Luta de classes paulista: A classe operária na poesia de Adoniran Barbosa

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1. Resumo

Este estudo propõe analisar a história de São Paulo da perspectiva do materialismo histórico dialético, levando em conta a luta de classes, e com este objetivo se utiliza de fontes históricas não oficiais (As músicas de Adoniran Barbosa como crônicas populares, cheias de ironias e recursos de humor sobre fatos do cotidiano da população da classe operária) e se apoia também em sérios trabalhos acadêmicos de historiadores e intelectuais como Boris Fausto, Marilena Chauí entre outros.

O ensino de História nas escolas, foi durante muito tempo praticado de maneira positivista, se baseando em documentos oficiais e culto a celebridades. Este tipo de ensino carece do desenvolvimento do senso crítico, característico de uma escola tradicional que transmite conteúdo sem problematizá-los. Desta forma afasta o aluno, de sua participação das construções sociais, a história se resume, a decorar datas e comemorá-las, sem que o educando se identifique com a história. A educação praticada por um Estado autoritário que inibia o pensamento reflexivo.

A educação acrítica tem por objetivo formar cidadãos cumpridores de papéis sociais, o que é essencial, mas, a escassez de consciência de classe forma indivíduos que julgam a defesa de direitos de classe como, “assuntos de comunistas”.

É senso comum, uma visão acrítica que entende, uma São Paulo liberal e idealizada, que oferece condições iguais para todos aqueles que buscam o sucesso através do trabalho duro e consistente, que rejeita as lutas sociais, que discrimina os pobres e os migrantes de outras regiões e justifica a ascensão social através do esforço individual. As questões sociais, como a diferença de classes, as enchentes, a miséria, assumem por esta perspectiva, uma característica permanente, e desta forma de origem natural, justificando os privilégios da classe dominante e imputando ao destino, o sofrimento de classes dominadas.

Devido a sua limitada consciência de classe e a excessiva preocupação com a busca de ascensão, o “alienado” é o maior defensor do liberalismo e da meritocracia, se autoclassifica pelo seu padrão de consumo e não por classe social. Quando empobrece atingido por crises econômicas, ignora as dinâmicas econômicas e sociais que o afeta.

O objetivo aqui, é desconstruir estes mitos que alienam, revelando uma cidade real que, por uma série de condições geográficas, decisões políticas e processos históricos se construiu da forma que hoje se apresenta.

Palavras-chave: Historia, São Paulo, Educação, Classes Sociais, Adoniran Barbosa, Estado, Luta de classes, Positivismo, Marxismo, Alienação.

2. Introdução

A região metropolitana de São Paulo era composta em sua maioria, na época das composições de Adoniran Barbosa, quase em sua totalidade por descendentes de primeira ou segunda geração de pessoas de outras regiões do Brasil e do mundo, que por necessidade ou desespero, se lançaram em um destino incerto na cidade, movidos pela expectativa que esta aflição produzia.

As elites paulistas utilizam para justificar a sua dominação uma “Ideologia Quatrocentona” baseada nos valores burgueses dos que seriam os responsáveis pelo sucesso da cidade como “Locomotiva do Brasil” que arrasta os vagões vazios da nação.

Está aqui colocada a luta de classes de Karl Marx e Engels, tendo a cidade São Paulo como palco desta luta, onde as classes dominadas, alienadas, compartilham e defendem a ideologia dominante, mesmo sendo vítimas infelizes, desta dominação.

Problematizando algumas crônicas de Adoniran Barbosa podemos investigar um pouco este embate de classes e os processos históricos que formaram a região metropolitana de São Paulo e suas questões sociais.

3. Adoniran Barbosa e as crônicas da Cidade de São Paulo

“Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”
Frase de Leon Tolstoi (1828-1910) escritor russo.

“O Adoniran pode ser considerado um cronista na mesma linha de Mario de Andrade, Juó Bananère e Alcântara Machado. Retratava a cidade pelo que ouvia nas ruas. Transitava por todas as classes sociais, frequentava as malocas e ao mesmo tempo as festas do rádio”. Comentário de Celso de Campos Junior o autor de sua biografia mais completa.

As composições de Adoniran, nos servem como documentos da história de uma cidade em um período especifico e pela perspectiva da classe popular, a classe trabalhadora de São Paulo, nas décadas de 40, 50 e 60 do século XX. Revelando o cotidiano de uma classe social que desejava participar do progresso da cidade, aspirava ascensão social e melhoria de suas condições de vida e eram vítimas de enchentes e de preconceitos em uma cidade que os expulsava para cada vez mais distante, ao mesmo tempo que dava oportunidades a todos.

João Rubinato, como segue em sua biografia, viveu a cidade e seus dramas cotidianos e segundo o biografo, ele tinha “consciência do mecanismo social” o que deu a sua obra “forte caráter social”.

3.1. A biografia do artista

Segundo Celso de Campos Junior em “Adoniran, uma biografia” Editora Globo/2004. O cantor, compositor e humorista nasceu e foi batizado como João Rubinato, em Valinhos interior de São Paulo em 6 de julho de 1912, sétimo filho de imigrantes italianos da cidade de Veneza, começou a trabalhar aos dez anos de idade para ajudar o pai no serviço de cargas e vagões da E. F. São Paulo Railway em Jundiaí, para isso teve sua certidão de nascimento falsificada, pois só era permitido por lei, o trabalho após os 12 anos de idade, trabalhou também nesta cidade como entregador de marmitas e serviços gerais em uma fábrica. Em 1924 se muda com a família para Santo André na região metropolitana de São Paulo onde trabalhou como tecelão, pintor de parede, mascate, encanador, serralheiro, garçom, vendedor e ajustador mecânico.

Aos 22 anos se muda para São Paulo onde foi morar em uma pensão, tentou iniciar sua carreira artística em vários programas radiofônicos até ser aprovado em 1933 no programa de calouros de Jorge Amaral cantando “Filosofia” música de Noel Rosa e André Filho. Em 1935 colocou versos na letra da marchinha Dona Boa de J. Aimberê a qual venceu o concurso de músicas carnavalescas da prefeitura de São Paulo e teve a sua primeira música gravada. Neste mesmo ano passou a utilizar o pseudônimo de Adoniran Barbosa, inspirado pelo sambista Luiz Barbosa que ele muito admirava. Também neste ano se casou com Olga sua antiga namorada e teve uma filha, Maria Helena, a união não durou nem um ano completo e em 1937 Adoniran se casou com Matilde Lutiis, sua companheira no restante da vida.

Além de cantor e compositor, foi animador e radio-ator trabalhou nas rádios Cruzeiro e Record, Na Record a partir de 1940 no programa Casa da Sogra de Osvaldo Moles onde interpretava vários personagens como: Moises Rabinovic (o judeu da prestação), O Jean Rubinet (galã de cinema), O Perna Fina (motorista italiano), Mr. Morris (professor de inglês), Zé cunversa (o malandro) entre outros personagens que influenciaram as suas poesias futuras.

Formou com o conjunto Demônios da Garoa uma bandinha para animar torcidas nos jogos de futebol nas rádios do interior paulista, O Demônios da Garoa foi fundado em 1943 e vieram a ser os maiores interpretes dos sucessos de Adoniran Barbosa. Tinha também talento para ator, talento foi comprovado em diversas atuações no cinema como: Pif-paf (1945); Os caídos do céu (1946); A vida é uma gargalhada (1950); O cangaceiro (1953) premiado em 1953 como melhor filme de aventura em Cannes Esquina da ilusão (1953); Candinho (1954); Mulher de verdade (1954); Os três garimpeiros (1954); Carnaval em lá maior (1955); A carrocinha (1955); Pensão da Dona Estela (1956); A estrada (1956); Bruma seca (1961); A superfêmea (1973); Elas são do baralho (1977).

Em 1955 inspirado pelo sucesso de Saudosa Maloca, Osvaldo Moles escreveu para o rádio o programa história da Malocas que ficou no ar até 1965, onde Adoniran interpretava o Charutinho. O programa teve um grande sucesso de audiência entre as camadas populares da sociedade de São Paulo e chegou até ser levado para televisão. Na televisão Adoniran participou de programas humorísticos e em novelas. Em meados da década de 60, devido ao sucesso da Jovem Guarda, apesar de ser reconhecido admirado por intelectuais, Adoniran Barbosa lamentava estar esquecido de seu público preferido, as classes populares. Nesta composição ele demonstra o seu descontentamento com a sua situação artística no período.

Música: Já fui uma brasa ano: 1966

Eu também um dia fui uma brasa
E acendi muita lenha no fogão
E hoje o que é que eu sou?
Quem sabe de mim é meu violão
Mas lembro que o rádio que hoje toca iê-iê-iê o dia inteiro,
Tocava saudosa maloca

Eu gosto dos meninos destes tal de iê-iê-iê, porque com eles,
Canta a voz do povo
E eu que já fui uma brasa,
Se assoprarem posso acender de novo

(declamado):
É negrão... eu ia passando, o broto olhou pra mim e disse: é uma cinza, mora?
Sim, mas se assoprarem debaixo desta cinza tem muita lenha pra queimar..

(Fonte: www.vagalume.com.br)

Se aposentou em 1972 e para complementar a sua renda, Adoniran se apresentava em circos. Gravou um disco solo em 1973, onde ele mesmo com sua voz rouca interpretou músicas antigas e inéditas. No total gravou três LPs. Os últimos anos de sua carreira acompanhado pelo grupo Talismã fez esporádicos shows na cidade São Paulo. Em 1978 seu sucesso reaparece na parceria com a cantora Elis Regina que lança a sua versão de “Iracema” e “ Trem das onze” e lança a inédita, “Tiro ao Álvaro” que fora censurada em 1973 pelo linguajar popular de sua letra. Elis Regina se declarava sua fã de carteirinha, apesar dela mesma ser mais admirada, pelas elites sociais e classe média.

Seus últimos dias lutou contra um enfisema popular devido ao seu hábito de fumar, e com a saúde afetada passou seus últimos dias em casa se dedicando a mais um talento artístico que possuía, criava com pedaços de lata velha, madeira, miniaturas de rodas gigante, trens de ferro, carrosséis, movidos a eletricidade, além de miniaturas de bicicletas, enfeites e bibelôs. Faleceu no dia 23 de novembro de 1982 aos 72 anos.

Fontes: CAMPOS Jr., Celso de. Adoniran, uma biografia. São Paulo/Editora Globo,2004. BUFARAH, Álvaro, júnior. Adoniran de radioator a cronista da cidade de São Paulo. São Paulo/V congresso nacional de História de Mídia,2007. MOURA, Flávio. Adoniran, se o senhor não tá lembrado. São Paulo/Editora Boitempo editorial, 2002

3.2. O Samba como denuncia social

Sendo fiel à Teoria Marxista focarei no embate Burguesia e Proletário, pois a própria história do Samba seria tema de outra luta, a luta da “Consciência Negra”, mas, é possível afirmar que a trajetória do Samba se originou dos antigos batuques dos escravos, e as rodas de samba surgiram no Rio de Janeiro no século XIX, quando escravos de ganho se divertiam em seus momentos de folga, até animar churrascos em varandas gourmet da classe média. O engajamento do Samba como denuncia social não é exclusividade paulista nem de Adoniran, como, se pode notar em letras de Sambas Cariocas, como as que seguem:

Delegado chico palha (1938)

Delegado chico palha Sem alma, sem coração
Não quer samba nem curimba
Na sua jurisdição
Ele não prendia
Só batia

Era um homem muito forte
Com um gênio violento
Acabava a festa a pau
Ainda quebrava os instrumentos

Ele não prendia
Só batia

Os malandros da portela
Da serrinha e da congonha
Pra ele eram vagabundos
E as mulheres sem-vergonhas

Ele não prendia
Só batia

A curimba ganhou terreiro
O samba ganhou escola
Ele expulso da polícia
Vivia pedindo esmola

(Fonte: www.vagalume.com.br)

Este Samba foi lançado em 1938 por Nilton Campolino e Tio Hélio e regravado em 2000 pelo também carioca Zeca Pagodinho.

E este outro samba carioca segue na mesma linha relatando contradições no cotidiano da população.

Patrão, o trem atrasou (1941)

Patrão o trem atrasou
Por isso estou chegando agora

Trago aqui um memorando da Central
O trem atrasou, meia hora
O senhor não tem razão
Pra me mandar embora !

O senhor tem paciência
É preciso compreender
Sempre fui obediente
Reconheço o meu dever
Um atraso é muito justo
Quando há explicação
Sou um chefe de família
Preciso ganhar meu pão
E eu tenho razão.

(Fonte: www.vagalume.com.br)

Este samba, lançado no carnaval de 1941 por Roberto Paiva fez grande sucesso como marcha de carnaval é de autoria desconhecida, já foi gravado na voz de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa, com certeza, por sua letra retratar uma situação comum na vida do trabalhador do Rio de Janeiro e de São Paulo.

O Brasil e a cidade de São Paulo foram no século XX em sua maior parte dominado por governos repressivos e ditadores, toda forma de contestação social era severamente punida e o samba servia como instrumento de denúncia de autores que vivenciavam em seu dia a dia o sofrimento de classes menos privilegiadas, era a forma falsamente despretensiosa de engajamento social. Adoniran segue na mesma linha, cheio de ironias e uma falsa despretensão. Ao fazer um samba sobre a derrubada de um cortiço, a reintegração de posse de uma favela, a enchente que leva todos os pertences de alguém, em histórias absurdas e ao mesmo tempo verossímeis, que provoca a refletir que coisas deste tipo acontece todos os dias na cidade, mostrando aspectos que ninguém quer mostrar ou ver, mas, continua lá.

Fontes: MOURA, Flávio. Adoniran, se o senhor não tá lembrado. São Paulo/Editora Boitempo editorial, 2002 SANDRONI, Carlos. Transformações do samba carioca no século XX. Rio de Janeiro/Editora UFRJ, 2001

4. Ideologia e dominação

O conceito de ideologia na perspectiva marxista tem dois aspectos. No primeiro aspecto a ideologia é uma concepção do mundo em razão de como o mundo deveria ser, portanto, não científica, ou seja, toda ideologia pressupõe valores sobre o mundo, do que é certo, errado, justo, injusto, em razão de um mundo idealizado, nenhuma ideologia é verdadeira ou falsa, ela é uma opinião de como o mundo deveria ser. O segundo aspecto da ideologia, é no sentido prático das ações, ela é um conjunto de condutas, praticas, hábitos, costumes, transformadores do mundo de como ele é para um mundo idealizado, portanto, aquilo que o homem idealiza do mundo é o resultado de uma dominação de classe e o que a sociedade faz para alcançar este mundo idealizado também é o resultado de uma dominação de classe.

A revolução industrial modificou de forma radical os meios de produção, e se fez necessária uma nova ideologia que atendesse as demandas da nova ordem. Após a industrialização a classe burguesa expandiu a sua dominação e estabeleceu as novas formas de organização social.

O sucesso na vida como meta, passou a ser medido pelas conquistas materiais e pela qualidade das relações familiares e sociais neste sentido O trabalho e a posse de recursos privados passaram a ser um valor incontestável para medir a dignidade humana.

4.1. A origem das classes sociais modernas

Entre as consequências da revolução industrial estão a consolidação do capitalismo, a urbanização e a questão social que constituiu as duas principais classes sociais do capitalismo moderno. De um lado a burguesia industrial detentora dos meios de produção e do outro o proletariado que possuía apenas a sua força de trabalho. Entre a rica e dominante classe burguesa e o empobrecido proletário, caracterizado pelo pesado e sujo trabalho manual. Surgia outra classe social, intermediária entre ricos e pobres, a classe média.

“Estabelecer critérios identificáveis era, portanto, urgente para os então membros, reais ou virtuais, da burguesia ou da classe média e particularmente para aqueles cujo dinheiro, por si só, não seria suficiente para a compra de um status seguro de respeito e privilégio para si e para sua descendência”. (HOBSBAWM, p. 245)

Acontecia uma enorme expansão do setor terciário que gerou empregos em escritórios públicos e privados. Apesar de subalternos e assalariados, estes empregos eram limpos e baseados em qualificações educacionais, haviam também profissionais liberais como: médicos, advogados, professores, pequenos comerciantes, altos empregados, e burgueses empobrecidos que somados compunham a classe média alta e a baixa. Esta classe social mesmo quando seus ganhos eram pequenos, se distinguiam e recusavam qualquer identificação com a estigmatizada classe operaria, buscavam o estilo de vida e respeitabilidade da burguesia. Esta aspiração de ascensão social levou a classe média a se alinhar em valores e ideologia, com a burguesia limitando a sua consciência de classe, a levando a ser a principal defensora do sistema.

O processo de industrialização no Brasil teve a cidade de São Paulo como seu maior ícone. As ideologias, às vezes, se servem de mitos ao tentar naturalizar os privilégios de uma classe social, neste caso, para explicar de forma científica, o sucesso de São Paulo e sua vocação liberal, como justificativa para o sucesso econômico da cidade.

Fontes: CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo/editora Braziliense, 1980 digitalizado 2004 HOBSBAWM, Eric J, A era dos Impérios: 1875-1914. São Paulo/Editora Paz e Terra, 2009.

4.2. O Mito da Sociedade Bandeirante

Historiadores paulistas como Alfredo Ellis Jr. e Afonso Taunay, que escreveram a obra “Raça de Gigantes”, publicada em 1926, onde exaltavam a superioridade racial dos paulistas e defendiam que esta superioridade derivaria da existência de uma raça branca miscigenada com índio e a tardia entrada do negro na região. Esta superioridade racial paulista justificaria o destaque de São Paulo perante ás outras regiões do Brasil. Tudo fantasias com pretensões científicas. Estes autores acentuaram a independência da região em relação a coroa Portuguesa, e exaltavam também, o caráter democrático, a origem burguesa, a pequena propriedade e as façanhas dos bandeirantes. Esta exaltação aos bandeirantes estão presente em nomes de rodovias, avenidas, monumentos pela cidade, até o assustador e pouco realista Borba Gato, gigante de botas plantado em plena Avenida Santo Amaro. Segundo Boris Fausto, como veremos adiante, os paulistas não constituíam uma “raça especial”, mas, um grupo de origem portuguesa e mestiça, que por uma série de condições geográficas, sociais e culturais, se distinguiu de outros grupos. Os paulistas construíram de início, uma sociedade rústica, com menor distinção entre mestiços e brancos, influenciada pela cultura indígena. Porém não era uma sociedade democrática, pois, prevaleceu uma hierarquia das melhores famílias e a dominação sobre os índios.

Fonte: BORIS, Fausto. História do Brasil. 2 ed. São Paulo/Editora Usp,1995.

4.3. Progresso: Vocação Ou Aflição?

Conselho de mulher (1953)
Compositor: Adoniran Barbosa/Oswaldo Moles/João Belamino Dos Santos

Falado:
"Quando deus fez o homem,
Quis fazer um vagulino que nunca tinha fome
E que tinha no destino,
Nunca pegar no batente e viver forgadamente.
O homem era feliz enquanto deus assim quis.
Mas depois pegou adão, tirou uma costela e fez a mulher.
Deis di intão, o homem trabalha prela.
Mai daí, o homem reza todo dia uma oração.
Se quiser tirar de mim arguma coisa de bão,
Que me tire o trabaio. a muié não!".

Pogressio, pogressio.
Eu sempre iscuitei falar, que o pogressio vem do trabaio.
Então amanhã cedo, nóis vai trabalhar.

Quanto tempo nóis perdeu na boemia.
Sambando noite e dia, cortando uma rama sem parar.
Agora iscuitando o conselho das mulhé.
Amanhã vou trabalhar, se deus quiser, mas deus não quer!

(Fonte: www.vagalume.com.br)

Nesta composição de 1953, a contradição aparece ao colocar em dúvida, o pensamento do senso comum por conta do discurso burguês, no qual, o progresso da metrópole provém de uma vocação natural do paulista ao trabalho, ou, este progresso seria de uma aflição coletiva de gentes deslocadas de suas origens que se lançam no destino imprevisível de um mercado de trabalho inconsistente. Na introdução o poeta coloca o trabalho como uma maldição onde a mulher seria a responsável, mas, redime a sua culpa, qualificando a mulher como a maior alegria da vida, da qual o homem não abre mão, na música diz, que apenas escutou falar que o progresso vem do trabalho, em tom jocoso, duvidando, como quem duvida de uma lenda, e lamenta-se de ser obrigado a aceitar o pacto social em detrimento da diversão, e por fim. No breque final, diz que Deus não quer, deixando a entender que esta maldição, seria invenção do próprio homem.

Fontes; SESVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. São Paulo/Revista Usp,2004

5. Os processos históricos que formaram a cidade de São Paulo

Desde o final do século XIX o boom da cafeicultura iniciou o processo de reconfiguração urbana de uma pequena vila provinciana e mestiça, que continua até os dias atuais. Os rios, antes sagrados para os índios, geravam aversão às novas elites que se alinhavam com os padrões do mercado capitalista internacional.

O Surto de prosperidade coincidiu com a nova reconfiguração do trabalho em escala mundial e atraiu para a cidade, gentes deslocadas de todo o mundo, em sucessivas ondas imigratórias, que se dirigiam de início as lavouras de café, mas, com o declínio da cafeicultura buscavam oportunidades nas crescentes atividades comerciais e industriais da cidade.

Os processos que levaram São Paulo a crescer de forma disfuncional, tanto em aspectos geográficos como populacionais, geravam problemas crônicos que eram contornados geralmente pelo propósito do lucro, e independente da qualidade de vida da maioria da população.

Fontes: SESVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. São Paulo/Revista Usp,2004

5.1. Uma vila de mestiços, berço dos bandeirantes

O bandeirismo foi um movimento expansionista desenvolvido pela população de São Paulo de Piratininga. O planalto paulista estava geograficamente protegido de ataques estrangeiros que assolavam o litoral, as melhores condições de relevo e os rios navegáveis facilitava a penetração para o interior, em direção ao Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Goiás e Minas Gerais. Contudo foi a pobreza e a escassez que impulsionou este movimento. Segundo Boris Fausto, a vila de São Paulo no início do século XVII era pobre e rude, e constituída em sua maioria de mestiços de brancos e índios, como era forte a influência indígena, os paulistas eram homens rudes que dormiam em redes e se alimentavam de maneira nativa.

Para o trabalho nas lavouras eram usados braços indígenas escravos que eram caçados e vendidos, trabalho que mobilizava todos os homens da vila, brancos e mestiços. Nesta época houve a necessidade de mão de obra nos engenhos do litoral e o apresamento de índios tornou-se uma atividade lucrativa, o que levou o bandeirante a trocar a caça do índio bravio das matas ao ataque a aldeias jesuíticas, onde o nativo cristianizado conhecia determinados ofícios e já estava acostumado ao trabalho regular.

As chamadas grandes bandeiras de preação seguiu com sucesso a partir de 1630, quando os holandeses tomaram as feitorias africanas e desviaram o tráfico para o nordeste. Por volta de 1640, tráfico negreiro se normalizou, o que declinou o apresamento de índios como atividade lucrativa, os bandeirantes passaram a servir aos grandes proprietários rurais e a própria coroa portuguesa fazendo guerras aos índios hostis e destruindo quilombos de escravos foragidos. A ocorrência mais famosa desta época é a destruição do Quilombo dos Palmares por Domingos Jorge Velho.

Nas últimas décadas do século XVII. Neste período, a Coroa Portuguesa iniciou um projeto de estímulo aos bandeirantes, na busca de metais preciosos pelos sertões da colônia, a Coroa oferecia títulos de nobreza e honrarias. Na década de 1670 as primeiras bandeiras chegaram ao território de Minas Gerais, em 1690 Garcia Rodrigues Paes descobriu as primeiras jazidas auríferas, três anos depois Antônio Rodrigues Arzão encontrou ouro em Caeté, em seguida Borba Gato descobriu as minas de Vila Rica e Sabará, em 1725 Bartolomeu Bueno da Silva descobre indo a Centro Oeste as minas dos Goases.

As atuações dos bandeirantes foram de fundamental importância para a ampliação do território português na América, em pouco tempo devassaram o interior da colônia e arrebataram áreas de domínio espanhol e deu ao Brasil sua configuração geográfica atual.

(Fonte: BORIS, Fausto. História do Brasil. 2 ed. São Paulo/Editora Usp,1995)

5.2. Os tropeiros e o liberalismo paulista

A capitania de São Vicente teve sua prosperidade limitada por diversos fatores, o que obrigava alguns habitantes a subirem a serra do mar e se fixarem no Planalto. Dando a início a vilas, como a vila de São Paulo, formada por uma camada pobre que abandonara o litoral. A economia do planalto paulista, era baseada em agricultura de subsistência, o que determinava outras atividades, das quais, deram início ao bandeirismo.

Nas longas viagens de bandeiras alguns paulistas, abandonavam as bandeiras se fixavam ao sul, estes, com o passar do tempo se integraram ao pequeno comércio em lombo de mulas, eram os primeiros tropeiros.

No cenário da expansão pecuária do Brasil do século XVIII, estes tropeiros tiveram grande importância econômica, pois se tornaram comerciantes de mulas, cavalos e também de alimentos, entre as regiões Sul e Sudeste, fornecendo principalmente para as Minas Gerais, que estava toda voltada à extração do ouro, os tropeiros fundaram feiras e entrepostos que com o passar do tempo, se tornaram vilas e cidades, graças ao seu trabalho livre, individual e longe de fiscalização da metrópole, a qual, estava muito mais preocupada com o ouro das Minas Gerais, alguns tropeiros prosperaram, e alguns se tornaram grandes proprietários de gados, e terras ricas e férteis do interior paulista e futuramente alguns, membros das elites cafeeiras.

A imagem icônica do pecuarista, difundida no senso comum. Na qual o pecuarista é brasileiro, rico e rústico, se deve a figura do tropeiro, comerciante e liberal.

(Fonte: BORIS, Fausto. História do Brasil. 2 ed. São Paulo/Editora Usp,1995)

5.3. O café como solução econômica para o Brasil

No século XVIII o consumo do café começa a aumentar na Europa e o seu consumo invade o mercado norte-americano e sua produção que era basicamente no Haiti chega ao Brasil, mas somente, a partir da segunda metade do século XIX atinge altos índices de produção e exportação, Dos arredores do Rio de Janeiro o café alcançou o Vale do Rio Paraíba e seguiu dinamizando os povoados das antigas rotas de tropeiros e chegou as terras ricas e férteis do interior paulista de onde foi o responsável pela recuperação final da economia brasileira no século XIX.

Fontes: MARTINS, Ana Luiza. História do Café. São Paulo/Editora Contexto,2008 - BORIS, Fausto. História do Brasil. 2 ed. São Paulo/Editora Usp,1995 ODILON, Nogueira de Matos. Café e ferrovias. São Paulo/Editora Alfa-Omega,1974

5.4. Os imigrantes e luta trabalhista

Música: Samba italiano (1965)
Autor: Adoniran Barbosa

Falado:
"Gioconda, piccina mia,
Va brincar en il mare en il fondo,
Mas atencione per tubarone, ouvisto?
Hai capito, mio San Benedito?".
Cantado:

Piove, piove,
Fa tempo che piove qua, Gigi,
E io, sempre io,
Sotto la tua finestra
E voi senza me sentire
Ridere, ridere, ridere
Di questo infelice qui
Ti ricordi, Gioconda,
Di quella sera en Guarujá
Quando il mare te portava via
E me chiamaste: "Aiuto, Marcello!
La tua Gioconda ha paura di quest'onda"

(Fonte: letrasweb.com.br)

O absurdo de um samba italiano é cômico por si só, porém, os motivos da imigração em São Paulo são histórias tristes e nem sempre com finais felizes, a presença italiana alterou o sotaque paulista, muito de sua cultura, a culinária e também as ideias dos paulistanos.

A Europa no final do século XIX sentia os efeitos da Grande Depressão (1873-1896) saindo principalmente do porto de Gênova, os imigrantes chegavam ao porto de Santos, e subiam a serra pela ferrovia Santos-Jundiaí, (Que fora construída para escoar o café do interior paulista para ao porto de Santos), até a hospedaria dos imigrantes no Bairro do Brás.

Alguns ficavam na cidade e outros finalmente com um contrato de trabalho, seguiam para o trabalho nas lavouras de café paulistas. Este movimento, se deu, por pressões do governo inglês, sobre o tráfico negreiro o que gerou uma crise de mão de obra na produção cafeeira. Além da influência de uma pseudociência comum as elites da época, que era o “Darwinismo Social” que buscava o “branqueamento” do povo paulista e sua “europeização”.

Destas demandas, surgiu uma parceria entre governo paulista e os cafeicultores, onde o governo pagava as despesas de viagem e sua recepção no Brasil e os cafeicultores arcavam com a instalação deles na fazenda.

A grande crise atinge o preço do café no final da década de 1880, despencando o seu preço, o que gera uma crise no setor cafeeiro. Os trabalhadores das lavouras por conta da crise, e pela impossibilidade de conquistar a prometida terra, e também pelos maus tratos sofridos nas fazendas, buscam a cidade de São Paulo se juntando aos imigrantes que continuavam a chegar de diversos cantos do mundo, principalmente do Sul e do centro da Europa, do Oriente Médio e do Extremo Oriente, em sucessivas ondas imigratórias.

A população da cidade de São Paulo que era de 31.385 habitantes em 1872 (segundo dados do IBGE), subiu para 64.934 em 1890, saltando para 239.820 habitantes em 1900. Esta pressão demográfica tornou a especulação imobiliária a atividade mais rentável, e cafeicultores decadentes desviaram seus recursos para esta atividade, construindo sobrados geminados que viravam cortiços, os quais eram alugados para as famílias.

Esta situação perpetuada, passou ser um problema crônico da administração pública da cidade, os cortiços e as malocas eram as únicas opções de moradias das classes populares, e geravam problemas sanitários sem soluções possíveis, além de uma demanda imobiliária sempre maior do que a oferta, demanda que a especulação imobiliária transformava em lucros econômicos.

Este movimento coincidiu com o início da industrialização da cidade e a reconfiguração do trabalho em escala mundial. A indústria empregava a mão de obra abundante e sem nenhuma legislação. Nesta época só existia uma legislação sanitária que era pouco fiscalizada e assim, desrespeitada, que proibia, por exemplo: o trabalho de menores de 10 anos. Nas indústrias trabalhavam homens e preferencialmente, onde era possível, como nas indústrias têxteis, mulheres e crianças, as quais, pagava-se menos e eram mais vulneráveis. As condições de trabalho eram péssimas, as fábricas eram mal iluminadas e mal ventiladas, correias e engrenagens giravam sem proteção alguma, as jornadas de trabalho eram em média de 16 horas e eram constantes os maus tratos e espancamentos por erros cometidos.

Fontes: BORIS, Fausto. História do Brasil. 2 ed. São Paulo/Editora Usp,1995-LOPREATO, Christina da Silva Roquette. O espirito da revolta (A greve geral anarquista de 1917) tese Doutorado. Campinas, S.P. 1996 SESVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. São Paulo/Revista Usp,2004

5.5. A greve Geral de 1917

Com os europeus vieram também suas ideias e entre elas, a ideologia anarquista desembarcou em São Paulo. Esta ideologia tinha a pretensão, de através de um ‘anarcosindicalismo”, fazer uma revolução social no país, mas, entre a pretensão e a realidade havia uma grande distância. O que estava mais próximo da realidade foi o fato de que os anarquistas se tornaram os defensores dos direitos trabalhistas, (ações que nada tinham de revolucionárias, apenas, a defesa de direitos de classe).

O anarquismo ganhou adeptos entre os brasileiros e entre eles Edgar Leuenrot, um trabalhador do setor gráfico, que se tornou um dos maiores nomes da imprensa anarquista com o jornal “A Lanterna” que era um, entre vários jornais que compunham a imprensa anarquista, esta imprensa anarquista funcionava como porta voz das reivindicações operárias, e este movimento foi responsável pelo surgimento de uma consciência de classe proletária que a partir do início do século XX, possibilitou a organização de ligas operarias de diferentes ofícios, surgem movimentos, reivindicações, e greves que culminaram na Greve geral de 1917.

Tecelões do Cotonifício Crespi reivindicam um aumento que é negado, e no dia 10 de Junho de 1917 iniciam uma greve que com o passar dos dias ganham o apoio de trabalhadores de outras fábricas e de servidores públicos, que também cruzam os braços.

O movimento é reprendido pela força policial com intuito de reestabelecer a ordem, (Reivindicações Trabalhistas só foram legalizadas após esta greve), com o passar das semanas o movimento torna proporções maiores e mais violentas e no dia 09 de julho em um confronto entre policiais e manifestantes, morre baleado José Martinez, um sapateiro espanhol de 21 anos, no outro dia a morte é anunciada por toda a imprensa e no dia 11 de julho, o cortejo fúnebre se transforma em uma passeata proletária, a comoção toma conta da população, o dia 12 de julho amanheceu com todas as atividades paralisadas na cidade, paralisação esta, que se entendeu para outras cidades do interior, para o Rio de Janeiro e outras cidades pelo Brasil, estava decretada a Greve Geral.

Os grevistas se negavam a negociar com patrões e governo e no dia 13 de julho é formada uma comissão de imprensa para intermediar o conflito e após alguns dias os industriais começam a ceder, e os trabalhadores têm atendidas todas as suas 11 reivindicações:

1 - Que sejam postas em liberdade todas as pessoas detidas por motivo de greve;

2 - Que seja respeitado do modo mais absoluto o direito de associação para os trabalhadores;

3 - Que nenhum operário seja dispensado por haver participado ativa e ostensivamente no movimento grevista;

4 - Que seja abolida de fato a exploração do trabalho de menores de 14 anos nas fábricas, oficinas etc.;

5 - Que os trabalhadores com menos de 18 anos não sejam ocupados em trabalhos noturnos;

6 - Que seja abolido o trabalho noturno das mulheres;

7 - Aumento de 35% nos salários inferiores a $5000 e de 25% para os mais elevados;

8 - Que o pagamento dos salários seja efetuado pontualmente, cada 15 dias, e, o mais tardar, 5 dias após o vencimento;

9 - Que seja garantido aos operários trabalho permanente;

10 - Jornada de oito horas e semana inglesa;

11 - Aumento de 50% em todo o trabalho extraordinário.

As maiores vitórias desta greve foram políticas, e não materiais, a imprensa pela primeira vez se mobilizou a favor de causas sociais, os trabalhadores se reconheceram como uma força política e a partir de então, foram reconhecidos como uma poderosa força política em todo o país. Após, 1921 o movimento anarquista perde força, a revolução Russa de 1917 influenciou o movimento comunista no Brasil com ideias socialistas divergentes dos anarquistas, no sentido de dar uma maior importância a um socialismo de Estado, dando origem ao Partido Comunista no Brasil em 1922.

A greve de 1917 conquistou direitos que até hoje fazem parte das relações trabalhistas, mas, não ganhou destaque merecido por parte da historiografia paulista, não é tema de escola. Pelo contrário, palavras como, “anarquista”, “comunista”, “sindicalista”, “greve”, “subversivo”, se tornaram verdadeiros palavrões no senso comum, sinônimos de maus cidadãos, que atentam contra a ordem pública.

Faz parte da dominação a “demonização” de movimentos populares na busca de direitos.

Fontes: LOPREATO, Christina da Silva Roquette. O espirito da revolta (A greve geral anarquista de 1917) tese Doutorado. Campinas, S.P. 1996-BORIS, Fausto. História do Brasil. 2 ed. São Paulo/Editora Usp,1995)

6. A Cidade que não para de crescer: A expansão imobiliária

A partir de uma análise não científica, temos a impressão que a urbanização é um desenvolvimento quase natural de uma sociedade, mas, os fatos históricos descritos adiante, mostram que estes processos, de natural nada têm. Pelo contrário, é fruto do planejamento estatal aliado ao empresariado, para extrair riqueza do meio urbano e fazer de São Paulo uma autêntica cidade de propriedades privadas e automóveis.

6.1. A especulação imobiliária: O modelo Centro – Periferia

Nos anos 40 e 50 as regiões centrais da cidade se verticalizavam e destruíam as velhas casas e no lugar, levantavam empreendimentos milionários para as classes mais endinheiradas, originando o modelo centro-periferia.

Música: Saudosa Maloca (1951)
Autor: Adoniran Barbosa

Si o senhor não está lembrado
Dá licença de contá
Que aqui onde agora está
Esse edifício arto
Era uma casa velha
Um palacete assobradado

Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mais, um dia
Nós nem pode se alembrar
Veio os homi cas ferramenta
Que o dono mandô derrubá

Peguemo todas nossas coisa
E fumos pro meio da rua
Apreciar a demolição
Que tristeza que nós sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração

Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei:
Os homi tá cá razão
Nós arranja outro lugar

Só se conformemo quando o Joca falou:
"Deus dá o frio conforme o cobertor"
E hoje nóis pega a páia nas grama do jardim

E prá esquecê nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida,
Que dim donde nóis passemos dias feliz de nossa vidaSe o senhor não tá lembrado
Dá licença de contá
Que acá onde agora está
Esse adifício arto
Era uma casa véia
Um palacete assobradado

Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mas um dia, nós nem pode se alembrá
Veio os homis c'as ferramentas
O dono mandô derrubá

Peguemos todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nós sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração

Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei:
Os homis tá cá razão
Nós arranja outro lugar
Só se conformemo quando o Joca falou:
"Deus dá o frio conforme o cobertor"

E hoje nós pega páia nas gramas do jardim
E prá esquecê, nós cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossa vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas

(Fonte: www.vagalume.com.br)

A letra se refere a memória de alguém que conta a história de uma tragédia, a sua expulsão de um lar improvisado, mas, que entende os motivos da sua expulsão, “o dono mandô derrubá“, e o direito de expulsar, “os homi ta ca razão”, e que só caberá a Deus, o seu incerto destino, “Deus dá o frio conforme o cobertor”.

Este tipo de ocorrência se dava por conta, da racionalidade que movia as transformações dos espaços da cidade pelo “valor-uso”. E se traduzia na São Paulo dos anos 50 que precisava crescer a qualquer custo. Mas, no final da década este samba ganha uma continuação na letra de outro samba.

Fontes: SESVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. São Paulo/Revista Usp,2004)

6.2. Expansão Imobiliária: Periferia

Música: Abrigo de vagabundos (1959)

Eu arranjei o meu dinheiro
Trabalhando o ano inteiro
Numa cerâmica
Fabricando potes
e lá no alto da Mooca
Eu comprei um lindo lote dez de frente e dez de fundos
Construí minha maloca
Me disseram que sem planta
Não se pode construir
Mas quem trabalha tudo pode conseguir

João Saracura que é fiscal da Prefeitura
Foi um grande amigo, arranjou tudo pra mim
Por onde andará Joca e Matogrosso
Aqueles dois amigos
Que não quis me acompanhar
Andarão jogados na avenida São João
Ou vendo o sol quadrado na detenção

Minha maloca, a mais linda que eu já vi
Hoje está legalizada ninguém pode demolir
Minha maloca a mais linda deste mundo
Ofereço aos vagabundos
Que não têm onde dormir

(Fonte: www.vagalume.com.br)

Aqui Adoniran quis dar um final feliz à tragédia de “Saudosa Maloca” e pelo trabalho em uma fábrica, o protagonista constrói a casa própria, em um lote no Alto da Moóca, na época uma periferia distante.

Outras demandas se transformavam em problemas crônicos e as práticas especulativas tratavam de transformá-las em lucros, desde os fins do século XIX, a mobilidade urbana era atendida pelos bondes que eram monopolizados pela Light & Power, que atendia apenas os bairros centrais e os arredores, e pela rede ferroviária que ligava o centro às áreas mais distantes.

A partir dos anos 30 o transporte urbano guinou para os veículos automotores. Os ônibus, que pela sua maior possibilidade de subir rampas e transitar em ruas de terra promoveram uma ampla expansão da malha urbana de transportes, e a ação de especuladores imobiliários alteraram o padrão de aluguel de casas na área central para a venda de lotes nas periferias que aos poucos se construía a casa própria.

A classe trabalhadora comprava lotes em regiões sem nenhum serviço público e construíam as suas casas com os próprios recursos e solidariedade dos vizinhos e amigos.

As associações de bairro conseguiam os melhoramentos junto ao Estado e os bairros se valorizaram e com o passar dos anos, regiões ermas se transformaram em bairros populosos, valorizados, com linhas de ônibus, comércios, água, luz, etc.

Os loteadores reservavam para si, ou vendiam para especuladores, grandes lotes com maiores potenciais de valorização.

Alguns destes grandes terrenos que eram reservados e abandonados, para aguardar a valorização, às vezes, eram invadidos por moradores irregulares e formavam comunidades, que eram conhecidas como “Favelas”, seus proprietários oficiais moviam ações junto ao poder público e os retomavam com a força policial, a música abaixo, conta a história de uma reintegração de posse em uma destas comunidades.

Musica: Despejo na Favela (1969)

Quando o oficial de justiça chegou.
Lá na favela
E, contra seu desejo
Entregou pra seu narciso
Um aviso, uma ordem de despejo

Assinada, seu doutor
Assim dizia a 'pedição'
"Dentro de dez dias
Quero a favela vazia
E os barracos todos no chão"

É uma ordem superior
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
É uma ordem superior
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
É uma ordem superior

Não tem nada não, seu doutor
Não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão.
Não tem nada não, seu doutor
Vou sair daqui
Pra não ouvir o ronco do trator

Pra mim não tem 'probrema'
Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito eu me ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás

...Mas essa gente aí, hein?
Como é que faz?
Mas essa gente aí, hein?
Com'é que faz?
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
Essa gente aí
Como é que faz?
Ô, ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
Essa gente aí, hein?!
Como é que faz?

(Fonte: www.vagalume.com.br)

(Fontes: SESVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. São Paulo/Revista Usp,2004-FERRAZ, Caio Silva/ABREU, Luana/SCARPELINI, Joana. Entre rios (Documentário). São Paulo/Editora Contexto,2009)

6.3. O automóvel versus os Rios

Musica: Guenta a mão, João (1965)

Não reclama
Contra o temporal
Que derrubou teu barracão
Não reclama
Guenta a mão joão
Com o cibide
Aconteceu coisa pior
Não reclama
Pois a chuva
Só levou a tua cama
Não reclama
Guenta a mão joão
Que amanhã tu levanta
Um barracão muito melhor

C'o cibide coitado
Não te contei?
Tinha muita coisa
A mais no barracão
A enchurrada levou seus
Tamanco e o lampião
E um par de meia que era
De muita estimação
O cibide tá que tá dando
Dó na gente
Anda por aí
Com uma mão atrás
E outra na frente

(Fonte: www.vagalume.com.br)

Neste samba o humor aparece na forma de um vizinho solidário, que consola outro vizinho após uma tragédia, João que teve a sua moradia destruída e sua cama carregada pelas águas de uma enchente, é consolado, sendo comunicado que a perda do Alcebíades, o “Cibide”, outro vizinho, foi muito maior porque ele tinha muito mais pertences e os perdeu todos.

As enchentes na época desta composição eram e ainda são atualmente, ocorrências comuns na cidade, e atingem de forma mais trágica, as classes da base da pirâmide social, a impressa denuncia as tragédias e cobram soluções por parte do Estado, mas, todos os anos na época das chuvas, elas voltam a acontecer, ano após ano, isto não é obra do destino, existiu no passado uma influência ideológica nas decisões que levaram a esta situação.

Veículos automotores também eram os automóveis que tanto davam status as cidades que os priorizava, assim como, aos cidadãos que os possuíam, e a adoração pelo automóvel influenciaria os rumos da cidade, O placar do embate de valores, carros versus rios, é decidido em um embate ideológico na escola politécnica sobre os destinos da Cidade.

O Engenheiro Sanitarista Saturnino de Brito defendia que se resgatasse as margens do principal rio da cidade, o rio Tietê, que tinha uma margem de várzea cíclica, que media de 500 metros a um quilômetro de largura, seu plano defendia ainda, que toda confluência de rio da cidade tivesse um lago, que fizesse parte de um parque, que formaria com outros parques, um cinturão de parques em toda a orla metropolitana.

Seu oponente foi Francisco Prestes Maia, e o seu “Planos de Avenidas da Cidade de São Paulo” que ia ao encontro de interesses burgueses, este plano justificava o crescimento da cidade de São Paulo com um conjunto de avenidas radiais concêntricos, como os de Moscou, Viena, Lyon e Paris, mas, Prestes Maia, marotamente, negou a informação que antes deste radial de avenidas, estas cidades europeias, tinham um sistema de transportes alternativos, que consistia em: um anel radial fluvial e um anel radial ferroviário, o planejador não tornou pública esta informação, justamente para priorizar o veículo automotor como transporte.

No período da República Velha o automóvel se torna a peça chave de um discurso de modernização conservadora, que almejava transformar a Cidade em uma Chicago Sul-americana com seus Arranha Céus e suas pistas. A ideia vencedora do embate foi a de Prestes Maia, que depois se tornou o prefeito da cidade e construiu grandes avenidas em fundos de Vale sobre os rios.

Estas áreas alagadiças e úmidas tinham baixo custo de desapropriação e as avenidas garantiam a valorização dos entornos após a obra, dai, se estabelece o padrão por décadas e por toda a região metropolitana de canalizar rios e construir sobre eles uma avenida, mas, a natureza sempre se impõe, e em períodos de chuvas, as enchentes castigam os moradores das regiões de topografias mais baixas.

Fontes: SESVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. São Paulo/Revista Usp,2004 FERRAZ, Caio Silva/ABREU, Luana/SCARPELINI, Joana. Entre rios (Documentário). São Paulo/Editora Contexto,2009

7. Conclusão

O ensino de história tem como sua principal função, desconstruir verdades e valores cristalizados e inquestionáveis, buscando uma análise comprometida da realidade histórica, buscando criar condições para o desenvolvimento da cidadania. Por trás da história escrita pelos vencedores permanecem as versões esquecidas de grupos oprimidos e marginalizados.

A poesia de Adoniran Barbosa como fonte histórica dá voz aos excluídos, ao narrar as profundas contradições sociais e econômicas de um processo de industrialização e expansão da maior cidade do Brasil. O “progréssio” de Adoniran contraria o discurso oficial e a racionalidade capitalista que movem as transformações dos espaços da cidade.

Estes sambas se afinam com as vozes dos trabalhadores atraídos pelo progresso que são continuamente expulsos de regiões valorizadas e servidas de equipamentos públicos, para as periferias carentes, para ali viverem o preconceito e a exclusão. Mas, com o passar de gerações, é possível que haja a conquista da tão sonhada ascensão social individual, e o desenvolvimento destas regiões carentes em valorizados bairros de classe média, que novamente, expulsarão os mais pobres para regiões afastadas e carentes de serviços.

As crônicas de Adoniram revelam o que poderiam ser as realidades cotidianas, vividas pelos avós ou pelos pais de bem-sucedidos, indivíduos da classe média atual, que devido a sua ascensão social e a assimilação de valores burgueses, silenciam o seu passado e perdem a sua consciência de classe. Os oprimidos de ontem se tornam os opressores de hoje. Na luta de classes paulista mudam os atores, mas os personagens continuam os mesmos.

8. Referência bibliográficas

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MOURA, Flávio. Adoniran, se o senhor não tá lembrado. São Paulo/Editora Boitempo editorial, 2002

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LOPREATO, Christina da Silva Roquette. O espirito da revolta (A greve geral anarquista de 1917) tese Doutorado. Campinas, S.P. 1996

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FERRAZ, Caio Silva/ABREU, Luana/SCARPELINI, Joana. Entre rios (Documentário). São Paulo/Editora Contexto,2009. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc

MARICATO, Hermínia. O impasse da política urbana no país. São Paulo/Editora Vozes,2011

MARICATO, Hermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: Ilegalidade desigualdade e violência. São Paulo/FAU USP,1995. Disponível em http://fau.usp.br/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_metrperif.pdf

CAMPOS Jr., Celso de. Adoniran, uma biografia. São Paulo/Editora Globo,2004

BUFARAH, Álvaro, júnior. Adoniran de radioator a cronista da cidade de São Paulo. São Paulo/V congresso nacional de História de Mídia,2007.

SESVCENKO, Nicolau. A cidade metástasis e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista. São Paulo/Revista Usp,2004


Publicado por: Renato Ferreira Lima

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