação de Fernandes no capítulo 2 de seu livro que este processo de “burocratização da dominação patrimonialista” está estreitamente associado à assimilação, por frações das elites brasileiras, dos princípios liberais. Foi precisamente a última que viabilizou a primeira. Pode-se considerar que foi esta referida assimilação que possibilitou a introdução, na esfera do Estado brasileiro, marcadamente patrimonialista, dos já aludidos elementos de dominação racional-legal, principalmente a mediação burocrática referida no parágrafo anterior. A apreensão destes ensinamentos do liberalismo, por facções da camada senhorial, foi importante na medida em que tornou exeqüível a superposição de uma estrutura político - administrativa de natureza constitucional sobre o arcabouço patrimonialista que caracterizava o Estado colonial português no Brasil. A importância do liberalismo para Florestan reside no fato de que foi ele que permitiu que um país recém-saído da dominação colonial fosse capaz de formar “um Estado nacional bastante moderno, mas, sobretudo, virtualmente apto à modernização ulterior de suas funções econômicas, sociais e culturais" (Fernandes, 1.975: 38). Devido a isso, Florestan classifica o liberalismo como "a força cultural viva da revolução nacional brasileira" (Fernandes, 1.975: 38).
É relevante ressaltar o contraste existente entre a visão positiva acerca do Estado brasileiro expressa por Florestan no trecho acima descrito com a visão soturna e pessimista de Faoro acerca do mesmo assunto. Acerca deste tema, Lessa (2.001) comenta que, para o jurista gaúcho, “A marca central, portanto, é representada pela presença inamovível do Estado e do estamento que o ocupa e dirige. Presença a um só tempo parasitária e inibidora da criatividade social. É interessante considerar, a esse respeito, o contraste entre a abordagem de Faoro e a de outros autores que indicam a presença positiva e necessária do Estado diante da sociedade”.
A respeito da coexistência, no âmbito do Estado brasileiro, dos elementos estamental – patrimonialista e liberal – racional – legal, uma característica importante apontada por Florestan é a de que passou a haver um desequilíbrio entre a prática política das elites senhoriais, caracterizada pelo patrimonialismo, e os requisitos jurídico-políticos da ordem legal, ou seja, entre os elementos estamental-patrimonialista e o liberal constituintes do Estado nacional. Ele chama a atenção para a perda de eficácia da ordem legal (elemento liberal) quando esta colide com os interesses da elite senhorial (elemento estamental-patrimonialista), e que o primeiro só conseguia se manifestar depois de filtrado pelos interesses patrimonialistas da elite senhorial.
Para respaldar o que foi escrito acima, é importante transcrever o seguinte trecho de Florestan, no qual ele nos informa que “a ordem legal perdia sua eficácia onde ou quando colidisse com os interesses gerais dos estamentos senhoriais e sua importância para a integração político – jurídica da sociedade nacional passou a depender do modo pelo qual aqueles interesses filtravam ou correspondiam às formas de poder – político instituídas legalmente” (Fernandes, 1.975: 42). Uma outra forma de importância atribuída pelo autor ao componente liberal do Estado nacional brasileiro foi a de que, senão fosse ele, a dominação estamental senhorial teria prevalecido de forma pura e plena no Brasil, e, além disso, poderia ter ocorrido a fragmentação do país. Florestan escreve que “não fora a influência do liberalismo em tal caso, teríamos como ponto de partida uma organização estatal de modelo mais retrógrado; ou talvez ocorresse a fragmentação do país. A necessidade de adaptar a dominação senhorial a formas de poder especificamente políticas e organizadas burocraticamente não teria produzido os resultados reconhecíveis, se o horizonte cultural médio dos “cidadãos de elite” não absorvesse princípios e idéias liberais...” (Fernandes, 1.975: 45,46).
Com relação ao último fator apontado, a tentativa de implantação da ordem social competitiva, o autor se refere a uma bifurcação ocorrida na sociedade e na economia brasileiras depois da Independência. Uma vertente de tal bifurcação seria aquela associada à estrutura social do patrimonialismo, que permanecia a mesma, continuando a manter-se sobre a escravidão e a dominação tradicional. O outro componente da mesma seria aquele vinculado ao surgimento do Estado nacional, à burocratização da dominação senhorial ao nível político, e à expansão econômica que se processou logo após a Abertura dos Portos, ao nível econômico. A esse respeito, Florestan Fernandes escreve que “Uma parte da sociedade global destaca-se, nitidamente, das estruturas tradicionais preexistentes e passa a funcionar, também nitidamente , como o seu setor livre e a única esfera na qual a “livre competição” podia alcançar alguma vigência. Assim, começa a formar-se, sob condições e influxos adversos (por causa da escravidão e do patrimonialismo), uma área na qual o “sistema competitivo” pode coexistir e chocar-se com o “sistema estamental” (Fernandes, 1.975: 45,46). Em suma, o impulso definitivo para a implantação da ordem social competitiva no Brasil foi dado pelo fazendeiro e pelo imigrante.
4. Conclusão
Para finalizar, pode-se considerar que a característica central do patrimonialismo é a não distinção, a não diferenciação, por parte dos governantes e administradores públicos, dos detentores do poder político- administrativo, da esfera pública da esfera particular.
O patrimonialismo exerceu expressiva influência no Brasil na época colonial, e pode-se apontar como fatores explicativos para tal fato o grande poder político que exerceram nesse período, principalmente nos primeiros cento e cinqüenta anos de colonização, os grandes proprietários de terras; o legado patrimonialista do Estado absolutista português , e ao fato de, no interregno colonial, ter a família patriarcal sido a instituição preponderante na vida brasileira, e, finalmente, a ausência de mediação burocrática no exercício da dominação patrimonialista durante a vigência do Pacto Çolonial no Brasil.
Apesar de o enfraquecimento do patrimonialismo na vida brasileira ter se iniciado no Império, foi exatamente nesse período que ele alcançou seu mais significativo nível de influência nos assuntos nacionais, por volta da metade do século XIX. O início da decadência do patrimonialismo no Brasil teve início com o processo de emancipação política em relação a Portugal, com a Independência, devido, entre outros, aos seguintes fatores: constituição do Estado nacional brasileiro, redução do isolamento do senhor de engenho na “autarquia agrícola”, em decorrência da dinamização do comércio e da urbanização, aburguesamento de parte da classe senhorial e a conseqüente intensificação do processo de diferenciação social, com o início do surgimento da burguesia, expansão interna da economia de mercado, início da formação da sociedade de classes e enfraquecimento dos estamentos e a assimilação, por parcela das elites nativas, de preceitos liberais, o que fez com que o elemento de natureza liberal passasse a ser parte integrante do Estado brasileiro, em contraposição ao elemento estamental- patrimonialista, embora o primeiro estivesse em posição subordinada ao segundo. A principal ilação referente a esse período que se pode fazer é que, durante o império, os elementos da dominação estamental – patrimonialista se enfraqueceram internamente, no âmbito da sociedade brasileira, concomitantemente ao fortalecimento dos elementos constitutivos da “Revolução Burguesa” anteriormente aludidos.
5. Referências Bibliográficas
BENDIX, Reinhard. Max Weber, um perfil intelectual. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1.986 ;
CAMPANTE, Rubens. O patrimonialismo em Faoro e Weber e a sociologia brasileira. Revista Dados, 2.003,volume 46, número 1, páginas 153 a 193;
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem – A elite política imperial. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1.980;
FAORO, Raymundo. Os donos do poder - Formação do Patronato Político Brasileiro. Editora Globo, Porto Alegre, 1.958 e 1.976;
___________. A aventura liberal numa ordem patrimonialista. Revista USP, n. 17, 1993.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil – Ensaio de Interpretação Sociológica. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1.975;
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Livraria José Olympio, Editora, Rio de Janeiro, 1.948;
LESSA, Renato. Artigo “Raízes do erro”, publicado no “Jornal do Brasil” em 11 de agosto de 2.001;
PRADO, Caio. Evolução política do Brasil. Editora Brasiliense , São Paulo, 1.953;
___________. Formação do Brasil Contemporâneo. Editora Brasiliense, São Paulo, 1.989;
SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia. Editora Best-Seller/Nova Cultural, São Paulo, 1.987.
Publicado por: Carlos Frederico R. P. de Alverga
O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Monografias. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.