ESTADO E SOCIEDADE NA ERA DA INFORMAÇÃO: A Relação entre as transformações sociais e as novas tecnologias da informação na contemporaneidade

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1. Resumo

O advento das Novas tecnologias da informação e comunicação têm transformado a realidade humana, interferindo diretamente em questões culturais, políticas, sociais e econômicas, estando diretamente ligada as mudanças sociais do presente. As relações entre o Estado e a sociedade se tornam mais complexas na medida em que tecnologias, como a internet, alteram de maneira significativa na dinâmica das relações de poder na Era da informação. Procurou-se entender a atual realidade cultural amplamente influenciada pelo digital, que altera o espaço vital numa realidade onde o espaço e o ciberespaço se mesclam e se tornam indissociáveis, modificando as interações entre os indivíduos na contemporaneidade. Diante de tal olhar o presente trabalho procura analisar como questões centrais para a coesão do tecido social como a democracia e a cidadania, estão sofrendo alterações significativas no imaginário social e na gestão do poder público. Também procura refletir acerca da geração de nativos digitais e da descentralização do poder sobre o território urbano, atentando para a importância do papel do Estado nesses fenômenos. A contemporaneidade é então percebida como um momento propício para as mudanças históricas, oferecendo a sociedade mecanismos capazes de elevar sua participação na gestão política, além de proporcionar um ambiente adequado para o fortalecimento da Multidão conectada.

Palavras-chave: Era da informação, Multidão, Estado e sociedade, Tecnologias digitais.

Abstract

The advent of new information and communication Technologies have transformed human reality, interfering directly in cultural, political, social and economical issues, being directly linked to social matters in the present. The relationships between state and society become more complex as well as technologies such as internet, it alter in a significative way the dinamics of the power relationships at the Information Age. It was searched to comprehend the current cultural reality widely influencied by the digital, who changes the vital space in a reality that the space and the cyberspace mix each other and become indissociable modifying the interactions between individuals in contemporaneity. In front such insight this present study seeks to analyze how central questions to the social fabric cohesion like democracy and citizenship, they're been suffering significatives changes in the social imaginary and at the public power manegement. Also looks for reflect about digital natives generation and of descentralization of power under the urbane territory, paying attention to the importance of the state role on these phenomenons. The contemporaneity is then perceived as a propitious moment for the historical changes, offering society mechanisms to increase their participation in political management, and provide a suitable environment for strengthening the connected Multitude.

Keywords: Information Age, Multitude, State and society, Digital technologies.

2. Introdução

Ao longo da história as sociedades e suas instituições procuraram se adaptar as novas e inevitáveis reconfigurações sociais e culturais que se apresentam de forma sucessiva no decorrer do tempo, com cada momento guardando suas próprias especificidades e gerando respostas únicas para novos “problemas” que se impõem ao coletivo. A era atual se caracteriza pelo surgimento de uma sociedade pós-industrial, uma sociedade que valoriza a informação e a tecnologia tanto quanto o desejo pelo consumo, na chamada Era da informação as transformações acontecem em ritmo acelerado, a corrida tecnológica que torna os produtos descartáveis e obsoletos também movimenta rapidamente as engrenagens sociais, responsáveis pelas mudanças significativas na sociedade.

A partir do século XX a reconfiguração deu-se no âmbito das novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC), naquilo que é conhecido como Terceira revolução industrial ou Revolução da informação, após a 2º Guerra Mundial, entre as décadas de 1970 e 1980. No desenrolar da Guerra Fria as tecnologias militares desenvolvidas ao redor do complexo militar universitário erguido pelos Estados Unidos começaram a ser abertas ao público em geral, já nos meados do século o Vale do Silício iria tornara-se conhecido mundialmente, a tecnologia e seus benefícios seriam reconhecidas no dia-a-dia do ser humano, seu valor chegaria ao máximo na década de setenta com o surgimento da NASDAQ, que comportaria as ações das empresas de alta tecnologia dos Estados Unidos, tendo assim o ramo tecnológico se mesclado de forma permanente ao setor econômico, o eixo mais importante para o sistema capitalista.

Assim como a Europa teve que adaptar-se à nova realidade industrial imposta pela Inglaterra no século XVIII, a sociedade industrial vem tentando se moldar devido as mudanças incontestáveis que tiveram início no século XX. Num momento onde o foco de inúmeras e decisivas pesquisas acerca das relações humanas vem sendo realizadas, as relações entre os principais atores sociais são modificadas rapidamente, na atualidade do século XXI os processos que sustentam o status quo a nível local e global são contestados e a engrenagem social se move no ritmo de novas forças que já alteram de modo inexorável o presente.

O presente trabalho procura relacionar as grandes mudanças sociais e políticas ao advento das novas tecnologias da informação e comunicação, pois elementos fundamentais como a democracia e a cidadania claramente são afetados pelas novas possibilidades tecnológicas.

Estabelecendo os primeiros anos do século XXI como o tempo histórico a ser estudado, sem negligenciar a cadeia histórica de acontecimentos acerca de cada assunto tratado, o foco se dará nos fatos, atores e processos que compõem a nova e complexa cadeia de relações de poder. A Era da informação é entendida como o fenômeno principal, sendo seus atores principais a sociedade, o Estado e o Mercado, as tecnologias da informação e comunicação como as ferramentas que possibilitam os processos de mudança. O Estado e a sociedade civil serão os atores privilegiados no estudo, tendo suas relações se alterado de modo rápido e profundo, modificando as estruturas do tecido social erguidas sobre uma sociedade industrial.

A realidade brasileira é apresentada como o parâmetro principal de análises, recorrendo ao estudo relativo as demais regiões sempre que necessário, pois no mundo globalizado as conexões que já existiam em menor grau se intensificaram.

O Estado possui uma série de dispositivos para impor a vontade de alguns grupos, sejam eles uma maioria ou uma minoria, as lutas políticas se mostram mais visíveis, graças a uma maior disponibilidade de informação, porém, o grande fluxo dessa muitas vezes pode ser maléfico para a sociedade. Aprender a diferenciar notícia, informação e conhecimento ainda é um desafio e não raramente a internet é palco de manifestações de ódio e intolerância, expondo abertamente os conflitos sociais existentes.

Na Era da informação as relações de poder são deturpadas devido aos novos processos que dão as instituições uma visibilidade nunca antes possível, a internet, por exemplo, favorece o surgimento de mecanismos capazes de fazer a sociedade civil se expressar sobre diversos assuntos, não raramente que os principais tópicos de discussão em um dia comum no Brasil acabam surgindo pelas redes sociais, seu impacto é ainda hoje difícil de calcular, porém, já ficou claro para as elites políticas que essa ferramenta possui o poder de desestabilizar as estruturas sociais e políticas estabelecidas.

No primeiro capítulo será analisada a enorme influência das NTIC na sociedade contemporânea, que tem permeado desde as interações entre os indivíduos até as relações de poder entre diferentes segmentos sociais e institucionais. Diante disso, procura-se refletir sobre as relações existentes entre o Estado e a sociedade civil, tendo como pano de fundo as inovações tecnológicas já mencionadas. É do embate entre os principais atores históricos trabalhados, de onde advém as grandes transformações sociais e políticas, nesse interim questões como a democracia, a cidadania, o controle e o tratamento da informação se tornam temas politicamente intensos.

A democracia representativa atualmente se encontra em um momento delicado, o desinteresse político dos eleitores é apático não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos e em diversos países europeus, para muitos a internet e a possibilidade de dar sua opinião sem a necessidade da proximidade física poderia ser uma ferramenta para combater esse desgaste. Novas estratégias baseadas no ciberativismo proporcionaram um novo campo de embate na luta por direitos, cada vez mais pessoas e comunidades se articulam online para exigir direitos e cada vez mais o Estado e as grandes corporações estão se adaptando a esse novo contexto.

A cidadania é hoje um termo ambíguo para muitos, mas sem dúvida significa que se possui direitos, tal pensamento levou enormes massas as avenidas brasileiras nas manifestações de 2013, onde mobilidade urbana, educação e saúde eram os motes principais para os protestos, seu significado, porém, é muito mais amplo.

A Multidão também será problematizada, entendendo-a em seu contexto de multiplicidade, como um conjunto de pessoas que possui acesso as NTIC com variados graus de conhecimento e características próprias, sejam os nativos digitais, os usuários de redes sociais ou outro tipo de pessoa com acesso online. Pessoas que se informam e comunicam pelas redes, compartilham ideias e opinam sobre os mais variados assuntos pelo meio digital.

Por fim, tratará das questões relativas aos grandes grupos de mídia familiares no Brasil e suas estratégias para fazer frente ao novo cenário informacional possibilitado pelas tecnologias digitais.

Considerando esses fatos procura-se constatar se as transformações sociais na contemporaneidade estão diretamente relacionadas as novas possibilidades geradas pelas NTIC, em meio a cibercultura, no contexto da sociedade da informação. A partir de uma perspectiva que entende a Revolução da informação como o fenômeno mais importante da atualidade, remodelando até mesmo a globalização e o capitalismo, desestabilizando a política nacional e as relações geopolíticas.

No segundo capítulo serão tratadas questões diretamente ligadas ao planejamento público. O espaço urbano é problematizado como o palco principal para as mudanças sociais, tendo ele mesmo se reconfigurado em busca de uma adaptação vantajosa diante dos problemas contemporâneos. A cidade digital é retratada como o território da Multidão, proporcionando um ambiente propício para a organização social mediada pelas novas tecnologias.

A escola contemporânea será tratada através de sua relação com a inclusão digital, analisando os protagonistas desse nicho e estando atento as apropriações do digital por parte dos docentes.

Todas essas questões estão colocadas em um âmbito global, mas diretamente ligadas aos temas de interesse do estudo, como a cidadania e a democratização da informação, além dos direitos humanos e do multiculturalismo que permeiam esses debates. Diante de mudanças tão fortes em todos os aspectos da vida humana, cabe a ciência tentar responder sobre o presente e o futuro de um mundo em constante alteração. A história, a filosofia, a geografia e sobretudo a sociologia são alguns dos ramos que tem dedicado especial atenção ao surgimento das NTIC e seu avanço na sociedade, confirmando que uma visão multicientífica abre maiores possibilidades sobre um determinado tema. Pretende-se aqui refletir sobre os avanços científicos na área de estudos sobre as novas tecnologias, tendo em vista conceitos especiais que estão ligados diretamente as mudanças sociais, dando atenção a literatura já produzida e também analisando os fatos recentes no tempo histórico.

3. Transformações sociais na contemporaneidade

3.1. Cidadania como elemento de mudança social

A luta por direitos pode ser considerada uma das principais engrenagens da história, no decorrer das civilizações os detentores e os desprovidos vivem em relações complexas geralmente ligadas a questões de poder. Liberdade, democracia, propriedade, muitos são os objetivos de cada grupo, que invariavelmente se chocam, dando início a mudanças históricas profundas e alterando com maior ou menor impacto diversos aspectos da vida humana.

A cidadania pode então ser percebida como a busca do indivíduo e da sociedade pelos direitos que outros grupos já gozam ou por reivindicações em dissonância com a tradição vigente. De acordo com a percepção mais comum ela também é vista sob o clássico aspecto de direitos e deveres do cidadão para com o Estado. Essa percepção apesar de reducionista é válida, pois é justamente a política o instrumento mais comum e eficaz para a mudança social. Não atoa essas mudanças virão no bojo de grandes revoluções.

O conceito moderno de cidadania foi forjado entre os séculos XVII e XIX, no decorrer da Revolução Gloriosa (1688-1689), da Revolução Americana (1776) e da Revolução Francesa (1789-1799). Os três acontecimentos foram movidos por uma classe em ascensão no Ocidente, a burguesia, que dentro da sociedade capitalista possuía aquilo de mais importante, a propriedade privada dos meios de produção. Em todos os casos o alvo fora a nobreza (interna ou externa como no caso americano), a casta social mais elevada e com maior número de privilégios, sem contar as animosidades existentes também com o clero, que em determinados momentos e lugares, como a França pré-revolucionária, mantinha grande poder e influência nas decisões políticas.

Ao alijar a classe burguesa de direitos políticos os nobres tiveram decisivos reveses, amargando o início da crise política do Antigo Regime. Não é coincidência que o primeiro monarca a cair foi justamente o da Inglaterra, local onde a classe em ascensão enfrentara a monarquia e vencera, impondo aos nobres um papel de menor importância frente ao parlamento, foi também o primeiro país onde aconteceu a Revolução Industrial (XVIII – XIX), evento que possibilitou a burguesia a se tornar a classe social dominante. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi a resposta da burguesia francesa para com a estrutura social de seu país, sendo impregnada de ideais iluministas e influenciada pela Revolução Americana.

Como esperado a classe privilegiada reagiu à altura dos acontecimentos, criando a chamada Santa Aliança durante o Congresso de Viena, um grupo internacional que reuniu monarquias europeias comprometidas na defesa do Antigo Regime, logo após a queda de Napoleão.

A disputa entre as classes dominantes continuaria ao longo do XIX, porém, a ideia de igualdade e liberdade também se mostrava tentadora para as classes ainda desfavorecidas, camponeses e proletários logo também entrariam para os livros de história, buscando eles mesmos o reconhecimento e a influência que a burguesia alcançara.

Entender o sentido da cidadania na contemporaneidade e as fortes implicações causadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação, se apresentam como objetivos difíceis, mas importantes. Como uma condição em constante transformação, a cidadania é apropriada por diversos atores sociais, cada qual com suas próprias expectativas e modus operandi. Na atualidade são as minorias que se apresentam como principais porta-vozes da cidadania e de sua possibilidade de mudança, uma vez que são esses determinados grupos os mais atingidos pela violência, intolerância e falta de políticas públicas adequadas.

Negros, homossexuais, mulheres, idosos, pobres e outros grupos sociais são minorias em direitos, muitas vezes tratados como cidadãos de segunda classe, num comportamento que se sucede ao longo do tempo pelo Estado e pelas elites. Uma das principais características em tal comportamento está na ação de calar o indivíduo, esvaziando seu discurso e negando-lhe a voz na busca por mais direitos, mas na Era da Informação as vozes descontentes se fazem ouvir pelos diversos mecanismos possibilitados pela revolução digital, sobretudo a internet, a principal e mais impactante das ferramentas eletrônicas. A participação social na política é hoje um requisito das sociedades verdadeiramente democráticas, canais de diálogo e denúncias são criados no intuito de democratizar a cidadania, num embate entre avanço social e tradicionalismo.

A mudança civilizacional corresponderá também a uma mutação sociológica. Na opinião de Léo Scheer, o conceito de democracia terá sentidos diferentes, de acordo com as ferramentas tecnológicas que estaremos a utilizar como o televisor, o computador e o telefone. Do cruzamento desta “arquitectura” entre sociedades da comunicação, informação e comutação nascerá uma outra sociedade, a virtual, onde as configurações e os mecanismos políticos terão necessariamente que ser diferentes. Mutatis Mutandis, com as novas tecnologias passar-se-á do modelo de democracia clássica onde as noções de espaço e tempo tiveram uma relevância singular, para uma nova ordem mediática em que o “espaço público” será dominado por uma realidade simbólica e virtual, em que à desconvencionalização das fronteiras dos antigos Estados -Nação se associará a desvinculação do indivíduo à comunidade social tradicional. Segundo Scheer, a nova democracia já não necessitará da afirmação do voto eleitoral para exprimir a sua vontade política, mas apenas da ‘enunciação por parte de cada um das narrativas das quais é portador, sem necessidade de canalização ou de conformação dos sinais postos assim em circulação’. (SCHEER, 1997, p.44 apud GARCIA, 2004, p. 121)

Segundo os autores, a percepção sobre democracia provavelmente estará diretamente ligada ao tipo de tecnologia em voga e as alterações que essa trará nas relações sociais. Com as novidades tecnológicas sendo alteradas constantemente é de se esperar que os conceitos de democracia e cidadania, além da habitual característica fluída, passem por mudanças de maneira mais constante e acelerada. Os processos de virtualização da informação e da opinião afetam diretamente os alicerces das relações de poder entre Estado, elite e minorias, possibilitando novas formas de romper com a tradição e conquistar direitos há muito negados.

A desassociação entre democracia e voto preconizada por Scheer, e hoje visível, é um sintoma da crise política de representatividade da qual não apenas o Brasil sofre, mas também grande parte do mundo. O Parlamento brasileiro na atualidade é fortemente influenciado por grupos que defendem interesses privados, que parecem não estar preocupados em legislar em prol de um coletivo. Frentes parlamentares como a bancada evangélica, a bancada do agronegócio e a bancada que reúne o setor armamentista e defensores da chamada “linha dura”, conhecidas respectivamente como bancadas da bíblia, do boi e da bala são quase dominantes e com grande peso para a aprovação de qualquer projeto, desse modo ampliando sua influência também sobre o executivo que precisa negociar para continuar governando.

A cidadania no mundo contemporâneo pode ser percebida então como uma luta por direitos frente aos interesses do Estado e das elites econômicas, sendo que as minorias têm como principais norteadores os movimentos sociais. A participação nas decisões políticas seria a característica principal, tendo grupos obtendo conquistas em várias áreas, como as cotas para negros nas instituições públicas de ensino superior, que procuram corrigir erros históricos como a escravidão e minimizar suas sequelas sociais.

Castells (1999) falou sobre a “inércia conservadora do poder” e as estruturas que sustentam o status quo. O Estado é então percebido como estrutura de manutenção do poder e propagador de narrativas elitistas, tendo no conservadorismo, sob a bandeira da tradição, um guia diante das mudanças propagadas largamente graças a revolução informacional. De tal forma, certos direitos são negados pois entram em choque direto com uma política pública baseada em moralismo religioso e fundamentalismo econômico. Às mulheres, é negado o direito ao aborto, tratado como uma questão de ética ao invés de uma questão de saúde pública, enquanto o Bolsa Família é discutido num sentido moralizador sobre o trabalho ao invés da discussão ser em torno de sua eficácia econômica e social.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é um marco nas lutas por direitos em todo o mundo, servindo de base para documentos posteriores e contribui para uma visão global de justiça social. Desde então diversos países e organismos internacionais zelam pelo respeito à dignidade humana, tais como o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, integrado por órgãos especiais da Organização dos Estados Americanos, o Conselho da Europa e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Maria Benevides atenta para a importância da educação sobre os direitos humanos, mostrando que esses estão intrinsecamente ligados a cidadania e a democracia e que seus valores foram mais facilmente assimilados nos países desenvolvidos, sofrendo maior resistência em países periféricos, possuidores de sistemas educacionais deficientes e fortemente influenciados pelo sensacionalismo midiático. Ainda para a pesquisadora, a especificidade brasileira marcada pela extrema desigualdade é terreno propício para discursos de ódio e segregação.

O tema dos DH, hoje, permanece prejudicado pela manipulação da opinião pública, no sentido de associar direitos humanos com a bandidagem, com a criminalidade. É uma deturpação. Portanto, é voluntária, ou seja, há interesses poderosos por trás dessa associação deturpadora. Somos uma sociedade profundamente marcada pelas desigualdades sociais de toda sorte, e além disso, somos a sociedade que tem a maior distância entre os extremos, a base e o topo da pirâmide sócio-econômica. Nosso país é campeão na desigualdade e distribuição de renda. As classes populares são geralmente vistas como “classes perigosas”. São ameaçadoras pela feiúra da miséria, são ameaçadoras pelo grande número, pelo medo atávico das “massas”. Assim, de certa maneira, parece necessário às classes dominantes criminalizar as classes populares associando-as ao banditismo, à violência e à criminalidade; porque esta é uma maneira de circunscrever a violência, que existe em toda a sociedade, apenas aos “desclassificados”, que, portanto, mereceriam todo o rigor da polícia, da suspeita permanente, da indiferença diante de seus legítimos anseios. (BENEVIDES, 2013, p. 40)

Pode se afirmar que a deturpação das informações é um mal que grassa na contemporaneidade, uma vez que os fatos deixam de ser provas e as estatísticas perdem relevância diante do senso comum, em uma realidade onde a informação é controlada por poucos grandes grupos midiáticos, que representam o pensamento de apenas pequena parte da população, perpetuando uma narrativa injusta sobre os negros e os pobres, segregando-os a cidadãos de segunda classe, com menos direitos e em constante estado de vigilância.

A ideia vigente e popular na sociedade brasileira atual quanto a questão dos crimes vai direto para a parte punitiva, sem considerar tanto os fatos sociais que influenciam nas altas taxas de criminalidade, como a má educação, o desrespeito sistemático aos direitos humanos e a cultura de segregação que persiste ao tempo. O foco na punição logo cede lugar à normalização, tal como explicou Foucault em “Vigiar e Punir” ao se debruçar sobre a questão da disciplinarização dos corpos, marcados pela arquitetura panóptica da sociedade moderna.

“Então, é por isso que se dá, nos meios de comunicação de massa, ênfase especial à violência associada à pobreza, à ignorância e à miséria. É o medo dos de baixo - que, um dia, podem se revoltar - que motiva os de cima a manterem o estigma sobre a ideia de direitos humanos. ” (BENEVIDES, 2013, p. 40)

A autora ao discorrer sobre as diferenças fundamentais entre direitos humanos e cidadania, afirma que essa última é uma ideia política intimamente ligada ao Estado Nação que apresenta características próprias em cada lugar e cultura. Os direitos humanos por sua vez teriam como característica principal uma universalidade que ultrapassa tempo e fronteiras, estando intimamente conectados à dignidade humana, uma moral universal que independe de julgamento cultural e que se posta à frente de ideologias e quaisquer diferenças de hábitos ou pensamentos. Ela também os identifica como “naturais”, pois se baseiam no respeito pelo ser humano, sem necessitar de documentos escritos para sua vigência.

É comum que em tempos de globalização os Direitos humanos sejam vistos por muitos como uma moral única e universal que deve ser protegida, também é natural que muitos os vejam com desconfiança, já tão acostumados a diminuir a vida humana em estatísticas e narrativas incompletas. Na contemporaneidade, onde um jovem de Islamabad pode conversar livremente com outra jovem em Tel Aviv pela internet, fica muito difícil para qualquer Estado justificar porque certas leis se aplicam em seu território e ao mesmo tempo são consideradas injustas em outros. As mulheres sauditas, proibidas de dirigir, sabem que em todo o Ocidente e em regiões mais tolerantes do mundo muçulmano outras pessoas de seu gênero possuem muito mais do que o direito de dirigir e se esforçam para alcançar tais direitos em um país onde a modernização se restringe a construção de arranha-céus e outras edificações suntuosas.

Para entender o sentido contemporâneo de cidadania é preciso entender sua relação com os direitos humanos. Num mundo onde as fronteiras são cada vez menos decisivas, o ser humano adquire a possibilidade e a capacidade de pensar sobre diversas questões a partir de pontos de vistas de outras culturas, a globalização possibilitou acima de tudo o enfraquecimento das linhas imaginárias para o Capital, sobretudo na forma de serviços e mercadoria, porém, o ser humano não pode desfrutar dessa realidade por inteiro, as grandes forças econômicas globais não possuem interesse em indivíduos que não possam gerar lucro, dessa forma a globalização supervaloriza o Capital em detrimento do homem.

A Guerra Civil Síria é um conflito iniciado em 2011 e que chamou a atenção de todo o mundo devido as especificidades de seu caso. Em uma região onde conflitos são quase constantes a mídia internacional tende a dar ênfase apenas as notícias que envolvem o Estado de Israel, porém, a questão síria superou a barreira comum de tolerância a violência a que o Ocidente possui, gerando reações que vão desde a crítica retórica até ações mais invasivas. A imprevisibilidade da história se faz mais visível e cruel nesse caso, entre os antecedentes da guerra civil está a já afamada Primavera Árabe, movimento que começou em 2010 na Tunísia e se alastrou por diversas regiões das África e da Ásia, tendo como objetivo a queda de ditaduras em países islâmicos que cerceavam os direitos de suas populações, fazendo uso de técnicas tradicionais como greves e inovadoras como o engajamento online massivo.

Conquistas duradouras como as da Tunísia e pontuais como as do Egito perderam seu clamor midiático diante dos novos fatos vindos da Síria por meio de grandes veículos de comunicação, ancorado por Moscou, o presidente sírio Basshar al-Assad se sentiu confortável para massacrar os ecos de contestação em seu país, desencadeando uma feroz resistência da população e de desertores, que formaram o Conselho Nacional Sírio. Longe de estarem apenas seguindo uma tendência o povo sírio tinha motivos para se revoltar, tendo seus direitos civis sido retirados em 1962 e desde então ficado sob a tutela de um tirano.

A Guerra Civil Síria mudou drasticamente de panorama a partir de 2013, com o envolvimento do Estado Islâmico (EI) no conflito. Somando-se a isso estão também a crise migratória na Europa e a expansão da extrema direita pelo velho continente, sendo importante refletir sobre estas questões sob o prisma dos direitos humanos, da globalização e das novas tecnologias.

O EI revolucionou o modo de fazer terrorismo graças ao intenso uso de ferramentas digitais para cooptar membros em todo o mundo, tática tão bem-sucedida que se tornou um assunto de extrema importância em diversos países, tendo entre as nacionalidades dos interessados em integrar o grupo, um brasileiro. Além da propaganda o grupo jihadista também é notório pela extrema violência utilizada contra seus adversários e a população civil de seus territórios dominados, cometendo crimes de guerra sistemáticos e levando o pânico a região.

A crise migratória na Europa começa antes mesmo do início da Primavera Árabe, porém, se tornou mais grave em 2013, com o incidente na costa da Ilha de Lampedusa que resultou em 360 mortos e uma ampla cobertura da mídia mundial, atentando para a crise humanitária que estava em andamento. Aqui vale lembrar que esses seres humanos fugiam de seus países de origem devido as terríveis condições a que eram impostos, despojados dos direitos de cidadãos eles só podem contar com os direitos humanos e a “benevolência” europeia em busca de um futuro. Se faz necessário entender os direitos humanos como os direitos dos cidadãos do mundo, que apesar das imensas diferenças possuem em comum a humanidade, sendo essa o suficiente para que sejam tratados com dignidade. Se o capital tem passe-livre pelo globo, os direitos deveriam também ignorar fronteiras, sendo nonsense o fato de que um container pode viajar mais livremente pelo mundo do que um ser humano. A globalização dos direitos, pautada no multiculturalismo, é uma exigência para que pessoas em condições desumanas como os imigrantes possam ter alguma esperança.

Diante de graves crises globais, a extrema direita tem avançado de maneira alarmante pelo Ocidente. O discurso fascista possui grande público nos Estados Unidos, onde o candidato pelo Partido Republicano pela presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, tem conseguido alcançar uma receptividade imensa com o eleitorado conservador, dando voz à “América profunda” que se ressente do governo do presidente Barack Obama. O discurso do ódio também foi capaz de inflamar o Brasil, tão conhecido até antes de 2013 como um país apático politicamente, o ataque as minorias e ao Estado Laico se tornaram frequentes e o ódio irracional à esquerda é financiado por partidos políticos e por uma Grande mídia altamente engajada.

Mas é na Europa onde o discurso fascista mais assusta, pela especificidade local, tendo grandes concentrações de muçulmanos em diversos países, como na França, e pelo risco sempre presente de ataques terroristas por parte de grupos jihadistas. O desprezo aos direitos humanos e a xenofobia levam os líderes extremistas a ganhar cada vez mais poder e influência, fazendo largo uso da xenofobia e de nacionalismo, fechando o espaço para o diálogo e aumentando a tensão sobre a coesão social.

Na esteira de tais acontecimentos se destacam principalmente, os grandes líderes internacionais que reconhecem os problemas já discutidos e procuram soluções moderadas, tais como Barack Obama e a chanceler alemã Angela Merkel e também organismos internacionais de proteção aos direitos humanos, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a Anistia Internacional e o Human Rights Watch.

Não é de se espantar que a inclusão digital seja hoje considerada um direito, se o corpo ainda está cercado de fronteiras que limitam sua vida ao determinismo de seu nascimento geográfico, o ser virtual pode estar em contato com as mais diversas culturas e ampliar seu pensamento baseado em diferentes modos de viver, rompendo as limitações políticas e territoriais pautadas em interesse econômico e intolerância ao “outro”.

A globalização do indivíduo ainda é uma realidade distante, mas a percepção sobre as diferentes culturas é hoje real e presente. Governos ao redor do mundo procuram responder ou esmagar os anseios sociais de várias formas, a maior parte do Ocidente aposta na democracia institucional, com um modelo de representatividade que dá sinais de esgotamento, as ditaduras por sua vez procuram responder aos novos tempos como podem, Estados mais precários apostam em uma maior rigidez, outros como a China procuram uma resposta mais sofisticada para o controle civil, usando da tecnologia para vigiar seus cidadãos e limitar sua liberdade. Nesse contexto, aparecem condições para que o indivíduo não mais se veja representado pois ele procura uma realidade que percebe nas telas de seus dispositivos eletrônicos, que lhe parece mais humana. No turbilhão de culturas, códigos e ideologias que o mundo globalizado conectou, a cidadania, muitas vezes apenas teórica, de seus lares soa provinciana diante de inúmeras possibilidades, para as culturas que se chocam em seus hábitos e pensamentos só resta se guiar pelos direitos universais, aqueles ao qual o próprio inimigo possui e devem ser respeitados por valorizarem o humano acima do interesse.

3.2. Democracia na contemporaneidade

A democracia goza de grande popularidade desde o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, após a derrota dos regimes totalitários europeus, o modelo democrático tornou-se o regime político hegemônico no Ocidente. No Oriente, porém, apenas com o fim da Guerra Fria os valores democráticos foram assimilados e, ainda assim, em apenas uma parte da região. O desmonte da União Soviética seguido do sucesso dos Tigres asiáticos somaram-se ao processo globalizador cada vez mais veloz e tudo indicava que a democracia seria um rumo natural para a civilização. Mas o legado ateniense sofreria com as desilusões de uma nova era, as críticas vieram de dentro para fora e o que antes se configurava como uma utópica escalada democrática mundial, hoje se encontra como um estado de mudança permanente do sistema político, atualmente em descrédito nas mais variadas regiões.

A democracia representativa ainda é o melhor modelo de governança criado pelo ser humano, mas as críticas ao modelo se acumulam cada vez mais ao passar do tempo. Na realidade contemporânea, os alicerces democráticos forjados no passado já não comportam as demandas da Sociedade da Informação, o cidadão não se sente representado pelos políticos eleitos, configurando uma crise maior, a do Estado Nacional, cujas consequências ainda são imprevisíveis. Tais alicerces foram sedimentados sob a lógica do capitalismo industrial, engessada sob demandas populares que já não representam os anseios de uma sociedade em constante transformação.

O avanço das novas Tecnologias de Informação e Comunicação influenciam a presente realidade política tanto quanto os mais variados aspectos da vida humana, o cidadão conectado não se satisfaz em apenas receber a informação, ele a analisa, transmite, cria e em alguns casos até a distorce. O termo massa não consegue abranger esse novo e importante ator social, pessoas conectadas à internet que comentam nos mais variados canais disponíveis, influenciando e sendo influenciados, são a Multidão. As massas se caracterizam pela anulação das diferenças, abre-se mão do intrínseco em favor do coletivo, evitando-se uma aproximação profunda e real para que o grupo tenha a coesão necessária. O termo Multidão de Antônio Negri e Michael Hardt é mais eficaz para se classificar essa parcela da população, num cenário que deixou a sociedade mais complexa e difícil de ser analisada.

A multidão designa um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. A multidão é um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em comum. (NEGRI; HARDT. 2005, p. 140)

Diante dos atuais desafios o Estado e seu aparato institucional, a sociedade, os movimentos sociais e a Multidão conectada, seu estrato que mais cresce em importância devido ao número cada vez maior de pessoas com acesso à internet, se reconfiguram para atingir seus objetivos de modo mais eficaz. Nesse contexto a democracia deve ser vista de modo fluído, em constante reconstrução, com o intuito de se adaptar as diferentes exigências e expectativas dos atores envolvidos.

As transformações pelas quais as sociedades contemporâneas têm passado afetam diretamente o modelo político comum no Ocidente, as relações entre Estado e sociedade nunca sofreram tantas mudanças desde a Revolução Francesa. A informação ganhou uma relevância jamais vista, agora não apenas mais um mecanismo de poder nas mãos de apenas alguns grandes grupos midiáticos (apesar destes possuírem ainda uma enorme influência), mas um bem à disposição dos indivíduos conectados.

Sobre tais transformações, ANTOUN (2003, p. 15-16) afirma:

O entendimento das redes nos permite, hoje, devolver ao pensamento a realidade do espaço, sua cidadania real no seio do mundo, afirmando que o assim chamado ‘espaço real’ é apenas um caso do ciberespaço, e que o espaço virtual é aquele que de fato nós sempre habitamos. Neste mundo a renovação da democracia torna-se possível porque a multidão armada com as TIC e a CMC1 faz o problema da cidadania pós-moderna e da segurança pública convergirem na direção da organização das comunidades virtuais, apontando para seus novos modos de se auto organizar e garantir a ampla discussão e participação na resolução dos próprios problemas.

As NTIC surgem a partir da chamada Terceira Revolução Industrial, um fenômeno que tem início da década de setenta também conhecida como Revolução informacional, pois torna a informação um elemento imprescindível para as relações humanas. Novas tecnologias como a internet, a telefonia móvel e o acesso remoto tornaram o cidadão um ator social com poder além do voto, sua opinião agora se faz ouvir cotidianamente e no tempo real, mas sempre que um determinado tema ganha atenção suficiente de um grande número de indivíduos, dando a essa multidão uma oportunidade de exprimir sua vontade. “A ‘revolução eletrônica’ transformou a informação em uma arma e o Estado, global ou local, está sempre envolto, pós-modernamente, nas guerras da informação. [...] ” (ANTOUN, 2002, p. 14).

Diante de tal cenário e a baixa expectativa quanto a democracia representativa, o Estado tem procurado ferramentas para atender as demandas do presente, tendo duas iniciativas principais nesse contexto, tornando o acesso a informações sobre a gerência pública mais acessível e procurando uma maior inserção da população no meio eletrônico, através de programas (principalmente educacionais) voltados para a inclusão digital.

No Brasil a Lei de Acesso à informação (LAI)2, em vigor desde 2012, foi um importante passo rumo aos direitos do cidadão, garantindo o direito de aquisição de informações públicas com maior agilidade e menos burocracia. A participação da população na gestão pública é fundamental para uma democracia saudável, o Estado não deve ser entendido como uma grande máquina kafkiana que se apresenta de forma indiferente aos anseios sociais. Tais iniciativas evidenciam os esforços, sobretudo, do Poder Executivo, para responder as demandas atuais, entendendo a coisa pública como uma estrutura que precisa encaixar o cidadão para além das obrigações. O direito à informação passa a ser realmente sentido como um direito humano legítimo e atua para tornar a relação Estado e sociedade mais justa.

Somam-se a Lei de acesso à Informação iniciativas como os portais de transparência, que atualmente não se restringem apenas ao Poder Executivo, como por exemplo o e-Cidadania do Senado Federal, a Câmara Aberta da Câmara dos Deputados do Brasil, além do Portal de transparência do Poder Judiciário. Tais propostas vão além de cumprir a LAI, elas procuram remodelar o próprio modo de governar e estão diretamente ligadas a ideias como o Governo eletrônico e a Democracia eletrônica.

O Governo eletrônico é o resultado atual das discussões acerca da governança pública, é a aplicação das NTIC, para prestar serviços ao cidadão da maneira mais eficiente possível. Sua proposta é importante, pois a acessibilidade a informações de gerenciamento governamental sempre foi nebulosa ao longo do tempo e o simples fato de existir tal iniciativa já demonstra que o Estado percebeu que seu funcionamento necessita estar diretamente ligado à opinião pública.

Governo Eletrônico – e-gov, sob forma abreviada – [...] É reinterpretação e revolução da gestão do poder público, ora sustentado por tecnologias informacionais, cujo intuito é dar suporte para que o Governo acompanhe a evolução dos tempos. (GARCIA et al., 2004, p. 03)

A Democracia eletrônica é o produto final das medidas descentralizadoras, a maior facilidade de acesso à informação somado às iniciativas públicas de transparência oferecem ao indivíduo um status único na história do Estado moderno. O cidadão tem ao seu dispor a ferramenta mais poderosa da atualidade, a informação.

Ainda que alguns argumentem afirmando que a informação sempre existiu, publicada em Diário Oficial e etc, em tempo algum se tem notícia do alcance de um meio de comunicação como a Internet. O cidadão que tem mais informações é mais capaz de emitir juízos de valor e opiniões sobre as questões da sociedade. A divulgação de informações governamentais via governo eletrônico permite a geração de conhecimento. E conhecimento é poder. Disseminar conhecimento implica disseminar o poder político, descentralizar o poder decisório. (GARCIA et al., 2004, p. 08-09)

Apesar do interesse estatal em disseminar mecanismos de importância para a transparência, uma verdadeira democracia eletrônica esbarra no problema da inclusão digital. Se o acesso ao ciberespaço é hoje uma forma indispensável para o exercício da cidadania e o fazer democrático, aqueles que estão à margem, possivelmente devido a questões de ordem econômica ou mesmo simples desinteresse, ficarão ainda mais distantes da gestão pública, aumentando ainda mais a exclusão. Num país como o Brasil, onde a desigualdade possui índices elevados, torna-se uma realidade o aumento do fosso entre os diferentes extratos sociais.

A inclusão digital se torna fator determinante rumo a uma democracia plena e inclusiva, os mais variados países têm adotado medidas para levar o conhecimento e a utilização das novas tecnologias para o maior número de pessoas. “A construção de uma nova civilização sobre os escombros da velha envolve o projeto de novas estruturas políticas mais apropriadas em muitas nações ao mesmo tempo” (TOFFLER, 1992, p. 410). No Brasil não é diferente, o Governo Federal vem implantando diversos programas com esse intuito, geralmente ligados à área educacional, visando as novas gerações e aumentando o número de nativos digitais. Como um direito humano a informação não pode mais ser encarada apenas num aspecto econômico, assim como a saúde ou a segurança, ela é um bem imprescindível e o Estado deve estar preparado para assegurar esse direito das mais diversas formas.

Analisando questões relativas a Democracia digital é pertinente levar em consideração o pensamento de Sabbatini. Para ele, o fator emocional pode se tornar um grave problema, uma vez que decisões individualistas atrapalham no diálogo e trazem estragos ao tecido social. Apenas uma parte da população teria voz no meio eletrônico e esse grupo tenderia a relevar os assuntos de seu interesse e tratá-los com parcialidade. Tais questões não possuem respostas fáceis e como um processo em andamento, só resta aprender com os erros e procurar melhorias para um melhor desempenho na construção do projeto de governança digital.

Cabe nesse ponto refletir sobre o papel do Estado no mundo atual, em meio aos dilemas políticos, que muitas vezes são resumidos na questão acerca de um Estado diminuto ou grande. Como em tantas outras coisas o Estado também está em constante transformação, ele já se configurou na forma de grandes Impérios territoriais e em monarquias absolutistas, no mundo Ocidental do século XXI essa entidade geralmente se apresenta na forma de Repúblicas democráticas, excetuando-se algumas monarquias europeias. É quase impossível pensar na civilização sem a figura do Estado, em uma época de descrença na política é interessante notar que desde sua criação o anarquismo nunca foi tão impopular, talvez fruto de uma noção coletiva sobre a certeza da necessidade de um poder central que, intervencionista ou não, é ainda responsável por aspectos imprescindíveis sobre a sociedade e que uma transformação e não uma ruptura completa deve ser o intuito de nações democráticas.

É tendo em mente os novos avanços da emancipação humana que devemos tentar pensar, não ‘o fim do Estado’, mas ‘outro Estado’, um que admita plenamente os seus outros, um que emerja da sociedade, embora esteja ao seu serviço, em vez de estar sobranceira a ela, como se transcendência autoritária e burocrática. Podemos apostar que, no futuro, o Estado, que já assumiu tanta forma (teocracia faraônica, império do meio, democracia ateniense, república romana, monarquia europeia, califado, Estado-nação, fascismo, sovietismo, Estado islâmico, federalismo, Estados Unidos, união Europeia...), continuará a metamorfosear-se. (LEVY, 2003, p. 174-175)

Talvez a forma mais comum de se atacar o Estado atualmente seja através da democracia direta, apesar de possuir elementos pontualmente louváveis, fica claro que tal forma de governança pode desembocar em uma ditadura da maioria. Tal instrumento é geralmente apresentado como uma forma de minimizar a falta de interação entre governos e população, além de paliativo para o sentimento de pouca representatividade dos políticos eleitos.

A democracia direta se faz impossível pelos canais políticos tradicionais, mesmo com a expansão das potencialidades surgidas com as novas tecnologias, os malefícios que ela pode causar são muito altos. O debate político deve ser pautado na razão e corroborado por fatos, a entrega das decisões a um espaço que privilegia debates rasos e pouca reflexão pode ser catastrófico, em primeiro lugar para as minorias e, em segundo, para a sociedade em geral, pois o minguar da tolerância é o primeiro sinal de que a democracia corre riscos.

Seria impossível pensar em tantas questões se não fosse o avanço avassalador da internet na vida humana, sem dúvida a tecnologia mais revolucionária da Terceira Revolução Industrial. As noções de tempo e espaço se tornaram fluídas e quase todos os aspectos da vida humana estão ligadas a essa tecnologia, mesmo questões tão íntimas como o sexo e a morte são diretamente afetadas por tal ferramenta. Não é surpresa que também a política seja fortemente influenciada, a internet possibilita a construção de uma nova democracia, baseada na interação.

Oferecendo a Internet ao mundo, a comunidade cientifica lhe ofertou a infraestrutura técnica de uma inteligência coletiva que é, sem dúvida, sua mais bela descoberta. Ela transmitiu assim para o resto da humanidade sua melhor invenção, aquela de seu próprio modo de sociabilidade, de seu tipo humano e de sua comunicação. Essa inteligência coletiva refinada há séculos é perfeitamente encarnada pelo caráter livre, sem fronteiras, interconectado, cooperativo e competitivo da Web e das comunidades virtuais. (LÉVY, 2001, p. 79.)

É no ciberespaço que as notícias mais disseminadas serão escolhidas e comentadas, seu poder desafia até grandes conglomerados midiáticos, oferecendo canais com uma visão distinta das tradicionais ferramentas informacionais. O poder sobre a informação oferece a chance dá Multidão impor pautas políticas e reverberar sua vontade em tempo real, impactando o centro do poder, uma vez que barreiras geográficas não são mais um empecilho e o meio virtual um espaço cada vez mais comum de se informar e ser informado.

A multidão, conjunto de singularidades, pela cooperação, torna-se altamente produtora de subjetividade. Uma subjetividade nova, livre de qualquer representação, que acaba com a relação de biopoder ou dominação-representação e se torna potência, potência constituinte de um novo porvir. Elimina-se, com isso, a relação soberana, baseada no poder e na corrupção das relações cooperativas. É como se fosse um êxodo da soberania. Esse conjunto de dispositivos cooperativos de redes torna-se potência democrática e limite da soberania imperial. (SILVESTRIN, 2014, p. 50)

A democracia ainda é a melhor forma de acesso ao poder para a coletividade, a única forma do poder emanar do povo, além das elites. As transformações sociais são impulsionadas pelo debate e o embate entre as partes envolvidas, as novas tecnologias impulsionam e agilizam essas transformações, criando um ambiente propício para a mudança, uma vez que possibilitam ao indivíduo mecanismos para desafiar as estruturas de poder vigentes.

As mesmas tecnologias também podem ajudar a fomentar a intolerância e a violência, seja no uso das redes sociais pelo Estado Islâmico para cooptar membros, ou mesmo de indivíduos em sociedades plenamente democráticas exprimirem pensamentos preconceituosos ou mesmo fascistas. A internet potencializa tanto o discurso de ódio quanto o progressista, sendo uma ferramenta que insere os mais diversos pensamentos e ideologias no ciberespaço, aumentando as chances de diálogo e de competição, seu impacto mal pode ser medido no presente e seu legado é já tão vasto que conjecturas tornam-se insuficientes. A única certeza é que a mudança chegará, cada vez mais rápida, tornando o limiar entre presente e futuro cada vez mais sutil.

3.3. A Multidão na sociedade de controle

Entre as diversas mudanças causadas pelo advento das NTICs, aquelas relativas as relações de poder são particularmente as mais impactantes, uma vez que alteram toda a estrutura de uma sociedade. Se faz importante discutir os novos mecanismos de controle, ao qual Deleuze já alertava, entendendo tanto o Estado quanto o Mercado como entidades invasivas em diversos momentos da vida. Também entendendo o povo segundo a categoria de Multidão, numa relação complexa com as forças externas que com ele atuam, onde em dado momento é manipulável e em outros se torna um mecanismo de ruptura, seja com a tradição ou com os mecanismos do poder.

A literatura de ficção científica, há muito tempo vêm especulando sobre um “futuro” onde o Estado se torna uma entidade opressora de direitos, cerceando os indivíduos das mais diversas formas, desde o clássico 1984 de George Orwell, a obras como Fahrenheit 451 de Ray Bradbury e o antes cult e agora afamado V de Vingança de Alan Moore. O ponto em comum em todos é a figura estatal no comando da vigilância permanente, a escolha pode ser entendida devido a ação histórica de repressão ao ser humano tal como estudada por Michel Foucault em sua análise das sociedades disciplinares, tendo surgido entre os séculos XVII e XVIII e chegando ao auge no século XX, e posteriormente por Gilles Deleuze, que ficaram conhecidas como sociedades de controle. “O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola [...], depois a fábrica [...], de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência” (Deleuze, 1990, p. 219).

Nas sociedades disciplinares o poder disciplinador, simbolizado pela arquitetura do panóptico, presentifica-se no interior das instituições, como as prisões, os hospitais, as escolas, os quartéis, com o objetivo de instaurar a disciplina e, consequentemente, um padrão comportamental rotineiro. No modelo social de Deleuze, o controle passa do âmbito local – restrito à extensão dos olhos e dos ouvidos humanos – para um âmbito supra-local, estendendo-se para todos os espaços da vida pública. Não há mais espaço restrito para que o poder se faça sentir, pelo contrário, ele se faz presente em todos os lugares. Por conseguinte, é mais perverso, mais controlador, porque se sustenta no aparato das novas tecnologias de informação. O símbolo do controle agora não é mais o panóptico, mas a web, a rede digital de comunicação mundial, que concentra toda a informação dos indivíduos em bancos de dados. O princípio da docilidade continua, no entanto, o mesmo, pois os indivíduos entregam voluntariamente seus dados a vigilância. (AGUERO, 2008, p. 35 – 36)

O “futuro” imaginado pela especulação literária se faz presente na sociedade da informação, porém, com características diferentes da ficção. Para Foucault as sociedades disciplinares serviram para manter o controle sobre a mente e o corpo. Posteriormente surgem mecanismos que transformam a arquitetura de dominação disciplinar, dando origem as sociedades de controle, um novo modelo de exercer o poder que se aprofunda a partir do fim da 2º Guerra Mundial e se encontra em andamento. “Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. ” (Deleuze, 1990, p 220).

[...] a sociedade disciplinar é aquela na qual o comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas. [Na sociedade de controle] os mecanismos de comando [são] distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. Os comportamentos de integração e de exclusão próprios do mando são, assim, cada vez mais interiorizados nos próprios súditos. O poder agora é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas, etc.) no objetivo de um estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade. (NEGRI; HARDT, 2001, p. 42 – 43, apud AGUERO, 2008, p. 36)

O primeiro e principal ponto de ruptura entre ficção e realidade se dá no protagonismo dos atores envolvidos na sociedade de controle. Apesar de ainda possuir grande poder, o Estado perde seu protagonismo diante do Mercado, que no seu modo natural de ação consegue convencer de maneira muito mais fácil os indivíduos de abrirem mão de seus direitos. A coerção estatal caracterizada pelo poder judiciário e pelo monopólio da força se encontra em crise e não dispõe de legitimidade suficiente para impor mecanismos de controle tão vastos, como é o caso da NSA, uma iniciativa que seguiu adiante pelo fato de alerta constante quanto a ataques terroristas.

O segundo ponto é relativo ao protagonismo do indivíduo, antes um ser que se difere e se afasta da massa, carregando em seu pensamento uma forte carga humanista ou mesmo anárquica. Seja Winston Smith, Guy Montag ou V, o indivíduo carrega em si o peso de uma luta solitária, sempre ao lado de uma figura feminina que os inspiram a lutar. Mais uma vez é olhando para a história que se compreende tais escolhas, as grandes personalidades que reuniram em si uma grande carga de simbolismo devido ao que fizeram ou o que representavam foram decisivas na construção da história dos ídolos individuais, tão criticada pelo movimento dos Annales e que deixou sequelas na mentalidade coletiva.

Além da ficção, a historiografia influenciou fortemente na visão que se têm sobre a liderança, exaltando tanto uma única figura que termina anulando todos os indivíduos reunidos em um determinado processo histórico. Essa tendência persistiu até o aparecimento de uma nova geração de historiadores franceses que mudariam os parâmetros historiográficos dominantes, eclipsados nas figuras de Lucien Febvre e Marc Bloch, esse último um dos fundadores da Escola dos Annales, que influenciado por Émile Durkheim, deixou sua marca na historiografia ao dar maior importância aos grupos em detrimento da ação individual na história. Segundo José Carlos Reis (2013), Bloch deu preferência ao estudo do tempo, das estruturas e do coletivo.

Como Durkheim, e diferente de Febvre, o ponto de partida da história blochiana era a sociedade e não o indivíduo. Seu realismo social, continua Rhodes, insistia em aprender o todo social antes de querer aprender as partes. Este todo, composto de interações individuais, era concebido como não redutível à vontade dos indivíduos-membros. O indivíduo é que é reduzido à mera expressão da vida coletiva. Assim como Durkheim, Bloch considerava que a estrutura social, a solidariedade, a ordem ou coesão social são as realidades básicas onde se encontram os princípios explicadores da sociedade. [...] O específico desta ‘consciência coletiva’ é a sua lentidão na mudança. Ela é um consenso, que envolve todos os membros da sociedade, oferecendo-lhes valores e normas da vida. É uma consciência pré-fabricada pronta para o uso individual e que aparece ao indivíduo como algo dado e natural. Mas trata-se de uma construção de longa duração. (RHODES, 1978 apud REIS, 2013, p. 265)

A sociologia e a história procuraram romper com a tradição do ídolo, dando voz a coletividade na história, seja na sociedade de corpos medieval ou na sociedade de massas do século XX, tão influenciável ideologicamente que muitas vezes foi capaz de se alinhar aos discursos totalitaristas da época. A historiografia continuaria avançado nos estudos sobre o indivíduo e o coletivo, sendo que se na primeira geração do movimento francês houve uma grande recusa aos modelos biográficos que se fechavam em torno da vida do biografado, novos autores por sua vez foram abrindo o caminho para uma redescoberta da escrita biográfica, tendo já na terceira geração dos Annales algumas obras importantes de Georges Duby e Jacques Le Goff indo nesse sentido.

A redescoberta do indivíduo na história procurava usar da vida de um personagem histórico para se contar ou descrever uma estrutura maior, desarticulando a visão romântica de um “herói” que há muito já se tornara ineficiente para a historiografia. Essa tendência passa a ser seguida por historiadores europeus, como Christopher Hill e Carlo Ginzbourg, que têm em sua obra de micro história “O queijo e os vermes”, um exemplo perfeito do que a história biográfica é capaz de fazer quando escrita para a conscientização de processos e estruturas maiores.

Fiel à concepção de história-problema da Escola dos Annales, minha primeira dificuldade consistiu em definir uma problemática que me permitisse apreender o indivíduo São Luís em interação com a sociedade do século XIII, evitando o que o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de a “ilusão biográfica”, que pretende que se considere a vida de um grande homem como alguém com um destino já traçado, excluindo as eventualidades da vida. Eu, ao contrário, limitei-me a mostrar as hesitações, as decisões e os momentos cruciais da vida de São Luís, a partir da sua infância de rei. Porque se o homem constrói sua vida, ele também é construí- do por ela. (LE GOFF, entrevista, 1996).

Com a visão do herói histórico superada, a atenção acadêmica voltou-se para o coletivo, ganhando roupagens novas de diferentes intelectuais. Destaca-se no presente trabalho a categoria de Multidão, que seria um “conjunto de singularidades” estando “sempre em movimento” (Negri, 2004), como um ator social ela é politicamente engajada, assimilando ideias diversas que representam as mais distintas camadas sociais e mantendo uma complexa relação com o Mercado e o Estado.

A consciência da força coletiva não é uma novidade para os indivíduos, essa força é exercida historicamente desde a antiguidade, a diferença está nos mecanismos disponíveis a população, as NTICs possibilitam as ferramentas de alienação e dominação tanto quanto as de lucidez e liberdade. “Do ponto de vista sociológico, o poder constituinte da multidão aparece como cooperação e comunicação em redes, trabalho social formado pelo comum. ” (Andreotti, 2008, p. 02-03).

Mercado, Estado e Multidão se configuram então como as grandes forças nas relações de poder na sociedade da informação. Usando os mecanismos a sua disposição cada ator procura atingir seus objetivos, o Mercado usa o marketing para convencer, o Estado usa o monopólio da força e a justiça legitimada para a coerção e a Multidão usa a seu favor o número de indivíduos para transformar a sua realidade, esse “monstro revolucionário chamado Multidão” (Negri, 2004), tem a capacidade de influir nas decisões políticas e na direção econômica das empresas.

Em plena sociedade de controle se faz necessário pensar sobre as relações estabelecidas por tais forças, entendendo que mesmo em uma aparente situação de desvantagem a Multidão procura formas de resistência diante da invasiva ação de controle imposta a ela.

É verdade que os Estados mais poderosos podem agir de forma marginal sobre as condições, favoráveis ou desfavoráveis, do desenvolvimento do ciberespaço. Mas são notoriamente impotentes para orientar de forma precisa o desenvolvimento de um dispositivo de comunicação que já se encontra hoje inextricavelmente ligado ao funcionamento da economia e da tecnociência planetárias. (LEVY, 1999, p.227)

No Brasil a presente (e justificável) preocupação sobre o controle do Estado evita uma maior atenção sobre as forças do Mercado, atuantes sobre a vida pessoal e transformando as ideias estabelecidas sobre liberdade individual. Lévy mostra a dificuldade do poder estatal para exercer de forma direta sobre o ciberespaço, como já dito falta legitimidade, que só se faz presente nos casos que envolvem o poder judiciário. É preciso refletir sobre a atuação do capital privado, que desestabiliza fronteiras e Estados, mudando até mesmo o pensamento sobre a privacidade. A privacidade se tornou uma mercadoria e para entender o poder quase onipresente das empresas na vida do homem é preciso atentar para a realidade tecnológica.

O crescimento espantoso da telefonia móvel convergiu com o aparecimento de novos aparelhos para a conexão com a internet, como o tablet, essa nova realidade tecnológica permitiu um grande avanço para a conexão sem fio, “Com a internet acessível pelo celular, a rede e todos seus serviços tornam-se móveis. [...], os aparelhos se tornaram também possibilidades de estado de conexão permanente [...]” (Rodrigues, 2010, p. 78). Essas mudanças inegavelmente trouxeram grandes avanços, como canais diretos para o compartilhamento de informações, geralmente pelo aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp e a possibilidade do acesso de inúmeras fontes de notícias. Mas também trouxeram o problema da superinformação e do controle dos indivíduos, desde a sua localização espacial até as suas afinidades para entretenimento, consumo e relações pessoais.

A empresa transnacional, Uber, sediada em São Francisco, é um notório exemplo das mudanças trazidas pelo uso das NTICs nos mais variados campos. Oferecendo transporte privado alternativo aos táxis, através de um aplicativo chamado E-hailing, a empresa se expande globalmente e ao mesmo tempo em que gera atritos com os Estados Nacionais, sindicatos locais e mesmo entusiastas da liberdade, que veem na iniciativa um cerceamento do direito de privacidade de ir e vir.

As querelas entre justiça e empresas tecnológicas não se restringiram apenas ao Uber, no Brasil o aplicativo WhatsApp, pertencente ao Facebook, dispõe de grande número de usuários que fazem dele o principal canal para se comunicar e até mesmo transmitir e receber notícias em tempo real. O aplicativo foi suspenso por algumas horas, através de decisão judicial em 2015 e 2016, devido a recusa em cooperar em investigações sobre pedofilia no Brasil. A reação dos usuários foi da indignação ao escárnio, traduzidas nos já comuns memes de internet, que inundaram as principais redes sociais mostrando o descontentamento popular com as decisões.

Cabe aqui discutir os principais pontos levantados em tais episódios, a questão da privacidade, que vai desde o direito individual até o uso de dados dos clientes e também a questão judicial, que envolve o poder de ação do Estado e suas limitações, que vão desde questões técnicas até os problemas das fronteiras nacionais.

A venda de dados dos usuários é uma prática comum entre as gigantes tecnológicas, o Facebook também faz uso da prática, garantindo o lucro necessário para sustentar sua gigantesca plataforma online. O uso recorrente dessas vendas expõe os usuários a variados tipos de marketing eletrônicos invasivos, tornando-os meros consumidores que pretendesse atingir através de dados. O WhatsApp, por sua vez, depende fortemente da confiança de seus usuários no tocante as informações pessoais, criando criptografias avançadas para burlar não apenas pessoas com interesses ilegais como também a polícia. Se por um lado a multinacional de Zuckeberg está pronta para oferecer dados de seus clientes, de outro nega o acesso da justiça a informações importantes em investigações. Para cada ramo do negócio existe um conjunto de regras diferentes, adaptando-se as necessidades e exigências de seus usuários. A maleabilidade é mais um atributo do Mercado, sendo que os mecanismos tradicionais do Estado ainda não estão adaptados o suficiente para resolver tais questões.

A jornalista Naomi Klein (2002), mostrou que as transnacionais procuram evitar o peso das justiças locais através da vantajosa estrutura que possuem no mundo pós-fordismo. Em sua obra, “Sem Logo”, a canadense disserta sobre o poder das grandes transnacionais num mundo sem barreiras para o capital e analisa o estado atual dos empregos na era de dominação do pensamento econômico neoliberal. Dando atenção a toda a cadeia produtiva, desde o trabalho manual do sistema fabril em países de terceiro mundo, até o setor varejista do mundo desenvolvido.

O discurso de Klein se mescla ao de Luciano Gallino ao entender o pensamento neoliberal como hegemônico na sociedade da informação, o “Estado minimalista” é a consequência direta disso, deixando sequelas graves para a sociedade (Klein, 2002).

Para manter a competitividade as multinacionais procuram realocar a sua produção fabril para países onde a mão de obra excedente e barata esteja menos organizada em sindicatos e protegida por leis, desse modo podem tirar o maior proveito da força de trabalho local, garantindo altos lucros. A autora é perspicaz ao analisar as multinacionais através do prisma da marca. As empresas entenderam que antes de vender um produto elas vendem uma ideia, basta ver as imensas filas nas lojas da APPLE ao redor do mundo sempre que alguma novidade tecnológica é lançada. A sede do consumidor por marcas não tem fim, pois elas não representam a compra de um item necessário e sim um desejo de posse, desejo esse tão bem analisado por Erich Fromm em “Psicanálise da sociedade contemporânea”. O que os membros da Escola de Frankfurt não poderiam supor é o quão longe as engrenagens máximas do capitalismo seriam capazes de ir pelo lucro, desafiando Estados e modificando leis, passando por cima até do sentimento ideológico máximo do século XX, o nacionalismo.

[...]estamos rodeados de coisas de cuja natureza e origem não sabemos. O telefone, o rádio, o toca-discos e todas as outras máquinas complicadas são quase tão misteriosas para nós quanto o seriam ´para um homem de uma cultura primitiva; sabemos usá-los, isto é, sabemos que botão apertar, porém não sabemos segundo que princípio funcionam, salvo nos termos vagos de algo que em outro tempo aprendemos na escola. E as coisas que não se baseiam em princípios científicos difíceis nos são igualmente estranhas. Não sabemos como se faz o pão, como se tecem as fazendas, como se constrói uma mesa, como se faz o vidro. Consumimos como produzimos, sem uma relação concreta com os objetos que manejamos; vivemos em um mundo de coisas, e nossa única relação com elas consiste em saber manejá-las e consumi-las. (FROMM, 1970, p. 136)

As marcas possuem um significado, investir no fortalecimento e difusão dessa não é barato, cabe as empresas então arrochar ainda mais os salários e tomar medidas gerenciais para que o investimento seja direcionado ao marketing, setor no qual o nome do produto pode crescer, sem estar ligado ao “sujo” trabalho fabril. É importante lembrar que a fábrica foi classificada por Foucault como um dos espaços fechados, um símbolo da sociedade disciplinar que não se encaixa mais no mundo do capitalismo informacional. Longe de seus países de origem, as fábricas podem se aproveitar de leis locais, como as das Filipinas e da Indonésia, pagando um rendimento bem abaixo do exigido na Europa ou nos Estados Unidos. Sobra a esses lugares a sede empresarial, que agrega os valores da nova sociedade, tendo como características a “flexibilidade” e a “capacidade de adaptação” (Rodrigues, 2010). A terceirização permitiu as grandes marcas se distanciar desse modelo fabril altamente exploratório, não importa que as condições de trabalho nas Filipinas sejam vergonhosas, a Nike e a Reebok não têm nada a ver com isso, essas fábricas estão sob o comando de asiáticos, mas diferentes dos antigos tigres asiáticos, que em sua época puderam aproveitar do grande número de indústrias, aumento o salário de seu povo e cobrando impostos para investir no país.

Com o intuito de baratear seus produtos as grandes multinacionais procuraram realocar seu setor fabril em países de terceiro mundo, onde as condições sociais permitem uma exploração lucrativa do trabalhador. Diferente do ocorrido nos antigos tigres asiáticos, Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong, os novos alvos não recebem troca de tecnologia e nem aumentam os impostos cobrados, deixando de tirar seus trabalhadores da pobreza e nem dando ao Estado rendimentos suficientes para investir em infraestrutura. Para Kindleberger, as multinacionais não devem lealdade a nenhuma nação, este pensamento indica que o mundo inteiro se tornou seu quintal de negócios, são “Estados apátridas” como diz Naomi Klein (2002).

Para a Sociedade da informação uma marca deve representar algo, ela deve ser atraente e ter conceito. O produto em si é jogado para segundo plano, aqueles mesmos consumidores nas filas da APPLE não estão lá porque o novo IPHONE traz muitas novidades e, sim, porque querem continuar se sentindo ligados aquela marca que representa algo a eles. “Bebemos rótulos: com uma garrafa de Coca-Cola, bebemos o desenho das belas jovens que a bebem no anúncio [...] Com o que menos bebemos é com nosso paladar” (Fromm, 1970, p. 135 - 136). Nesse panorama para se manter competitivo é preciso de publicidade, a parte fabril do negócio se torna então a parte no qual os cortes devem ser realizados, é nessa etapa então onde ocorrem os maiores cortes de gastos.

Para Charles Maier, a consciência de classe só faz enfraquecer num mundo onde os sindicatos são perseguidos e o trabalhador alvejado de seus direitos. Mas na porção desenvolvida do mundo é necessário maquiar a exploração, pois não está se falando mais do “outro”, do distante asiático que pode viver com tão pouco. O trabalho temporário então aparece como uma alternativa para se extrair dos jovens sua força de trabalho e não o remunerar decentemente, nesse sentido os setores midiáticos também se despontam, mostrando que não é somente a lógica fabril a que é controlada pelo pensamento neoliberal. As promessas de que o trabalho o colocará na classe média e que não fará de você um simples trabalhador necessitado atrai muitos em busca de melhorar sua vida, mas a Starbucks e o Wal-Mart são tão comprometidas com a eficiência e o lucro quanto a fabricante de roupas próxima a Manila.

Naomi Klein demostra a relação dialética entre as empresas e seus empregados, o mercado consumidor é indispensável, mas os trabalhadores não podem ser um peso nos gastos financeiros. A ligação com a indústria tecnológica do Vale do Silício e Seattle mostra que mesmo altamente especializada a mão de obra pode e vai ser submetida a lógica neoliberal do Just in time.

A globalização levou a disputa comercial a um nível mundial, não importa se esteja em Vancouver ou Jacarta, as leis do mercado irão influir sobre sua vida, seu nascimento apenas incidirá no grau de exploração usado sobre você. Klein consegue demonstrar com exatidão que as multinacionais sofreram transformações importantes ao longo do tempo, criando entidades transnacionais que impactam a vida humana de diversas maneiras, sem se preocupar com fronteiras, direitos trabalhistas ou mesmo em muitos casos a dignidade humana.

A mudança no pensamento dos dirigentes empresariais alterou fortemente a realidade dos trabalhadores fabris. As zonas de exportação são os locais onde a competitividade no século XXI chega ao seu máximo, lá os trabalhadores são submetidos a jornadas intermináveis de trabalho e direitos humanos são desrespeitados sistematicamente em prol da produção. As alegações futuristas alarmantes de autores como Rifkin estavam erradas, os trabalhadores assalariados não foram trocados por robôs, eles foram trocados por outros trabalhadores que não possuem a mínima proteção trabalhista, eles são mais eficientes do que robôs, se derem “problema” podem ser despedidos, um robô precisaria de manutenção e acima de tudo seres humanos dependendo do local do globo onde nasceram, são baratos. Hobsbawn indicou que para o empresário o ser humano é o problema na linha de produção, as tentativas constantes e bem-sucedidas de limitar o trabalhador mostram que o marxista estava correto.

A terceirização permitiu as grandes marcas se distanciar desse modelo fabril altamente exploratório, não importa que as condições de trabalho nas Filipinas sejam vergonhosas, a Nike e a Reebok não têm nada a ver com isso, essas fábricas estão sob o comando de asiáticos e sob a jurisdição, muitas vezes especial, desses territórios.

A autora se detém longamente sobre as condições de trabalho nas ZPE, sobretudo analisando o caso nas Filipinas, os testemunhos só comprovam a lógica do capitalismo selvagem exercido sobre os povos subdesenvolvidos. Porém, a cadeia produtiva apenas começa na fábrica, é preciso ainda vender o produto e a marca e para isso é necessária mão de obra local nos países com maior renda. Os encarregados de vender o produto também são explorados, preferindo os jovens em detrimento dos mais velhos e arrochando salários.

As zonas de processo e exportação ganharam força sobretudo na China, uma gigantesca fábrica mundial que vende seu povo para atrair as multinacionais, o caso da China pode ser visto como emblemático, sem dúvidas o tamanho da população tem um impacto gigantesco para que o cenário chegasse a tal ponto, porém foi um Estado forte capaz de calar os anseios do trabalhador que gerou um ambiente tão propício para as ZPE. O Estado abre uma exceção nessas regiões, tornando-as “ilhas” onde a lei normalmente estabelecida não se aplica. Na China onde a liberdade de expressão é controlada esse tipo de negócio só tende a prosperar, pelo menos até Pequim decidir que seu povo merece uma remuneração humanamente descente.

As forças do Mercado operam de forma internacional, driblando barreiras impostas pelo Estado e as questões relativas a justiça. Se a força das empresas frente aos governos é evidente, o poder de atração sobre a Multidão muitas vezes é sutil, através do marketing o público é rebaixado a mero consumidor, um replicador do estilo de vida do capitalismo informacional (Rodrigues, 2002), conectado ao emprego em tempo integral graças aos dispositivos móveis e ludibriado pelo excesso de informação geradas nas redes.

A compulsão pelo consumo é cada vez maior, pois, por um lado consumir se tornou um fim em si mesmo, apenas para satisfazer um desejo interno incutido pela propaganda, que é onipresente na vida contemporânea. Por outro lado, em países onde existem grandes desigualdades sociais o ato de consumir é relacionado com a própria cidadania, como é o caso do Brasil.

O homem moderno, caso ousasse falar claramente de sua concepção do céu descreveria uma visão que pareceria a maior loja de departamentos do mundo, apresentando coisas e engenhocas novas, e êle entre elas com dinheiro bastante para compra-las. Andaria boquiaberto por esse céu de engenhocas e mercadorias, sendo condição apenas a de que existisse número cada vez maior de coisas novas para êle comprar, e talvez também a de os seus vizinhos serem um pouco menos privilegiados do que êle...[...] (FROMM, 1970, p.137)

Felizes em distribuir seus dados para as grandes corporações, os usuários de aplicativos e redes sociais não se sentem, em sua maioria, invadidos em sua privacidade. Falta o entendimento que na atualidade, dados pessoais são quase tão relevantes quanto a força de trabalho, eles geram altos lucros e poucos problemas com a opinião pública. A grande mobilização internacional para condenar as atividades de espionagem da NSA se deu principalmente, pela magnitude em que era feita, pelos poderosos líderes internacionais que atingiu e por ter vindo do Estado, em um país onde grande parte da população sente o poder estatal de maneira desconfiada, vendo apenas uma grande máquina que cobra impostos e controle.

Na sociedade de controle atual do Ocidente, é o Mercado a força que mais invade a liberdade e a privacidade, enquanto o Estado é pressionado na direção de abrir seus dados para a consulta popular e em criar uma estrutura eletrônica organizada capaz de lidar com essas questões, as megaempresas convocam o indivíduo a abrir sua vida e deixar suas informações no ciberespaço, para no fim gerarem lucro.

A Multidão, porém, não se mostra completamente apática a tais atitudes. Resistências aos novos modelos de cerceamento se fazem presentes pelo mundo. Em 2014 a União Europeia sancionou a lei do direito ao esquecimento, ampliando direitos sobre a privacidade e atingindo diretamente gigantes da internet como Google, Microsoft e Yahoo. O uso de bancos de dados de usuários para a venda é um tema ainda pouco discutido, mas a decisão da Corte de Justiça Europeia abre caminhos para a criação de eventuais mecanismos para a proteção de informações pessoais. Além da justiça os usuários procuram maneiras próprias de lidar com a superexposição, a criação do Tor para navegação anônima e a luta pela preservação da neutralidade da rede são outros exemplos do que a articulação dos usuários é capaz de fazer.

3.4. Informação e poder: O papel da Grande mídia na atualidade

A informação no século XXI tornou-se tão fundamental que ela já é percebida como um direito e também como um requisito para a vida em sociedade, a ponto de muitas vezes ser confundida equivocadamente com o conhecimento. Além da influência que as mídias, em especial as digitais, possuem junto à sociedade e governos, ela também tem impacto gigantesco sobre a cultura. A mídia tradicional ainda é o principal canal de informações para a sociedade, jornais, revistas e TV dominam a pauta de notícias, impondo os assuntos que determinam serem os mais importantes no momento. Grandes conglomerados midiáticos pelo mundo possuem tanto poder que uma grande parcela das mídias mainstream pertencem a algum deles. No Brasil, a chamada mídia tradicional ainda é o principal canal de informações para a sociedade, jornais, revistas e TV dominam a pauta de notícias, impondo muitas vezes os assuntos que determinam serem os mais importantes no momento. Entretanto, a nova realidade tecnológica digital ao possibilitar que qualquer indivíduo seja igualmente um produtor e repassador de informação, forneceu mecanismos acessíveis contrários a hegemonia dos grandes grupos midiáticos, o que tem contribuído para a grave crise financeira e identitária do jornalismo tradicional, por exemplo, e a problematização da produção cultural advinda e veiculada somente por estes grupos.

Como a informação sempre esteve intimamente ligada às relações de poder, a mídia mainstream junto a escola tem sido os dois principais difusores do pensamento dominante. Nesse sentido é mais do que natural que a imprensa represente os anseios das elites nacionais. Grupos como Bertlsmann, News Corporation, The Walt Disney Company, Vivendi, CBS Corporation, Viacom, Time Warner, Sony Corporation e NBCUniversal controlam um número significativo de alguns dos mais respeitados e famosos meios de comunicação, pertencem a algum deles, por exemplo, as redes CNN, RTL, FOX News e ABC além dos jornais The New York Times, New York Post, The Daily Telegraph, The Sun e The Times.

No Brasil a concentração de mídia também é uma realidade, tendo como maiores exemplos o Grupo GLOBO, o Grupo ABRIL, o Grupo Folha e o Grupo RBS. Juntas elas concentram os maiores difusores de informação e opinião do país, possuindo emissoras, rádios, jornais, revistas, gravadoras, sites de notícias e estúdios cinematográficos, como a Rede Globo, Globo News, a Rádio CBN, Jornal O Globo, Extra, Valor Econômico, Zero Hora, Folha de S. Paulo, Época, Veja, Exame, UOL, G1, além de institutos de pesquisa como o Datafolha. Conforme Altamiro Borges, em seu livro A ditadura da mídia (2009), para a construção do modelo midiático vigente no Brasil, não foi privilegiado o investimento em um sistema público de radiodifusão. Ao contrário foi copiado

[...] o modelo privado dos EUA, mas sem as ressalvas legais vigentes neste país de 1943, que coibiram os monopólios que só foram atacados no reinado neoliberal de Bush. A ausência de legislações reguladoras e a relação promíscua com o Estado permitiram um tipo sui generis de concentração com a chamada propriedade cruzada, na qual os “donos da mídia” garantem a posse de diferentes meios – jornais, revistas, rádios, televisões, internet. No Brasil, o modelo privado e a propriedade cruzada resultaram numa mídia extremamente concentrada e historicamente antidemocrática. (BORGES, 2009, p. 56)

A concentração midiática, que está na mão de poucas famílias brasileiras, teve seu acabamento no período da ditadura de 64. Naquele contexto, o projeto de integração nacional visado pelos militares, conforme o Relatório do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação,

[...] adquiriu materialidade e encontrou sua melhor tradução no modelo constituído pela Rede Globo. Ao longo de quase quatro décadas, enquanto expandiam-se país adentro [...] as redes de TV aberta forjaram um mapa do Brasil baseado nos interesses políticos e comerciais privados de seus proprietários [...] Células desses interesses foram disseminadas em cada recanto do País sob a forma de grupos afiliados às redes. O resultado foi a criação de um Brasil refém das grandes empresas da mídia, imunes a qualquer forma de controle público, comandadas de forma vertical e sustentadas em alianças regionais que reproduzem e amplificam ideias, concepções e valores para 170 milhões de habitantes. (Carta Capital, 2012, p. 1)

Após a falência das famílias Bloch (Manchete,) Levy (Gazeta, Nascimento (Jornal do Brasil), outrora proprietárias das mídias, a situação da concentração familiar é a seguinte: Marinho (Globo), Abravanel (SBT), Saad (Bandeirantes), Civita (Abril), Frias (Folha), Mesquita (Estado) - que está em crise -, e também recentemente despontou a emissora Record, ligada à família Macedo, dona da Igreja Universal. Neste quadro, as Organizações Globo predominam. As seis principais redes de TV aberta (Globo, Record, SBT, Bandeirantes, Rede TV! e CNT) compõem o principal veículo brasileiro de comunicação e respondem por cerca de 56% das verbas publicitárias públicas; a essas redes estão associadas

140 grupos afiliados, os principais de cada região, e abrangem um total de 667 veículos, entre emissoras de tevê, rádio e jornais. Os grupos cabeças-de-rede, que geram a programação de televisão, buscam nos afiliados sustentação nas regiões e amplitude de presença no mercado. Em troca, dão fôlego econômico e uma face institucional a projetos empresariais e políticos regionais. (Carta Capital, 2012, p. 1)

Praticamente esses grupos afiliados pertencem, por sua vez, às grandes famílias oligárquicas políticas regionais. Esta é uma das facetas da relação informação-poder na sociedade brasileira, pois estes “667 veículos ligados às seis redes privadas nacionais são a base de um sistema de poder econômico e político que se ramifica por todo o Brasil e se enraíza fortemente nas regiões. ” (Carta Capital, 2012) Por exemplo, a família do senador José Sarney comanda o Sistema Mirante de Comunicação, afiliada à Globo, no Maranhão; a família do senador/Pará Jader Barbalho comanda a Rede Brasil Amazônia, afiliada à Bandeirantes; a família de Antonio Carlos Magalhães comanda a Rede Bahia de Comunicação, afiliada à Globo, na Bahia; a família do deputado federal Albano Franco comanda a Rádio Televisão Sergipe e Sistema Atalaia de Comunicação, afiliadas à Globo e SBT; a família do senador Fernando Collor comanda a Organização Arnon de Mello, afiliada à Globo, nas Alagoas.

O cientista político Bernardo Kucinski crê na mídia como uma das grandes forças do tempo presente, retendo poder suficiente para derrubar governos e alterar a opinião pública das mais diversas formas. O autor cita três exemplos históricos de tais poderes, a campanha liderada pelo jornalista Carlos Lacerda que pôs fim a Era Vargas em 1954, A renúncia de Richard Nixon em 1974 devido ao escândalo Watergate, denunciado pelos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein do Washington Post, além de em 1973 a imprensa chilena ter participado da derrubada do presidente Salvador Allende e ajudado na ascensão do ditador Augusto Pinochet (Kucinski, 2011).

No Brasil a imprensa foi decisiva para a estrutura de manutenção do regime militar, além de ter participado decisivamente na eleição do presidente Fernando Collor de Mello em 1989. Ainda para Kucinski a mesma imprensa, liderada pela Rede Globo e a Revista Veja, derrubou Collor ao promover a campanha pelo Impeachment.

O resultado duradouro e nefasto do episódio não foi a autocrítica. Ao contrário, foi a percepção pelos principais grupos de mídia de massa do país de seu poder de eleger ou derrubar presidentes. Desde então, nossa mídia de massa não se limita a reportar a nossa história – quer determinar os rumos de nossa história. (Observatório da Imprensa, 2011).

É fácil compreender o atual desinteresse e desconfiança de parte da sociedade pela mídia. De um lado as NTICs tornaram o processo de produção e recepção de informações muito mais dinâmico e democrático, e de outro a percepção da falta de imparcialidade tem contribuído para a ruína da confiança dos leitores e telespectadores.

Para Carla Rodrigues (2013) a tradicional indústria da informação não foi capaz de se adaptar as novas demandas da sociedade pós-fordismo. Os mecanismos intrínsecos de funcionamento do jornalismo são opostos a exigências (novos valores) como “descentralização, flexibilidade e mobilidade”. Através de um documento3 gerado pelo Centro de Jornalismo Digital da Universidade de Colúmbia, a autora reflete sobre problemas atuais do jornalismo. Sobre o jornalismo pós-industrial, a autora afirma

[...] um dos muitos motivos da crise do jornalismo pós-industrial é a impossibilidade da indústria de a informação tradicional funcionar a partir desses novos valores, já que uma de suas principais características é uma estrutura fortemente hierarquizada, centralizada, que pretenda garantir o controle dos processos internos e, sobretudo, o controle daquilo que será veiculado. No vocabulário industrial, as relações funcionam no modelo fordista, reproduzindo rotinas e processos industriais necessários para a realização de produtos de informação. (Rodrigues, 2013, p. 138)

O modelo antiquado da estrutura jornalística está levando a mídia tradicional a perder cada vez mais espaço diante de novas iniciativas pela internet, o que ameaça a hegemonia de grupos tradicionais sobre a informação. Diante desse quadro grandes jornais começaram a investir pesadamente em versões online, que cada vez mais adquirem importância e ajudam na manutenção dos lucros, mesmo as emissoras de TV também procuram uma maior dinâmica com as redes sociais, ao perceberem que atualmente a multidão de conectados é capaz de indicar pautas do dia, além de possuir voz para questionar o comportamento e as decisões da grande mídia.

Para Rodrigues (2013) outro fator fundamental é a perda por parte dos profissionais da informação do “privilégio de produzir informações”, uma vez que as NTICs possibilitam a qualquer um com acesso à internet a produção, disseminação e a capacidade de opinar sobre informações, muitas vezes num ritmo mais veloz do que uma redação de jornal.

A conclusão diante desses novos fatos por parte do documento de Colúmbia foi “[...] uma redução da qualidade das notícias [...]” (Rodrigues, 2013, p. 139). Analisar esse quadro é de extrema importância para a compreensão não apenas da crise jornalística, mas também das políticas nacionais, pois entre os muitos impactos dessa baixa qualidade está o posicionamento e a influência da grande mídia familiar brasileira em programas de cunho conservador e mesmo de claro reacionarismo. Tomando o Brasil atual como exemplo é possível identificar essa baixa qualidade nas matérias jornalísticas, porém, além dos problemas já citados um outro fator se apresenta, a intenção deliberada de confundir o leitor e leva-lo a um conhecimento truncado, que pode ser mais nefasto do que a ignorância, o que contradiz qualquer bom senso ditado pela ética jornalística.

No intuito de garantir uma parcela de leitores assíduos, grandes veículos de comunicação procuram exaltar alguns posicionamentos reacionários sobre certas parcelas da sociedade, muitas vezes relacionando a pobreza com a violência e o estupro a uma suposta conduta sexual feminina que incitaria esse tipo de crime. Também apoiam de modo nem sempre sutil, iniciativas econômicas e políticas visivelmente negativas para a maior parte da população, como redução dos direitos trabalhistas, redução da maioridade penal e liberação do porte de armas. Num processo de fidelização das massas, veículos da mídia familiar como O Globo, Época, Veja, Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, procuram dar mais espaço para pautas que atendam os anseios de grupos mais conservadores, ao mesmo tempo que reafirmam uma suposta neutralidade política, mesmo que isso implique na redução da qualidade das notícias. Um tipo de jornalismo que, para ter vendagem, não se pauta pela ética jornalística na construção da informação: capas vergonhosas, manchetes que induzem uma dada interpretação do fato que não é dito e mesmo contradito pelo texto que se segue. Por exemplo, na história recente da cobertura jornalística da política nacional aparecem fatos noticiados em grandes manchetes que induzem o leitor a certa interpretação que, por vezes, não condiz e mesmo contradiz o dito pelo texto que segue a manchete, numa clara intenção de manipulação. Como ilustração basta recordar a história do cientista político ligados aos direitos humanos, Leonardo Sakamoto, destroçado por leitores a parti de notícia falsa em jornal mineiro (http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/02/03/dez-impactos-imediatos-causados-por-uma-mentira-difundida-pela-rede/) ou inverdades publicadas pelo jornal o Globo contra Lula em 2015 (http://www.institutolula.org/as-cinco-vezes-em-que-o-globo-tentou-enganar-seu-leitor-em-2015) ou sobre o prefeito de São Paulo Fernando Haddad (http://jornalggn.com.br/fora-pauta/a-mentira-pela-edicao-esperta-de-manchetes) ou a errata publicada pelo jornal o Globo, por obrigação judicial, em relação a um dos filhos de Lula (http://www.ocafezinho.com/2015/11/08/globo-publica-errata-admitindo-que-mentiu-sobre-filho-de-lula/).

O processo político singular no qual o Brasil se encontra desde 2013 envolve as crises do Estado Nacional, das instituições, de representatividade e do jornalismo, além da nova realidade com as NTICs. Três eventos marcantes foram decisivos para demonstrar esses problemas, as manifestações em junho de 2013, as eleições presidenciais de 2014 e o processo de impeachment em 2016.

As Jornadas de junho foram um movimento espontâneo da população desencadeado a partir dos aumentos das passagens de ônibus em vários locais do país, no qual a Multidão em toda sua pluralidade mostrou sua veia contestatória ao ir para as ruas para contestar não apenas sobre o transporte público, mas também sobre o estado da saúde, da educação, da corrupção generalizada e outros temas. A população conectada observava de longe a Primavera Árabe, num contexto mundial de críticas sobre diversos governos.

A informação se tornou elemento fundamental para desafiar as relações de poder estabelecidas, as NTICs possibilitaram um novo olhar sobre a cidadania e aumentaram os anseios de mudanças sociais (Silveira, 2000). As jornadas receberam críticas parecidas com as do movimento Occupy Wall St., devido à falta de lideranças e objetivos claros. Os movimentos atuais que tem sua irrupção pela internet contam sobretudo com a espontaneidade, a lógica do indivíduo a frente dos outros, o líder/herói já não faz mais sentido para essas pessoas, numa realidade onde todos podem expor suas opiniões e atingir um grande número de pessoas. Já a multiplicidade de objetivos também está associada ao próprio mecanismo da Multidão, que abriga diferentes visões de mundo e os mais distintos anseios sociais.

“O poder é um fenômeno social no qual uma vontade, individual ou coletiva, se manifesta com capacidade de estabelecer uma relação da qual resulta a produção de efeitos desejados, que de outra maneira não ocorreriam espontaneamente. ” (Moreira, 1996 apud Silveira, 2000)

A visão sobre as manifestações de 2013 por parte da grande mídia brasileira foi em geral negativa, o lado contestatório foi ignorado em detrimento de uma grande visibilidade das ações dos Black Blocks, tentando associar as manifestações ao vandalismo. Não sem motivos grandes veículos de informação como a Rede Globo e a revista Veja foram largamente hostilizados nos eventos, demonstrando o descontentamento na forma com a qual a mídia retrata certos assuntos.

As eleições presidenciais de 2014 também foram polêmicas, o espírito de junho ainda estava vivo, mas foi trabalhado pelas forças do poder, tendo perdido muito de sua força diante da falta de comprometimento do Estado em alterar a realidade nacional. Se em muitos momentos a onda contestatória gritava contra o sistema partidário, em 2014 esse sentimento se encaminhou para uma irrefreável polarização, trazendo novamente os velhos partidos na disputa pelo poder.

A mídia brasileira apoiou o candidato do PSDB Aécio Neves, para tal iniciou uma campanha contra o PT, o ex presidente Luís Inácio Lula da Silva e a presidente Dilma Roussef. A Veja foi acusada de conspirar abertamente, tendo levado as bancas uma edição que atacava ferozmente o PT pouco tempo antes da eleição que decidiria o segundo turno, no fim Roussef saiu vencedora com o resultado apertado de 51, 64%, correspondendo a 54.501.118 votos.

O saldo da eleição foi de um Partido dos Trabalhadores4 enfraquecido, uma direita que não aceitava a derrota nas urnas e uma esquerda fragmentada, com alta desconfiança da mídia. A partir de 2015 a grande imprensa passou a fomentar uma campanha contra os dois principais líderes do PT, apoiados pelo empresariado e por uma classe média com tendências cada vez mais fascistas. O resultado dessa campanha desembocaria no processo de impeachment, com graves repercussões políticas e um grande impacto na imagem do Brasil dentro e fora de suas fronteiras.

Em 2016 o clima de polarização política era alarmante, os gritos de 2013 contra os partidos se transformaram em ecos distantes, pois a partidarização (muitas vezes velada) se tornou uma espécie de obrigatoriedade frente aos acontecimentos. As bolhas ideológicas formadas pelo Facebook agravaram ainda mais um debate que não acontecia, pois ambos os lados não estavam mais dispostos a argumentar com sensatez, logo as inciativas contra Roussef e seu partido se transformaram em uma campanha anti-esquerda fomentada sobretudo pela mídia. Um levantamento5 realizado pelo Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP (GPOPAI USP), mostrou que a guerra pela narrativa havia se instalado, os discursos contra e pró impeachment6 dominavam as redes sociais e as páginas de revistas e jornais, num monitoramento que havia se iniciado quatro dias antes da votação pelo impeachment na Câmara dos deputados. O levantamento apontou que parte das notícias mais compartilhadas no Facebook entre os dias terça-feira (12/4) e sábado (16/4) eram falsas. Foram verificadas 6,1 milhões de compartilhamentos na rede social e segundo o grupo mais de 200 mil pessoas visualizaram tais conteúdos.

Para aqueles que se identificam pelo espectro da esquerda política ou simplesmente enxergavam as ações pela remoção da presidente como um golpe coube apenas tentar encontrar novas fontes de notícias, alguns buscando a narrativa que privilegiava o seu lado, outros buscando independência e ética jornalística. Nesse sentido a blogosfera foi um refúgio para os progressistas, onde espaços como blog do Sakamoto e Socialista morena, jornais eletrônicos como Diário do Centro do Mundo (http://www.diariodocentrodomundo.com.br/), Jornal GGN (http://jornalggn.com.br/), Revista Fórum (http://www.revistaforum.com.br/), jornal 24/7 (http://www.brasil247.com/) que, dentre outros, cresceram e passaram a ser locais onde uma narrativa distinta pode se consolidar em detrimento das narrativas da grande mídia familiar brasileira sobre o poder7.

Em consequência, para uma parte da população o jornalismo tradicional da grande mídia familiar brasileira já não os representa, mas sim uma camada social ligada ao poder e aos setores populares usados como massa de manobra.

As sistemáticas crises que abateram o Brasil desde 2013 já existiam há algum tempo, porém foi a partir do momento onde a Multidão mostrou sua força que essas crises se tornaram mais agudas. Com o status quo sendo constantemente desafiado por parcelas não caladas da população brasileira, coube às forças reacionárias criar um discurso que centrava os problemas do País na administração petista, que se apresentou como o partido o maior, mais forte e estruturado grupo de esquerda nacional e que liderou o presidencialismo de coalizão nas últimas quatro eleições. Um exemplo importante do reacionarismo que marca o governo interino contrário à presidente Dilma Roussef é o Projeto Escola Sem Partido8, que supostamente visaria combater a catequização ideológica por parte dos professores de esquerda sobre os estudantes, se a mídia já estava entregue ao poder desde seu nascimento, a escola, porém, é um ambiente de multiplicidade e mais difícil de ser controlado, que abarca ideologias distintas e nela existe um importante ator social, o professor, que se distingue dos demais por possuir em geral uma ampla consciência de classe.

Para o exercício continuado do poder, faz-se fundamental dispor dos meios de comunicação de massa comprometidos com a manutenção do “sistema” e de um sistema educacional que perpetue o pensamento dominante, de forma que o condicionamento seja cada vez mais implícito que explícito. O poder da imprensa, do rádio e da televisão deriva, como o da religião, da organização; seu principal instrumento de imposição, como o da religião, é a crença – o condicionamento social. (Silveira, 2000, p. 04)

Outro exemplo são as políticas liberais que, muitas vezes de tão impopulares necessitam um engodo para que a população aceite retrocessos, como por exemplo, os acontecimentos políticos como o 11 de setembro foram usados em favor do discurso neoliberal, somando-se a isso o “estado de choque” que está sempre pondo a democracia e os direitos humanos em cheque (Klein, 2008). A crítica de Naomi Klein é dirigida ao economista Milton Friedman, notório membro da Escola de Chicago, disseminadora do pensamento neoliberal. Em contrapartida a esse modelo econômico diversos economistas como Joseph Stiglitz, Armatya Sem e Paul Krugman dedicaram seus estudos a um modelo keynesiano. Na situação atual do Brasil, no contexto do governo interino de Michel Temer, a disputa entre as duas visões de gerenciamento econômico está no centro da disputa pelo poder político, de um lado o neoliberalismo que prevê cortes de gastos em áreas como a seguridade social, educação e saúde, além de pouca ou nenhuma regulamentação sobre o mercado e do outro um Estado mais atuante na economia, que deseja certo grau de regulação do mercado, cria programas de assistência social e favorece ações afirmativas. O governo interino, mesmo em sua interinidade, modificou profundamente a estrutura do governo da presidenta Dilma Roussef, ao mudar ministros, extinguir ministérios e secretarias, fundir ministérios e, sobretudo, ao propor algumas reformas da pauta política vencida nas últimas quatro eleições presidenciais, que diminuiriam ou prejudicariam a saúde, a educação os direitos humanos, por exemplo, que não seriam populares, mesmo em um Brasil mais conservador. Para tal, está sendo preciso usar os meios à disposição para convencer a população sobre a necessidade e legalidade do impeachment da presidenta Dilma Roussef, em 2016, fato que, para crescente parcela da população, está tornando evidente que os interesses do Mercado e da grande mídia prevaleceram sobre os votos da democracia.

A mídia brasileira, diferente da americana, possui grande dependência de dinheiro público para sua sustentação. Grande parte dos políticos possui rádios, jornais e canais de TV, como a dinastia Magalhães na Bahia e os Sarney no Maranhão. Além do trio religião, TV e política, cada vez mais popular no país, numa afronta gritante a constituição.

[...] a ligação entre mídia e poder, resultado de uma política de concessões oligárquica, centralizada e nem um pouco democrática.

De fato, a indústria da informação no Brasil é tão dependente de verbas públicas que chega a ser difícil chama-la de indústria. Os dados mais recentes mostram que apenas 10 veículos de comunicação concentravam 70% dos R$ 161 milhões que o atual governo repassou aos veículos [...] a mídia mantém uma relação quase incestuosa com os centros do poder, característica de um sistema que nunca foi realmente questionado desde o fim da ditadura militar. (Rodrigues, 2013, p. 141)

É possível afirmar que o desencantamento do processo político e a desconfiança sobre grande parte dos veículos midiáticos estão acelerando a crise da indústria da informação no Brasil. Fontes de informação alternativas têm adquirido cada vez mais espaço para muitos brasileiros, sendo cada vez mais compartilhadas nas redes sociais, o que ajuda na construção de um pensamento/narrativa em contraposição ao formulado e disseminado pelos grandes grupos midiáticos brasileiros.

Mesmo com a quase hegemonia da indústria da informação tradicional existe certa negação ao stablishment que perpassa visões ideológicas, as organizações GLOBO, por exemplo, sofrem grande resistência da esquerda pela defesa do Estado mínimo e por apoiar medidas repressivas que atinjam diretamente a população mais carente. Uma parte da direita, de cunho mais religioso, a crítica por ser mais aberta em questões sociais que envolvem gênero e mesmo os direitos humanos. Essas questões até o presente nunca foram o suficiente para gerar algo mais concreto, mas a resistência ao maior símbolo da oligarquia midiática do país começa a alterar a disputa pelo poder na mídia, tendo a audiência televisiva mudado muito nos últimos anos, abrindo espaço para novos concorrentes.

Não é possível afirmar sobre uma futura recusa a mídia tradicional no mesmo modo como acontece hoje com os partidos, uma vez que a capacidade e flexibilidade da mídia de se reinventar são superiores à dos partidos políticos. O jornalismo profissional ainda é e continuará sendo por muito tempo a principal fonte de informações, e a maneira pela qual a notícia é construída ganhará cada vez mais relevância numa realidade onde a superabundância de informações já se faz presente e tem sido cada vez mais criticada e observada.

A liberdade jornalística está diretamente relacionada à democracia, sendo que a sua existência ou não serve de termômetro para medir a qualidade democrática de vários países. Ramos como o jornalismo investigativo são imprescindíveis para o bom funcionamento de uma nação, sendo visto por muitos como uma arma diretamente contra os abusos e ilicitudes do Estado e em alguns casos do Mercado. A partir do documento da Universidade de Columbia citado anteriormente, Rodrigues discute a importância do jornalismo no presente.

[...] eles querem dizer que nem todo jornalismo importa, e que muito do que é produzido hoje é simples entretenimento ou diversão. Por isso, para definir jornalismo adotam a famosa frase: ‘Notícia é alguma coisa que alguém em algum lugar não quer que seja impresso. O resto é publicidade’. (Rodrigues, 2013, p. 141)

A mudança na indústria da informação já afeta de modos singulares os leitores, hoje já existe uma exigência relativa a análise da informação, já não basta saber que algo aconteceu, é preciso interpretar o fato, apresentar suas fontes e ser capaz de argumentar com o ponto de vista diretamente contrário. Se as cidades são espaços de separação, onde os indivíduos convivem em determinados nichos caracterizados por condição econômica e outros fatores, no espaço online essas divisões se tornam mais fluídas, possibilitando uma maior interação entre os indivíduos, pois mesmo nas bolhas ideológicas das redes sociais o pluralismo de visões políticas se faz presente. O confronto inevitável leva os internautas aos debates, “armados” da melhor maneira possível para tentar convencer o “outro” com seu pensamento distinto.

O processo de fidelização das massas como recurso para manter ou aumentar a audiência também tem causado impactos, construindo uma sociedade anti-intelectual, mediante a superficialidade do que é veiculado. O resultado, a longo prazo, poderá ser o aparecimento de uma sociedade incapaz de sustentar o debate democrático, a negação do conhecimento acadêmico e uma rejeição nociva aos direitos humanos.

As análises de Rodrigues sobre as mudanças no pensamento e no comportamento humano podem ser comparadas ao pensamento de Karl Polanyi, para quem uma natureza pré-moderna foi modificada no decurso da construção da economia de mercado. As relações entre economia e sociedade são mais estreitas do que se normalmente supõe, a partir da década de setenta a Europa e os Estados Unidos passaram a aplicar uma forma de economia contrária aos princípios Keynesianos, que caracterizaria a sociedade pós-industrial. As mudanças não se restringiram apenas ao Mercado, a mentalidade coletiva foi afetada diretamente, sendo facilmente observável o gerenciamento das forças econômicas sobre a política e a cultura, (Polanyi, 1944).

Se o modelo econômico é capaz de alterar de maneira tão acentuada as estruturas sociais como defendem Rodrigues, Polanyi e Fromm, é de se esperar que seus instrumentos de ação sejam eficazes em seu objetivo de moldar a mentalidade para uma adaptação no comportamento que seja mais útil para o modelo vigente e prepará-las para mudanças que normalmente seriam consideradas inaceitáveis sem um completo e elaborado exercício de convencimento e distorção da realidade.

A indústria da informação então se coloca como instrumento de manutenção das estruturas sociais vigentes, defendendo o discurso neoliberal e influenciando as decisões políticas que poderiam resultar em uma mudança drástica na realidade. Como vários outros aspectos da vida humana esse ramo industrial se encontra em uma grave crise que já altera de maneira indubitável seu posicionamento dentro das complexas redes de relações de poder tecidas desde a crise do petróleo na década de setenta.

Para Noam Chomsky os anos sessenta foram um momento singular nas lutas pelos direitos sociais, com forte posicionamento dos movimentos sociais nos mais diversos fronts. Sendo ainda estruturada pelo Estado de bem-estar social, o mito do sonho americano pode prosperar com força, pois existiam mecanismos capazes de gerar modificações reais na vida da população. A mudança econômica para o neoliberalismo desencadeou já citadas forças que modificaram o comportamento humano, Chomsky percebe essas mudanças e a influência delas sobre a direção dos Estados, sua visão sobre o “Terrorismo de Estado” converge com a ideia de “Estado de choque” de Klein, onde discursos que possibilitem a violência do Estado sobre a população civil ou outras nações são construídos e difundidos pela indústria da informação, sendo mais um exemplo da real ligação entre o informar e o poder estabelecido. Para Klein o modelo neoliberal abre uma exceção para o Estado mínimo na área da segurança, parte da imprensa parte então a construir uma narrativa que legitime um Estado policial, preparado para coibir as reivindicações da população em geral e mais fortemente aquelas parcelas ligadas aos movimentos sociais, realidade que pode ser vista atualmente com a excessiva brutalidade das forças de segurança de São Paulo sobre estudantes que decidiram ocupar os espaços escolares na cidade.

Ainda é impossível responder sobre o futuro da mídia tradicional ao que já é conhecido como Quarta Revolução Industrial, uma vez que a lógica pós-fordista tende a se tornar a nova visão hegemônica no Mercado. Ao longo da história moderna, o capitalismo ensinou que é mais fácil assimilar o inimigo do que derrotá-lo, desse modo é possível que novas estruturas de poder sejam tecidas no ciberespaço, de modo que os mesmos privilegiados continuem a determinar o fazer jornalístico e informacional. Neste sentido, é importante atentar para a grande consciência de classe que as elites possuem, a qual permite a construção de reações eficazes a curto prazo sobre as mudanças do presente, vislumbrando possibilidades na resolução da crise jornalística que privilegiam a questão dos lucros sobre a da ética, investindo cada vez mais no setor digital e acelerando o processo de fidelização das massas, alimentando a polarização política e aumentando o desgaste sobre a democracia.

4. O Estado na Era da Informação: O espaço público na revolução digital

4.1. Cidades: Os desafios do espaço urbano em tempos globalizados

O espaço urbano tem estado em constante transformação ao longo da história, adaptando-se ou moldando as relações sociais e econômicas. Mesmo estando à sombra dos Estados Nacionais, as cidades sempre conseguiram influir de maneira decisiva nos acontecimentos, promovendo mudanças profundas nas sociedades e se tornando o centro principal da vida humana.

Se a municipalidade é diminuta e dependente das demais redes estadual e federal, sobre as quais não possui quase nenhum poder de controle, as cidades também se apresentam como o cosmos perfeito para a interação do indivíduo com o poder público, tendo esse espaço autonomia suficiente para planejar e direcionar o seu futuro. Já o poder central apresenta-se como distante e excessivamente burocrático, o que dificulta a aproximação do cidadão.

Entender a cidade contemporânea como um ator essencial na dinâmica entre o indivíduo e o Estado se faz cada vez mais necessário, tendo em vista a evolução histórica desses espaços e suas estratégias atuais para promover o desenvolvimento das mais diversas formas. Como polo de excelência do fazer democrático e da cidadania a cidade pode ser problematizada em seus aspectos econômicos, culturais e sociais, pois é nela onde o indivíduo goza de seus direitos e procura mudar as estruturas de dominação erigidas para o conter.

Para o arquiteto e historiador Guilherme Wisnik (2009), a cidade é um lugar de conflitos, pois a harmonia total no espaço público é uma ideia utópica. Sendo o espaço urbano o local propício para as novas disputas e táticas de resistência na era da informação.

O choque direto entre cidadãos e o Estado é classicamente representado pelas lutas nas ruas da cidade, a transformação de Paris realizada pelo arquiteto Georges-Eugène Haussmann no século XIX possuía claros fins estratégicos em limitar o sucesso de levantes populares.

A haussmanização (...) é uma resposta: ela se enraíza nas pressões múltiplas que agitam a cidade no início do século, pressão demográfica e pressão econômica que impulsionam o jogo dos valores urbanos, o preço do solo ou dos imóveis. A doença e o medo social, a cólera e a revolta não são senão a parte mais visível de uma cidade que crepitava por todos os lados. (RONCAYOLO, La Production, p.74 apud PESAVENTO, 1999, p. 89)

Para Pesavento (1999), a transformação da capital francesa possui ecos das cidades barrocas, como Roma do século XVI, sendo que ideias parecidas já tinham sido adotadas por Luís XVI no século XVIII. O modelo parisiense foi imitado e reinventado em diversas partes do mundo, adaptando-se as necessidades dos governantes locais.

Há muito tempo as cidades já possuem uma ligação direta baseada na influência, a Paris de Napoleão III representava um modelo civilizatório a ser seguido e as demais metrópoles estavam atentas tanto as questões sobre segurança e higiene como o embelezamento artificial do espaço, influenciado pelo Darwinismo social9, um sistema de pensamento que subverteu as ideias de Charles Darwin procurando justificar o controle de indivíduos por outros.

Como exemplo do intercâmbio de ideias e da influência da Paris de Hausmann sobre outras cidades pode-se destacar o Rio de Janeiro do início de século XX. O engenheiro Pereira Passos foi o prefeito da cidade entre 1902 e 1906, altura em que realizou mudanças profundas no Rio, deixando um legado ambíguo para a cidade.

A idéia de civilização presente no ideário de Pereira Passos era atinente a uma série de valores desenvolvidos pela sociedade européia ao longo da modernidade. Consistia fundamentalmente na manutenção de uma civilidade urbana burguesa – na qual a idéia de individualidade e de uso regulamentado do espaço público pelos agentes privados da cidade jogavam um papel fundamental; no fomento à atividade estética e cultural, na reverência a um passado e no respeito à lei e à ordem pública estabelecidas pelo Estado através de uma elite política ilustrada. (AZEVEDO, 2003, p. 23)

As modificações ocorridas no Rio de Janeiro buscavam redefinir a cidade nos moldes das grandes metrópoles europeias, mais próximas do ideal de civilização vigente na época. A ideia de cidades como modelo de desenvolvimento a ser seguido é recorrente na história, porque algumas urbes privilegiadas que influenciam na arquitetura e na gestão pública de diversas regiões.

Na atualidade grandes metrópoles como Nova York, Londres e Tóquio são os exemplos máximos de cidades modernas e globalizadas, possuindo bolsas de valores de impacto internacional, grande número de transações financeiras, mão de obra altamente qualificada e a presença de multinacionais. Essas cidades se destacam não apenas pela sua infraestrutura para os negócios, mas também pelo seu caráter multicultural e por criarem políticas públicas diretamente voltadas para a realidade local da municipalidade.

A cidade de Nova York mantém há muitos anos o título de maior cidade do mundo, sua influência é vasta e se pode compará-la com a de Paris do século XIX. Para chegar a se tornar o modelo de referência de cidade global teve que através de sucessivas administrações traçar planos para driblar os desafios urbanos modernos, tendo alguns de seus líderes políticos se destacado nesse processo.

Rudolph Giuliani foi prefeito de Nova York de 1994 a 2001, nesse período procurou combater a grande violência presente na cidade desde a década de oitenta, empregando novas táticas de combate à violência e procurando revitalizar a economia local. O político republicano teve sucesso em sua empreitada, modelando a imagem da cidade como moderna e globalizada, servindo de referência para a gestão pública local. Nova York continuaria ditando tendências, em 2013 Michael Bloomberg iniciaria o primeiro de três mandatos como prefeito da cidade, dando continuidade às políticas de segurança pública de seu antecessor e aplicando medidas de saúde pública polêmicas, que incluíam restrições ao fumo e comidas transgênicas, a proibição do cigarro em estabelecimentos de alimentação foi amplamente imitada ao redor do mundo.

Em 2014 os democratas conseguiram eleger Bill de Blasio como prefeito, trazendo críticas ao modelo de segurança das gestões anteriores, prometendo aumentar os impostos dos mais ricos e combater a desigualdade, estando atento às demandas dos novos tempos e deixando Nova York à frente das grandes discussões políticas para as cidades.

O sucesso de Nova York sobre a alta criminalidade e mesmo sobre as sequelas dos atentados terroristas de 11 de setembro, advém da capacidade de seus gestores criar mecanismos de resposta aos problemas urbanos contemporâneos, além da força de vontade política para a manutenção do status de grande metrópole global ao qual Nova York goza. A criação de políticas próprias para os problemas comuns das grandes cidades se faz extremamente necessária numa realidade onde as NTIC deixaram o cidadão mais preparado para exigir da gestão pública o compromisso no combate as mazelas sociais. Estar atento as mudanças e ser capaz de se reinventar sem perder o lado positivo de sua tradição é o grande desafio das metrópoles mundiais que desejam um lugar no seleto grupo de cidades influentes sobre o planeta.

O caso de Nova York é exemplar, mas não único. Tóquio possui um sistema administrativo singular, atento a realidade da região metropolitana mais populosa do mundo. Lideranças municipais possuem certo grau de autonomia, principalmente no que se refere aos serviços públicos, já questões legislativas ficam a cargo do poder provincial. Londres por sua vez ocupa um lugar de destaque nas finanças internacionais, além de possuir uma grande e eficiente infraestrutura urbana, sobretudo em relação ao sistema de metrô e aviação civil. Além de ter ao seu dispor o eficiente sistema de saúde pública inglesa a cidade também é conhecida pelo perfil multicultural, tendo eleito em 2016 Sadiq Khan, um muçulmano de origem paquistanesa, para o cargo de prefeito.

As características citadinas ajudam a compor os perfis particulares de cada região, fornecendo uma “personalidade” as cidades, destacando-as das demais e dando a elas um status que em inúmeros casos supera o de diversas nações. Poder-se-ia dizer que Paris é mais famosa do que a França, seus boulevares são mais conhecidos que as províncias francesas, seus museus e monumentos históricos ajudam a convergir o forte movimento turístico tão característico da cidade. O perfil do cidadão parisiense é usado como simplificação para se entender todos os franceses, uma vitrine nacional tão influente que aglutina toda a atenção para si.

A construção da ideia do espaço urbano como um centro autônomo é antiga, o exemplo clássico é a cidade-Estado grega, um modelo administrativo da Grécia antiga em que cidades como Atenas, Esparta, Corinto, Tebas e etc., conviviam como autênticos microestados, cada qual com seu próprio governo e leis. As cidades da Liga Hanseática também se destacaram, sendo que no período medieval controlavam uma extensa rede comercial que só entraria em declínio com o início das Grandes Navegações. A partir do surgimento dos Estados nacionais as cidades passaram a ter um papel coadjuvante na política, com raras exceções como as cidades da península itálica e de algumas regiões do Sacro Império Romano-Germânico.

Se a realidade da Idade Moderna favoreceu os Estados centralizados, a globalização parece favorecer as dinâmicas flexíveis das cidades contemporâneas. Num mundo de fronteiras enfraquecidas a rigidez das nações se torna um empecilho para as forças do Mercado, as grandes multinacionais procuram a flexibilidade necessária para maximizar os lucros, e entendem as cidades como plataformas perfeitas para sua instalação, garantindo competitividade e uma área de negócios mais abrangente.

Diante do ressurgimento do protagonismo das cidades é natural que o número de estudos sobre elas tenha aumentado e se desenvolvido das últimas décadas, demonstrando que esse antigo ator social e político volta ao centro das discussões de poder, servindo muitas vezes como um termômetro da riqueza, desenvolvimento e cultura de um país.

O estudo mais abrangente sobre as regiões metropolitanas e a criação do termo megacidades são exemplos de um aumento na visibilidade do poder municipal. Porém foi o termo cidade global, originado do pensamento de Patrick Geddes, já no início do século XX, que se tornaria o mais afamado. A releitura da socióloga Saskia Sassen na década de 1990 se tornou influente no cenário internacional, definindo as características que tais cidades deveriam possuir para almejar o título de global.

“[...] um dos setores em crescimento de relevância na economia global, os serviços, passa a ser o ponto de concentração e competição nos termos de Sassen– firmas jurídicas, propaganda, relações públicas, imobiliárias, turismo e entretenimento, [...]. ” (SASSEN, 2001 apud MALTA, 2008, p. 02). No século XVIII Manchester era capaz de rivalizar em importância com Londres, devido ao seu parque industrial em desenvolvimento durante a Revolução Industrial. No século XXI as grandes indústrias mudaram-se para regiões mais afastadas dos grandes centros, sendo que cidades como a capital inglesa preferem atrair escritórios de grandes empresas e instituições financeiras. A nova dinâmica econômica faria vítimas como Detroit, nos Estados Unidos, que perderia sua favorável posição diante da flexibilidade de novos mercados como o japonês.

Em outros continentes, o protagonismo econômico das cidades é ainda mais evidente, especialmente na Ásia: Seul, Taipei, Hong-Kong, Cingapura, Bangcoc, Shangai, Hanói etc. Difundem-se as estatísticas econômicas das cidades e nelas se dá uma forte complementaridade entre o governo da cidade e o conjunto dos agentes econômicos, todos orientados para os mercados externos. As cidades asiáticas demonstraram que, no mundo da economia global, a velocidade da informação sobre os mercados internacionais e de adaptação aos mesmos, a flexibilidade das estruturas produtivas e comerciais e a capacidade de inserir-se em redes, determinam o sucesso ou o fracasso, muito mais do que as posições adquiridas no passado, o capital acumulado, as riquezas naturais ou a situação geográfica. O segredo reside na velocidade de inovação do conjunto das pequenas e médias empresas articuladas com as grandes em rede com o exterior e com poder político no interior. Este último assegura importantes funções de informação e promoção, e dá garantias de ordenamento e prestação de serviços do sistema cidade, visto que, logicamente, o tecido econômico e o tecido urbano se confundem. O poder político urbano, no caso das cidades asiáticas, desenvolveu, ao contrário da Europa, um modelo com baixos custos gerais, porém com altos custos sociais, o que parece não poder ser suportável por muito tempo, pois sua persistência introduz fatores de dissuasão para a atratividade da cidade e não qualifica suficientemente os recursos humanos. (CASTELLS, 1996, p. 02)

Castells mostra que o desenvolvimento das metrópoles asiáticas se deu de forma diferente daquela das cidades europeias, demonstrando a existência de uma competição tão acirrada quanto a existente entre os países e que existem diversas formas para alcançar um patamar mais elevado entre as cidades globais. O sucesso asiático também se deve ao alinhamento entre o governo central em determinadas regiões para impulsionar o desenvolvimento visando também o favorecimento do país. Dubai é um exemplo do que o alinhamento entre tais poderes é capaz de realizar, colocando a cidade em disputa direta com os mais influentes centros econômicos do mundo, atraindo a atenção internacional para todos os Emirados Árabes Unidos. A Arábia Saudita tem se esforçado para remodelar sua capital Riad, tentando atrair para si uma imagem mais moderna, em franca dissonância com a realidade do país, servindo como um produto de marketing, de maneira artificial e exageradamente grandiosa.

A “personalidade” de uma cidade não pode ser erigida de maneira artificial, ela é construída através da história pelos seus habitantes, fazendo da memória e da experiência do modo de vida urbano particular seus arcabouços principais. A Revolução dos Guarda-chuvas, como ficou conhecido uma série de protestos em Hong Kong no ano de 2014, foi uma tentativa por parte da população Honconguêsa de impedir reformas eleitorais por parte do governo em Pequim, que visavam atingir as eleições locais, diminuindo consideravelmente a liberdade da região. Hong Kong é uma cidade singular na China, sendo uma das duas únicas regiões administrativas especiais no país, exemplo da ideia de “um país, dois sistemas”, idealizado por Den Xiaoping, naquela altura secretário-geral do Partido Comunista Chinês. Hong Kong esteve sob o domínio imperial britânico desde a Guerra do Ópio, no século XIX, tendo sido devolvida à China em 1997, sob condições especiais. A autonomia política da região demonstra a existência de um enclave democrático dentro do território chinês, muito menos tolerante a interferência direta de Pequim, daí a reação revolucionária diante de propostas restritivas a liberdade.

A gerência de uma cidade não raramente entra em conflito com a posição do poder central, Castells (1996) observa que as cidades americanas tiveram um protagonismo na área econômica a partir da década de setenta, com o neoliberalismo sob o comando de Ronald Reagan, indo até a era de George W. Bush. Naquele contexto, programas de assistência social foram sendo extintos e a desindustrialização, já citada no caso de Detroit, acabou por afetar fortemente os empregos. O autor chama a atenção para a reação de certas cidades diante desse quadro, dando destaque para as cidades de Los Angeles, São Francisco, Seattle e a própria Detroit, além de estados como a Flórida e o Wisconsin. As reações dessas regiões diante de políticas neoliberais iam desde ações econômicas até soluções para os problemas urbanos como extrema violência e infraestrutura deficiente.

Cidades como Los Angeles, São Francisco, Detroit, Seattle etc. — assim como os estados da Flórida e Wisconsin — demonstraram, simultaneamente, mediante planificação estratégica e cooperação público-privada, o potencial negativo da aberrante política neoliberal e a capacidade de resposta das cidades. A grande manifestação convocada pelos prefeitos, que reuniu em Washington meio milhão de pessoas, anunciou, em 1992, o declínio de Bush e o início de novas políticas para as cidades: novas infra-estruturas, "enterprises zones", relançamento de programas sociais baseados na geração de emprego, na educação, na assistência sanitária pública, na proteção do meio ambiente urbano etc. (CASTELLS, 1996, p. 03)

Somando-se aos exemplos citados é importante incluir o estado da Califórnia como região que, diferente dos estados brasileiros, goza de grande dose de autonomia para gerir seu território. Também afetada pela diminuição do Estado na década de setenta, a Califórnia procurou se reinventar para driblar os problemas econômicos, atraindo grandes empresas de tecnologia, apostando fortemente em energia renovável e na educação, simbolizada pela Universidade do Estado da Califórnia, uma instituição pública que é recordista de Prêmios Nobel.

[...] a sensação de crise que provocou, em algumas cidades, uma reação conjunta do governo local e dos principais agentes econômicos na realização de uma transformação da infraestrutura urbana para facilitar a passagem do modelo industrial tradicional para o de centro terciário qualificado.

Este é o caso de Birmingham: mediante um Plano Estratégico que obteve um importante apoio da Comunidade Européia, Birmingham renovou o seu centro urbano e converteu-se na mais dinâmica cidade inglesa. Outras cidades, como Amsterdã ou Lyon, se adiantaram à crise e, mediante vastos planos estratégicos, promoveram as mudanças de infra-estrutura e imagem para se adequarem às novas demandas da economia global e da competitividade internacional. Em outros casos, a impotência do governo local impediu a conversão das propostas estratégicas em linhas de atuação, como o "Projetto Milano". (CASTELLS, 1996, p. 04)

Momentos de crise não são os únicos a inspirar cidades rumo a um planejamento de longo prazo, pois eventos internacionais são de grande impacto para o desenvolvimento urbano. Dois eventos principais podem ser destacados como os mais relevantes para a mudança estrutural de uma cidade ou mesmo para a tentativa de um país de criar em torno de si uma imagem positiva, são eles a Exposição Universal e os Jogos Olímpicos de Verão. Esse último grande impacto na imagem de suas anfitriãs, fortemente usado ao longo da história por diversos líderes e países em busca de repercussão internacional e símbolo de disputa durante a Guerra Fria.

As cidades, como verdadeiras protagonistas dos jogos olímpicos, recebem grande destaque, esse momento foi largamente aproveitado em algumas ocasiões, um exemplo paradigmático é Barcelona, nas Olimpíadas de Verão de 1992. O forte investimento em infra-estrutura combinado com o marketing certeiro, que focava na historicidade e cultura local, deixaram legados duradouros na região. A cidade espanhola ganhou projeção internacional, seus monumentos passaram a ser admirados mundialmente e alcançou uma posição de destaque capaz de rivalizar com a capital Madri.

Outros exemplos notáveis são, Los Angeles, 1984; Seul, 1988; Atlante, 1996; Sidney, 2000. Todas essas cidades se beneficiaram amplamente das olimpíadas, sendo o evento um catalizador para o desenvolvimento regional.

A cidade do Rio de Janeiro também procura obter saldos positivos do evento, apesar do ceticismo quanto o legado da infraestrutura, possivelmente a cidade conseguirá elevar o seu soft power, característica que faz da cidade a mais conhecida do Brasil pelo mundo e um chamariz turístico para o país.

Assim como na era de Pereira Passos, o Rio de Janeiro se prepara para mudanças estruturais importantes. É possível perceber semelhanças com o passado ao notar que as áreas mais destacadas para os jogos são já regiões nobres com alto índice de desenvolvimento, além disso mais uma vez a região portuária se destaca como o local central para a mudança estética da cidade.

Um evento internacional da magnitude dos jogos olímpicos possibilita a continuação do projeto de construção de uma identidade municipal que inclui uma ideia de multiculturalismo e de brande beleza local. Porém, também aumentam as chances para que o lado negativo da cidade seja exposto de modo global, como já acontece em torno da questão do surto de Zica, a alta taxa de criminalidade e os problemas relativos a estrutura urbana.

Os projetos municipais de desenvolvimento atualmente se defrontam com a questão em torno da revolução informacional, com novas demandas para a integração e uso das redes.

A cidade é constituída por redes, sejam elas intangíveis, como as redes sociais, econômicas ou políticas, ou físicas e materiais, como as redes viárias, ferroviárias, de água ou de luz. A sociedade contemporânea viu o nascimento de uma nova grande rede, que excedeu os limites urbanos e até mesmo as barreiras nacionais: a Internet. Observa-se na cidade informacional a digitalização de muitas dessas redes, transconfigurando-as de materiais para bits e bytes. Em seu conjunto compõem uma grande rede virtual, potencializando assim o fluxo do que vem sendo considerado o mais importante insumo desta era: a informação. (JAMBEIRO; SOUZA, 2005, p. 12)

Os autores apontam para a realidade contemporânea, onde diversas redes se entrecruzam para formar a cidade contemporânea, de fato o uso da internet já é tão disseminado que não é mais possível se referir ao espaço virtual como o oposto da realidade. Para Egler as redes virtuais se compõem ao lado, não do real, mas do vital, assegurando a existência das redes como uma realidade irreversível e inseparável da rede vital, complementando-se na construção do espaço urbano atual.

A metáfora da rede é muito oportuna, porque representa uma articulação de nós, conectando elementos singulares que se articulam para formar uma totalidade. Os fluxos de comunicação formam um tecido atemporal e aterritorial que define novas formas de aglomeração de objetos e pessoas. Por isso o espaço na sociedade informatizada deve ser percebido como uma sobreposição de redes vitais e virtuais que tem objetos compartilhados de ação para o desenvolvimento de objetivos econômicos, políticos e culturais. Podemos ver, então, que a rede virtual forma um novo tecido social que se sobrepõe à rede vital, transformando-o. Está claro que existem redes que se formam e funcionam dentro da Internet, mas apenas dentro delas; para nós interessa observar as diferentes origens que conformam as redes. O fato é que não é possível separar uma da outra e esse é um ponto indubitável para sustentar nossa posição no debate. (EGLER, 2009, p. 02)

A mesma autora ainda analisa a diversidade das redes, atentando para a conexão entre o público e o privado, formando iniciativas comuns para o sucesso do desenvolvimento regional, fazendo também do capital um investidor importante para a cidade. “[...]as novas tecnologias permitem uma mediação interativa entre Estado, capital e sociedade; e permite a realização de políticas urbanas, tanto para o exercício da dominação como da libertação. ” (EGLER, 2009, p.11)

Para Castells (1992) a cidade informacional é o espaço privilegiado onde os cidadãos passam a interagir com o poder político de modo diferenciado, graças as NTIC e os grandes avanços nos canais de comunicação entre o Estado e a população. Transformações de cunho social, político, econômico e cultural se tornam realidade frente a liquidez contemporânea, que afeta hierarquias e altera a burocracia.

O cerne da questão é refletir sobre a perda de centralidade vinculada à emergência das tecnologias que, ao criarem formas alternativas de ação, comunicação e mobilização social, promovem um reordenamento da forma de organização hierárquica, verticalizada e autoritária do Estado. Trata-se, pois, de conhecer o modo como se transformam as relações de interação entre Estado e sociedade pela mediação de tecnologias de comunicação e informação. (EGLER, 2009, p.15)

As mudanças sociais hoje têm como seu epicentro as cidades, essas se reconfiguram procurando adaptar-se com sucesso as exigências de um mundo globalizado e de uma Multidão conectada, capaz de expressar por diversos canais seus desejos e frustrações sobre a administração pública.

Segundo Lemos (2001) a cidade digital é um complemento a estrutura física urbana, garantindo redes que permitem o fluxo da informação e da realidade sociopolítica. Vital e Virtual se confluem garantindo espaços de ação para as pessoas, fazendo da cidade contemporânea o espaço central para as mudanças sociais.

4.2. Cidades: A cidade contemporânea como o território da Multidão

A cidade digital é mais um termo para se compreender as numerosas e profundas transformações que ocorrem no espaço urbano, diversas questões se apresentam diante de um cenário globalizado, que vê na tecnologia uma oportunidade para superar velhos problemas e encontrar soluções adequadas para uma adaptação inevitável acerca dos novos modos de gerenciamento do território.

Mobilidade urbana, segurança pública, conectividade e renovação da cidadania são alguns pontos que fazem da cidade um quadro menor das questões políticas que atualmente dominam a pauta de notícias. É nessa cidade digital onde a contestação as estruturas de poder se dá de modo mais enfático, também é nesse espaço onde o indivíduo se articula procurando exercer seus direitos e sua vontade. É importante então entender como a cidade digital afeta o cotidiano da população e qual o seu papel diante das transformações sociais em curso.

O presente tecnológico que modifica a cidade tem sido muito estudado, gerando diversas interpretações e nomes para o fenômeno, cidades digitais, cidade informacional, cidade-ciborgue, cibercidade, muitos são os termos para compreendê-las. Para Lemos esse novo tipo de cidade se baseia no entrecruzamento de tecnologias fundamentais.

[...] é a cidade da cibercultura, preenchida e complementada por novas redes telemáticas — e as tecnologias daí derivadas, internet fixa, wireless, celular, satélites etc. — que se somam às redes de transporte, de energia, de saneamento, de iluminação e de comunicação. Devemos compreender a cidade-ciborgue como um híbrido, composto de redes sociais, infra-estruturas físicas, redes imaginárias (Westwood e Williams 1997), constituindo um organismo complexo, cuja dinâmica está atrelada às novas tecnologias da cibercultura, próximo da metáfora do ciborgue (Lemos 1999). A cidade sempre foi um artifício e hoje essa artificialidade está presa nas garras do digital. (LEMOS, 2007, p. 130 – 131)

É impossível desassociar o espaço urbano da realidade digital, as transformações pelas quais as cidades estão passando são o reflexo de uma nova realidade, que se sedimenta de forma contrária as visões sociais e econômicas do passado. Se os mais diversos aspectos da vida humana sofrem influência das NTIC é natural que o espaço onde se dá a vivência humana também seja alterado.

As novas tecnologias de comunicação e informação têm transformado vários segmentos da sociedade contemporânea, fazendo com que diversos analistas tenham sugerido classificar a época como sociedade pós-industrial, sociedade pós-moderna, sociedade da informação ou informacional, cibercultura, sociedade em rede etc. Embora a compreensão da condição contemporânea não seja unânime, podemos dizer com alguma coerência que o que está em jogo são modificações espaço-temporais profundas que alteram, remodelam e inovam a dinâmica social. Trata-se do surgimento daquilo que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chamou de “modernidade líquida”. (LEMOS, 2007, p. 130)

As transformações se dão principalmente da mescla dos espaços vital e virtual, produzindo uma cidade atrelada a cibercultura e mostrando de maneira mais incisiva as modificações nas noções de tempo e espaço geradas pelas novas tecnologias. As transformações sociais em curso estão diretamente ligadas a essa nova realidade, “[...] questões como cidades virtuais, governo eletrônico, cibercidadania, exclusão e inclusão digital, ciberdemocracia, questões essas urgentes para a compreensão da cibercultura do século XXI.” (LEMOS, 2007, p.132)

É a realidade pós-industrial que forja a nova dinâmica urbana, a informação se torna um elemento privilegiado, bem como as novas formas de comunicação que possibilitam ao indivíduo acompanhar a liquidez contemporânea.

A conectividade é um tema recente no debate sobre o urbano, mas demais tópicos são tradicionais para o entendimento da dinâmica urbana, a segurança, por exemplo, é um tema comum as cidades, ela também tem o seu papel na modificação do espaço e agir do indivíduo.

A cidade tornou-se tão violenta que as pessoas preferem perder a liberdade, em troca da pretensa garantia de segurança. A escolha perversa é a de que preferimos não ser cidadãos livres, mas estarmos protegidos. Os territórios-fortaleza nas cidades transformam espaços públicos e privados em lugares de aprisionamento. Muitas iniciativas vigilantes criam o quadro geral de aprisionamento coletivo no qual os habitantes das cidades não só se acostumaram, como passaram a julgar racionalmente desejável, face ao sentimento de segurança proporcionado. Nas cidades violentamente protegidas e vigiadas, o próprio corpo tende a tornar-se também hermético e impermeável a outros corpos. Considerando que as cidades são feitas das relações que as constituem, torna-se coerente pensar na metáfora da cidade como um corpo que se esquarteja, buscando tornar-se imune a si mesmo. (CARRANO, 2002, p. 05 – 06)

A violência urbana é hoje um elemento fundamental para se compreender a dinâmica da cidade contemporânea. É na metrópole onde os mais variados tipos de indivíduos são compelidos a interagir, numa convergência de comportamentos, pensamentos políticos, ideologias e expressões culturais, que por um lado trazem diversidade a cidade e por outro afloram a desconfiança em relação ao “diferente”.

A hierarquização social inerente ao capitalismo se revela de modo brutal na cidade, os excluídos andam ao mesmo lado dos menos afortunados e dos mais abastados. Espaços se tornam símbolos do status de seus habitantes, áreas nobres e carentes vão sendo constituídas e geram uma parte importante da identidade urbana. O local onde se habita ou se trabalha passa então a se tornar um indício da posição social do indivíduo, em muitos casos é levado em consideração para se estabelecer a conduta moral de alguém.

Dentro de dinâmicas tão complexas a sociedade ergue aparatos físicos para segregar seus habitantes, desde as tentativas de afastar os mendigos até a implantação do estado de sítio permanente em comunidades carentes. A implantação de sistemas de segurança baseados no controle por câmeras é cada vez mais comum, chegando a seu ápice na cidade de Londres, que possui a alcunha de “mais vigiada” do planeta.

A mídia tem papel fundamental para a percepção cotidiana da violência, dedicando grande parte da programação sobre o assunto, muitas vezes de modo duvidoso, como o “programa do Datena” e similares de menor audiência. A violência se torna espetáculo como no 11 de setembro e nos frequentes assassinatos em massa da sociedade americana, onde políticos oportunistas passam a ter a oportunidade de ganhar um espaço no “show”, desqualificando os debates sobre os fatos e procurando capitalizar em votos sobre tragédias.

Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo. São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como realidade diária, dando corpo à palavra. O medo agora se estabeleceu, saturando nossas rotinas cotidianas; praticamente não precisa de outros estímulos exteriores, já que as ações que estimula, dia após dia, fornecem toda a motivação e toda a energia de que ele necessita para se reproduzir. Entre os mecanismos que buscam aproximar-se do modelo de sonhos do moto-perpétuo, a auto-reprodução do emaranhado do medo e das ações inspiradas por esse sentimento está perto de reclamar uma posição de destaque. (BAUMAN, 2007, p. 15)

É preciso então compreender as forças que aglutinam e as que segregam os habitantes dentro da metrópole. A cidade é o nicho da Multidão, como já dito é nela que se dá a convergência com o “outro”, possibilitando a união dos indivíduos em torno de diferentes causas, na cidade digital esses indivíduos têm maior acesso as NTIC, como a internet e a telefonia móvel, além de uma considerável infraestrutura urbana em relação as regiões mais afastadas dos centros. Essas possibilidades tecnológicas auxiliam na organização dos indivíduos, dando a Multidão os elementos necessários para cobrar do Estado suas reivindicações

Se as NTIC são o elemento aglutinador, o medo se apresenta como o elemento segregador. A violência estigmatiza o cidadão, influindo na hierarquização social e evidenciando as dicotomias do pensamento. Um exemplo dessa evidenciação pode ser vista na repercussão sobre o caso do estupro coletivo cometido a uma jovem de uma menina de 16 anos na cidade do Rio de Janeiro em 21 de maio de 2016. Nesse caso as opiniões divergentes sobre a conduta feminina e sua relação com o estupro dividiram a opinião pública, mostrando também que até mesmo os profissionais de segurança baseiam seu trabalho sobre pressupostos preconceituosos como ficou claro na conduta do delegado Alessandro Thiers, da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), que durante os depoimentos fez perguntas relativas a vida sexual da jovem, questões que não são pertinentes ao processo de investigação, sendo afastado do caso.

A violência também é apropriada pela Mídia, pelo Estado e por seguimentos do mercado que veem oportunidade de lucro em tal realidade. A guerra pela audiência televisiva, o uso excessivo da violência policial e o segmentado de vendas de artigos relativos à segurança pessoal ganham terreno fértil em tal realidade.

Tal como o dinheiro vivo pronto para qualquer tipo de investimento, o capital do medo pode ser usado para se obter qualquer espécie de lucro, comercial ou político. E é. Isso acontece também com a segurança pessoal que se tornou um grande, talvez o maior, ponto de venda em toda espécie de estratégia de marketing. O lema "lei e ordem", cada vez mais reduzido à promessa de segurança pessoal (mais exatamente corporal), se tornou uma grande, talvez a maior, bandeira nos manifestos políticos e nas campanhas eleitorais, enquanto a exibição de ameaças à segurança pessoal se tornou um grande, talvez o maior, trunfo na guerra de audiência dos meios de comunicação de massa, reabastecendo constantemente o capital do medo e ampliando ainda mais o sucesso tanto de seu marketing quanto de seu uso político. (BAUMAN, 2007, p. 18 – 19)

Diante de tais fatos fica claro que o espaço urbano é o terreno onde os setores populares vivem o dilema acerca da aproximação do “outro”. Se o “outro” representa uma possível ameaça de violência ou choque de visões, ele também pode representar a oportunidade a fraternidade e a necessária interação entre os indivíduos.

[...]os sujeitos sociais se articulam a atores que adquirem visibilidade nas conjunturas políticas. Os sujeitos sociais, porém, correspondem a longos e amplos processos de estruturação das relações societárias. Existem laços vividos entre sujeitos e atores sociais e políticos, construídos por experiências compartilhadas que não se esgotam nos atos imediatos. Daí a resistência demonstrada por movimentos que possuem raízes profundas na experiência social e na memória de um povo. (RIBEIRO, 2012, p. 203)

A interação surge então como o elemento principal na constituição da Multidão na cidade contemporânea, sendo perseguida pelos atores sociais mesmo em meio aos desafios cotidianos do território. O desejo de mudanças reais e profundas acirram as coalizações urbanas, pressionando o poder público e impactando a o espaço público, respostas naturais para as demandas sociais da atualidade, que encontra no engajamento social sua expressão mais emblemática.

A ação gerida e administrada e, portanto, articulada à reprodução da sociedade de consumo (pós-industrial, de massa) e a ação espontânea ou fluidamente organizada de reivindicação e protesto constituem dois grandes cenários traçados por análises dirigidas à compreensão dos desafios representados pela grande cidade, pela metrópole moderna. A partir destes dois veios, podemos reconhecer a elaboração de expectativas, pelo pensamento crítico, em direção à revitalização da esfera pública, à ampliação da democracia, ao resgate da cidadania ou, em sentido inverso, na declaração de um crescente temor de que o futuro se apresente na forma de um mergulho irreversível no cotidiano alienado ou, na barbárie [...] (RIBEIRO, 2012, p. 138)

Para que a cidade contemporânea possa proporcionar os mecanismos necessários para a possibilidade de mudanças sociais é preciso que ela esteja inserida na nova realidade tecnológica do presente. Nesse sentido questões como a inclusão digital se tornam extremamente importantes, pois possibilitam a ação da Multidão dentro de seu território por excelência, a cidade digital.

4.3. A escola contemporânea: novos atores e ferramentas para a inclusão digital

Repensar a educação na Era da informação é compreender a utilização de mecanismos para a inclusão digital. A nova cultura digital influencia a educação, alterando as interações entre os indivíduos e transformando a maneira de formar um cidadão, sendo assim é preciso ter como foco os fatos, atores e processos presentes no espaço escolar. O Estado e o mercado aparecem como modeladores da escola, alterando sua estrutura de ensino sempre que novas dinâmicas econômicas e sociais se impõem, ensejando uma atualização da educação para fins econômicos. Docentes e Discentes são atores sociais protagonistas no espaço escolar, muitas vezes rompendo com as visões excessivamente economicistas acerca da educação e criando ou utilizando ferramentas para inserir em seu ambiente as inovações tecnológicas que remodelam o mundo.

No tempo presente a informação precisa ser tratada sob dois aspectos, primeiro como um direito, estando inserido na nova leva de direitos humanos que leva em consideração o capital informacional para a vida do ser humano. Em segundo lugar ela deve ser entendida como um bem, político, econômico, social e cultural, pois se insere de forma indiscutível em todos as dinâmicas sociais da atualidade.

Cabe então problematizar a informação no contexto das relações de poder existentes, através das iniciativas públicas de inclusão digital, do papel da educação e do Estado em tal inclusão e da existência de parcelas da população como os nativos digitais, atores sociais que possuem a vantagem de estar inseridos na cultura digital desde o seu nascimento.

[...]capital informacional, que é, como o científico, uma espécie de capital simbólico constituído por uma gama diferenciada de recursos associados a informação distribuídos de modo desigual entre os indivíduos e suas classes sociais, as instituições e organizações públicas e privadas, conforme o espectro social das relações de poder. A posse maior ou menor do conjunto de seus recursos, no confronto entre dominantes e dominados, relaciona-se diretamente ao modo de luta pela conservação ou transformação das relações de poder. (WILKE, 2012, p. 85)

Percebendo a informação como um bem, é natural que essa se torne um elemento em disputa na sociedade, num mundo onde a competição entre os indivíduos é estimulada, ela pode significar alguma espécie de vantagem sobre o “adversário”, desde as discussões políticas, até o mundo do trabalho. Nesse sentido os nativos digitais aparecem como sujeitos privilegiados dentro das novas demandas da sociedade e do mercado, estando em contato direto com as novas tecnologias desde crianças, sabendo procurar, modificar e compartilhar a informação dentro do ambiente digital, com o qual possuem grande familiaridade.

Para Gasser e Palfrey (2011) os nativos digitais nasceram depois da década de 1980, no período de expansão da tecnologia online, caracterizando-se pela habilidade em utilizar tais tecnologias. Para os autores o mundo será modificado para atender ao novo modo de vida dessas gerações, todos os aspectos da vivência humana estão sendo afetados, a interação entre os indivíduos, o sexo, a morte, etc.

[...]estes garotos são diferentes. Eles estudam, trabalham, escrevem e interagem um com o outro de maneiras diferentes das suas quando você era da idade deles. Eles leem blogs em vez de jornais. Provavelmente nem sabem como é um cartão de biblioteca, que dirá terem um. Eles obtém suas músicas online [...] provavelmente enviam uma mensagem instantânea em vez de pegarem o telefone para marcar um encontro. Conectam-se entre si através de uma cultura comum. Os principais aspectos de suas vidas – interações sociais, amizades, atividades cívicas – são mediadas pelas tecnologias digitais. E não conheceram nenhum modo de vida diferente. (GASSER; PALFREY, 2011, p. 12)

Os nativos digitais compõem uma parcela importante da Multidão, suas fontes informacionais rivalizam com a mídia tradicional, seus hábitos de consumo remodelam o mercado, sua noção de tempo e espaço modifica o mundo globalizado e suas estratégias de inserção nas decisões políticas abalam os alicerces do poder. São os atores que mais modificam a sociedade contemporânea, fazendo uso da informação como ferramenta para modificar a realidade, de modo intencional ou não intencional, o que só demonstra a importância do conhecimento sobre as NTIC no presente.

Gasser e Palfrey possuem uma leitura positiva da era digital, dando mais ênfase as possibilidades geradas pelas novas tecnologias do que os problemas gerados ou amplificados por tal realidade. Desse modo os autores se inserem numa corrente estadunidense que possui uma visão positiva das inovações tecnológicas, junto à Nicolas Negroponte, Henry Jenkins e Howard Rheingold. Em contraponto a autores europeus de visão mais pessimista como Paul Virílio, Jean Baudrillard e Umberto Eco.

Se a informação como um bem já é uma realidade para os nativos digitais, é preciso entender a informação como um direito na questão da inclusão digital. O Estado passa a ser visto como o provedor de tal inclusão, tendo em vista as questões relativas aos programas públicos de inclusão, da educação e da renovação estatal, em resposta aos anseios democráticos, como o governo eletrônico.

[...]A inclusão tecnológica ligada à sociedade de informações é vista como importante instrumento para a vida democrática porque, por exemplo, setores da sociedade civil podem “ver” os governos e controlar sua atuação e gastos, o que pode contribuir decisivamente para maior visibilidade do Estado e do governo e diminuição da corrupção. Ela também se faz presente nas metas voltadas para a formação para o trabalho, tema diretamente ligado à proposta de “erradicação da pobreza”, porque, como foi visto anteriormente, as mudanças no trabalho e na gestão das organizações têm demandado a formação do trabalhador condizente com a apropriação das TICs e com a sociedade de informações. (WILKE, 2012, p. 168)

Programas de inclusão digital elaborados pelo Estado geralmente estão a mercê das reviravoltas políticas que se abatem sobre governos, fragilizando muitas vezes o seu funcionamento, “Entretanto, [...] o Governo não é um bloco monolítico e abriga diferentes posicionamentos, inclusive os antagônicos. Na disputa pela formação da hegemonia as alianças [...] são realizadas para a manutenção e/ou aquisição de posições. ” (WILKE, 2012, p. 224 – 225). A autora dá como exemplos o uso dos terminais públicos do GESAC e o Programa Brasileiro de Inclusão Digital/PBID, fortemente abalado pelo Escândalo do Mensalão10 em 2005.

A educação, apesar de também ser muitas vezes refém de questões governamentais, já está num processo irrefreável de atualização tecnológica. A escola é uma reprodutora do pensamento dominante e das relações de poder, muitas vezes percebida como um dos elementos de perpetuação do status quo, seja por parte das elites econômicas ou do Estado. “[...] o Estado tem papel constitutivo na existência e na reprodução dos poderes de classes, o que demonstra sua participação nas relações de produção [...]” (WILKE, 2012, p. 148 – 149).

A partir da década de 1970 a escola brasileira se transforma em uma “escola de massa”, o espaço onde o capitalismo poderia preparar o trabalhador para as necessidades de uma sociedade industrial. A proletarização docente possibilitou a geração de mão-de-obra mais qualificada a partir de uma escola com salas de aula lotadas e baixa remuneração aos professores, o Estado interviu na educação para atender as demandas do mercado.

Atualmente os excluídos da Sociedade da informação possuem poucas chances diante de um mercado de trabalho cada vez mais exigente para com as novas tecnologias, forçando o Estado a criar mecanismos de inclusão, com o objetivo de aperfeiçoar mais uma vez a mão-de-obra e fazer do Brasil um país mais competitivo diante de nações mais integradas digitalmente.

[...]pesquisas têm demonstrado que a educação formal é diretamente proporcional ao uso da internet, sendo que as parcelas da população brasileira que menos se conectam são aquelas com menor escolaridade. Este fato, por si, questiona a idéia da rede como instância democratizadora da sociedade e como geradora de cidadania e igualdade. É preciso, portanto, desnaturalizar esta compreensão dos fatos para compreender o sentido da democracia que pode haver na rede e nas TICs. (WILKE, 2012, p. 131 – 132)

Mais do que gerar oportunidades para mudanças profundas, o Estado e o mercado estão interessados em questões pontuais para o desenvolvimento econômico. Porém a escola perpassa os objetivos desses atores sociais, tendo em seu interior indivíduos capazes de questionar os rumos da inclusão digital no espaço escolar, professores e alunos transcendem as posições para os quais são designados, criando soluções para uma inclusão abrangente e fundamentada na real apropriação da informação pelo indivíduo.

A escola é percebida pela sociedade como o lugar da tradição, ela então se insere num debate sociológico sobre tradição e modernidade, sendo uma instituição que tem como papel ensinar o conhecimento formal e modelar o homem para a vida em meio ao coletivo. Esse espaço tradicional não ficou fora das transformações que as novas tecnologias digitais causaram, entre os alunos existem aqueles que são “nativos digitais”, pessoas que já nasceram na Era da informação e dominam bem os aspectos básicos do digital, enquanto os “imigrantes digitais”, não possuem grande domínio das novas tecnologias. Do outro lado estão os professores que precisam se adaptar às novas exigências, entendendo o novo perfil de aluno em sua sala e as novas demandas de que ele necessita, repensando os métodos de ensino e reinventando a instituição escolar, a sala de aula hoje é mais complexa com esses dois grupos.

Uma das discussões mais presentes no âmbito escolar atual diz respeito às possibilidades de uso das tecnologias digitais nos processos de ensino e aprendizagem escolares. Apesar disso, a maioria das discussões faz aquilo que chamamos de “inversão do problema”, pois coloca o modelo de organização do conhecimento escolar como referência para a incorporação das tecnologias em seu interior. Conforme aponta Arruda (2009), a tecnologia é elemento da cultura e os jovens já se apropriaram de tal forma destas tecnologias, que construíram visões de mundo e de aprendizagem com estes artefatos culturais – visões estas que se distanciam da visão preconizada pela escola, na qual a construção do conhecimento escolar ainda se dá somente por bases tecnológicas anteriores, como o impresso, por exemplo. (ARRUDA, 2013, p. 02)

Na atualidade existe um novo perfil de aluno, que em muitos casos é um “nativo digital”, conectado às novas tecnologias que são referenciais de juventude e “modernidade”, sendo que o professor necessita criar estratégias capazes de despertar a atenção do discente no ambiente escolar, As tecnologias digitais mudaram a relação de tempo e espaço, alterando a percepção humana sobre o mundo e o docente deve estar atento a essas mudanças que afetam diretamente a sua análise sobre a realidade e que afetam a sua área de atuação de diversas formas.

Quaisquer ações que levem o docente a incorporar as tecnologias digitais na sala de aula com um olhar de um modelo escolar baseado na autoridade intelectual de poucos sujeitos estão comprometidas, pois o aluno contemporâneo tem aprendido desde a infância que todos podem ser produtores de informação e conhecimento (sem entrar no mérito conceitual de cada um) – o que falta a ele aprender é como lidar com a credibilidade daquilo que é produzido e como construir suas próprias trilhas de conhecimento, por meio de orientações daqueles que possuem maiores experiências e saberes a respeito dos conteúdos veiculados. (ARRUDA, 2013, p. 04)

Sendo mais específico é possível analisar, por exemplo, as questões discutidas tendo em mente o aprendizado da História. O ensino de história sempre se mostrou particularmente difícil, pois exige um certo nível de abstração do discente, já que muitas vezes terá que imaginar sociedades já extintas, ele também exige rigor científico, pois como uma ciência ela possui métodos para formular teorias, o estudante repele a maneira tradicional para se ensinar essa disciplina, com um livro didático cheio de nomes e datas, com explicações técnicas e modelos comparativos muitas vezes complexos demais para serem ensinados em tão pouco tempo de aula. A nova realidade cultural transformou as formas de aprendizagem, o espaço digital oferece inúmeras possibilidades que o ambiente escolar não é capaz de suprir, a dinâmica dos hiperlinks e a quantidade de materiais disponíveis são apenas alguns exemplos, essas mudanças afetam também o campo do historiador, pois a própria forma de se pensar a história sofre alterações.

A relação entre espaço e tempo é relevante aos historiadores, pois são as peças fundamentais para entender determinada época, essas noções já sofreram mudanças antes, as Grandes Navegações, entre os séculos XV e XVII, pareceram encolher o mundo e a medida em que novas terras eram exploradas desenvolveu-se um conhecimento mais refinado sobre a geografia, soma-se a isso invenções na área dos transportes e das telecomunicações entre o século XVIII com a primeira Revolução Industrial e o século XX que alteraram profundamente as relações humanas. As novas tecnologias digitais são mais um ingrediente nesse processo de longa duração, a percepção humana sobre o tempo foi definitivamente alterada, percebendo-se uma aceleração na percepção temporal. A temporalidade se torna flexível e complexa ao se pensar no ciberespaço, mesmo presa no trânsito uma pessoa pode estar interagindo das mais diversas formas nesse espaço virtual, ela não precisa nem mesmo ter acesso a internet para se relacionar, pois mesmo off-line ela pode receber mensagens, criando uma ciber-identidade que não está sujeita as mesmas limitações de tempo e espaço que seu corpo físico. Nessa realidade como então lidar com a questão da autoria diante desse cenário onde qualquer um pode escrever sobre fatos históricos sem a indispensável avaliação dos pares e também reproduzir conteúdo de outra pessoa sem lhe dar os devidos créditos, a questão da autoria se põe então como um desafio para o historiador. Gasser e Palfrey são excessivamente cautelosos quanto ao conteúdo autoral, procurando mostrar didaticamente que comportamentos comuns como baixar músicas e filmes é uma ação criminosa, relevando a importância de tais fenômenos para à democratização cultural.

Talvez a questão mais sensível do embate sociológico no campo histórico seja ligada a problemática das fontes, sempre um assunto complexo na área, as fontes tradicionais como livros, produções acadêmicos e documentos são as mais utilizadas pelos historiadores, outras como música, cinema e arte são ferramentas bastante utilizadas no meio acadêmico, mas com problemas de metodologia quando aplicadas em salas de aula. As novas mídias apresentam um novo modelo de fonte historiográfica e, portanto, possuem mais dificuldade para serem aceitas, nas universidades elas já são amplamente usadas, mas ainda possuem um espaço pequeno na bibliografia final dos trabalhos acadêmicos, no espaço escolar ela representa um imenso problema, pois os alunos não as interpretam corretamente, limitando-se a copiá-las sem nem mesmo checar sua autenticidade ou qualidade. O historiador se encontra, portanto num momento onde as rupturas acontecem com mais frequência e rapidez, sua adaptação a esse novo contexto cultural é uma necessidade para a renovação da instituição escolar que claramente está em uma grave crise, não conseguindo compreender a nova realidade e suas especificidades.

A nova realidade requer adaptação e as próprias tecnologias trazem ferramentas úteis para a atualização do ensino, os museus virtuais são ferramentas apropriadas para o docente trabalhar o conteúdo de suas disciplinas, esses espaços podem ser divididos pela ótica de Arruda (2013) que os distinguem em: museus digitais, que se limitam a oferecer na rede uma versão do seu espaço presencial e os cibermuseus, que são exclusivamente virtuais. O espaço museológico tradicional possui uma rigidez que muitas vezes afasta os jovens, uma nova visão, porém, está vindo à tona, as versões virtuais são capazes de atingir um público imenso, pessoas que não poderiam visitar o local tem acesso as obras pela internet. Apesar de diferente a visita virtual também é uma experiência válida, dotada de suas próprias singularidades ela pode ser o suficiente para uma análise visual ou mesmo inspirar um indivíduo, o papel do espaço museológico passa então a ser alterado, deixando de ser apenas um local de repositório e exibição para poucas pessoas, ele passa a se tornar uma ferramenta digital capaz de atingir um público amplo e variado, se bem trabalhado pode ser extremamente eficiente para as necessidades do professor.

Temos uma tendência em compreender que não existe tecnologia em um museu histórico. É claro que este conceito de tecnologia é limitado. A tecnologia não se refere apenas a computadores ou equipamentos eletrônicos. A tecnologia está para a sociedade assim como o homem está para a sociedade. Esta relação se torna possível através da compreensão de que o homem se constitui como um ser social a partir das tecnologias. (ARRUDA, 2013, P. 126)

Entre os sites que podem ser trabalhados está o Museu da Pessoa, que na classificação de Arruda se enquadra na categoria de cibermuseu. Esse espaço oferece a oportunidade de uma pessoa contar a sua história ou de um outro indivíduo, tendo a disposição ferramentas que permitem armazenar imagens e músicas, dinamizando o processo e o tornando mais atrativo. A internet exige de seus usuários uma indicação, diferente de mídias como a TV que apenas exibe o seu material, portanto o internauta não pode ter uma postura passiva ao navegar na rede. Essa dinâmica de funcionamento teve impacto sobre o homem, um museu que apenas forneça de maneira rígida o seu acervo para visualização não será atrativo para os estudantes, é preciso interatividade com o visitante e os cibermuseus oferecem isso. O Museu da Pessoa em particular é capaz de mostrar ao aluno que ele é um ator histórico e que sua história tem importância, sua mensagem é poderosa e moderna, indo de encontro com o novo pensamento da ciência histórica, em voga desde que a cultura passou a estar no centro das reflexões dos historiadores.

Nesse contexto, a oficina “Cibermusealizando: trabalhando a ditadura-civil militar brasileira por meio do Museu da Pessoa” foi aplicada em Maio de 2014 no CIEP José Lins do Rego, inserida no contexto dos 50 anos do Golpe Militar no Brasil. Procurando através dessa dinâmica gerar uma reflexão sobre um tema histórico de grande importância dispondo de um cibermuseu que oferece novas estratégias de ensino, potencializando os conhecimentos dos discentes através de uma ferramenta virtual com grandes possibilidades pedagógicas.

As oficinas pedagógicas que utilizam ferramentas digitais são mais uma iniciativa de atualizar o processo educacional e proporcionar aos professores novos modelos de ação em sala de aula. A educação brasileira no século XXI não precisa se limitar em produzir futuros trabalhadores com o mínimo de conhecimento tecnológico para realizar suas funções, ela pode ser um espaço para formar um cidadão com pleno conhecimento das tecnologias digitais, capaz de usá-las para seu crescimento pessoal e profissional.

5. Considerações Finais

As transformações históricas são permanentes no mundo do ser político, em cada passagem de tempo eventos de curta ou longa duração são capazes de alterar de maneira drástica o destino humano, o advento da escrita e o aprendizado da agricultura foram fundamentais para o cessar do nomadismo, a imprensa de Gutemberg fora capaz de abalar a “fortaleza católica” na Idade Média, a Revolução industrial modificou as relações de trabalho de maneira tão drástica que todas as potências europeias iniciaram uma corrida para alcançar os ingleses. O iluminismo e a Revolução Francesa sedimentaram por fim as bases da civilização ocidental, afirmando definitivamente a importância do laicismo, mostrando a força do nacionalismo e proporcionando a viabilidade da ideia de cidadão. Comparáveis a esses grandes acontecimentos está a Revolução da informação, impondo uma visão de mundo cada vez mais distinta do modelo industrial, transformando os mais diversos momentos da vida humana e reconfigurando toda a civilização.

Este trabalho analisou a influência das tecnologias digitais e da cibercultura sobre atores e questões de grande importância para a dinâmica social. Num primeiro momento as relações entre o Estado e a sociedade foram problematizadas, tendo em mente os conceitos de democracia e cidadania, devido as demandas da Era da informação ambas passam por um momento de transformação singular. Como características fundamentais para o imaginário coletivo ocidental ambas estão sempre em constante mudança, porém é possível detectar que tais transformações têm acontecido mais rapidamente e com a participação de um número bem maior de indivíduos do que o usual ao longo da história.

Mesmo em um momento de crise a democracia ainda é reinventada graças aos mecanismos tecnológicos que possibilitam importantes mudanças nas relações de poder, iniciativas como o governo eletrônico estão na esteira de tais novidades, representando uma renovação democrática, tão importante em tempos de crescente descrédito para com esse sistema político.

A cidadania, por sua vez, representa a busca por direitos numa realidade baseada na exclusão, a realidade brasileira serviu como exemplo, demonstrando o embate entre as minorias e os membros sociais privilegiadas. Também foi possível tecer uma ligação fundamental entre a cidadania e os direitos humanos, pois num mundo separado por frágeis fronteiras as leis nacionais não são suficientes para atingir as expectativas de sociedades inseridas no processo globalizador, os direitos humanos então se apresentam como uma resposta segura aos anseios sociais globais.

A Multidão foi identificada nas parcelas urbanas com acesso as tecnologias digitais, inseridas na sociedade da informação como atores de crescente poder político, a sua estrutura foi tratada como uma construção maleável de identidades díspares e com objetivos comuns, sem as formas usuais do passado, tais como a liderança, desconstruída no discurso historiográfico dos Annales. Analisou-se os mecanismos de controle que afetam a ação da Multidão conectada, tanto o Estado quanto o Mercado se inserem em tal quadro, já que as ações políticas invariavelmente estão atreladas aos objetivos econômicos. Através do pensamento de Naomi Klein foi possível traçar paralelos entre a economia neoliberal e o tratamento do Estado para com a Multidão, a economia pós-industrial afeta também a cultura, ampliando a força do capital através de novas estratégias como o marketing, produzindo pensamentos que ligam o exercício da cidadania ao consumo, esvaziando a luta por direitos e levando a um eterno desejo por consumir, para assim se sentir parte da sociedade.

O Mercado passa a ser visto como o principal obstáculo para o exercício pleno da liberdade, grandes empresas coletam e fazem uso de informações pessoais numa espécie de “dispositivo orwelliano” de invasão da privacidade. Séculos de embates levaram a sociedade a desconfiar permanentemente da postura do Estado, sempre questionando (validamente) suas iniciativas de cunho mais invasivo O indivíduo não apresenta a mesma postura inquisidora para com o Mercado, porém também é capaz de cobrar ações relevantes para o tema, como se tem visto na Europa atualmente.

A mídia foi elevada à categoria de dispositivo difusor do pensamento dominante (junto a escola), servindo aos interesses dos grupos dominantes. Os grandes conglomerados midiáticos estadunidenses concentram os meios de informação de seu país, no Brasil a realidade é semelhante, porém guarda algumas especificidades da região em sua estruturação. A grande mídia brasileira é dominada por algumas famílias, num modelo de concentração forjado após 1964, sendo um “legado” da Ditadura militar.

Nesse contexto, diversos políticos brasileiros procuram obter controle e influência sobre os meios de produção informacionais, sendo a família Magalhães o exemplo mais expressivo. A estruturação da grande mídia familiar brasileira gera descrédito por parte da população, conscientes do acúmulo de poder em poucas mãos e dos interesses particulares em jogo. Soma-se a essas questões o advento das NTIC, que contribuem fortemente para a crise da tradicional indústria da informação.

A democratização da produção informacional tem sido um duro golpe para a mídia tradicional, diante de tal quadro novas estratégias são criadas para fazer frente ao cada vez maior conteúdo digital à disposição, a “fidelização das massas” é então vista como um processo que busca estancar a perda de público, através da manipulação de notícias, como por exemplo no caso envolvendo o historiador Leonardo Sakamoto e as intermitentes manchetes de tom duvidoso de grandes meios de comunicação acerca da política nacional.

Dentro de amplos contextos de mudança, a cidade também aparece como mais um importante elemento de reinvenção, procurando adaptar-se ao presente tecnológico e tendo cada vez maior poder geopolítico. Através da percepção de uma “identidade” urbana é possível entender as modificações históricas que remodelaram o território, compreendendo os objetivos perseguidos em cada momento. A cidade digital então se apresenta como o modelo ideal junto a cidade-global, expressões máximas do que hoje se considera a modernidade urbana.

A cidade digital pôde ser considera o território por excelência da Multidão e o tema da violência urbana foi utilizado para entender como funcionam as relações entre os principais atores estudados na municipalidade. Aqui mais uma vez a mídia se insere como elemento de grande importância para propagar ideias, alimentando a banalização da violência, fazendo uso da lógica do espetáculo.

Por fim, o segundo elemento reprodutor do pensamento dominante é analisado. A escola contemporânea é entendida como um microcosmo da sociedade, diferentes tipos sociais se encontram nela, dos excluídos aos nativos digitais. Esses últimos são constituintes da Multidão, usando e modificando a informação para os mais diversos fins, levando a tecnologia para a sala de aula, reinventando também esse espaço. Ao Estado coube o dever de levar a inclusão digital aos cidadãos, preparando mão-de-obra capaz de compreender as exigências do Mercado no século XXI, em muitos casos considerando a informação apenas como um bem e não como um direito. As mudanças no espaço escolar também geram iniciativas dos principais protagonistas do seu meio, se os alunos levam a tecnologia para a sala cabe ao professor usar dos mecanismos disponíveis para tornar o ensino mais “moderno”, o uso dos museus virtuais tem sido eficaz nesse sentido, sendo que oficinas com esse intuito têm sido aplicadas, levando em conta as especificidades do espaço museológico.

Se as novas tecnologias afetam tantos elementos importantes na dinâmica social é possível afirmar que elas estão diretamente ligadas as mudanças sociais do presente. Cada aspecto da vida humana tem sido afetado pelas NTIC, as interações entre os indivíduos, a amizade, o sexo e até a morte sofrem transformações. Ao lado da cidade comum coexiste a cidade digital, para competir com a mídia tradicional surgem as novas mídias, modelos políticos se atualizam para sobreviver a tais mudanças. As transformações sociais são as engrenagens da história, elas sempre se deram de muitas maneiras, sejam através de revoluções ou processos políticos pacíficos elas continuarão a acontecer, porém, na contemporaneidade novos elementos mudam essa dinâmica, tornando as novas tecnologias indissociáveis dos processos de mudanças históricas.

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1 Comunicação mediada por computador

2 Lei nº 12.527/2011

3 Relatório Post-industrial Journalism: adapting to the present elaborado pelo Centro de Jornalismo Digital da Universidade de Colúmbia e disponível no endereço http://towcenter.org/wp-content/uploads/2012/11/TOWCenter-Post_Industrial_Journalism.pdf.

4 Dentro do presidencialismo de coalizão que marca a política brasileira, o PT é o partido que coordena a coalizão de partidos no Executivo. Este tipo de presidencialismo funciona a partir da formação de uma base do governo, formada por diferentes partidos, que ao vencer as eleições, passa a controlar ministérios, cargos e verbas em troca do apoio no Legislativo. Este tipo de presidencialismo funciona bem quando o Executivo possui a maioria no Legislativo e consegue definir as pautas de votação.

5 O grupo de pesquisa, criado pelos professores da USP Marcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado, analisou o desempenho de 8.290 reportagens, publicadas por 117 jornais, revistas, sites e blogs noticiosos. As estatísticas são divulgadas na página "Monitor do debate político no meio digital".

6 Processo instaurado com base em denúncia de crime de responsabilidade contra alta autoridade do poder executivo (p.ex., presidente da República, governadores, prefeitos) ou do poder judiciário (p.ex., ministros do S.T.F.), cuja sentença é da alçada do poder legislativo. No caso, o processo deflagrado contra Dilma Roussef em 2016.

7 Em tempo, está em curso a retirada das verbas publicitárias do governo interino federal destinada a vários destes veículos independentes da grande mídia familiar brasileira, que, por sua vez, é o destino das vultosas verbas publicitárias federais. Também já é de conhecimento público o desejo de extinguir a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,aliados-de-temer-pedem-extincao-da-ebc,10000056652

8 Projeto de Lei 867, de 2015, de autoria do Deputado Izalci Lucas Ferreira, do PSDB/DF. Procura proibir uma suposta doutrinação política e ideológica de esquerda por parte dos professores sobre os discentes. Sítio do programa: http://www.escolasempartido.org/

9 Um conjunto de teorias surgidas na segunda metade do século XIX que procuravam explicar a evolução da sociedade humana através da teoria da evolução de Charles Darwin, baseadas na tese da sobrevivência do mais adaptado. Serviu de embasamento para ideias como eugenia e racismo e para sistemas como o imperialismo e o fascismo. Tentou também explicar a pobreza durante o período pós-Revolução Industrial, para os darwinistas sociais aqueles que permaneceram ou ficaram pobres seriam os menos aptos na linha evolutiva.

10 Esquema de corrupção que consistia na compra de votos de parlamentares do Congresso Nacional durante o primeiro mandato do governo de Luís Inácio Lula da Silva – PT, que se tornou público após matéria da revista Veja e da entrevista do então deputado Roberto Jefferson – PTB ao jornal Folha de São Paulo em 2005.


Publicado por: Diego da Cunha Alves

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