Mané Gostoso: Sua história e do seu criador
índice
- 1. RESUMO
- 2. INTRODUÇÃO
- 3. CAPÍTULO I
- 4. QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
- 4.1 Introdução
- 5. O surgimento e a proposta da Nova História
- 6. CAPÍTULO II
- 7. OTÁVIO JOSÉ: HISTÓRIA E MEMÓRIA DE SUA INFÂNCIA
- 8. Introdução
- 9. A criação do Mané Gostoso
- 10. CAPÍTULO III
- 11. O ANONIMATO DE UM ARTISTA POPULAR
- 12. Introdução
- 13. A divulgação do trabalho do Sr. Otávio
- 14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1. RESUMO
Este trabalho monográfico conta a história do famoso boneco de madeira Mané Gostoso, e de seu criador, o Sr. Otávio José da Silva. Nascido no interior de Camocim de São Félix, hoje com 82 anos, aposentado, continua lutando pelo reconhecimento de seu trabalho que por muito tempo encantou a infância de muitas crianças caruaruenses e de cidades circunvizinhas. Diante de fatos que consideramos lastimáveis pelo desrespeito ao artista popular em nossa região procuramos resgatar essa história e trazê-la ao conhecimento da população caruaruense, e também da academia a existência dessa figura humana que tanto abrilhantou a nossa cultura material, através de sua arte, principalmente pelo brinquedo Mané Gostoso, e que como criador permanece no quase anonimato. Como estratégias para tentar alcançar os nossos objetivos utilizamos algumas literaturas específicas, para nos ajudar nas questões teóricas, mas o forte do trabalho está baseado na fonte oral, cujo conteúdo foi dado pelo próprio Sr. Otávio, através de entrevistas feitas em conversas livres, onde utilizamos somente um roteiro principal, que correspondia ao objetivo principal: aproveitar da ansiedade e do desejo dele em contar sua história, pois o que ele sonha é ser reconhecido. Dividimos o trabalho em três (03) capítulos para não somente contar a “saga” do Sr. Otávio, mas tratar de questões teórico-metodológicas, alguns conceitos sobre arte e artesanato, mostrando a importância da criação dele e, procuramos também denunciar a falta de uma política pública específica para a valorização da cultura produzida por artistas de nossa região.
PALAVRAS CHAVES:
1. História de Vida – 2. Otávio José da Silva – 3. Mané Gostoso – 4. Artesanato Regional.
ABSTRACT
This monograph tells the story of the famous wooden puppet Mané Gostoso and its creator, Mr. José Otávio Silva. Born in the country area of Camocim de São Felix, now 82 years old, retired, still fighting for recognition of their work that has long enchanted childhood of many caruaruenses children and surrounding cities. Given the fact that we consider deplorable disrespect to the popular artist in our region, we rescue this story and bring it to the attention of the population caruaruense, and also the academy. The existence of this human figure that graced both our material culture, through his art, especially the toy Mané Gostoso and as creator, remains in almost anonymity. As strategies to try to achieve our goals, we use some literature to help us on specific theoretical issues, but the work is strongly based on oral source, whose content was given by Mr. Otávio, through interviews in free conversations in which use only one main script, which corresponded to the main objective: seize anxiety and his desire to tell his story, because he dreams to be recognized. We divided the work into three (03) chapters to not only tell the "saga" of Mr. Otávio, but dealing with theoretical and methodological issues, some concepts about art and craft, showing the importance of setting goals and we also try to denounce the lack of a specific policy for the development of culture produced by artists from our region.
KEYWORDS:
1. Life History - 2. José Octavio da Silva - 3. Mané Gostoso - 4. Regional Craft
2. INTRODUÇÃO
Foto 01: Sr. Otávio José da Silva e o Mane Gostoso. Foto de Geyse Anne, 2012.
Esta monografia traz uma abordagem histórica da vida e da obra do senhor Otávio José da Silva, criador do famoso boneco feito em madeira: Mané Gostoso.
Trata-se de um artista que, quando pequeno, brincava de fazer figuras moldando argila e, depois, a partir de pequenos pedaços de madeira, criou obras peculiares, ainda criança. Nascido na zona rural do município de Camocim de São Félix, localizada no Agreste pernambuco. Residiu naquela cidade até seus 16 anos, quando teve que migrar para Caruaru a procura de emprego para melhorar a renda de sua família, que era tipicamente grande composta por seus pais e mais 12 irmãos.
Considerando como uma grande injustiça o anonimato desse artista, depois de tantos anos, nos motivou a trabalhar este tema, na tentativa de colaborar na divulgação e preencher esta lacuna para o conhecimento, de início para o meio acadêmico e sonhar que este possa sensibilizar as autoridades para reconhecer e até registrar o Sr. Otávio como o criador do brinquedo em foco.
A transparência dos idosos se torna mais valiosa na compreensão das experiências sociais, pois as práticas cotidianas trazem a baila aspectos antes menosprezados, mas que complementam ou contestam versões antes consagradas. (p.34) 1
Objetivando com esta monografia, enfatizar a importância deste senhor e até de outros verdadeiros artesãos – alguns, conhecidos e famosos, outros ainda no anonimato – que estão espalhados pelo país, tornando mais rica e diversificada a nossa cultura, através de sua arte.
(...) Assim trabalhavam os artesãos. Para que sobreviva a vida. O primordial não pereça. O corpo não seja de todo diluído pelo espírito e pela máquina. Seja sim, a sua expressão. A exteriorização do que é útil e belo. Como aprendem a fazer a poesia de barro, pedra, couro, palha, algodão, madeira? Dois artesãos responderam à pergunta. O pernambucano Vitalino não tinha dúvidas: aprendeu pela “cadência”. A mineira Ana Gonçalves foi ainda mais simples: “Aprendi com Deus”. (HÉLIO, 2000).2
Neste trabalho, nos utilizamos da história oral como principal método de pesquisa para através da memória do Senhor Otávio, construir uma narrativa capaz de esclarecer os acontecimentos de sua vida e de seus trabalhos artísticos.
Além das fontes bibliográficas, trabalhamos também os relatos memorialísticos deste lúcido artesão. Foi assim que tivemos acesso a este passado, embora, em algum momento nos sentimos limitados pela linguagem coloquial do mesmo, conforme pode ser verificado nas citações de suas falas, onde optamos em grafar, respeitando a sua pronúncia.
Pelas características metodológicas das nossas análises, consideramos o nosso trabalho como pesquisa qualitativa, pois o nosso foco maior esteve ligado ao conteúdo dos discursos e não em parâmetros quantitativos.
Assim foi possível analisar o contexto histórico, suficientemente para resignificar esta história, já que ela, enquanto representação do real se reformulava a partir das perguntas feitas e refeitas, se necessário, dependendo do teor da resposta, num tentativa de parecer mais uma conversa e não uma inquisição. Isto nos pareceu uma estratégia eficiente.
Essas mãos que moldam o que há de singular na realidade do homem, também emanam uma verdade de forma simples. Em muitos casos clamam por reconhecimento de seu talento que lhes é natural. Eis a nossa maior preocupação, tornar conhecido àquele que dentre tantos outros tem sua arte, modificada por cópias malfeitas, desmerecida e esquecida.
Além da versão oral, muitas obras escritas sobre o assunto nos revelaram situações na vida de vários artistas, nos possibilitando o acesso às peculiaridades de obras moldadas pelos artesãos anônimos espalhados por nosso país, permitindo-nos conhecer mais detalhadamente essas autênticas riquezas que despertam muito orgulho da nossa cultura. Como ilustração, vejamos o que nos diz o texto abaixo:
O roteiro percorrido entre tantas terras com sotaques diferentes e com cores e sabores tão distintos nos leva a uma certeza: o povo brasileiro possui uma riqueza cultural e artística extraordinária. Não foi preciso estudo ou erudição para que os sentimentos dos artistas entrevistados se traduzissem em trabalhos de um valor estético indiscutível. (LIMA, 2008, p.05).3
Falando sobre cultura popular o professor Josué Euzébio, se utiliza dos argumentos de uma estudiosa do assunto, para reforçar e justificar a importância do trabalho e da arte do Alto do Moura em Caruaru. “Arte popular, segundo Marilena Chauí (1996), é popular no sentido de ser uma arte produzida por uma classe econômica e social determinada e por estar dentro de um contexto específico.” (FERREIRA, 2009, p.87).4
As mãos inteligentes que produziam objetos cada vez mais primorosos e cada dia mais belos. A procura da beleza é intrínseca ao ser humano, independente de sua posição ou meio social, nesta se manifesta sempre o espírito humano em sua essência.
Falando apenas da cultura material, podemos dizer que o artesanato pernambucano, tão intrinsecamente associado ao universo da arte popular, distingue-se pela diversidade e pela tradição. Quem não conhece, por exemplo, os bonecos de barro de Caruaru, as carrancas de Petrolina ou a renda renascença de Poção? Qual a criança que não se encanta pelas bruxinhas de pano e panelinhas de barro, pelos carrinhos de madeira, rói-roí ou pelo Mané-gostoso? (Suplemento cultural, Op. Cit., p.).
Como parte final dessa introdução, desejamos apresentar a estrutura da monografia, para facilitar a leitura, conforme o interesse de quem vier a utilizar este trabalho.
No primeiro capítulo, trabalhamos algumas questões teórico-metodológicas, como se fora uma revisão da literatura, mas, principalmente para esclarecer qual foi a linha teórica que fundamenta a nossa narrativa histórica.
Já o segundo capítulo, teve como foco principal a história de vida do Sr. Otávio, desde criança. Com base nos seus depoimentos, ele afirmou que passou grandes dificuldades de sobrevivência e também sua família.
Nesta parte foi possível também demarcar o início de sua produção artística, mostrando inclusive que havia uma divisão entre seus pais sobre essas suas “traquinagens” de fazer objetos e brinquedos. Ficando claro, para nós que a criatividade veio mesmo no meio dessas dificuldades e, com muita curiosidade foi genial em sua arte. Aqui também foi possível mostrar suas atividades em diferentes empregos na cidade de Caruaru e também o sucesso de sua peças no mercado local e até internacional.
Já no terceiro capítulo, pretendemos apresentar, em forma de denúncia, suas dificuldades e o esquecimento pelas autoridades em relação ao seu trabalho, pela grande indiferença dos órgãos públicos sobre o reconhecimento de Sr. Otávio como o criador do Mané Gostoso. Aqui também colocamos um pouco de polêmica sobre os conceitos que permeiam o que se convencionou chamar de cultura popular e cultura erudita, e, para isso, utilizamos alguns teóricos sobre o assunto.
Como finalização deste trabalho, fizemos algumas considerações sobre as contradições entre o que é ser um artista do meio popular e a falta de uma política cultural, em geral e, principalmente no município de Caruaru, onde mora o nosso personagem dessa história. Destacamos também a enorme importância cultural da obra do Sr. Otávio e, mais uma vez, lastimamos a sua condição de artista esquecido.
Por fim, colocamos um rol de obras, restringidas exclusivamente ao que foi usado. Aproveitamos para recomendar a leitura e/ou a consulta desses livros, que para nós foram importantes.
Caruaru/novembro de 2012.
3. CAPÍTULO I
4. QUESTÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
4.1. Introdução
Embora o nosso objeto de estudo estivesse voltado para uma história de vida, tendo como subtítulo uma questão da cultural regional, que é o caso da criação do brinquedo conhecido como Mané Gostoso, que nos deram a oportunidade de trabalhar outras variáveis importantes da cultura popular de nossa região.
No entanto, optamos não trabalhar teorias que dão conta dos conceitos de cultura e seus desdobramentos e diversidades interpretativas do assunto.
Estamos aqui nos retratando, nesta pequena introdução para justificar a ausência de um capítulo, ou mesmo de um tópico sobre o subtema exposto no título do trabalho.
Por uma questão de opção e de identificação teórica com as fontes que nos deram a fundamentação para tratar de uma história local e pessoal, cujo protagonista está na categoria de artista “invisível”, para a história do município de Caruaru.
Assim trabalhamos o assunto sob a ótica da história oral, procurando aplicar as orientações da Escola dos Annales, resgatando uma versão não oficial da historiografia, conforme estar no segundo tópico deste capítulo, logo abaixo.
5. O surgimento e a proposta da Nova História
O conhecimento histórico passou por importantes transformações teórico-metodológicas a partir das primeiras décadas do século XX, com a ascensão da Escola dos Annales, concebida e materializada por Marc Bloch e Lucien Febvre.
Como princípio básico, os criadores dos Annales recusaram os objetos da história tradicional, na medida em que estava enraizada em grandes nomes e fatos, aonde predominava uma história política elitista e biográfica de “heróis” nomeados por interesses particulares de uma minoria. Esta nova história pretendeu acabar com essa centralização, valorizando a história vista de várias ópticas, para uma visão inversa às contadas oficialmente. Dando assim, voz àqueles que foram postos à margem da história oficial por não estarem no topo da pirâmide social.
Segundo as fontes consultadas (BURKE, 1997 ; REIS, 2000) sobre a mudança de concepção historiográfica, no meio acadêmico a partir da segunda década do século XX, a história pôde então ser contada a partir do ponto de vista dos excluídos socialmente, dos menos favorecidos economicamente, mas que carregam consigo uma experiência de vida e também uma visão do objeto histórico. Exatamente pela sua posição social terão uma versão antagônica do que se tem por oficial. Dessa maneira, os Annales surgiu como nova proposta de produção científica, contrariando a história política tradicional e abrindo espaço para uma história social e econômica.
A escola dos Annales é dividida em três gerações:
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A primeira representada por Lucien Febvre e Marc Bloch, seus fundadores;
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A segunda notadamente representada pela liderança de Fernand Braudel;
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A terceira, integrada entre outros, por Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie.
Os historiadores da Escola dos Annales conseguiram dar uma nova roupagem na maneira de se pensar a história, de se trabalhar a história e seus acontecimentos.
A Nova História preocupa-se com pessoas comuns e mentalidade coletiva, e veio contribuir para a nova geração de historiadores, através de pesquisas regionais e locais. Eles reinterpretam fatos, até então hegemônicos, atribuindo-lhes novos valores e desconstruindo estereótipos herdados pela história universal.
Uma visão de história vista a partir da posição de baixo para cima, percebe personagens históricos “invisíveis”, e continuar produzindo uma historiografia dessa maneira, anula a existência e elementos históricos, sem voz e sem vez.
Ao contrário, para a história que estamos defendendo, sua maior contribuição consiste na ampliação das fontes, do enquadramento da história como ciência humana e social, através de uma relação interdisciplinar e prática anterior a década de 1920 foi quebrada, pela mudança de paradigma do progresso histórico linear e irreversível, da história dominante e de verdades absolutas.
Segundo Le Goff: 5
A história é o reino do inexato... A história quer ser objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstituir a distância e a profundidade lonjura histórica. (p. 21).
Considerando o que diz Le Goff, percebe-se o quanto é incerto o campo do historiador. O fato histórico é repleto de faces a serem analisadas e o objeto em pesquisa tende a favorecer o que se quer objetivar. A história jamais se repete de forma plena, por isso não pode ser revivida, vai apenas ser resignificada a partir do trabalho do historiador. Ela não comporta uma verdade indiscutível.
A reconstrução da história depende dos elementos disponíveis, sejam as fontes em aportes diferentes, tais como: livros, fotos, jornais, ou mesmo através da captação oral... Cabe ao historiador construir sua narrativa. Existem multiplicidades de histórias e verdades. Por isso não deveríamos ter uma história oficial, e sim histórias. Não temos uma verdade e sim um conjunto de verdades. Porém, infelizmente não é assim que acontece, pois há uma imposição para o que se chama de verdade. Vejamos o que diz Montenegro: 6
A história opera sempre com o que está dito, com o que é colocado para e pela sociedade, em algum momento, em algum lugar. Desses elementos o historiador constrói sua narrativa, sua versão, seu mosaico. (p.19)
A história tende a representar a realidade, a partir de “peças diferentes”, que seriam documentos escritos e visuais, a partir de diferentes memórias. E essas peças, com suas falhas, contribuições e irregularidades, quando reunidas, formam um todo “coerente” para quem as defendem: o fato assim fica representado. Porque ninguém revisita o passado, apenas reinterpreta-o. E a Nova História vem ampliar as possibilidades dessa nova maneira de interpretação do passado.
5.1. A oralidade como fonte de pesquisa
Consideramos como importante, mas admitimos reconhecer que o trabalho com fontes orais é um desafio para o historiador, porque ele vai trabalhar com depoimentos que terão significados pessoais, de acordo com o contato que o depoente teve com o mundo que o cerca. De acordo com sua concepção de mundo. Pois, o entrevistado estará limitado também com o que chamamos de memória seletiva. A relação de lembranças e esquecimentos está presente em cada depoimento. Porque a mente humana tende a não lembrar aquilo que lhe causa medo, ou dor.
Damo-nos conta de que a História não está a serviço da memória, de sua salvação, mas está, sim, a serviço do esquecimento. Ela está sempre pronta a desmanchar uma imagem do passado que já tenha sido produzida, institucionalizada, cristalizada. Inventado, a partir do presente, o passado só adquire sentido na relação com este presente que passa, portanto, ele enuncia já a sua morte prematura. (ALBURUQERUQE JR. p. 24) 7
Em uma análise mais apurada, isso que o autor nos diz é uma verdade. Nós só lembramos aquilo que esquecemos. Por isso trabalhamos também com o não dito. O pesquisador precisará compreender também o particular, a subjetividade do narrador. Para ilustrar estas ideias vamos utilizar o que diz outra fonte:
Esta possibilidade de desvelar, de reinterpretar o passado é o que fascina no uso da memória, a qual não está apenas nos relatos, mas inserida nos gestos, rituais, documentos escritos e imagens. A memória é múltipla e possibilita diversas formas de reconstruímos o passado.8
Embora desafiante, a história oral nos dá uma nova compreensão dos fatos. Permitindo-nos reinterpretá-lo e resignificá-lo em face das surpresas que o presente irá nos trazer. Visto que a história atua organizando os fatos (seja de forma consciente ou inconsciente), em função mesmo das suas necessidades presentes. As fontes orais despertam o olhar do historiador para aspectos não verificados, inclusive dentro de temáticas já trabalhadas. Valorizando a percepção externa sobre a história de vida em foco e das problemáticas de indivíduos e/ou comunidades esquecidas e sufocadas pela história dita “verdadeira”.
O estudo da memória, no contexto das vicissitudes históricas e historiográficas, passa invariavelmente pela ampliação da noção de fontes documentais, incluindo-se os relatos orais. Assim, a diversificação das fontes pôde restabelecer para a história os relatos orais de indivíduos tradicionalmente negligenciados pela historiografia oficial.9
A disseminação da História Oral no mundo e, notadamente, no Brasil merece atualmente forte destaque. Os trabalhos feitos a partir de entrevistas já não são vistos de forma desacreditada de antes. Relatos pessoais, embora subjetivos, são carregados de uma memória também coletiva e em muito têm acrescentado na forma de fazer história contemporânea. Até porque, hoje se sabe que documentos escritos também podem, e com certeza são subjetivos. O surgimento de novos objetos fez com que historiadores analisem não apenas a macro-história, mas voltam seus olhares para o cotidiano, para uma visão micro da história. E o documento escrito deixou de ser a única fonte de trabalho do historiador. Senão vejamos:
A história oral é hoje um caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade. (p.05).10
A história oral nos permite o conhecimento de diferentes estilos de vida de diversos grupos sociais. São “histórias dentro da história”, que permitem uma mudança na maneira linear de se contar os fatos, aonde a história política não é mais de grandes nomes, daqueles que fizeram grandes feitos, mas constituída de retalhos, com participação de atores diversos, mesmo que muitos nomes foram suprimidos nas narrativas, mas suas contribuições são significantemente importantes para historiografia em geral, dando maior credibilidade as versões atuais. Até porque nenhuma narrativa é neutra.
A particularidade do sujeito histórico é ao mesmo tempo coletiva. Ele narra uma situação de acordo com sua vivência, com seu ponto de vista, sobre o espaço em que está inserido. Dessa forma sua concepção de mundo também está na narrativa do coletivo, já que a história é um processo em que envolve todos. Do mesmo modo, pode retratar as relações sociais (a contextualização histórica) daquele momento que está sendo estudado. Essas condições histórico-culturais devem ser uma preocupação na análise interpretativa do historiador, com o cuidado de não cair no mito do sujeito personalista. De grandes nomes, ou grandes feitos carregados de partidarismo.
A partir da compreensão das fontes consultadas, consideremos que tudo que somos, é fruto do que culturalmente aprendemos. Somos resultado das relações sociais, por isso não somos “natureza pura”, somos cultura, e tudo que somos nos mostramos individualmente, mas também coletivamente.
Diante do exposto, valorizar o relato oral de todos aqueles que tiveram contato direto com a história é permitir ao historiador elementos dos mais variados para uma análise mais ampla e pluralística de significados e sentidos de como essa história foi vivenciada nas suas mais variadas possibilidades.
Acreditamos que o relato oral daqueles que viveram o processo de formação e desenvolvimento do objeto em estudo – no nosso caso, a vida e a obra do Sr. Otávio –, além de contribuir significantimente para compreensão e a dimensão histórica do fato, é capaz de lançar novos focos de luz a essa mesma história. Haja vista que através não só dos depoimentos, mas também a partir da leitura de todo um gestual e até mesmo da tonalidade do narrador ao se expressar, podemos idealizar, incorporar novos elementos não captados pelas demais fontes, e recriar o acontecimento através da ótica do narrador.
Nesta perspectiva vejamos o que diz Montenegro: “Nesse aspecto, seus relatos de memórias orais apontam ainda para um exercício de reviver experiências, acontecimentos, fatos, possibilitando ao ouvinte transportar-se para o cenário, o contexto reinventado.” (MONTENEGRO, Op. Cit., p. 56).
Assim a oralidade como fonte de estudo, permite ao historiador não apenas interpretar o significado da história, a partir da visão restritiva de quem a narra, mas correlacionar o significado dos fatos de abrangência múltipla, às experiências e significados individuais.
6. CAPÍTULO II
7. OTÁVIO JOSÉ: HISTÓRIA E MEMÓRIA DE SUA INFÂNCIA
Foto 02: Sr. Otávio José. Foto de Geyse Anne, 2012.
8. Introdução
A grande maioria das crianças de famílias pobres de agricultores do Agreste pernambucano, à época da infância do senhor Otávio José da Silva foi caracterizada pela privação de recursos que garantissem a seus pares melhores oportunidades de sobrevivência.
As famílias eram constituídas de um grande número de filhos (O Senhor Otávio tinha mais onze irmãos), que pudessem, com o tempo, ajudar no sustento do grupo familiar através da utilização da mão de obra dos filhos, e isso acontecia precocemente, desde a infância.
Também muito comum às dificuldades de locomoção, (o deslocamento geográfico) e, principalmente as questões financeiras. Tudo isso impossibilitavam à maioria das crianças frequentarem uma escola, restando para essas pessoas (jovens e adultos) a submissão, para garantir a sobrevivência de todos como agregados nas terras de fazendeiros, caracterizados como a elite latifundiária da região.
Nesse contexto socioeconômico, totalmente desfavorável aos pobres, e envolto em crendices e procedimentos característicos dos necessitados e ignorantes, nasceu o senhor Otávio, (27 de abril de 1930), no município de Camocim de São Félix. Considerando os ensinamentos da religião católica, cujo princípio de “crescer e multiplicar” criava a ingênua expectativa de melhoras com a vinda de mais um filho. Seu pai acreditava e enxergava no novo rebento, algo de diferente que, muito provavelmente e/ou inconscientemente, renova as esperanças dos pais por dias melhores.
Eis o relato sobre os fatos de quando Seu Otávio nasceu:
Quando eu nasci aí pai olhou eu assim e disse: esse é diferente dos outros. Mas por que eu era diferente dos outros? Porque fora eu já tinha nascido seis irmãos. Eu fui o sétimo. Então eu era diferente dos que já tinha nascido... Aí a parteira pergunta por que cumpadre esse é diferente dos outros? Porque os outros nesce com os zói fechado. E esse nasceu com os zói grelado olhando pro telhado...
Diante da necessidade e da falta de oportunidades conforme já foi descrito, não apenas naquela época em que o senhor Otávio nasceu, mas que ainda persiste em algumas regiões do nosso país, logo cedo ele é iniciado ao mundo do trabalho. De início ajudando em pequenas tarefas domésticas ou na própria vida do campo, assumindo desde muito cedo em si, responsabilidades incompatíveis ao universo infantil comum.
Não obstante ao curso normal da vida, dele e de seus irmãos, e da grande maioria das crianças inseridas nesse contexto, o Senhor Otávio logo no início da adolescência, começa a diferenciar-se dos demais jovens quando demonstra uma habilidade incomum para a idade. Conforme suas narrativas, tudo começou através da brincadeira com o barro, que manifestava sua criatividade e dava forma a esse talento por meio da confecção de objetos e figuras de barro que representasse o mundo como ele o via.
Nesse aspecto, observa-se a peculiaridade de um talento nato para a arte e que, independente das dificuldades do contexto social em que vivia e de sua pouca escolaridade, encontra satisfação e realização em seu talento, mesmo que, nessa fase ocorra de forma inconsciente e muitas vezes não encontre apoio e incentivo por parte do seu grupo familiar, pois a própria mãe o reprimia ao se apresentar sujo de barro ao término da brincadeira. “Só vivia melado de barro. Ai mãe se zangava comigo. Porque eu só vivia melado de barro. Mas meu fi, você só quer viver... Você tem parte com porco é?”
Mesmo com a repressão da mãe, ao comportamento peculiar do filho, é na família, por meio da admiração ao pai que ele encontra incentivo para dar forma a seu talento. Tendo na figura paterna um ícone imaculado, conforme podemos observar na emoção que toma conta do Senhor Otávio ao se reportar ao pai:
(...) Ai quando foi um dia pai num se infadava. Pai pegava no serviço seis horas da manhã, largava bem onze hora, chegava em casa pra almoçar, pra mim pai não tava infadado. Chegava me deitava no banco, e deitava a cabeça no colo dele. Ele ficava acariciando, passando a mão na minha cabeça assim e olhando pra mim e eu olhando pra ele. Pra mim era o mermo de ta olhando pra Deus do céu...
O apoio do pai ao comportamento do filho, mesmo que inconsciente, foi de fundamental importância para que o talento do Senhor Otávio tenha sido lapidado pela satisfação que ele sentia em dar forma a sua imaginação e talento através do barro. Pelo que ele fala, o pai era conivente com o jeito de o filho brincar:
Todo dia ia pro banho porque tava todo melado de barro. Ai pai dizia: homi, (sic) deixe esse menino!... Então que eu era diferente dos outros..., deixe ele fazer, quando ele chegar sujo em casa você lava e fica limpo de novo.
Além das dificuldades inerentes aquela época e local que, castra a infância dos meninos e meninas que substituem as brincadeiras, criatividade e fantasias próprias da idade, pela obrigação de tornarem-se produtivos ao sustento familiar. Porém, a vida no campo por mais dura que possa ser vivida, havia em muitos momentos uma liberdade grande pela possibilidade de convivência com a terra, com o mato e os animais domésticos, do que as crianças da cidade que são “presas” em apartamentos e casas apertadas, cuja vida é pressionada pela violência urbana.
Por mais difícil que tenha sido sua vida, nada se comparou até quando, em um acidente doméstico ficou impossibilitado de vê durante quase dois anos.
(...) Eu fui debaixo do fogo peguei uma brasa assim e me deitei no chão assim, ai quando eu vou encostando a brasa naquele pacotinho era pólvora (lágrimas). Ai queimou os dois olhos. Ai eu fiquei cego. Fiquei cego, quando minha vista veio clarear eu tava com dez anos... Esse irmão meu era quem andava comigo. Eu pedia a ele: me leva lá debaixo do pé de jaca. Que era onde tinha o barro. Eu digo leva eu lá pro pé de jaca pra eu fazer meus bonequinho. Ele levava eu, botava lá, eu me sentava numa pedra, ia lá pegava o barro botava na minha mão. Ai eu ali, eu traçava aquele barro, pelo tato, mas eu já sabia fazer a peça né, ai eu ia fazendo.
A família do Sr. Otávio não tinha condições de transportá-lo para um hospital, tendo em vista que o mais próximo na época localizava-se na cidade de Bezerros. A dificuldade financeira levava sua família a recorrer unicamente aos remédios caseiros, as crendices e a fé para curar a sua cegueira.
No mato a gente se virava com o que se arrumava alí nas matas. No mato, remédio de fôia... E pai olhou assim... Minha mãe pra não ver eu crescer com os óio fechado, aí ela usava banha de galinha no algodão e passando nos zóis. E mechendo na minha vista pra quando crescer não ficar com os zóis pegado...
...Meu pai olhou assim e disse, chamou o meu irmão e disse: Dionízio, pega esse menino todo dia bem cedo, num tempo de verão mesmo assim como tá agora... Todo dia bem cedo você pegue esse menino leve lá pra vagem. Nesse tempo tinha roça lá, tinha mandioca. Aquela mandioca, aquela folha cheia de orvalho, aquela aguinha, passe no oi dele, lave o rosto dele com aquela aguinha do orvalho. Ele disse, tá certo meu pai. Todo dia cinco horas da manhã ele me levava lá pra lavar meu rosto no orvalho do sereno. Aí foi clareando, foi clareando...
A visão do Sr. Otávio começou a clarear quando ele tinha aproximadamente oito anos, mas só aos dez anos ele voltou a enxergar definitivamente. Foi nesta época que despertou a curiosidade pelo uso da madeira na confecção dos seus brinquedos.
9. A criação do Mané Gostoso
Ainda aos 10 anos de idade, o Senhor Otávio num desses momentos em que somente os dotados pela singularidade do talento são capazes de protagonizar algo inusitado inventa aquele que, mais que um brinquedo, viria alegrar a infância de crianças de todos os níveis sociais e nos mais diversos recantos do mundo, e se tornaria sua criação mais importante: o Mané-gostoso.
Bom ai quando eu completei 10 anos ai eu disse vou usar outro negócio. Eu usava casca de cunha... Aí furei outro buraco, botei duas linhas, ai quando eu fiz assim aquela rodinha fazia vul vul...(risos) eu achava era bonitinho. Ai eu fiz isso, ai fui mostrar ao meu pai. Eu fazia assim, aí quando eu fazia assim, aquela rodinha com dois buraquinhos puxando. Olha meu pai, como é bonitinho tá vendo?... Aí quando eu mostrei ao meu pai, vige Maria que meu pai ficou doidinho com aquele bonequinho! Aí pai ficava brincando com ele assim, mai como é tão gostoso, é gostosim de mais. Aí eu digo aí, o nome dele eu vou botar Mané gostoso!...
O brinquedo feito em madeira recebeu o nome de Mané Gostoso. Trata-se de uma tábua delgada, tipo compensado, cortada em forma humana, que fica suspenso entre duas varetas e preso por cordões semienrolados, que estão passando pelas mãos do boneco, como se fosse ele segurando a barra de um trapézio. (Vê foto 01 – na Introdução) O funcionamento é extremamente simples: você aperta as varetas no sentido de fora para dentro e os cordões puxa o boneco e este fica saltando de um lado para outro do trapézio.
Ainda que nesse momento o Senhor Otávio não fosse capaz de compreender a importância de sua criação como expressão artística, ele passa a inserir em suas obras, significados e sentimentos de um mundo próprio, que fora constituído pela sensibilidade de uma pessoa sonhadora, cuja arte se sobrepõe à realidade dos objetos, na medida suas peças deram novas formas e sentido ao mundo lúdico. Simples, bastante subjetivo, porém belo.
A arte é uma manifestação ligada intimamente ao espírito humano. Desde as origens das civilizações, o homem busca dar aos objetos que cria, além de uma forma mais eficiente e útil para o fim a que se destinam. Qualidades que independem da simples utilidade e que satisfazem uma necessidade de harmonia e de beleza. (SOUZA, 1980, p.03).11
Também quando usava como matéria prima, a madeira o Senhor Otávio procurou representar em suas peças, não apenas uma simples reprodução do seu cotidiano, mas transferindo para o universo real, valores e sentimentos não reconhecidos pelos próprios personagens. Senão vejamos: “(...) Ai fui fazendo, fui criando... quando eu via o homem com uma inchada nas costas, ai eu ia olhava como era que ele tava, ai eu fazia aquela peça, botava a inchada nas costas dele e assim eu continuei fazendo”.
Ao criar suas peças, o Senhor Otávio reconhece naquela figura copiada, significados não perceptíveis àqueles desprovidos da sutileza e sensibilidade do artista. Mesmo que, o próprio artista não tenha, a priori, essa dimensão de significados para aquilo que está sendo feito. Pois, muitas vezes, ele mesmo deixa transparecer apenas um sentido de recriação do seu universo como sendo reinterpretado por ele. Vejamos sua narração explicando sua belíssima e peculiar obra, que retrata com detalhes o funcionamento da casa de farinha que fazia parte do seu cotidiano de trabalho. Mostrando a peça, ele fala:
Isso aqui era a casa de farinha antiga. O pessoal fazia farinha. Aqui tava cevando a mandioca. Ali ele rodava essa roda, aqui moía, eles fazia aquele movimento. E aqui ela tá cevando a mandioca. Aqui ela esta mexendo a massa. Tá vendo. Tá aqui mexendo a massa no fogo pra secar. Esse aqui é o forno, nesse forno ele puxa essa massa. Essa massa vem praquí, quando ela tira daqui, aí coloca aqui... Esse aqui torce quando a massa seca. Pega a massa e joga aqui... aqui elas vão penerar a massa. Ai elas fica penerando essa massa prá botar no fogo. E esse aqui fica imprensando, aquele ali fica moendo... E ele pra atender a dona que está aqui, botou o cabo nas costas e perdeu até a atenção no que tá fazendo (risos). Essa obra aqui era o que a gente fazia lá no sítio. A gente moía pra fazer farinha. Esse movimento aqui tudo é do meu conhecimento. Eu inventei, porque eu via essa peça pronta no sitio. Eu olhava assim... Eu vou fazer essa peça. Eu fazia pra brincar. Era, eu fazia pra brincar. Porque eu criava, eu achava bonito o movimento, que isso aqui é uma peça grande...
Foto 03: Casa de farinha (em 4 recortes). Peça do acervo do Sr. Otávio.
Fotos de Geyse Anne, 2012.
A falta de oportunidade aliada à necessidade de sobrevivência dos que pertencem as classes mais populares. Creditamos como responsável pelo precoce amadurecimento de muitos jovens que, desde cedo, são obrigados a assumirem responsabilidades comuns as pessoas de uma faixa etária mais avançada.
Nessa perspectiva ou pela falta dela, a família já morando no município de Jurema, cidade localizada na parte meridional do Agreste, o Senhor Otávio aos 16 anos vem tentar a vida em Caruaru, pois sendo uma cidade pólo da região já naquela época, tornava-se um atrativo para aqueles que, assim como o nosso personagem, procura novos caminhos buscando melhorar a vida na cidade grande, ficando seus pais e irmãos na zona rural de Jurema.
Aí eu disse: meu pai o senhor fique aqui, porque o que a gente ganha aqui é muito pouco, e eu vou pra cidade. O senhor fique aqui morando com o patrão aqui, cuidando do povo, porque o patrão ajudava e a família era grande. Ele trabalhava no roçado dava de comer ao gado...
Embora a vida na cidade impusesse uma dinâmica diferente, da sua experiência de vida no campo, onde os momentos de descanso se tornavam raros, o Senhor Otavio, não por medo de trabalhar no pesado, mas buscando substituir a insatisfação de uma vida bastante pobre e por não dá vazão a sua criatividade em seu talento, em outro lugar, mesmo produzindo suas peças, pois ali já estava meio sem graça.
Embora essa mudança tenha sido naturalmente impulsionada pela necessidade de buscar uma melhor condição de sobrevivência, no caso do Senhor Otávio, representou uma decisão importante para que sua arte pudesse ser conhecida por um grupo maior de pessoas.
Entretanto, os primeiros anos do artista na cidade de Caruaru pouco diferenciavam da vida voltada apenas para a sobrevivência, privando-o de qualquer oportunidade que viesse representar efetivamente uma melhoria de vida. Inicialmente foi trabalhar em uma farmácia e, pela pouca idade, bem como a falta de escolaridade, estava sujeito às tarefas de pouca remuneração, o que era compensado pela oferta complementar de casa e comida oferecida pelo dono do estabelecimento. “Eu trabalhava na farmácia e a minha refeição era na casa do pai do dono da farmácia. Eu fazia a refeição lá. Almoçava, tomava café, bem cedo e de noite, e dormia na farmácia”.
Comum àqueles que migram do campo para cidade, a falta de escolaridade e as limitações diante da inexperiência às tarefas do trabalho urbano, o Senhor Otávio aproveitando-se de suas habilidades fora das artes, em tarefas relacionadas com a agricultura, procurou outras atividades para aumentar a renda, “Ai fui trabalhar na casa de Humberto de Souza. Ele ia se casar, e a noiva precisava de um jardineiro, então ela me contratou pra eu fazer o jardim dela”, o que não significava necessariamente o pensamento quando saiu do campo.
No entanto, essa dificuldade de sobrevivência é quem garante que o artista, mesmo que sem a clara dimensão da importância do seu trabalho, retoma o trabalho de sua arte com o objetivo imediato de complementação de renda, mas ao mesmo tempo tornando-a cada vez mais importante e conhecida mundialmente. Veja o que ele nos revela sobre sua produção:
Entregava aqui em caruaru. Entregava nos Estados Unidos, era internacional. Que os turistas vinham e já tinha o lugar certo deles vim pegar. Pegar e levar. Né? Os inglês, os americano, os japonês... Tudo isso levava peça daqui. Eu vendia aquilo ali por dúzia. Eu vendia cada dúzia a 5 cruzeiro antigo.
Dentre as dificuldades enfrentadas por todos aqueles que migram do campo para a cidade em busca de novas oportunidades o Senhor Otávio José da Silva deparou-se com um dos fatos a que viria demonstrar sua integridade de caráter, bem como sua capacidade de, independentemente das condições adversas, insistir no seu processo criativo artístico, sem condições que garantisse uma moradia, teve que residir na rua mesmo estando empregado, naquele momento, na Fábrica de Caroá, conforme depoimento a um jornal da cidade: “A fábrica da Caroá, na época me pagava sessenta mil réis. Eu ficava com 10 para comer e 50 mandava para o meu pai. Para isso eu morava em baixo de uma árvore, meu travesseiro era o meio fio e o lençol o frio da noite”. (CLÍMACO, 2007)
Para o Senhor Otávio, trabalhar na Fábrica de Caroá significava uma das melhores chances de mudança de vida, pois se tratava de uma empresa de grande porte que representava o traço de modernidade e desenvolvimento não comum à região.
A inauguração da Fábrica de Caroá é a concretização de um investimento que muitos esperavam, pois tinham a certeza das novas realidades econômicas e sociais que seriam geradas no comércio de Caruaru... Junto com essa efervescência popular, despertada pela fábrica, nasce agora, em outra ótica, uma ideia de segurança econômica, pois o trabalhador do campo que dependia exclusivamente do que se plantava e não tinha certeza se iria colher, vem para a cidade... (SILVA ; TEIXEIRA, 2011, p. 49/50).
No entanto, essa perspectiva de desenvolvimento não contemplava a todos que estavam diretamente ligados a esses signos representados pela fábrica. Pois, de início, para o Senhor Otávio as mudanças econômicas previstas com o trabalho na Caroá não se traduziu em realidade, obrigando-o a morar embaixo de uma árvore, conforme sua afirmativa.
Enquanto que normalmente em condições tão adversas tornam-se pré-supostos para desistir de seus sonhos, sacrificando suas habilidades artísticas pela enorme dificuldade de sobrevivência, o Senhor Otávio continuou desenvolvendo sua arte no sentido de que esta possa lhe trazer mais que um retorno financeiro, mais o reconhecimento de seu talento e habilidades artísticas pelo público em geral e, principalmente pelas autoridades municipais.
Todas essas adversidades não inibiram o talento criativo do Senhor Otávio, ao contrário, produzindo sua arte com o imediato objetivo de complementação de renda, ele vai dando vazão aos significados e sentidos de seu universo pessoal, tão comum aos seus pares sociais, na sua produção artesanal que vai aos poucos, mesmo que subjetivamente, fazendo com que outros seguimentos entrem em contato com sua realidade. Nesse sentido, sua arte, traduz não apenas um objeto de beleza e contemplação para tornar-se também em um instrumento de reprodução do seu universo cultural.
10. CAPÍTULO III
11. O ANONIMATO DE UM ARTISTA POPULAR
12. Introdução
Antes de desenvolver o capítulo, desejamos esclarecer a nossa compreensão sobre o que é popular, em contraposição ao que se convencionou chamar de erudito. Para isso, vamos ilustrar a nossa fala através do texto abaixo:
É comum a gente ouvir que o popular é a produção artesanal e o erudito trata-se das obras de artistas que normalmente podem ser classificadas como semelhante ao estilo de uma determinada escola estética. (FERREIRA, 2009, Op. Cit., p. 30).
Então, ao que tudo indica, muita gente responsável pela administração e pelo cuidado da cultura em nosso município, considera o Sr. Otávio um artesão e o que ele produz estar apenas na categoria de artesanato e, portanto faz parte do nosso folclore. É o mesmo que dizer que: é o conhecimento do povo. Protestando tais ideias vamos utilizarmos o que nos indica Florestan Fernandes.12 Segundo ele, não é correto e nem justo, pensar que a produção cultural das classes baixas é Folclore e a produção cultural das classes economicamente elevadas é Cultura. Está aí a diferença de compreensão do que vem a ser arte e artesanato.
Agora voltando ao tema do nosso trabalho.
O boneco de madeira brilhantemente criado por Sr. Otávio ainda criança, recebeu o nome de Mané Gostoso, conforme já foi descrito no tópico 2 da capítulo II. Mais uma vez vamos destacar que foi em um momento muito significante dele (quando criança) por se tratar de uma manifestação afetiva de seu pai diante de tamanha criatividade: um boneco de madeira, com movimentos nas mãos e nos braços, puxado por cordões, de início era só mais um brinquedo produzido para seu entretenimento e de seus irmãos.
Anos mais tarde, morando já algum tempo na cidade de Caruaru, Sr. Otávio (já adulto) passou a confeccionar seus bonecos de madeira com fins lucrativos a fim de complementar a renda, considerando que apenas seu emprego na Fábrica de Caroá não lhe era suficiente para manter suas despesas e de sua família.
E foi com a renda de sua arte que conseguiu sua casa. Narra ele: “O Mané gostoso foi quem ajudou na minha moradia. Que hoje eu tenho moradia.”
Este boneco encantou a infância de muitas crianças caruaruenses, inclusive a nós, escritores deste texto que através dele estaremos resignificando esta tão preciosa memória cultural.
Afirma o depoente Thiago Oliveira, que na sua infância, recebia como presente do pai, o brinquedo Mané Gostoso e não sabia que era criação do Sr. Otávio:
Eu ficava esperando meu pai chegar da feira. Ele prometia trazer e eu ficava esperando naquela ansiedade. Ai ele colocava em cima da geladeira e só me dava quando eu comia.
13. A divulgação do trabalho do Sr. Otávio
Conforme já falamos em outra parte desta monografia, que o Mané gostoso não cativou apenas as crianças caruaruenses, mas ganhou espaço internacional, na medida em que foi divulgado lá fora, onde teve grande aceitação.
A influência cultural do boneco foi de tamanha amplitude, que foi até inspiração para os compositores Lídio Cavalcante e Adolfo José (Adolfo da Modinha)13, que criaram uma letra de música explicando o que era aquele brinquedo. A música que recebeu o nome de “Mané Gostoso”, interpretada pelo cantor caruaruense Azulão. Eis a letra:
Pula Mané!
Pula dengoso!
Pula Mané!
Mané gostoso!
Mané gostoso é dois paus com um cordão.
Pula dengoso quando a gente aperta a mão.
Quem na lembrança não tem um Mané gostoso,
Nunca foi criança, nunca foi treloso.
O bisavô comprava pro vovô
E o vovô comprava pro meu pai
Também pra mim papai muito comprou
E pra meus filhos eu vou comprando mais
Pula Mané!
Pula dengoso!
Pula Mané!
Mané gostoso!
Na década de sessenta, do século XX, Sr. Otávio participou da feira internacional de arte e ficou conhecido como o mestre carpinteiro. Porém, sem nenhum desdobramento ou valorização sobre seu trabalho artístico, pois não se tratava de um simples carpinteiro.
Em 2007 e também em 2010, foi divulgada a criação do Sr. Otávio nos jornais de Caruaru: no Jornal Extra de Pernambuco e no Jornal Vanguarda, respectivamente, em caráter de Matéria Especial, conforme recorte postado na próxima página deste trabalho.
Mas o reconhecimento profissional não ultrapassou esses eventos singulares e embora tenha recebido diversas promessas, permanece anônimo. Muitos se alegraram com os brinquedos produzidos por suas mãos, e, no entanto não sabem sua origem. Não chegou ao conhecimento da população caruaruense o nome do verdadeiro criador deste boneco que serviu de inspiração para músicos que cantaram seu significado por tanto tempo. O Mané gostoso foi sendo copiado e seu verdadeiro criador permanece na condição de um criador anônimo.
Depois com o bocado de tempo que eu comecei entregando na feira... Aí eu comecei entregando na feira né? Aí os curioso pegava e levava e chegava lá ia caprichar pra fazer também. Aí foi quando entrou os piratas. Aí eles vendiam barato, os que ia comprar mais caro não queria, queria o mais barato. Até hoje o ligítimo, quem tem, tá guardando com privilégio pra não dá fim. Muita gente tem guardado essa lembrança. Faz muitos anos. Que há muito tempo que eu deixei...
Ilustração 01: Jornal Extra de Pernambuco, 2007.
Assim como Sr. Otávio, em todos os lugares encontramos pessoas que fazem com suas mãos verdadeiras obras de arte. Para algumas pessoas, o artesanato não passa de uma arte primitiva, que não se encaixaria no conjunto de artes eruditas. Isso é na realidade uma forma discriminatória do trabalho artesanal. Basta olharmos a peculiaridade dos trabalhos manualmente e minuciosamente moldados por Senhor Otávio e tantos outros artesãos espalhados pelo Brasil, que enriquecem a cultura brasileira com suas peças raríssimas e de beleza singular.
Ainda a respeito dessa invisibilidade da importância e dimensão do trabalho artesanal pela maioria, e, mais precisamente, por alguns seguimentos intelectuais e sociais, torna-se notório a incapacidade de compreender que o artesanato, representa de forma muito mais direta e objetiva, quando muitos significados (simbólicos ou não) do universo da maioria da população que convivem com o mundo criativo do artista.
Enquanto a arte considerada erudita apenas consegue expressar os sentidos e significados de uma minoria que a ela tem acesso (uma produção da elite para a elite) e, que quando se reporta ao universo popular, muitos críticos não conseguem valorizar a profundidade e a transparência que os artistas populares imprimem em seus trabalhos.
O não reconhecimento por parte dos órgãos que definem e conduzem as políticas públicas para a cultura, não percebem ou não querem vê a importância da arte popular do Senhor Otávio. Não apenas dele, bem como de todos aqueles artesãos que produzem anonimamente em nosso país. Tudo isso evidencia um pensamento elitista e discriminatório que insiste em negar ao próprio meio popular a valorização dos seus pares e de sua arte como verdadeira representante de sua história.
Esses artistas transformam em arte os seus sentimentos. Se olharmos suas peças curiosamente, perceberemos que estas traduzem o coração do artista, seus valores são indiscutíveis. Para ilustrar essas ideias, vejamos a seguinte citação: “O papel fundamental, na criação artística, é desempenhado pela imaginação criadora.” (SUASSUNA, 2005, apud FERREIRA, 2009, Op. cit., p.23).
Elas traduzem a realidade de seus criadores e dos costumes que o cercam. Seus objetos dizem mais sobre eles. Quem são eles e de onde vieram... “A arte nos faz aprofundar na vida da humanidade: seus costumes, crenças, momentos de glória, inquietações, decadência moral ou econômica.” 14
Feito um levantamento sobre o perfil dos produtores populares no Brasil, se verifica que a maioria desses artistas são pobres ou de classe média baixa. São trabalhadores considerados na categoria de autônomos que sofrem com a instabilidade e variedade de um rendimento suficientemente generoso para o tamanho do seu talento e das necessidades na vida.
Alguns exercitam seus dons como complemento de renda, outros como meio de sobrevivência. Apesar do talento e do gosto pelo que se fazem muitos desses não têm seu trabalho reconhecido.
Apesar disto, são muitos os artistas que têm seus trabalhos como verdadeiros salvadores de suas vidas. Poucos saem do anonimato e outros têm reconhecimento depois da morte. Temos por exemplo disto Mestre Vitalino. O grande artesão caruaruense que nos deixou grandes esculturas na arte figurativa, como o grande legado cultural para o município de Caruaru.
14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2 HÉLIO, Mário. (Org.). Suplemento Cultural: Artesanato em Pernambuco. Diário oficial Secretaria de Cultura do Estado – Ano XV. Recife: CEPE, /Setembro de 2000.
3 LIMA, Beth ; LIMA, Valfrido. Em nome do autor: artistas artesãos do Brasil. Proposta editorial, São Paulo, 2008.
4 FERREIRA, Josué Euzébio. Do barro à expressão artística: representação conceituais do trabalho artesanal do Alto do Moura. Caruaru: Edições FAFICA, 2009.
5 LE GOFF, Jacques. História e memória. /Trad. Bernardo Leitão et. all/. 2. ed., Campinas: UNICAMP, 1992.
6 MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 2001
7 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de Albuquerque. História: a arte de inventar o passado, Ensaios de Teoria da História; Bauru, SP: EDUSC, 2007.
8 FERREIRA, Luciana. “História, Memória e imagens: perspectivas metodológicas.” In: NAZARRENO, Gisafran ; MOTA, Juca, (orgs.). Memórias entrecruzadas: experiências e pesquisas. Fortaleza: EDUECE, 2009. (p.08)
9 FERREIRA, Luciana, Op,cit. (p.10)
10 ALBERTI, Verena. Manual de história oral. Rio de Janeiro: editora FGV, 2004.
11 SOUZA, Wladimir Alves de. Folclore. Biblioteca Educação é Cultura, vol.4. Rio de Janeiro: MEC/FENAME/Bloch, 1980.
12 FERNANDES, Florestan. O folclore em questão. São Paulo: HUCITEC, 1978.
13 LP nº 1239023 – Eu não socorro não (faixa 3, lado 1) de Aluzão, gravado no Rio de Janeiro, pela Esquema, 1968.
14 D’AQUINO, Flávio. Biblioteca Educação é Cultura I. Rio de Janeiro: Bloch/FENAME, 1980. (p. 03).
Publicado por: EDILSON TAVARES COSTA
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