Democracia Representativa e Democracia Participativa no Pensamento Político de Locke e Rousseau
índice
- 1. RESUMO
- 2. Capítulo 1 – Introdução:
- 2.1 Metodologia:
- 2.2 Definição das diferentes modalidades de democracia – direta, representativa e participativa:
- 3. Capítulo 2 - Locke e a democracia representativa:
- 3.1 A refutação da autoridade paterna como fundamento do poder político:
- 3.2 A crítica ao absolutismo monárquico:
- 3.3 O direito de propriedade:
- 3.4 A formação da comunidade política:
- 3.5 A democracia representativa como forma de organização do poder Legislativo e a liberdade negativa:
- 3.6 A legitimidade do Governo e o funcionamento dos poderes Legislativo, Executivo e Federativo:
- 3.7 A dissolução do Governo e o direito de resistência:
- 3.8 A separação entre o Governo Civil e a Igreja:
- 4. Capítulo 3 – Rousseau e a democracia participativa:
- 4.1 Reconstituição da história hipotética da humanidade:
- 4.2 O “Contrato Social”:
- 4.2.1 A refutação da autoridade paterna e a crítica ao absolutismo monárquico:
- 4.2.2 O pacto social e a formação do estado civil:
- 4.3 A vontade geral e sua representação:
- 4.4 O Soberano, a lei, o Legislador e a supremacia do poder Legislativo:
- 4.5 O poder Executivo e o Governo:
- 4.6 A democracia participativa e a liberdade positiva:
- 5. Capítulo 4 - Participação x Representação – Comparação entre os pensamentos políticos de Locke e Rousseau:
- 5.1 A contestação da autoridade paterna como origem da legitimidade para o exercício do poder político:
- 5.2 O consentimento como a base da legitimidade do exercício do poder político e a exigência de unanimidade para celebração do pacto social :
- 5.3 Pontos de vista em relação ao poder absoluto e à monarquia absoluta:
- 5.4 A questão do direito de propriedade:
- 5.5 A dissolução do Governo, a separação dos poderes, a supremacia do poder Legislativo e o direito de resistência:
- 5.6 Diferentes definições sobre o Governo:
- 5.7 A forma de exercício do poder Legislativo, as democracias representativa e participativa e a representação e participação políticas:
- 5.8 A submissão à maioria e à vontade geral e suas relações com a discordância individual:
- 5.9 Locke e a liberdade negativa e Rousseau e a liberdade positiva:
- 6. Capítulo 5 – As democracias participativa e representativa e a teoria política contemporânea – Sartori, Pateman e Bobbio:
- 6.1 A diferença conceitual, descritiva, entre as democracias direta e representativa:
- 6.2 A diferença valorativa entre as democracias direta e representativa:
- 6.3 A teoria política da democracia representativa - a teoria competitiva da democracia:
- 6.4 A teoria política da democracia participativa:
- 6.5 A crítica à teoria competitiva da democracia:
- 6.6 A crítica à teoria participativa da democracia:
- 6.7 A defesa da representação política:
- 6.8 A defesa da participação política:
- 6.9 O presente e o futuro da democracia:
- 6.10 Convergências e Divergências entre os três autores
- 7. Considerações finais:
- 8. Referências bibliográficas:
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1. RESUMO
Representação e participação políticas são temas centrais na teoria e reflexão política moderna e contemporânea. Segundo Sartori (1994:146) o desinteresse político da população pelos pleitos é um fato concreto e, tão importante quanto isto, é a forma pela qual a teoria política sobre a democracia reage a este fato. Desta maneira, uma reflexão essencialmente teórica sobre a teoria política da democracia, sem a pretensão de tentar explicar a crise de representação política pela qual atravessam algumas das principais democracias ocidentais, constitui um objeto de estudo relevante, que pode, inclusive, fornecer subsídios a pesquisadores que pretendam tentar explicar a apatia eleitoral nos principais sistemas democráticos do mundo, principalmente os dos Estados Unidos e os da Europa Ocidental, com base na teoria política sobre a democracia, tanto moderna quanto contemporânea.
No presente trabalho pretende-se realizar a aludida reflexão, recorrendo, na teoria política moderna, àqueles autores que lançaram as bases do pensamento político que fundamentou os referenciais teóricos tanto da democracia representativa quanto da participativa, John Locke e Jean Jacques Rousseau. Adicional e subsidiariamente, com vistas a abordar a discussão acerca da representação e da participação políticas na atualidade, também são examinados os pensamentos políticos de três estudiosos contemporâneos das democracias representativa e participativa, sendo dois deles adeptos da primeira, Giovanni Sartori (1994), e Norberto Bobbio (1987 e 2000) e uma defensora da segunda, Carole Pateman (1992).
ABSTRACT
Political representation and participation are central subjects in modern and contemporary political reflection and theory. Sartori (1994:146) asserts that population’s indifference for elections is a concrete fact, and, as important as that, is the manner by which political theory about democracy reacts to this fact. So, a essentially theoretical reflection about democracy’s political theory, without the pretension of explaining the crisis of political representation of the most important democracies, constitutes a relevant object of investigation, which can, inclusively, supply subsidies for researchers who want to try to explain the electoral apathy of citizens in contemporary democracies, mainly the United States and Western Europe ones, based on modern and contemporary political theory about democracy.
The present work has the aim of doing the mentioned theoretical reflection about the political theory about democracy, analyzing the authors who established the basis of the political thought about representative and participatory democracies, John Locke and Jean Jacques Rousseau. Collaterally, with the aim of examining these question of representative and participatory democracies in contemporary time, it will be also analysed the political thought of three relevant contemporary researchers of the democratic question, who are Giovanni Sartori (1994), Norberto Bobbio (1987 and 2000) and Carole Pateman (1992). Sartori and Bobbio are followers of the representative democracy and Pateman defends the participatory democracy.
2. Capítulo 1 – Introdução:
John Locke e Jean Jacques Rousseau são dois dos pensadores mais representativos da Teoria Política Moderna. Locke destaca-se por defender as liberdades negativas e a representação político-parlamentar, a democracia representativa, enquanto Rousseau se notabiliza por ser contrário à representação política e propor a democracia participativa, direta. Ambos fazem parte da vertente contratualista da Teoria Política Moderna, pela qual a passagem do estado de natureza para o estado civil ocorre mediante a celebração de um pacto social entre os integrantes da sociedade, com a finalidade de solucionar conflitos e minimizar os inconvenientes e a insegurança presentes no estado de natureza.
Locke, caracterizando o poder Legislativo, define a democracia representativa vinculada ao poder dos representantes eleitos pelo povo:
“Se o legislativo ou qualquer parte dele compõe-se de representantes escolhidos pelo povo para esse período, os quais voltam depois para o estado ordinário de súditos e só podendo tomar parte no legislativo mediante nova escolha, este poder de escolher também será exercido pelo povo...” (Locke, 1973:101).
Rousseau, por outro lado, defende a democracia participativa, direta, afirmando que “Na verdade, as leis são as condições da associação civil. O povo submetido às leis deve ser o seu autor, só aos que se associam cabe reger as condições da sociedade” (Rousseau, 1995:99). Entretanto, em alguns trechos de sua obra, ele considera a democracia inviável, quando, por exemplo, afirma que “Se existisse um povo de Deuses, ele se governaria democraticamente. Um Governo tão perfeito não convém aos homens”(Ibidem:125).
O estudo comparativo das principais categorias do pensamento político de Locke e Rousseau é interessante, na medida em que, conforme os trechos transcritos, cada um enfatiza um aspecto distinto do processo político: enquanto o inglês ressalta a representação, o suíço destaca a participação. Ou, conforme escreve Bobbio “Há, apesar de tudo, entre Locke e Rousseau, uma diferença essencial na maneira de conceber o poder legislativo: para Locke, este deve ser exercido por representantes, enquanto para Rousseau deve ser assumido diretamente pelos cidadãos” (Bobbio, 1998:322).
Locke é considerado um dos principais defensores da primeira Revolução Burguesa ocorrida na Europa, a “Revolução Gloriosa” (Gough, in Locke, 1994:9), pela qual a burguesia britânica assumiu o poder de Estado na Inglaterra estabelecendo o primado do Legislativo sobre a Coroa Britânica, instituindo, assim, a monarquia constitucional, limitada. De acordo com Jobson (1985), este episódio da submissão da Coroa ao Parlamento ocorreu em 1688 (Jobson, 1985:88). O referido episódio marcou o epílogo da monarquia absolutista na Inglaterra, após a guerra civil de 1642-1649 (Ibidem:74), cuja conseqüência foi a ditadura republicana de Oliver Cromwell entre 1653-1658 (Ibidem:86), à qual se seguiu a Restauração da monarquia, entre 1660 e 1688 (Ibidem:88). As duas obras principais de Locke, “O Primeiro Tratado sobre o Governo Civil” e “O Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, podem ser consideradas, segundo Skinner (1998:84), uma defesa clássica do contratualismo, mas devem ser encaradas, principalmente, como uma iniciativa cujo “objetivo primeiro era intervir numa crise específica do monarquismo inglês sob Carlos II, e que foi escrito de uma posição identificável no espectro do debate político no início da década de 1680” (Ibidem:84). Deste modo, pode-se considerar que a motivação principal para que estas duas obras fossem escritas foi a conjuntura política concreta da Inglaterra no final do século XVII, caracterizada pela disputa em torno do exercício do poder político entre a Monarquia e o Parlamento, e que o autor destas obras, Locke, era partidário da causa parlamentar.
A importância de Locke para a teoria política é ressaltada por Bobbio (1984), na medida em que este último afirma que “Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de um poder limitado, de direito de resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal” (Bobbio, 1984:41). Desta maneira, pode-se considerar que Locke lançou os fundamentos dos Estados parlamentares considerados democráticos e liberais, cuja característica principal é a precedência da sociedade sobre o Estado, o Estado colocado a serviço da sociedade, subordinado a esta última, e o Governo existindo para servir ao indivíduo – cidadão conforme sua concordância, e não o contrário.
Rousseau é tido como um dos inspiradores da revolução francesa ocorrida em 1789, pela qual a burguesia, com apoio de trabalhadores urbanos e camponeses, tomou o poder na França, depondo o rei absolutista Luis XVI. A influência de Rousseau na revolução francesa foi acentuada, e Fortes (1976), faz alusão à vinculação entre o pensamento de Rousseau e a mencionada revolução:
“Compreende-se que o Contrato tenha se tornado uma arma nas mãos de alguns jacobinos em sua investida revolucionária contra as estruturas político-ideológicas do antigo regime: alguma coisa do velho mundo já começara a morrer nas páginas inflamadas deste pequeno tratado. A passagem dos ideais nele contidos para aqueles acontecimentos que chama de horríveis e cruéis aparece, por exemplo, a Hegel, como perfeitamente legítima” (Fortes, 1976:29).
A relevância de Rousseau para a teoria da democracia reside no fato de ele ser uma das mais importantes referências teóricas, um dos autores que lançaram as bases do pensamento político sobre a democracia direta, o que pode ser constatado pelo fato de estudiosos políticos contemporâneos da questão da democracia recorrerem a suas opiniões como fontes de análise. Weffort (1992), em seu exame sobre a representação política, afirma que “Rousseau rejeitou a representação como tal e, por conseqüência, rejeitou a idéia de democracia baseada na representação.(...). Dependendo da parte da obra de Rousseau que se considere, ele parece pensar em uma democracia direta ou, às vezes, de modo paradoxal, em uma democracia plebiscitária” (Weffort, 1992:107). Pateman (1992) afirma que “Rousseau pode ser considerado o teórico por excelência da participação. A compreensão da natureza do sistema político que ele descreve em O contrato social é vital para a teoria de democracia participativa” (Pateman, 1992:35). Bobbio (1987) afirma que
“Parto de uma constatação sobre a qual podemos estar todos de acordo: a exigência, tão freqüente nos últimos anos, de maior democracia exprime-se como exigência de que a democracia representativa seja ladeada (...) pela democracia direta. Tal exigência não é nova: já a havia feito, como se sabe, o pai da democracia moderna, Jean Jacques Rousseau, quando afirmou que “a soberania não pode ser representada”[1]” (Bobbio, 1987:41).
Norberto Bobbio, em outra obra, afirma, também, que Rousseau é o “último fautor da democracia direta” (Bobbio, 2000:421).
Desta maneira, tendo em vista a relação das obras de Locke e Rousseau com a teoria política pertinente à questão democrática, em suas modalidades representativa e participativa, fica caracterizado o objeto de pesquisa do trabalho. A finalidade deste último é analisar, comparativa e criticamente, aspectos, categorias e conceitos relevantes das teorias políticas destes dois autores. Isto em função da importância teórica de ambos para a compreensão do pensamento político moderno no que se refere à democracia, principalmente no que tange às categorias de representação política, democracia representativa ou indireta, democracia participativa ou direta, além de outros conceitos relevantes para o desenvolvimento do nosso trabalho, neste momento atual em que a apatia do cidadão comum e a crise de representação política são características das principais democracias contemporâneas[2]. Nestas últimas, conforme observa Bobbio (1987:41), a adoção de mecanismos de participação política direta dos cidadãos, tais como os referendos e os plebiscitos, na estrutura institucional das democracias representativas, vem sendo cogitada como uma alternativa para tentar restabelecer, nos cidadãos, o interesse pelas questões públicas. É finalidade do trabalho, também, examinar as semelhanças e diferenças, as convergências e divergências entre os dois autores no que se refere aos conceitos centrais que serão examinados.
Em relação ao pensamento de John Locke, para que se possa recortar de forma satisfatória os conceitos de representação política e democracia representativa, faz-se necessária a análise cuidadosa das seguintes categorias: a refutação da origem divina do poder, fundamentada na autoridade paterna de Adão; a crítica ao absolutismo monárquico; a questão do direito de propriedade; a formação da comunidade política; a democracia representativa, como forma de organização do poder Legislativo, e a liberdade negativa; a legitimidade do Governo e o funcionamento dos poderes Legislativo, Executivo e Federativo; a dissolução do governo e a questão do direito de resistência; e a separação entre Igreja e Governo Civil.
Quanto ao pensamento de Rousseau, para que se faça uma análise apropriada do conceito de democracia participativa, é necessário o exame dos seguintes aspectos de sua obra política: Reconstituição da história hipotética da humanidade; Caracterização do “Contrato Social”, à qual estão relacionados aspectos referentes à contestação da autoridade paterna como fundamento do poder político e a crítica ao absolutismo monárquico, o significado e as implicações do pacto social, a formação do Estado Civil e o direito de propriedade; A vontade geral e sua representação; O Soberano, a lei, o Legislador e a supremacia do poder Legislativo; O poder Executivo; A democracia participativa como forma de exercício do poder Legislativo, à qual está vinculada a questão do direito de resistência.
Além do objetivo supramencionado, é finalidade do trabalho contribuir, em caráter subsidiário, para a realização de uma reflexão teórica sobre os limites e possibilidades das democracias representativa e participativa, à luz do pensamento político contemporâneo sobre o tema, com base nas análises de Giovanni Sartori (1994), Carole Pateman (1992) e Norberto Bobbio (1987 e 2000).
Consideramos, desta forma, que a escolha dos temas e autores abordados neste trabalho se justificam em função da relevância de que se revestem questões centrais para a análise política tais como representação política, democracia representativa e democracia participativa, que continuam no centro dos debates contemporâneos, além de outras questões importantes para a compreensão de fenômenos políticos atuais. As aludidas questões são objetos de análise dos autores modernos e contemporâneos selecionados, que figuram entre os mais relevantes da teoria política. Como exemplo dos mencionados fenômenos, pode-se citar a crise de representação política por que passam as principais democracias ocidentais, caracterizada pela indiferença, pelo desinteresse, pela apatia e pela baixa participação do eleitorado nos pleitos[3], cujas conseqüências refletem, de forma direta, o descrédito progressivo da esfera política no mundo contemporâneo. Sartori (1994) aponta a existência desta apatia afirmando que “É uma generalização seguramente redundante que a apatia ou despolitização é muito difundida, que o cidadão comum tem pouco interesse por política, que sua participação é mínima (...).” (Sartori, 1994:146). Deste modo, tendo em vista a existência concreta dos anteriormente mencionados desinteresse e apatia do cidadão comum em relação à política contemporânea, e da provável vinculação deste fato com a insuficiência dos mecanismos institucionais da democracia representativa em estimular a mobilização dos cidadãos para as questões públicas, uma reflexão teórica sobre os fundamentos das democracias representativa e participativa, presentes nas teorias políticas moderna e contemporânea, se reveste de pertinência.
O trabalho será estruturado em cinco capítulos. No primeiro, “Introdução”, será feita a contextualização histórica dos períodos nos quais os dois autores elaboraram seus pensamentos políticos, bem como serão ressaltados o objetivo e
a relevância do estudo, tendo como referência dois teóricos representativos do pensamento político moderno, Locke e Rousseau. Será salientado, também, que, subsidiariamente, serão examinadas as contribuições teóricas de três estudiosos contemporâneos das questões da representação e participação políticas. São eles Sartori (1994), Pateman (1992) e Bobbio (1987 e 2000). Será destacado, ainda, um subitem dedicado à metodologia da pesquisa.
O segundo capítulo terá como objetivo o exame do conceito de democracia representativa no pensamento de John Locke. Para isto, será necessária a análise dos seguintes tópicos: a refutação da autoridade paterna como fundamento do poder político; a crítica ao absolutismo monárquico; a questão do direito de propriedade; a formação da comunidade política; a democracia representativa, como forma de organização do poder Legislativo, e a liberdade negativa; a legitimidade do Governo e o funcionamento dos poderes Legislativo, Executivo e Federativo; a dissolução do Governo e a questão do direito de resistência; e a separação entre Igreja e Governo Civil.
No terceiro capítulo, será examinada a categoria democracia participativa no pensamento de Rousseau. Para tanto, será necessário analisar os seguintes pontos: Reconstituição da história hipotética da humanidade; Caracterização do “Contrato Social”, à qual estão relacionados aspectos referentes à contestação da autoridade paterna como fundamento do poder político e a crítica ao absolutismo monárquico, o significado e as implicações do pacto social, a formação do estado civil e o direito de propriedade; A vontade geral e sua representação; O Soberano, a lei, o Legislador e a supremacia do poder Legislativo; O poder Executivo; A democracia participativa como forma de exercício do poder Legislativo, à qual está vinculada a questão do direito de resistência.
No quarto capítulo será feito um estudo comparativo entre os pensamentos de Locke e Rousseau, com destaque para as semelhanças e diferenças, as convergências e divergências existentes entre eles.
O quinto e último capítulo consistirá numa reflexão sobre as idéias de democracia representativa e participativa, indireta e direta, à luz do pensamento de alguns estudiosos contemporâneos, tais como Giovanni Sartori, Carole Pateman e Norberto Bobbio.
2.1. Metodologia:
De acordo com o objetivo do trabalho, qual seja, o de examinar crítica e comparativamente os principais conceitos políticos dos pensamentos de Locke e Rousseau, com destaque para as categorias representação política, democracia representativa e democracia participativa, e, subsidiariamente, analisar parcela do pensamento político dos estudiosos contemporâneos selecionados referente à questão democrática, a metodologia da pesquisa consistiu em: realização de levantamento bibliográfico; seleção de obras significativas dos autores a serem estudados; análise crítica das referidas obras. Neste contexto, destacam-se as seguintes obras:
John Locke:
a) Primeiro Tratado sobre o Governo Civil;
b) Segundo Tratado sobre o Governo Civil;
c) Carta sobre a tolerância.
Jean Jacques Rousseau:
a) Do Contrato Social;
b) Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
c) Escritos Políticos.
A escolha destas obras deu-se em função da vinculação óbvia dos referidos títulos com os temas contemplados pela pesquisa. De forma complementar, foram consultados os dicionários sobre os respectivos autores cujos especialistas também destacam este conjunto de obras como sendo de extrema relevância para o estudo das categorias selecionadas por nosso trabalho (Yolton, 1996:285 e Dent ,1996, passim 18-21).
Em caráter subsidiário, isto é, como apoio para a interpretação das categorias selecionadas para análise, com destaque para representação política, democracia representativa e democracia participativa, e de forma a inserir a questão das citadas democracias no contexto contemporâneo, serão utilizadas as seguintes obras:
a) Teoria Democrática, de Giovanni Sartori;
b) A Teoria da Democracia Revisitada, de Giovanni Sartori;
c) Participação e Teoria Democrática, de Carole Pateman.
d) Dicionário de Política, de Norberto Bobbio;
e) Teoria Geral da Política, de Norberto Bobbio;
f) Locke e o Direito Natural, de Norberto Bobbio;
g) Direito e Estado no pensamento de Kant, de Norberto Bobbio;
g) Quatro Ensaios sobre a Liberdade, de Isaiah Berlin;
h) A Liberdade antes do Liberalismo, de Quentin Skinner.
Cabe ressaltar que se tentou obedecer a uma simetria no que se refere à escolha dos conceitos e categorias que serão estudados nas teorias políticas de Locke e Rousseau. Desta maneira, na medida do possível, as mesmas categorias estudadas em relação a um teórico o foram em relação ao outro. Quanto à seleção dos referidos conceitos e categorias e, tendo em vista a multiplicidade de tópicos que os autores abordam, optamos por privilegiar aqueles que tivessem caráter eminentemente político, isto é, os que tivessem relação direta com os assuntos referentes ao Estado, ao Governo e, principalmente, à questão da democracia, em suas modalidades representativa e participativa.
2.2. Definição das diferentes modalidades de democracia – direta, representativa e participativa:
3. Capítulo 2 - Locke e a democracia representativa:
Este capítulo tem como objetivo examinar o conceito de democracia representativa em Locke, tendo como referência os seguintes pontos de análise: a refutação da autoridade paterna como fundamento do poder político; a crítica ao absolutismo monárquico; a questão do direito de propriedade; a formação da comunidade política; a democracia representativa, como forma de organização do poder Legislativo, e a liberdade negativa; a legitimidade do Governo e o funcionamento dos poderes Legislativo, Executivo e Federativo; a dissolução do Governo e a questão do direito de resistência; e a separação entre Igreja e Governo Civil.
3.1. A refutação da autoridade paterna como fundamento do poder político:
Uma das questões centrais da análise política de Locke é a da refutação da origem divina do poder, fundamentada na autoridade paterna de Adão. Locke (1994), no “Primeiro Tratado sobre o Governo Civil”, contesta o argumento de Sir Robert Filmer, defensor da monarquia absoluta. Segundo Locke “a tese principal de Filmer é que Adão possuía um direito natural de domínio sobre seus filhos em virtude da própria paternidade: tal seria a fonte de toda a autoridade real, homem algum nascendo livre” (Locke,1994:69). Locke, para contestar a argumentação de Filmer, o critica, asseverando que este último não apresenta provas concretas que fundamentem suas afirmações acerca do poder absoluto de Adão. Esta crítica se encontra presente no seguinte trecho:
“(...); pois é quase inacreditável que, em um discurso onde ele pretende refutar o “princípio errôneo da liberdade natural” do homem, ele o faça postulando simplesmente a “autoridade de Adão”, sem apresentar a menor prova. (...).
Tudo o que observo é que nosso autor não se alonga muito, nem em seu primeiro capítulo nem em qualquer dos seguintes, para provar o “poder absoluto de Adão”, (...). Confesso que não consegui ver onde se encontram estas “provas e razões da soberania de Adão”” (Ibidem:59 e 60).
Locke questiona o argumento de Filmer de que “Adão foi encarregado de governar sua posteridade” (Ibidem:64), afirmando que
“ (...); na verdade, se o homem é naturalmente encarregado em virtude de sua qualidade de pai, acredito que é difícil conceber como Adão podia ser “naturalmente encarregado de governar” antes de ser pai, ele que não podia extrair o direito de governar senão de sua qualidade de pai; ou então, é preciso sustentar que ele era pai antes de ser pai, ou que possuía um direito antes de possuí-lo.
A esta objeção, fácil de prever, nosso autor responde, com muita lógica, que Adão “foi encarregado do governo em potência, mas não em ato”; eis um meio bem elegante de governar sem governo, de ser pai sem filhos e de ser rei sem súditos. (...). Adão estava investido de seu direito desde o momento de sua criação, mas “somente em potência e não em ato”; ou seja, “em bom inglês”, ele não tinha direito algum ” (Locke, 1994:65).
Deste modo, Locke contraria a assertiva de Filmer de que Adão foi declarado por Deus monarca do mundo com um poder absoluto baseado na autoridade paterna. Isto porque, segundo o primeiro, quando o mundo foi criado, Adão não era pai. Como então basear seu poder absoluto num pátrio poder inexistente?
Mas as inconsistências do pensamento de Filmer não se esgotam nesta questão da autoridade paterna. Locke questiona ainda três aspectos insuficientemente esclarecidos por Filmer: a questão da doação da soberania do mundo, a transferência do poder absoluto de Adão à sua descendência, e a indeterminação da identidade do herdeiro de Adão.
Quanto à afirmação de Filmer de que Deus teria doado a soberania do mundo somente a Adão (Ibidem:63), Locke a contesta, afirmando que o próprio Filmer declara que Deus deu a terra aos filhos dos homens (Ibidem:68). Locke, então, considera contraditória a afirmação de Filmer de que Deus teria doado a terra simultaneamente a Adão e aos filhos dos homens, asseverando que “O próprio Filmer declara que Deus deu a terra aos filhos dos homens. Como podia concluir que apenas Adão era o rei do mundo?” (Ibidem:68). Portanto, para Locke, Deus concedeu a soberania do mundo a todos os homens, e não somente a Adão.
Quanto à transferência do poder absoluto de Adão a seus descendentes, Locke afirma que Filmer não consegue provar que Adão conseguiu transmitir este suposto poder absoluto que detinha a sua descendência. Além disto, o primeiro acusa o segundo de não ter conseguido provar que qualquer monarca da época em que os dois autores viveram havia recebido o poder soberano em decorrência da herança do poder absoluto de Adão. Afirma Locke:
“Mesmo que Adão detivesse uma poderosa monarquia absoluta, Filmer deveria ainda provar: primeiro, que este poder não cessou com Adão, mas passou integralmente para algum outro; segundo, que os reis e governantes atuais da terra recebem dele seu título em virtude de alguma transferência regular.
A propriedade vinha de uma doação, a paternidade do fato de gerar. Se a doação não estivesse acompanhada de uma cláusula expressa de transmissibilidade , não passaria aos sucessores de Adão por morte deste, mas retornaria a Deus”(Locke, 1994:72).
Finalmente, Locke aponta mais um defeito da argumentação de Filmer, que consiste na indeterminação da identidade do herdeiro do poder monárquico absoluto de Adão. Assim, sendo todos os homens descendentes e herdeiros de Adão, quem seria o seu legítimo e verdadeiro legatário? É a indagação que Locke faz no título do capítulo XI do “Primeiro Tratado sobre o Governo Civil”. Sobre o assunto, ele assevera que
“É preciso admitir, ou que os reis não recebem sua autoridade de Adão por sucessão segundo a regra da primogenitura, ou que no mundo existe apenas um rei legítimo. Este pode ser chefe de qualquer casa, desconhecendo-se que esteja ligada à outra. Ao contrário, se Adão tivesse mais de um herdeiro, todos os homens seriam igualmente seus herdeiros, sendo seus filhos ou descendentes destes. (...).
(...).Filmer não define o herdeiro de Adão. (...).
(...). Partindo de Adão, não se pode saber quem é rei hoje em dia” (Ibidem, passim 73-75).
Entretanto, no “Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, Locke, incorrendo em aparente contradição, admite que o governo pode ter tido sua origem na autoridade paterna:
“Não nego que, se volvermos as nossas vistas para trás e tanto quanto a História nos dirigir para a origem das comunidades, havemos de encontrá-las em geral sob o governo de um único homem. E estou também em condições de acreditar que, onde uma família era bastante numerosa para subsistir de per si, continuando completa sem misturar-se com outras, como muitas vezes acontece quando há muita terra e pouca gente, o governo começa comumente no pai” (Locke, 1973:80).
Contudo, o autor esclarece sua posição em seguida:
“Assim, voltando as vistas para trás tanto quanto a História nos fornece qualquer indicação do povoamento do mundo e da vida das nações, verificamos geralmente que o governo ficava com um só indivíduo; esta observação não destrói, contudo, nossa afirmação, isto é – que o começo da sociedade política depende do consentimento dos indivíduos em juntar-se para formarem uma sociedade; os quais, quando assim incorporados, ficam em condições de instalar a forma de governo que julguem conveniente. Tendo, porém, esta circunstância dado motivo a que os homens se enganassem, pensando que por natureza o governo era monárquico e pertencia ao pai, não será aqui fora de propósito considerar por que os homens, no princípio, escolhiam em geral esta forma, que, embora talvez a preeminência do pai pudesse fazer surgir na primeira instituição de alguma comunidade, colocando em uma só mão todo o poder, contudo, é evidente que o motivo de continuar o governo em uma única pessoa não resultava de qualquer consideração ou respeito para com a autoridade paterna, visto como todas as pequenas monarquias, isto é, quase todas, nos tempos mais próximos da origem, foram comumente eletivas, pelo menos de quando em vez”(Ibidem: 80 e 81).
Desta forma, o autor deixa claro que o fato de admitir que os primeiros governos podem ter sido exercidos pela figura paterna, no caso de famílias que posteriormente deram origem a nações, não implica, em absoluto, a consideração de que o poder político se origina da autoridade paterna, o que é muito diferente. O fato de que exista a possibilidade de que os primeiros governantes tenham sido pais de famílias numerosas constitui uma simples constatação; inferir desta constatação que o poder político tem origem na autoridade paterna é uma conclusão não apropriada. No “Segundo Tratado”, Locke define o poder político como “o direito de fazer leis com pena de morte e, conseqüentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade, e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comunidade de dano exterior; e tudo isso tão só em prol do bem público” (Ibidem:40). Assim, o poder político consiste em fazer leis para defender, amparar e regulamentar o direito à propriedade privada. Proporcionar a preservação da propriedade é o principal motivo pelo qual os homens se associam para formar a sociedade política, o que só podem fazer mediante consentimento individual (Locke, 1973, passim 40, 77 e 88). Deste modo, a base legítima do poder político, a ser exercido pelo Governo Civil em nome da comunidade política, estaria condicionada ao consentimento individual, e não à autoridade paterna. Desta forma, é em nome deste poder político que Locke vai preconizar a escolha de representantes pela população, para que estes promulguem as leis de proteção, amparo e preservação do direito de propriedade (Ibidem: 40,92,96,101,124,125), caracterizando, desta maneira, a democracia representativa. É importante ressaltar que a democracia representativa de Locke é extremamente restritiva, posto que, em seu sistema político, somente os proprietários são detentores de direitos políticos, segundo Vieira (1997:41) e Macpherson (in Armstrong e Martin, 1968, passim 220-225).
Deste modo, longe de condicionar o poder político à autoridade paterna e à origem divina do poder, Locke o define como uma prerrogativa por excelência do consentimento individual para defesa e amparo do direito à propriedade privada. Assim, o autor transfere a legitimidade do exercício do poder político da autoridade paterna para o beneplácito individual, para viabilizar seu sistema político baseado na democracia representativa (Locke, 1973:92,96,101,124,125). Caso contrário, a proposta política de Locke perderia o sentido, na medida em que o poder político, em vez de ser exercido pelos representantes políticos escolhidos pela população, seria desempenhado pelo monarca absolutista com base na autoridade paterna e na origem divina do poder.
3.2. A crítica ao absolutismo monárquico:
Retirando a legitimidade do exercício do poder político da autoridade paterna e a transferindo para a aquiescência individual dos cidadãos governados, Locke viabiliza seu modelo político. Além disto, o autor realiza uma crítica contundente ao absolutismo monárquico.
Locke estabelece como sendo a necessidade de preservação da propriedade o motivo inequívoco para a organização da comunidade política (Locke, 1973:88). Assim sendo, o homem aceita abdicar de seus direitos e liberdades naturais e viver sob a jurisdição da lei civil, para ter sua propriedade defendida pelo Governo civil. Locke investe contra a monarquia absoluta, afirmando que, nela, “a propriedade não está de modo algum segura, (...), se quem os governa tem o poder de tirar de qualquer pessoa particular a parte que quiser da propriedade desta, usando-a e dela dispondo conforme lhe aprouver” (Ibidem:95). No sistema político do autor, ao contrário do absolutismo monárquico, o poder de tributação sobre a propriedade, ao invés de ser praticado ao alvedrio do soberano absolutista, será executado somente com a anuência dos cidadãos governados (Ibidem:96). O autor ainda considera a situação da população, sob uma monarquia absolutista, pior do que sob o estado de natureza, afirmando que
“Aquiesço finalmente em que o governo civil é o remédio acertado para os inconvenientes do estado de natureza, os quais devem, com toda a certeza, ser grandes se os homens têm de ser juízes em causa própria, (...). (...), os monarcas absolutos são apenas homens, e se o governo tiver de ser o recurso para os males que necessariamente decorrem de serem os homens juízes em causa própria, não sendo por isso de suportar-se o estado de natureza, desejo saber que espécie de governo deverá ser este, e quão melhor será do que o estado de natureza, onde um homem governando uma multidão tem a liberdade de ser juiz em seu próprio caso, podendo fazer aos seus súditos tudo quanto lhe aprouver, sem que alguém tenha a liberdade de formular perguntas aos que lhe executam as vontades ou de controlá-los, devendo todos a ele submeter- se, seja lá o que for que ele faça, levado pela razão, pelo erro ou pela paixão? Muito melhor será no estado de natureza, no qual os homens não estão obrigados a submeter-se à vontade injusta de outrem; e se aquele que julga julgar erroneamente no seu próprio caso ou no de terceiros, é responsável pelo julgamento perante o restante dos homens” (Ibidem:44).
Desta forma, o risco para a propriedade seria ainda mais acentuado sob a monarquia absoluta do que sob o estado de natureza, devido ao fato de que, na primeira, é apenas um único homem que exerce os poderes legislativo e executivo da lei da natureza, e, no segundo, todos os homens o fazem. Estando tal autoridade concentrada em um único indivíduo, a possibilidade de ocorrência de abusos é significativamente maior do que estando a referida autoridade dispersa entre inúmeros homens. Além deste fato, a extrema assimetria que caracteriza a monarquia absoluta, na qual o soberano com poder irrestrito tudo pode, e o súdito impotente a tudo tem que obedecer, torna este regime inaceitável, na visão de Locke.
3.3. O direito de propriedade:
Locke afirma que o direito de propriedade já pertence ao indivíduo no estado de natureza, se constituindo, assim, num direito natural, anterior à constituição do Estado e da sociedade civis. Sobre este assunto, o autor, referindo-se ao citado estado, afirma que
“Contudo, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; apesar de ter o homem naquele estado liberdade incontrolável de dispor da própria pessoa e posses, não tem a de destruir-se a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, se não quando uso mais nobre do que a simples conservação o exija. O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. (...). Qualquer pessoa, da mesma sorte que está na obrigação de preservar-se, ..., quando a própria preservação não está em jogo, tem de preservar, tanto quanto puder, o resto da humanidade, não podendo, a menos que seja para castigar um ofensor, tirar ou prejudicar a vida, ou o que tende à preservação da vida, a liberdade, a saúde, os membros ou os bens de outrem” (Locke, 1973:42).
Na passagem acima, o autor alude à existência de bens e posses e, portanto, do direito de propriedade, já no estado de natureza, o que faz dele um direito natural, anterior à constituição da sociedade civil mediante a realização do pacto social. É para melhor assegurar o usufruto do direito de propriedade dos bens, que se encontra em perigo no estado de natureza, que a sociedade política e o Estado civil serão constituídos (Ibidem:88).
Locke define estado de natureza como sendo aquele no qual
“Todos os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem.
Estado também de igualdade, no qual é recíproco qualquer poder e jurisdição, ninguém tendo mais do que qualquer outro; nada havendo de mais evidente que criaturas da mesma espécie e da mesma ordem, nascidas promiscuamente a todas as mesmas vantagens da natureza e ao uso das mesmas faculdades, terão também de ser iguais umas às outras sem subordinação ou sujeição; ...” (Locke, 1973: 41).
Neste estado, todo homem tem a obrigação de obedecer à lei da natureza, que consiste no dever que o indivíduo tem de cumprir no sentido de preservar a própria vida e das criaturas que estão sob sua posse, e, também, contribuir para conservar a existência da humanidade, não atentando contra a vida, os bens, a liberdade e a saúde de seus semelhantes (Ibidem:42). Em relação a esta lei, todo homem, no estado de natureza, tem o que Locke considera como sendo o poder de execução da referida lei, que consiste no direito de punir aqueles que a transgredirem (Ibidem:42). Segundo o autor “todos têm o direito de castigar o ofensor, tornando-se executor da lei de natureza”(Ibidem:43). Este será o principal motivo para a existência de inconvenientes no estado de natureza, pois se todo homem tem o direito de execução da aludida lei, existe uma possibilidade considerável de que cada um seja juiz em causa própria, e a existência de julgamentos justos e imparciais torna-se uma possibilidade remota (Ibidem:88). Devido a isto, a fruição do direito de propriedade, no estado de natureza, passa a ficar ameaçada, tornando-se insegura e arriscada (Ibidem:88). Assim, para o autor, “sendo cada homem, nesse estado, juiz e executor da lei de natureza, sendo os homens parciais para consigo, a paixão e a vingança podem levá-los a exceder-se nos casos que os interessam, enquanto a negligência e a indiferença os tornam por demais descuidados nos casos de terceiros” (Ibidem:88). Desta forma, o que coloca em risco o usufruto do direito de propriedade no estado de natureza é o fato de os homens não terem a isenção exigida para administrar a justiça nos casos em que seus próprios interesses estejam em jogo, o que pode acarretar a intensificação dos litígios e conflitos. Locke chega a afirmar que “Evitar esse estado de guerra -(...)- é razão decisiva para que os homens se reúnam em sociedade deixando o estado de natureza” (Ibidem:48).
Pode-se concluir, então, que Locke caracteriza o estado de natureza de duas maneiras distintas e complementares: uma referente ao início do aludido estado e outra que corresponderia a um estágio mais avançado do mesmo, a qual seria conseqüência direta de seu desenvolvimento pleno e da intensificação da convivência entre os homens. A primeira caracterização poderia ser considerada como sendo a correspondente ao início do estado de natureza, quando os homens ainda não teriam muito tempo de convivência conjunta, à qual o autor se refere como sendo uma situação relativamente pacífica e harmônica, na qual não ocorreria a dominação do homem pelo homem (Locke, 1973:41). A segunda é aquela na qual ele afirma que, em tal situação, sendo cada homem executor da lei da natureza e podendo ser juiz em causa própria, o resultado deste estado de coisas é a insegurança para que os direitos individuais à liberdade e à propriedade sejam plenamente exercidos (Ibidem:88). Esta segunda caracterização do estado de natureza lockeano suscitou a crítica de que o autor incorreu em contradição, em relação à primeira caracterização do mencionado estado. Tal crítica considera que, em seu estágio mais avançado, o estado de natureza de Locke equivaleria a seu congênere hobbesiano. A aludida crítica é feita por Crawford Brough Macpherson (in Armstrong e Martin, 1968:202). De acordo com este último, os postulados de Locke são contraditórios no sentido de que este caracteriza o estado de natureza como sendo, simultaneamente, “racional, pacífico e social e também não essencialmente diferente do estado de guerra de Hobbes” (Ibidem:202).
Macpherson apresenta como causa para esta suposta contradição de Locke, no que se refere à caracterização do estado de natureza a seguinte explicação:
“Como um filósofo burguês, um proponente do individualismo do século dezessete, Locke tinha que considerar os homens como unidades iguais, não diferenciadas, e considerá-los racionais. (...). Então, uma parte necessária da visão burguesa retratou o homem em geral como sendo a imagem do homem burguês racional. Locke partilhou desta visão, o que fez com que ele qualificasse o estado de natureza como racional e pacífico.
Ao mesmo tempo, como um filósofo burguês, Locke necessariamente concebeu uma sociedade abstrata composta por duas classes com racionalidades diferentes. As duas classes da Inglaterra de Locke viviam vidas completamente diferentes em termos de liberdade e direitos. A diferença básica entre elas era a referente à habilidade de viver de acordo com o código moral burguês. Mas para a classe dirigente esta era uma capacidade diferenciada dos homens de viverem conforme estas regras morais. Esta concepção de sociedade forneceu a Locke o retrato do estado de natureza como inseguro. O que ele disse foi que muitos homens são incapazes de guiar suas vidas pela lei da razão, sem sanções, e por isso a sociedade civil com sanções legais (bem como uma igreja com sanções espirituais) são necessárias para colocá-los em ordem. Sem estas sanções não haveria paz no estado de natureza” (Macpherson, in Armstrong e Martin, 1968: 220-221).
Deste modo, para Macpherson, a concepção ordeira de estado de natureza estaria associada à necessidade de retratar a racionalidade, a sociabilidade e a sobriedade dos burgueses, detentores de propriedades, que, por possuírem-nas e serem capazes de realizar a acumulação econômica, eram considerados racionais e aptos a viver segundo o código moral burguês. A versão do estado de natureza na qual a fruição do direito à propriedade privada se torna insegura, estaria vinculada à existência de trabalhadores despossuídos, irracionais por não deterem propriedades e, como conseqüência da referida irracionalidade, incapazes de viver em conformidade com a lei da natureza, e por isto propensos a violá-la e a tornar inseguro o usufruto do direito de propriedade. Em decorrência disto, seria imperativa a instituição da sociedade civil com sanções legais para forçá-los à obediência às leis e coibir seu comportamento desviante. Alguma analogia pode ser feita com a situação descrita por Rousseau no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, quando da proposição, pelos abastados da sociedade, do “contrato dos ricos” aos pobres, pelo qual os primeiros tentam domesticar os últimos.
Um aspecto importante da análise de Locke sobre o direito de propriedade é o fato de o autor considerá-lo algo independente da aprovação dos outros indivíduos. No “Segundo Tratado”, Locke reafirma a propriedade como direito independente e incondicional do homem asseverando que
“Todavia, esforçar-me-ei por mostrar como todos os homens podem chegar a ter uma propriedade em várias partes daquilo que Deus deu à humanidade em comum, e tal sem qualquer pacto expresso entre todos os membros da comunidade. (...)
Vê-se nos terrenos em comum, que assim ficam por pacto, que é a tomada de qualquer parte do que é comum com a remoção para fora do estado em que a natureza o deixou que dá início à propriedade, sem o que o comum nenhuma utilidade teria. E a tomada desta ou daquela parte não depende do consentimento expresso de todos os membros da comunidade” (Locke, 1973: 51-52).
Assim, ao contrário da formação da comunidade política, que exige o consentimento individual de cada um que pretenda nela ingressar (Ibidem:77), a apropriação privada de bens presentes na natureza não requer a consulta e a posterior aprovação do restante da comunidade. Isto porque, de acordo com o raciocínio do autor, caso um homem precisasse, obrigatoriamente, antes de se apropriar dos bens disponíveis na natureza, da anuência de todos os outros indivíduos, o homem pereceria, apesar da abundância de bens à sua disposição (Ibidem:52).
Além deste caráter autônomo do direito à propriedade privada, este também estaria vinculado ao trabalho, sendo o último o fundamento do primeiro:
“(...) cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens. Desde que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, ...” (Ibidem:51 e 52).
Desta forma, caso um homem, mediante o desempenho do seu trabalho, e utilizando como insumo qualquer matéria prima presente na natureza, matéria prima esta em estado bruto, original, a beneficiasse, a transformasse, o produto desta transformação seria propriedade privada deste homem. Ele teria retirado a referida matéria prima de seu estado original e a teria tornado uma matéria nova, devido ao concurso do seu trabalho. A ação de seu trabalho sobre a matéria prima, transformando-a em algo novo, seria suficiente, segundo o autor, para assegurar a propriedade particular deste bem para este homem. Deste modo, todas as outras pessoas estariam excluídas do direito à propriedade do citado bem. O mesmo argumento o autor estende para a questão da propriedade da terra:
“Sendo agora, contudo, a principal matéria de propriedade não os frutos da terra (...), mas a própria terra, como aquilo que abrange e consigo leva tudo o mais, penso ser evidente que aí também a propriedade se adquire como nos outros casos. A extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua propriedade. Pelo trabalho, por assim dizer, separa-a do comum” (Locke, 1973:53).
Locke também aponta a existência de três limites ao exercício do direito de propriedade. O primeiro, que Ryan (in Armstrong e Martin, 1968:234) denomina de “limite de suficiência”, corresponde ao fato de que a apropriação de um bem, pelo trabalho incorporado de um homem a algum bem já presente na natureza, está condicionada à existência, após a referida apropriação do bem, de uma quantidade deste último que seja suficiente para atender à demanda das outras pessoas. O autor define este limite ao afirmar que, após a realização da apropriação de um bem, deve existir, ainda, uma quantidade do mencionado bem que seja “bastante e (...) de boa qualidade em comum para terceiros” (Locke, 1973:52). Desta maneira, depois de apropriada determinada quantidade do bem, ainda deve existir uma quantidade deste último que seja suficiente para atender às demandas de outras pessoas.
O segundo limite seria concernente ao fato de que a apropriação privada seria permitida até o momento em que o bem apropriado se deteriorasse com o passar do tempo. Após a deterioração, o bem excederia a parte que cabe ao seu proprietário, determinada pelo trabalho que este dedicou ao bem, e passaria a pertencer às pessoas que anteriormente estavam excluídas de sua propriedade. O autor estabelece este limite afirmando que “Tanto quanto qualquer um pode usar com qualquer vantagem para a vida antes que se estrague, em tanto pode fixar uma propriedade pelo próprio trabalho, o excedente ultrapassa a parte que lhe cabe e pertence a terceiros” (Ibidem:53). É o que Ryan denomina de “limite da deterioração” (Ryan, in Armstrong e Martin, 1968:234). O terceiro critério de Locke sobre a propriedade, analisado por Ryan, já foi abordado, e este autor assim se refere a ele:
“Existe uma terceira limitação aparente imposta pelo critério de trabalho da propriedade, pelo qual um homem deve misturar seu trabalho a qualquer coisa de que ele se aproprie. Esta limitação está na base do que se chamaria de teorias “radicais” do valor trabalho, as quais têm a intenção de negar qualquer outra procedência à propriedade que não seja o trabalho manual” (Ryan, in Armstrong e Martin, 1968: 234 e 235).
Entretanto, o surgimento do dinheiro e o desejo de acumulação causaram a anulação destas três limitações. Locke, primeiramente, se refere ao surgimento do dinheiro e ao aumento da cobiça dos homens:
“Certo é que, no começo, antes que o desejo de ter mais do que precisa tivesse alterado o valor intrínseco de tudo quanto depende somente da própria utilidade para a vida do homem, ou tivessem concordado em que um pedacinho de metal amarelo que se conservasse sem desgaste ou decomposição equivaleria a um grande pedaço de carne ou a um monte de trigo ...” (Locke, 1973:55).
Posteriormente, Locke indica que, após o surgimento do dinheiro, o “limite da suficiência” já não tem mais validade, asseverando que
“As provisões que servem de sustento para a vida humana produzida em um acre de terra fechada e cultivada – falando mui conservadoramente – são dez vezes mais do que pode produzir um acre de terreno de igual fertilidade aberto e em comum. (...) porquanto pergunto se nas florestas selvagens, ou nos desertos incultos da América, abandonados à natureza, sem qualquer melhoramento, lavra ou cultura, mil acres produzem para os habitantes necessitados e miseráveis tantas conveniências da vida como dez acres de terra igualmente fértil do Devonshire, onde são bem cultivados” (Ibidem:55).
O autor parece advogar que a ocupação produtiva das terras, mesmo quando executada de modo indiscriminado, sem se levar em consideração a disponibilidade de terras para atender às demandas de outras pessoas que não os ocupantes, ou seja, sem obedecer ao “limite da suficiência”, é legítima. Isto porque, segundo Locke, esta ocupação produtiva proporciona à humanidade a quantidade de provisões adequada para sua subsistência, o que não aconteceria se a referida ocupação não se realizasse. Ryan corrobora esta interpretação afirmando que
“Mesmo quando toda a terra é apropriada, o padrão geral de vida melhora para todos, mesmo para aqueles que não têm terras, porque a invenção do dinheiro capacitou o capitalista racional a aplicar suas habilidades e trabalho à terra e às matérias primas que anteriormente eram de pouco ou nenhum valor para a humanidade” (Ryan, in Armstrong e Martin, 1968:234).
A segunda limitação, expressa pelo “limite da deterioração”, também é superada pela invenção do dinheiro. Locke escreve sobre o assunto afirmando que, caso o homem
“trocasse as nozes por um bocado de metal, cuja cor lhe agradasse, ..., ou a lã por uma pedra cintilante ou um diamante, e guardasse esses objetos durante toda vida, não invadiria os direitos de terceiros; poderia acumular qualquer quantidade que quisesse desses objetos duradouros; não se achando o extremo dos limites da sua justa propriedade na extensão do que possuía, mas no perecimento de tudo quanto fosse inútil a ela.
E assim originou-se o uso do dinheiro – algo de duradouro que os homens pudessem guardar sem estragar-se, e que por consentimento mútuo recebessem em troca de sustentáculos de vida, verdadeiramente úteis mas perecíveis” (Locke, 1973:58 e 59).
Desta forma, fica caracterizado que, desde que o indivíduo conseguisse, vendendo seu bem, obter em troca dinheiro não perecível, estaria transposto o “limite da deterioração. Isto porque, por meio da operação antes referida, este indivíduo permutaria seus bens perecíveis que havia conseguido reunir por meio de seu trabalho por numerário que não se deterioraria, e, assim, segundo as idéias de Locke, estaria livre para acumular, já que jamais perderia a titularidade da propriedade de seus ativos em virtude de perecimento, tendo em vista que o dinheiro obtido em troca de seus bens acumulados não se deterioraria.
Com a legitimação do uso do dinheiro como forma de adquirir bens, também se superou o limite da propriedade relativo ao critério de trabalho. Isto porque, dada a licitude, segundo as idéias de Locke, da utilização de numerário para a acumulação de patrimônio, o indivíduo passou a poder comprar mais bens do que aqueles que o fruto de seu trabalho permitiria a ele adquirir. A passagem em que Locke se refere a isto é a seguinte:
“Mas como o ouro e a prata são de pouca utilidade para a vida humana em comparação com o alimento, vestuário e transporte, tendo valor somente pelo consenso dos homens, enquanto o trabalho dá em grande parte a medida, é evidente que os homens concordaram com a posse desigual e desproporcionada da terra, tendo descoberto, mediante consentimento tácito e voluntário, a maneira de um homem possuir licitamente mais terra do que aquela cujo produto pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso, ouro e prata, que podem guardar sem causar danos a terceiros, uma vez que esses metais não se deterioram nem se estragam nas mãos de quem os possui” (Locke, 1973:59).
Desta maneira, Locke alega que, além do trabalho, o uso do dinheiro é uma forma legítima de se exercer o direito à propriedade. Com isto, o autor procede à dissociação entre propriedade e trabalho, dado que, mediante a utilização do dinheiro, o indivíduo poderia legitimamente acumular uma quantidade de bens superior àquela que seu trabalho proporcionaria. Manent (1990) aborda este assunto, afirmando que
“Se resumirmos a análise de Locke, poderemos dizer o seguinte: o indivíduo tem um direito natural a uma propriedade que não tem limites naturais. Ela não tem limites naturais porque a invenção da moeda permite tornar imperecível qualquer quantidade de bens perecíveis, e porque o valor das coisas provém do trabalho humano, e não da bondade da natureza. Decorre daí uma conseqüência paradoxal: o direito de propriedade desvincula-se naturalmente do trabalho que está na sua origem” (Manent, 1990:70).
Deste modo, esta desvinculação da propriedade em relação ao trabalho apontada por Manent, tem, como conseqüência imediata na doutrina de Locke, a licitude da acumulação ilimitada, dado que o patrimônio do homem não teria que guardar relação com o fruto do seu trabalho.
A relação da questão da democracia representativa com o direito de propriedade consiste no fato de que a referida modalidade de democracia é recomendada pelo autor como forma de exercício do poder Legislativo (Locke, 1973:92,96,101,124), para que o poder político, que consiste, para o autor, no poder de fazer leis para proteção, preservação e regulamentação do direito de propriedade (Ibidem:40), seja efetivamente praticado.
3.4. A formação da comunidade política:
A constituição da comunidade política, nos moldes propostos por Locke, se consolida por meio da celebração do contrato social por homens em estado de natureza, que renunciam à liberdade de que desfrutam no mencionado estado para se unirem em sociedade civil. E quais as razões pelas quais os homens agiriam assim? A principal razão apontada por Locke para os homens assim procederem seria a necessidade inicial de superação dos inconvenientes presentes no próprio estado natural, que dificultariam que o direito de propriedade fosse usufruído de modo seguro. São eles: a ausência de lei estabelecida e aceita por consentimento comum para resolver conflitos entre os indivíduos; falta de um juiz neutro para solucionar os litígios; e a inexistência de um poder que obrigue ao cumprimento da sentença quando justa (Locke, 1973:88). Ou seja, o fato de que, no estado de natureza, todo homem tem o direito de julgar e punir aqueles que transgredirem a lei natural, causa uma situação de extrema insegurança jurídica que afeta negativamente o exercício do direito de propriedade. Esta situação é descrita por Locke da seguinte forma: “sendo cada homem, nesse estado, juiz e executor da lei de natureza, sendo os homens parciais para consigo, a paixão e a vingança podem levá-los a exceder-se nos casos que os interessam, enquanto a negligência e a indiferença os tornam por demais descuidados nos casos de terceiros” (Ibidem:88).
Para Locke, a distinção fundamental entre a situação de estado de natureza e a de comunidade política ou sociedade civil é a de que “Os que estão unidos em um corpo, tendo lei comum e estabelecida e judicatura – para a qual apelar – com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores, estão em sociedade civil uns com os outros; mas os que não têm essa apelação em comum, (...), ainda se encontram em estado de natureza” (Ibidem:73). Nesta passagem, o autor especifica os traços distintivos da sociedade civil em relação ao estado de natureza: enquanto neste último cada indivíduo tem um entendimento diferente sobre em que consiste a violação da lei da natureza e tem a faculdade de, isoladamente, aplicar penalidades aos seus transgressores, na sociedade civil existe a unificação da legislação acerca dos casos nos quais a transgressão da lei deva ser penalizada. Além disto, nesta última, existe, também, um magistrado civil imparcial para decidir acerca dos contenciosos, proferindo sentenças para cuja execução a força pública da comunidade, reunindo o somatório das forças individuais de seus membros, pode ser convocada a assegurar.
Assim, a comunidade política, se define como
“A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela” (Locke, 1973:77).
Para o autor, a comunidade política se baseia no consentimento, na concordância espontânea dos indivíduos que resolvem dela fazer parte mediante associação mútua e recíproca. O autor aborda este tema afirmando que “Assim sendo, o que dá início e constitui realmente qualquer sociedade política nada mais é senão o assentimento de qualquer número de homens livres capazes de maioria para se unirem e se incorporarem a tal sociedade” (Ibidem:78).
Assim, a finalidade principal dos homens instituírem a comunidade política é “a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de propriedade” (Ibidem:88). E isto é decorrência dos inconvenientes presentes no estado de natureza referidos anteriormente, que são a causa do precário usufruto do direito de propriedade no aludido estado, o que leva os homens a constituírem a sociedade civil para ter mais segurança na fruição do direito de propriedade.
Locke destaca, no processo de formação da comunidade política, o aspecto concernente aos direitos, presentes no estado de natureza, de que o homem abre mão ao aceitar ingressar na sociedade política ou civil. O autor esclarece esta questão afirmando que
“No estado de natureza, o homem tem dois poderes ... :
O primeiro consiste em fazer o que julgar conveniente para a própria preservação e a de terceiros dentro do que permite a lei da natureza, (...).
O outro poder (...) é o de castigar os crimes cometidos contra essa lei. Ele abandona um e outro quando se reúne a uma sociedade política privada, se assim possa chamá-la, ou particular, e se incorpora a qualquer comunidade distinta do resto dos homens.
O primeiro poder, isto é, de fazer tudo quanto julgue conveniente para a própria preservação e dos demais homens, ele abandona para que seja regulado por leis feitas pela sociedade, (...); leis essas da sociedade que a muitos respeitos limitam a liberdade de que gozava pela lei da natureza.
Em segundo lugar, abandona inteiramente o poder de castigar e compromete a força natural de que dispõe – que anteriormente podia utilizar para a execução da lei de natureza em virtude da autoridade própria singular que possuía, conforme julgasse conveniente – para auxiliar o poder executivo da sociedade, conforme a lei desta assim o exigir” (Locke, 1973:89).
Assim, cada homem, consentindo e aderindo ao pacto social pelo qual é criada a comunidade civil, abdica da liberdade irrestrita e dos referidos direitos que possuía no estado de natureza, passando a submeter tanto sua liberdade individual quanto o exercício dos aludidos direitos ao crivo das leis da sociedade política, às quais ele se compromete a obedecer. Em troca, cada homem recebe a proteção, a ser fornecida pela comunidade política, para que desfrute com segurança do direito de propriedade. A questão da abdicação, por parte do homem, de seus direitos naturais quanto ao estabelecimento das situações em que a lei da natureza é violada e quanto à punição dos transgressores desta lei, que são, respectivamente, as origens dos poderes Legislativo e Executivo da sociedade política, será analisada mais detalhadamente no item referente ao funcionamento dos poderes.
A função do princípio da maioria no funcionamento da comunidade política de Locke é um aspecto relevante do pensamento do autor. Sobre o assunto, ele afirma que
“Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam de fato a ela incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o direito de agir e resolver por todos.
(...). E portanto, nas assembléias que têm poderes para agir mediante leis positivas, o ato da maioria considera-se como sendo o ato de todos...” (Ibidem:77).
Desta forma, mesmo aqueles que divergirem da decisão tomada pela maioria do corpo político, devem a ela se submeter, por força do compromisso assumido quando da celebração do contrato social e constituição da sociedade política. Este fato implica que existe, no sistema político do autor, a obrigatoriedade de todo indivíduo acatar a decisão majoritária, mesmo divergindo individualmente dela. Esta característica do pensamento de Locke suscitou a crítica de que ele não seria um defensor intransigente dos direitos individuais, mas sim um “coletivista”, no sentido de que privilegiaria o interesse da comunidade, expresso pelo princípio da maioria, em detrimento dos interesses dos indivíduos que discordassem da deliberação majoritária. Seria a tirania da maioria. Desta forma, segundo estes críticos, Locke sempre faria prevalecer o interesse coletivo, comunitário, sobre o interesse individual. Um destes críticos é Wilmoore Kendall, a quem Monson faz referência asseverando que
“Desde que ‘o princípio da maioria é, em uma palavra, implícito na lógica da vida comunitária’, segue que ‘o julgamento da comunidade corresponde aos julgamentos individuais mesmo quando os indivíduos discordem do julgamento comunitário’. Os direitos dos homens então ’são aqueles que são compatíveis com o bem comum que são, por sua vez, determinados pela maioria’ e Locke está defendendo uma teoria de regra da maioria ‘tão autoritária que nenhum individualista poderia aceitá-la’[4]” (Monson, in Armstrong e Martin, 1968:187 e 188).
Um exemplo do que Kendall considera como sendo o aspecto “coletivista” do pensamento de Locke pode ser expresso pela seguinte passagem:
“Para compreendê-lo melhor, é conveniente considerar que todo homem, quando de início se incorpora a uma comunidade, também a ela anexa, em virtude dessa união, e submete à comunidade, as posses que tenha ou venha a adquirir que ainda não pertencem a qualquer outro governo. (...). Pelo mesmo ato, portanto, por meio do qual qualquer pessoa se une, sendo antes livre, a uma comunidade, une igualmente as suas posses que anteriormente também eram livres; e ambas, pessoa e posse, ficam sujeitas ao domínio dessa comunidade, por todo o tempo que exista” (Locke, 1973:86).
Deste modo, de fato, por este trecho, pode-se considerar que as idéias de Locke são incompatíveis com o liberalismo, devido à forma plena pela qual a comunidade dispõe da propriedade pertencente a seus componentes individuais.
O autor considera, também, que a maioria seria a responsável pelo movimento do corpo político criado em decorrência da realização do pacto social. Locke salienta que é necessário que o corpo político se mova, pois seria uma incoerência que ele fosse criado para permanecer inerte (Ibidem:78). O autor acrescenta que este movimento tem que ser sempre na direção indicada pela maioria dos membros do corpo político; caso contrário, a conseqüência será a dissolução deste último (Ibidem:78). Para que a comunidade política permaneça unida, coesa, é necessário que se movimente sempre no sentido estabelecido pela maioria:
“Quando qualquer número de homens, pelo consentimento de cada indivíduo, constitui uma comunidade, tornou, por isso mesmo, essa comunidade um corpo, com o poder de agir como um corpo, o que se dá tão só pela vontade e resolução da maioria. Pois o que leva qualquer comunidade a agir sendo somente o consentimento dos indivíduos que a formam, e sendo necessário ao que é um corpo para mover-se em um sentido, que se mova para o lado para o qual leva a força maior, que é o consentimento da maioria, se assim não fosse, seria impossível que agisse ou continuasse a ser um corpo, uma comunidade, (...).(Locke, 1973:77).
Cabe, ainda, destacar a diferença que Locke estabelece entre a sociedade política e a forma de governo.
A sociedade política é constituída após a celebração do pacto social, que origina o que o autor denomina de comunidade (Ibidem:91), ou “Commonwealth”, que poderia se considerar como sendo uma República, a “civitas” dos latinos (Ibidem:91).
Já a forma de governo seria determinada pelo modo de a comunidade dispor do poder de fazer as leis. A aludida diferença fica clara no seguinte trecho:
“Tendo a maioria, ..., quando de início os homens se reúnem em sociedade, todo o poder da comunidade naturalmente para si, pode empregá-lo para fazer leis destinadas à comunidade de tempos em tempos, que se executam por meio de funcionários que ela própria nomeia: nesse caso, a forma de governo é uma perfeita democracia; ou então pode colocar o poder de fazer leis nas mãos de alguns homens, escolhidos, seus herdeiros e sucessores: nesse caso, ter-se-á uma oligarquia; ou então nas mãos de um único homem: constitui-se nesse caso uma monarquia” (Ibidem:91).
Quanto à forma de governo, ela é escolhida depois de constituída a comunidade política mediante a realização do pacto social, ao qual todos os membros deram seu consentimento individual. Então, a maioria dos membros da comunidade optam por uma forma de administração que vai gerir esta comunidade, ou seja, selecionam determinada forma de Governo Civil, que poderá ser democrático, oligárquico ou monárquico, caso a maioria dos integrantes da comunidade resolvam atribuir o poder de fazer leis a vários representantes, a poucos representantes, ou a um único representante, respectivamente. É digna de nota a referência que Locke faz à forma degenerada da aristocracia, a oligarquia, ao adotar a classificação aristotélica das formas de governo.
A democracia representativa é a forma que Locke propõe para que a comunidade política, a Commonwealth, seja governada e gerida, tendo em vista as referências que o autor faz ao poder Legislativo composto por representantes escolhidos pelo povo como sendo o órgão administrador da comunidade (Locke, 1973:92,96,101,124,125). Assim, a democracia representativa é definida como sendo aquela na qual “as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade” (Bobbio, 1987:44) .
3.5. A democracia representativa como forma de organização do poder Legislativo e a liberdade negativa:
Para o autor, o poder Legislativo, organizado sob a forma de uma democracia representativa, é “o poder supremo da comunidade, (...) sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade uma vez o colocou” (Locke, 1973:92), não podendo “qualquer edito de quem quer que seja, ter a força e a obrigação da lei se não tiver sanção do legislativo escolhido e nomeado pelo público” (Ibidem:92).
Nesta passagem é evidenciada tanto a idéia da democracia, presente na escolha e na nomeação dos integrantes do Legislativo por parte da população governada, quanto a questão da representação política, quando é afirmado que as leis terão que ser aprovadas pelos representantes eleitos para o Legislativo.
As concepções de Locke sobre democracia representativa e o poder Legislativo também são expressas no seguinte trecho:
“Somente o povo pode indicar a forma da comunidade, a qual consiste em constituir o legislativo e indicar em que mãos deve estar. E quando o povo disse, sujeitar-nos-emos a regras e seremos governados por leis feitas por estes homens, e dessa forma, ninguém mais poderá dizer que outros homens lhes façam leis, nem pode o povo ficar obrigado por quaisquer leis que não sejam as que forem promulgadas pelos que escolheu e autorizou a fazê-las. Sendo o poder legislativo derivado do povo por concessão ou instituição positiva e voluntária, o qual importa em fazer leis e não em fazer legisladores, o legislativo não terá o poder de transferir a própria autoridade de fazer leis, colocando-a em outras mãos”(Locke, 1973:96).
As idéias de democracia e de soberania popular estão presentes no trecho em que o autor afirma que o poder Legislativo é proveniente do povo (“sendo o poder Legislativo derivado do povo” (Ibidem:96)). A representação política é salientada devido ao fato de o autor afirmar que a população somente será compelida a obedecer às leis que tenham sido ratificadas pelos homens indicados por ela para elaborar as leis, ou seja, seus representantes. O conceito de representação política de Locke é explicitado quando o autor afirma que o Governo Civil somente poderá tributar a propriedade dos cidadãos “com o seu próprio consentimento, isto é – o consentimento da maioria, dado diretamente ou por intermédio dos seus representantes” (Ibidem: 95 e 96). Deste modo, Locke considera que o consentimento do representante político equivale à aquiescência do próprio indivíduo, e não cogita da possibilidade de existência de conflito de interesses entre o representante e o representado.
O tema também merece consideração do autor na passagem a seguir: “A constituição do poder legislativo é o primeiro ato fundamental da sociedade, por meio do qual se provê à continuação da união de todos sob a direção de pessoas e vínculos de leis estabelecidas pelos que estão autorizados a fazê-las, mediante o consentimento e a designação por parte do povo” (Ibidem:124).
Assim, é demonstrado que o poder Legislativo tem seus membros escolhidos pela população, caracterizando a democracia, e que estes membros sancionam leis em nome do povo, configurando, deste modo, a representação política. É importante qualificar a democracia do pensador inglês, no sentido de que ela era restrita, dado que a comunidade política era uma associação composta por proprietários e o direito de cidadania era limitado a estes mesmos proprietários (Vieira, 1997:41). Yolton, corroborando a existência da democracia representativa no pensamento de Locke, assinala que, para este autor, “A escolha de representantes pertence unicamente ao povo” (Yolton, 1996:246).
Locke também faz alusão à democracia representativa como modalidade do Governo Civil da comunidade quando afirma que “Se o legislativo ou qualquer parte dele compõe-se de representantes escolhidos pelo povo para esse período, os quais voltam depois para o estado ordinário de súditos e só podendo tomar parte no legislativo mediante nova escolha, este poder de escolher também será exercido pelo povo...” (Locke, 1973:101), o qual poderá exigir que os parlamentares venham a “emendar lei antiga ou fazer nova lei”(Ibidem:101). Desta maneira, fica caracterizada a democracia quando o autor afirma que a seleção dos representantes será realizada pela população jurisdicionada. Também a representação política fica configurada, na medida em que Locke menciona que o povo poderá exigir que os representantes emendem lei antiga ou sancionem uma nova.
O autor também discorre sobre a possibilidade de ocorrência de distorções na representação política e sobre a necessidade de correções. Assevera ele que “acontece freqüentemente que em governos nos quais parte do poder legislativo consiste em representantes escolhidos pelo povo, com o correr do tempo essa representação se torna desigual e desproporcionada aos motivos que levaram a estabelecê-la de início” (Locke, 1973:102). Locke cita o exemplo de cidades que antes eram muito povoadas e que depois ficaram desertas, mas continuaram com a mesma quantidade de representantes, e de outras localidades que eram desertas e se tornaram populosas, e que continuaram tendo uma reduzida quantidade de representantes. O autor afirma que
“Pode-se ficar convencido dos flagrantes absurdos a que conduz a obediência ao costume se a razão o deixou, quando se vê o simples nome de uma cidade da qual nada mais resta do que ruínas, onde mal se depara com uma choupana ou com um pastor como habitante, enviar tantos representantes à grande assembléia dos que fazem leis do que um condado inteiro numeroso em habitantes e poderoso em riquezas. (...).
(...).O poder de instituir novas corporações, e com elas novos representantes, importa na suposição que com o tempo as medidas de representação podem variar, e os lugares que não tinham anteriormente direito à representação podem adquiri-lo; e pela mesma razão cessam de tê-lo os que anteriormente o possuíam se se tornam pouco importantes para privilégios de tal ordem” (Locke, 1973:102 e 103).
Assim, Locke considera que é necessário corrigir esta distorção, atribuindo mais representantes às cidades mais populosas e importantes e reduzindo o número de representantes das menos populosas. Para tal, o autor propõe que o poder Executivo, que tem a prerrogativa de convocar o poder Legislativo, faça as devidas correções na representação política, “observando de preferência mais a verdadeira proporção do que a moda da representação ...” (Ibidem:102). Assim, o Executivo deve corrigir a representação com base na efetiva proporção pela qual cada segmento do povo contribui para o bem público (Ibidem:102), e não pelo costume (“moda da representação”), para estabelecer a quantidade de representantes eleitos de cada cidade. Desta maneira, Locke complementa sua formulação de democracia representativa, demonstrando preocupação com a evolução do funcionamento da mesma, ao prever a hipótese de as regras que regem a representação política não acompanharem a evolução social e demográfica tanto das localidades quanto da população representadas. Além disto, o autor propõe ajustes nestas regras, tendo como intuito assegurar aos eleitores sua devida representação política. Embora não se defina explicitamente a respeito, pode-se inferir que o autor seja adepto da representação proporcional, devido ao fato de afirmar que os eleitores devem ser representados pela “verdadeira razão, o número de membros em todos os lugares que tiverem direito à representação distinta – a que parte alguma do povo, embora incorporada, pode pretender senão em proporção à assistência que propicia ao público – (...) ” (Ibidem:102). Deste modo, Locke parece preconizar um direito à representação política para os segmentos da população que seja diferenciado e proporcional, compatível, com o montante que cada um destes segmentos paga, em termos tributários, ao Governo Civil (“assistência que propicia ao público”). Yolton (1996) ratifica esta interpretação, afirmando que “Locke tinha um conceito de representação proporcional” (Yolton, 1996:246).
Em relação à representação política, Locke, ao defender esta última, está preconizando a liberdade individual negativa, a qual, segundo Berlin (1981), consiste na liberdade que o indivíduo tem para agir sem a interferência de outros indivíduos (Berlin, 1981:137). Esta modalidade de liberdade consiste no estabelecimento de uma área, que seria a esfera privada, na qual o Estado ou o organismo coletivo não pode imiscuir-se para tentar exercer o controle sobre a conduta individual. Berlin afirma que Locke considerava que “deveria haver uma certa área mínima de liberdade pessoal que não deve ser absolutamente violada, pois se seus limites forem invadidos, o indivíduo passará a dispor de uma área demasiado estreita (...) mesmo para aquele desenvolvimento mínimo de suas faculdades naturais” (Ibidem:137). A conseqüência disto é a demarcação da fronteira entre a área da vida privada e a da competência da autoridade pública, é o estabelecimento de limites para a atuação do poder público. Na obra de Locke, este limite é caracterizado, principalmente, pelo fato de o Governo estar sempre subordinado à aprovação da sociedade, quando, por exemplo, ele afirma que ”Sendo o poder legislativo derivado do povo por concessão ou instituição positiva e voluntária ...” (Locke, 1973:36). Desta forma, o Governo fica sob o controle da sociedade. O autor também estabelece limites à ação da autoridade pública em relação à esfera individual, caracterizando, desta forma, a liberdade negativa, quando afirma que os legisladores só poderão dispor dos bens dos cidadãos, bem como tributá-los, mediante acedência destes (Ibidem:96). A este respeito, Bobbio (1963) afirma que
“O poder supremo não pode fazer nada que prive um cidadão de sua propriedade. É o caso de se considerar que, para Locke, a propriedade é “inviolável e sagrada” (...). Para que o poder supremo possa privar os cidadãos de uma parte de suas propriedades (como acontece, por exemplo, nas imposições tributárias) é necessário o consentimento deles” (Bobbio, 1963:260).
Na citação, fica caracterizada, no que se refere à propriedade privada, a liberdade negativa e o estabelecimento da área privativa do cidadão – indivíduo. O limite para a intervenção da autoridade pública neste setor da esfera privada do indivíduo, relativo à propriedade, é a concordância deste último; a autoridade pública não pode interferir neste aspecto da esfera privada do indivíduo sem sua aprovação, sob pena de violá-la.
Por fim, pode-se depreender que a própria defesa que o autor faz da representação política pode ser considerada uma defesa da liberdade negativa: ao delegar as funções públicas que, de outra forma, teria que exercer diretamente, a um representante, o cidadão passa a dispor de tempo para se dedicar a atividades particulares, ficando, pelo menos parcialmente, isento de ter que destinar todo o seu tempo à esfera pública. Desta maneira, evita-se a situação dos cidadãos na Antigüidade Clássica, na qual a liberdade destes era essencialmente política e sinônimo de cidadania (Sartori, 1994a:45). O cidadão fica resguardado, desta maneira, de ter todo o seu tempo absorvido pela esfera pública, podendo se devotar à sua respectiva esfera privada Assim, pode-se concluir que a dimensão negativa da liberdade está vinculada à democracia representativa.
3.6. A legitimidade do Governo e o funcionamento dos poderes Legislativo, Executivo e Federativo:
A questão da legitimidade do Governo é tratada por Locke como sendo referente ao fato de que somente a concordância espontânea, a anuência dos indivíduos, pode ser o fundamento da formação de uma comunidade política ou sociedade civil, bem como do Governo Civil que administrará esta comunidade e exercerá o poder político. A respeito, o autor, aludindo às mencionadas concordância e anuência, afirma que “(...) isto e somente isto deu ou podia dar origem a qualquer governo legítimo no mundo” (Locke, 1973:78). Para o autor, “Nenhum governo pode ter direito à obediência de um povo que não a consentiu livremente” (Ibidem:115). Portanto, a origem legítima do Governo Civil é a aquiescência da população governada. Yolton corrobora este argumento, afirmando que, para Locke, “Livre consentimento e seleção de seus representantes são as bases para um governo legítimo ” (Yolton, 1996 : 246), sendo estes, da mesma forma, os fundamentos da democracia representativa propugnada pelo autor.
Locke, discorrendo sobre os poderes Legislativo e Executivo, afirma que ambos se originam da transferência, à comunidade, efetuada pela adesão dos indivíduos, mediante consentimento, ao contrato social, pelo qual é formada a sociedade política, dos poderes que estes indivíduos possuem no estado de natureza, de decidir quando a lei da natureza foi violada e qual deve ser a punição pertinente a cada tipo de violação, e também o de executar a punição. No estado civil, o primeiro destes poderes passa a ser estabelecido pelas leis emanadas do poder Legislativo da sociedade, as quais determinarão em quais casos a lei civil, inspirada na lei da natureza (Locke, 1973:93), será desrespeitada e qual a punição que deverá ser imposta para cada tipo de violação. Quanto ao segundo, o poder de execução da lei da natureza, pelo qual todo homem, no estado natural, tem a jurisdição para aplicar a penalidade que considerar apropriada aos transgressores da aludida lei, este será substituído, na comunidade política, pelo poder Executivo da sociedade, que garantirá a execução das punições previstas na lei civil àqueles que a violarem. O autor se refere a este assunto na seguinte passagem:
“E por essa maneira a comunidade consegue, por meio de um poder julgador, estabelecer que castigo cabe às várias transgressões quando cometidas entre os membros da sociedade – que é o poder de fazer leis – (...). Todavia, embora todo homem que tenha entrado para uma sociedade civil, tornando-se membro de qualquer comunidade, tenha por isso abandonado o poder de castigar ofensas contra a lei de natureza no exercício do seu próprio julgamento particular, foi dado direito à comunidade, para o julgamento das ofensas que ele abandonou ao poder legislativo em todos os casos em que possa apelar para o magistrado, de empregar a força dele para a execução dos julgamentos da comunidade, sempre que ele assim o exija; o que, na realidade, importa no seu próprio julgamento, eis que ele mesmo ou o seu representante o faz. E aqui deparamos com a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade,...”(Ibidem:73).
Desta forma, no estado de natureza, cada homem detinha, individualmente, o poder de determinar em quais situações ocorreriam as transgressões à lei da natureza, a qual consistiria nas obrigações de preservar a si próprio e de contribuir para a conservação da espécie humana, não prejudicando o semelhante em suas vida, liberdade, saúde e bens (Locke, 1973:42). Além deste, cada homem possuiria o poder de executar suas sentenças individuais em relação às violações da mencionada lei. O exercício destes dois poderes naturais do homem por todos os indivíduos é a causa dos inconvenientes, já analisados, do estado de natureza. A celebração do pacto social e a constituição da comunidade política são realizadas para tentar remediar esta situação. Quando o contrato social é efetivado, o homem transfere à comunidade seu poder natural de estabelecer quais as situações em que a lei da natureza foi desrespeitada, e a comunidade política passa, por meio do exercício do poder Legislativo, a determinar, nas leis civis, quais são os casos em que a lei da natureza é violada. Isto tendo em vista que, para Locke, “As obrigações da lei da natureza não cessam na sociedade, mas somente em muitos casos se tornam mais rigorosas, e por leis humanas se lhe anexam penalidades conhecidas, destinadas a forçar-lhes a observância. Assim a lei da natureza fica de pé como lei eterna para todos os homens, tanto legisladores como quaisquer outros” (Ibidem:93), pelo que se conclui que a lei civil não somente é baseada na lei da natureza como regulamenta esta última. Além disto, em decorrência da adesão ao pacto social, o homem abdica de seu poder natural de buscar reparação, ele próprio, quando julga que a lei da natureza foi desobedecida contra seu interesse, ou seja, seu poder de executar a referida lei. Este poder é transferido à comunidade política, que, tendo estabelecido, nas leis civis, os casos em que a lei da natureza é desrespeitada, possuindo judicatura para julgamento, por meio da ação dos magistrados civis, das transgressões perpetradas contra a lei civil, executa as sentenças dos magistrados utilizando, caso necessário, a força pública da comunidade. Esta última é o resultado da união das forças individuais de seus membros, e, por meio de sua utilização para garantir o cumprimento das sentenças judiciais, a sociedade pratica o poder Executivo, de acordo com a orientação suprema do poder Legislativo (Locke, 1973:97).
Manent (1990) ratifica a interpretação apresentada acerca da questão da origem dos poderes Legislativo e Executivo da sociedade civil em Locke, a partir dos poderes que o homem possuía no estado de natureza, afirmando que
“Consideremos como Locke define a origem e a função dos dois poderes. Ambos têm sua fonte no estado de natureza, são poderes que possui todo indivíduo que vive nesse estado.
O legislativo é o poder que cada um tem de fazer o que julgar conveniente para sua preservação e a de outrem, poder este que, em seu ingresso na “sociedade civil” ele abandonará parcialmente para que seja regulamentado por leis.
O executivo é o poder que cada um tem, no estado de natureza, de punir as infrações contra a lei da natureza. Por ocasião do ingresso na “sociedade civil”, esse poder é inteiramente entregue à sociedade: a força natural que, no estado de natureza, o indivíduo podia empregar de acordo com sua vontade para punir os transgressores passa a só poder ser empregada segundo as diretrizes do poder legislativo. A força executiva da sociedade é composta pela união das forças executivas dos indivíduos” (Manent, 1990:79).
Com referência aos poderes da comunidade política propriamente ditos, Locke aborda, primeiramente, o Legislativo, que considera supremo e que não precisa ficar permanentemente reunido (Locke, 1973:92 e 97). Sobre este poder, o autor afirma que seu funcionamento deve se orientar pelos seguintes princípios, que seriam limites ao seu exercício:
“Primeiro, tem de governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, que não poderão variar em casos particulares, instituindo a mesma regra para ricos e pobres, para favoritos na corte ou camponeses no arado;
Segundo, tais leis não devem ser destinadas a qualquer outro fim senão o bem do povo;
Terceiro, não devem lançar impostos sobre a propriedade do povo sem o consentimento deste, dado diretamente ou por intermédio dos seus deputados. (...)
Quarto, o legislativo não deve nem pode transferir o poder de elaborar leis a quem quer que seja, ou colocá-lo em qualquer outro lugar que não o indicado pelo povo”(Ibidem:96).
Deste modo, Locke sintetiza as principais restrições ao funcionamento do poder Legislativo em seu sistema político, propondo uma legislação unificada, neutra e impessoal, que seja aplicável a todos e não faça qualquer tipo de distinção entre os membros da sociedade. Estabelece a origem do Governo Civil como sendo o consentimento individual, impondo limites ao Governo, e, como conseqüência, determinando a extensão do mesmo, a qual consiste no poder a ele atribuído pelo assentimento dos governados. Tudo que exorbitar disto, como, por exemplo, a tributação excessiva das propriedades dos cidadãos sem a acedência destes, ou de seus representantes, fará com que o poder derivado do Legislativo retorne ao povo, que poderá, legitimamente, dispor dele conforme achar melhor. Finalmente, determina o objetivo do Governo Civil, que é o bem do povo, e não o dos governantes. Na passagem, ao discorrer sobre a tributação da propriedade do povo, o autor afirma que a referida tributação só poderá ser feita mediante aquiescência dos próprios cidadãos ou de seus deputados, configurando, assim, a representação política.
A respeito deste assunto, pode-se associar os limites citados à questão das liberdades negativas anteriormente mencionadas, tendo em vista que os aludidos limites constituem restrições que delimitam a área de atuação do poder público, impedindo que ele ultrapasse a área de fronteira entre a esfera privada do indivíduo e a competência legal. Sobre este tema, Bobbio (1963) afirma que
“O primeiro destes limites diz respeito ao fato de que os homens, ao transmitirem o poder civil, transmitem, essencialmente, o poder de conservar e proteger seus bens, e não outros direitos irrenunciáveis, como os direitos à liberdade, à vida e aos próprios bens, a fim de que o poder civil não tenha mais direitos do que aqueles que são transmitidos ao Estado. Este limite é a base do estado liberal: é o limite que deriva da existência dos direitos naturais inalienáveis e invioláveis, dos quais o indivíduo não pode ser despojado pelo poder civil” (Bobbio, 1963:259).
As liberdades negativas e os direitos naturais estão vinculados na medida em que as primeiras são as origens dos últimos. Desta forma, os limites estabelecidos ao poder do Estado, da entidade coletiva, no sentido de restringir a ação da autoridade pública, impedindo-a de dispor arbitrariamente da vida, da liberdade e da propriedade dos indivíduos, não podendo o poder público atentar discricionariamente contra qualquer uma delas, são os fundamentos dos respectivos direitos individuais naturais inalienáveis e invioláveis à vida, à liberdade à propriedade. Sendo defeso à autoridade pública intervir despoticamente nestes três aspectos da vida individual, estabelece-se inequivocamente os limites de atuação do Estado e determina-se a esfera privada do indivíduo, na qual o Estado não pode imiscuir-se sem a acedência individual. Como conseqüência disto, o indivíduo passa a dispor dos respectivos direitos naturais como proteção contra interferências indevidas da autoridade pública. Bobbio também ressalta que o poder civil não poderá, em hipótese alguma, privar o indivíduo do exercício destes direitos, que, por serem naturais, estão protegidos contra qualquer constituição, lei ou ato normativo ou legal que tencione violá-los.
Em relação à doutrina teórica que trata destes direitos naturais inalienáveis e invioláveis, o Jusnaturalismo, Bobbio escreve que ele “é o caminho através do qual têm passado as concepções que defendem a instituição de limites ao poder estatal. A construção política de Locke obedece à idéia principal de que o bom governo é aquele que nasce com seus limites invioláveis estabelecidos” (Bobbio, 1963:273). Desta maneira, conclui-se ser Locke um dos precursores do Jusnaturalismo, ou teoria dos direitos naturais, e que este último está alicerçado no conceito de liberdade negativa conforme apresentado por Berlin (1981), sendo esta “uma certa área mínima de liberdade pessoal que não deve ser absolutamente violada, (...). (...) uma fronteira entre a área da vida privada e a da autoridade pública” (Berlin, 1981:137).
Acerca dos aludidos limites, Locke, afirma, ainda, que “O poder do Legislativo, em seus limites extremos, restringe-se ao bem público da sociedade. É poder que não tem outro objetivo senão a preservação e, portanto, não poderá ter nunca o poder de destruir, escravizar ou propositalmente empobrecer os súditos” (Locke, 1973:93). Caso os integrantes do poder Legislativo estabeleçam leis visando a seu benefício particular, e não ao interesse coletivo, o que Locke considera como um dos significados da tirania (Ibidem:119), o autor considera a possibilidade de dissolução do Legislativo e do Governo Civil, retornando ao povo o poder supremo de que estava investido o poder Legislativo, para que o povo disponha de tal poder da forma que julgar mais conveniente (Ibidem:99). Nisto consiste o princípio da soberania popular em Locke.
A supremacia do poder Legislativo para Locke é atestada pela seguinte passagem:
“O grande objetivo da entrada do homem em sociedade consistindo na fruição da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas nessa sociedade, a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo; (...). Esse poder legislativo não é somente o poder supremo da comunidade ...” (Locke, 1973:92).
O autor defende que tal poder não fique permanentemente reunido argumentando que “Como se tem de pôr constantemente em prática as leis, que devem continuar sempre em vigor, mas que se podem elaborar em curto prazo, não há necessidade de manter-se tal poder permanentemente em exercício, pois que nem sempre teria no que se ocupar” (Ibidem:97).
O poder Legislativo tem sua instituição justificada pela necessidade de concretização daquele que é o principal motivo para que os homens constituam a sociedade política, qual seja, a fruição pacífica do direito de propriedade (Ibidem:92). Isto se dará pelas leis que este poder promulgar no sentido de fazer com que o mencionado direito seja desfrutado em condições seguras (Ibidem:92).
Quanto ao poder Executivo, o autor justifica sua existência da seguinte forma:
“Todavia, como as leis elaboradas imediatamente e em prazo curto têm força constante e duradoura, precisando para isso de perpétua execução e assistência, torna-se necessária a existência de um poder permanente que acompanhe a execução das leis que se elaboram e ficam em vigor” (Ibidem:97).
Ou seja, devido ao fato de que as leis vigentes precisam sempre ser cumpridas, já que estão permanentemente em vigor, o poder Executivo também deve ter caráter permanente, ao contrário do Legislativo, que é temporário, posto que não existe a necessidade de sempre serem elaboradas novas leis.
O autor também ressalta que os poderes Legislativo e Executivo devem ser exercidos por pessoas distintas, devido ao fato de que, quando os poderes de fazer as leis e o de executá-las estão reunidos nas mãos do mesmo grupo de pessoas, pode ocorrer de estas pessoas considerarem que estão acima das leis que elas próprias elaboraram, não sendo necessário, no seu entendimento, que elas obedeçam às leis que elas mesmas fizeram. Uma outra razão para que os referidos poderes sejam exercidos por pessoas diferentes é o fato de que este mesmo grupo de pessoas que sanciona e faz cumprir as leis pode adaptá-las às suas conveniências pessoais ou corporativas, não só quando da elaboração, mas quando da execução das leis. Locke aborda o assunto afirmando que
“Como pode ser tentação demasiado grande para a fraqueza humana, capaz de tomar conta de todo o poder, para que as mesmas pessoas que têm por missão elaborar as leis também tenham nas mãos a faculdade de pô-las em prática, ficando dessa maneira isentas de obediência às leis que fazem, e podendo amoldar a lei, não só quando a elaboram como quando a põem em prática, a favor delas mesmas, e assim passarem a ter interesse distinto do resto da comunidade contrário ao fim da sociedade e do governo; (...).
(...). E desse modo os poderes legislativo e executivo ficam freqüentemente separados” (Locke, 1973:97).
Locke considera, ainda, que um Governo Civil é bem estabelecido “Quando os poderes executivo e legislativo estiverem em mãos diversas...” (Ibidem:104). Ou seja, o autor considera que um bom governo é aquele em que existe a separação completa entre os aludidos poderes. Além disto, abordando ainda a mesma questão, e reiterando a supremacia do poder Legislativo antes referida, o autor afirma que “O poder executivo, colocado em qualquer lugar menos em alguém que também tenha parte no legislativo, é visivelmente subordinado” (Ibidem:100).
Um instituto jurídico importante, exercido pelo poder Executivo, a prerrogativa, merece de Locke um destaque especial. O autor considera que os legisladores, por mais competentes que sejam, nunca serão capazes de elaborar leis que abranjam todas as situações possíveis de ocorrer na vida civil. Sempre haverá algum tipo de situação em relação à qual não haverá lei que a contemple (Locke, 1973, passim 104-108). Yolton destaca este aspecto, afirmando que “Locke reconheceu, ..., que a lei escrita não poderia cobrir todas as contingências, não poderia ser suficientemente específica para habilitar os governantes ou o órgão executivo a decidir toda e qualquer questão” (Yolton, 1996:198). Manent (1990) também aborda este assunto, asseverando que “Como nem todas as circunstâncias podem ser previstas ou abarcadas pelas leis, caberá deixar a este último (o poder executivo) poder suficiente para fazer face aos imponderáveis e para adaptar as próprias leis ao que exigem o bem público:será preciso conceder ao executivo uma prerrogativa” (Manent, 1990:77). Tendo isto em vista, é necessário que o detentor do poder Executivo possua competência legal para tomar as decisões necessárias à promoção do bem público em situações não previstas no ordenamento jurídico do estado civil. É a esta competência que Locke denomina de prerrogativa. Segundo suas palavras, a prerrogativa consiste em “agir de acordo com a discrição a favor do bem público, sem a prescrição da lei e muita vez mesmo contra ela, é o que se chama de prerrogativa” (Locke, 1973:104).
A existência da prerrogativa é justificada por Locke devido ao fato de que
“o bem da sociedade exige que várias questões fiquem entregues à discrição de quem dispõe do poder executivo; porque não sendo os legisladores capazes de prever e prover por meio de leis tudo quanto possa ser útil à comunidade, o executor das leis, tendo o poder nas mãos, possui o direito de, pela lei comum da natureza, fazer uso dele para o bem da sociedade, em muitos casos em que a lei municipal não estabeleceu qualquer direção, até que o legislativo, convenientemente reunido, providencie a respeito. Muitos assuntos há a que a lei não pode prover por meio algum; e estes devem necessariamente ser entregues à discrição daquele que tem nas mãos o poder executivo, para que as regule conforme o exigirem o bem público e a vantagem geral ...” (Ibidem:104).
Locke também considera a possibilidade de que o poder Legislativo tenha que ser convocado a se reunir extraordinariamente, fora de seu período de atividade normal, em virtude de necessidade pública. Sobre isto,o autor afirma que
“O poder de convocar e dispensar o legislativo, concedido ao executivo, não lhe dá superioridade sobre aquele, mas constitui encargo fiduciário que lhe atribuem para segurança do povo, no caso em que a incerteza e inconstância dos negócios humanos não comportassem regra fixa e rigorosa, porquanto não sendo possível que os primeiros organizadores do governo, por qualquer antecipação, estivessem tão seguros dos acontecimentos futuros que se achassem em condições de prefixar períodos tão justos de volta e duração das reuniões do legislativo, ..., o melhor remédio que se poderia encontrar para esta falha seria confiar a questão à prudência de alguém que devesse estar sempre presente e cujo papel fosse zelar pelo bem público. Reuniões freqüentes do legislativo, e longa permanência das assembléias quando não fossem necessárias, só poderiam tornar-se pesadas para o povo, devendo necessariamente com o tempo produzir transtornos perigosos, e contudo a mudança rápida dos negócios poderia muita vez ser de tal ordem que exigisse auxílio por parte do legislativo. Qualquer demora na convocação poderia pôr em perigo o bem público; (...). Que se poderia fazer neste caso (...), senão confiá-lo à prudência de alguém que, estando presente e conhecendo os negócios públicos, pudesse fazer uso dessa prerrogativa a favor do bem público?” (Locke, 1973:101).
Desta maneira, Locke preconiza que o poder Executivo exerça a prerrogativa de convocar extraordinariamente o Legislativo em caso de necessidade pública. Isto porque este último não está permanentemente reunido, não sendo possível prever, na lei civil, todos os casos excepcionais em que a atuação do Legislativo se fará necessária fora de seu período normal de atividade. Entretanto, o autor adverte que isto não implica a violação da supremacia do poder Legislativo. Afirma ele: “embora o executivo tenha a prerrogativa de convocar ou dissolver as reuniões do legislativo, nem por isso lhe é superior” (Ibidem:102).
O terceiro poder, que seria o responsável pelo estabelecimento das relações exteriores do país, seria o poder Federativo. Sobre isto, Locke escreve o seguinte: “(...) a comunidade inteira é um corpo em estado de natureza relativamente a todos os estados ou pessoas fora da comunidade. Aí se contém, portanto, o poder de guerra e paz, de ligas e alianças, e todas as transações com todas as pessoas e comunidades estranhas à sociedade, podendo-se chamar “federativa”...” (Ibidem:97 e 98).
Deste modo, o poder Executivo se refere ao âmbito interno do país, enquanto o Federativo ao aspecto externo. Entretanto, apesar de terem jurisdições distintas, Locke preconiza que sejam exercidos pelo mesmo magistrado, para evitar duplicidade de comando, conforme a passagem em que o autor afirma que
“Embora, conforme disse, os poderes executivo e federativo de qualquer comunidade sejam realmente distintos entre si, dificilmente podem separar-se e colocar-se ao mesmo tempo em mãos de pessoas distintas; visto como ambos exigindo a força da sociedade para seu exercício, é quase impraticável colocar-se a força do Estado em mãos distintas e não subordinadas, ou os poderes executivo e federativo em pessoas que possam agir separadamente, em virtude do que a força do público ficaria sob comandos diferentes, o que poderia ocasionar, em qualquer ocasião, desordem e ruína” (Locke, 1973:98).
Pode-se concluir, então, que, no sistema político proposto por Locke, existe separação parcial entre os poderes, na medida em que os poderes Legislativo e Executivo são exercidos por mandatários diferentes. Por outro lado, os poderes Executivo e Federativo são exercidos pelos mesmos magistrados. Bobbio (1963) considera que o modelo político de Locke tem apenas dois poderes, o Legislativo e o Executivo, e não três. Para este autor, o poder Federativo é apenas uma emanação do Executivo. Ele afirma que “Este poder Federativo é manifestamente uma parte do poder Executivo, (...), indissoluvelmente ligado ao poder Executivo” (Bobbio, 1963:269). Além disto, ao contrário do sistema de separação e harmonia entre os poderes de Montesquieu, em que cada um dos poderes exerce um controle sobre os outros, o sistema de Locke é de supremacia do poder Legislativo sobre os demais, não considerando a possibilidade de existência de um controle mútuo a ser exercido pelos poderes em relação a eles mesmos. No sistema de Montesquieu não existe superioridade de um poder sobre os demais, os poderes apresentam igualdade entre as respectivas quantidades de poder atribuídas a cada um deles. Assim, no sistema político de Montesquieu existe eqüipotência entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Esta interpretação é ratificada por Bobbio (1963) que afirma que
“A solução que objetiva à coordenação dos poderes é aquela que foi elaborada teoricamente por Montesquieu e será acolhida pela Constituição dos Estados Unidos: a idéia inspiradora desta é que somente quando os poderes máximos do Estado estiverem situados no mesmo plano, eles poderão controlar-se reciprocamente, e somente este controle recíproco produz uma situação de equilíbrio entre os poderes, que é o maior obstáculo ao despotismo e a maior garantia da liberdade dos cidadãos. A solução lockiana não tem nada a ver com a teoria do equilíbrio entre os poderes, (...). Locke sustenta que os dois poderes, uma vez separados, devem estar subordinados um ao outro, e precisamente o poder executivo deve estar subordinado ao poder legislativo. Em suma, a teoria lockiana não é uma teoria de separação e equilíbrio entre os poderes, mas de separação e subordinação entre os poderes e, em última instância, uma teoria de supremacia do legislativo (que é, pois, a doutrina constitucional que está na base dos modernos estados parlamentares) (Bobbio, 1963: 271 e 272).
Desta maneira, depreende-se que a distinção básica entre os sistemas políticos de Locke e Montesquieu é que o primeiro é um modelo de hegemonia do poder Legislativo sobre os demais poderes, no qual a quantidade de poder atribuída ao Legislativo é maior do que a que é atribuída aos demais, enquanto o segundo é um sistema no qual a mesma quantidade de poder é atribuída a cada um dos poderes, havendo, como conseqüência, eqüipotência entre os aludidos poderes. É importante ressaltar também que, para Bobbio, existe plena separação de poderes no modelo político de Locke, entre o Legislativo e o Executivo, porque este autor não considera que o poder Federativo seja um poder, apenas uma manifestação do Executivo.
Cabe ressaltar, ainda, a forma como Locke aborda o papel do poder Judiciário. Apesar de não fazer referência a este último, e sim ao poder Federativo, o autor menciona a existência de judicatura (Locke, 1973:73), um corpo de magistrados para solucionar os litígios entre os indivíduos. Cabe esclarecer que o magistrado civil no sistema de Locke, pelo que se pode depreender das alusões do autor a esta autoridade, seria ou um membro do poder Legislativo investido de funções judiciais, ou então alguém designado pelo poder Legislativo para desempenhar funções jurisdicionais. Isto porque o autor afirma que uma das funções precípuas a serem desempenhadas pelo poder Legislativo será a administração da justiça, como, por exemplo, quando Locke assevera que o aludido poder “está na obrigação única de dispensar justiça e decidir dos direitos dos súditos mediante leis promulgadas, fixas e por juízes autorizados, conhecidos” (Ibidem:93). Uma outra passagem na qual Locke sugere que o poder Judiciário está inserido no âmbito do Legislativo é aquela na qual o autor afirma que “E por este modo os homens deixam o estado de natureza para entrarem no de comunidade, estabelecendo um juiz na Terra, com autoridade para resolver todas as controvérsias e reparar os danos que atinjam a qualquer membro da comunidade; juiz esse que é o legislativo ou os magistrados por ele nomeados” (Locke, 1973:74). Bobbio (1963) corrobora a interpretação de que as funções judiciais do sistema político, em Locke, são exercidas pelo poder Legislativo, afirmando que “legisladores e juízes têm a mesma função:estabelecer o direito, a regra de convivência. (...). (...) entre o judiciário e o legislativo não existe uma diferença essencial e, portanto, eles representam dois aspectos distintos do mesmo poder” (Bobbio, 1963:267 e 268).
3.7. A dissolução do Governo e o direito de resistência:
Para Locke (1973, passim 124-126) a dissolução do Governo ocorre em caso de usurpação da soberania do país por um conquistador estrangeiro, o que tem por conseqüências a dissolução da sociedade política e, em decorrência desta, a dissolução do Governo, e em caso de alteração do poder Legislativo. Esta última situação pode ser decorrência de quatro possibilidades: A primeira refere-se ao fato de o Príncipe estabelecer sua própria vontade arbitrária em lugar das leis. A segunda é relativa ao fato de o Príncipe impedir que o Legislativo se reúna na ocasião devida. A terceira consiste na modificação arbitrária, pelo Príncipe, do procedimento de eleição dos representantes, sem consentimento do povo. A última decorre de o Príncipe ou o Legislativo entregar o povo à sujeição de algum poder estrangeiro. O autor ainda ressalta uma última forma de dissolução do Governo, que acontece quando “o poder executivo ... despreza e abandona esse encargo, de sorte que não seja mais possível por em execução as leis já promulgadas. Com isto se reduz tudo à anarquia, e desse modo dissolve-se efetivamente o governo” (Ibidem:126).
Locke menciona o direito de resistência em relação aos fatores causadores da dissolução do Governo mencionados anteriormente, afirmando que “nessas condições, o povo ficará novamente desobrigado de sujeição, ..., tendo inteira liberdade de resistir à força aos que, sem autoridade, quiserem impor-lhe seja lá o que for” (Locke, 1973:125). Desta forma depreende-se que quando o poder Legislativo sofre atentados ou é alterado quanto ao desempenho regular de suas atividades e os legisladores exorbitam de suas competências prejudicando a população jurisdicionada, esta tem o direito de destituí-los e retomar para si o poder que havia atribuído a seus representantes.
Assim, para o autor, na situação de a população ter estabelecido limites à duração do Legislativo, em caso de falta dos titulares ou quando findo o prazo de duração da legislatura, fica o povo com o direito de dispor do Legislativo do modo que melhor lhe convier (Ibidem:136-137). Pode a população estabelecer nova forma para este poder ou sob a forma antiga colocá-lo em novas mãos, inclusive podendo vir a exercê-lo, ela própria, de modo direto (Ibidem:136-137). Trata-se da cogitação, a única em todo o texto do “Segundo Tratado”, de adoção da democracia direta como modalidade de desempenho do poder Legislativo.
Ainda sobre o direito de resistência, o autor considera legítima a revolta e a reação dos governados contra aqueles governantes que desrespeitam o ordenamento jurídico e passam a praticar o poder de modo exorbitante, ultrapassando os limites legais, incorrendo, assim, na tirania. Locke define a tirania como sendo “o exercício do poder além do direito” (Ibidem:119). Além disto, o autor considera que a tirania também “consiste em fazer uso do poder que alguém tem nas mãos, não para o bem daqueles que lhe estão sujeitos, mas a favor da vantagem própria” (Ibidem:119). O outro caso em que a referida revolta dos governados seria admitida por Locke seria em caso de usurpação do poder, que ele define como ocorrendo quando alguém “entra na posse daquilo a que um terceiro tem direito” (Ibidem:118). Contra a tirania e a usurpação, ou contra as duas juntas, o que ocorre quando “o usurpador estender o seu poder além do que de direito pertencia aos príncipes ou governantes legítimos” (Ibidem:118), é lídimo o exercício do direito de resistência pelo povo. Nas palavras do autor: “Em todos os estados e condições, o verdadeiro remédio contra a força sem autoridade é opor-lhe a força. O emprego da força sem autoridade coloca sempre quem dela faz uso num estado de guerra, como agressor, e sujeita-o a ser tratado da mesma forma” (Locke, 1973:101).
Locke fornece um exemplo concreto de uma situação desta natureza, e que consiste no fato de o poder executivo empregar a força da comunidade, da qual é detentor, para evitar a reunião e deliberação do poder Legislativo. Nesta circunstância, seria válida a reação do povo, mediante o uso da força, contra o usurpador ou tirano, com a finalidade de restabelecer a autoridade legal do poder Legislativo (Ibidem:101).
O autor considera que o direito de resistência também é válido no caso de o próprio Legislativo incorrer em tirania e afirma que
“E, nessas condições, a comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e atentados de quem quer que seja, mesmo dos legisladores, sempre que forem tão levianos ou maldosos que formulem planos contra as liberdades e propriedades dos súditos; porque, não tendo qualquer homem ou sociedade de homens o poder de renunciar à própria preservação, ou, conseqüentemente, os meios de fazê-lo, a favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de outrem, sempre que alguém experimente trazê-los à semelhante situação de escravidão, terão sempre o direito de preservar o que não tinham o poder de alienar, e de livrar-se dos que invadem esta lei fundamental, ...” (Ibidem:99).
Desta forma, quando o Legislativo exorbita de suas funções e oprime o povo, este tem o autêntico direito de destituí-lo, e, retornando ao povo o poder de início conferido ao Legislativo tirano, o próprio povo tem a competência de restaurá-lo do modo que considerar mais propício, inclusive podendo ele próprio passar a desempenhar o poder Legislativo (Ibidem:137). Esta seria a formulação do princípio da soberania popular de Locke, que, neste trecho e pela única vez em todo o texto do “Segundo Tratado”, se refere à democracia direta como modalidade possível de exercício do poder Legislativo.
Entretanto, no capítulo XVIII do “Segundo Tratado”, Locke relativiza e restringe o exercício do direito de resistência, e faz a seguinte admoestação:
“Podem, então, sofrer oposição as ordens de um príncipe? Pode-se resistir-lhe tantas vezes quantas qualquer um se julgar agravado, somente por imaginar não lhe ter sido feita justiça? Desse modo se desarranja e subverte toda forma de governo, e, ao invés de governo, nada mais ficará de pé senão anarquia e confusão.
A isto respondo que não se deve opor a força senão à força injusta e ilegal; quem quer que faça oposição em qualquer outro caso atrai sobre si justa condenação, tanto de Deus quanto do homem” (Locke, 1973:121).
Desta maneira, em qualquer outra situação que não seja a da prática de usurpação, tirania, ou as duas juntas por parte dos governantes, sejam detentores do poder Legislativo ou do Executivo, o exercício do direito de resistência por parte da população perde a validade, segundo Locke, tornando-se improcedente e ilegítimo. O exercício indiscriminado do direito de resistência poderia acarretar anarquia, ausência de Governo; daí a advertência do autor.
3.8. A separação entre o Governo Civil e a Igreja:
Este assunto é abordado por Locke na Carta sobre a Tolerância. Sobre o tema, o autor afirma o seguinte:
“Considero que acima de todas as coisas é necessário distinguir exatamente as funções do governo civil daquelas da religião, e estabelecer a demarcação precisa entre um e outro. Se isso não for feito, não será possível pôr fim às controvérsias que sempre surgirão entre aqueles que têm, ou pelo menos pretendem ter, uma preocupação com as almas de um lado, e, de outro, pela segurança da comunidade civil” (Locke, 1994:243).
O autor preconiza que o dever do Governo Civil, e, por conseqüência, do magistrado civil, deve se restringir a assegurar, aos membros da comunidade política, a defesa de seus interesses civis, que ele identifica como sendo “a vida, a liberdade, a saúde e a libertação da dor; e também a posse de coisas externas, tais como dinheiro, terras, casas, móveis, etc” (Ibidem:243). Desta maneira, a ação do Governo Civil não interferiria, de forma alguma, na esfera da religião professada pela pessoa que, segundo o autor, é uma convicção interna, ao contrário dos interesses civis, que são externos. Yolton corrobora esta argumentação, asseverando que “A jurisdição do governo civil, do magistrado, é exercida sobre coisas exteriores, como propriedade e bens civis dos membros da sociedade, não sobre as crenças de foro íntimo de cada um” (Yolton, 1996:44).
Da mesma forma que o magistrado civil não pode imiscuir-se em assuntos eclesiásticos, o sacerdote, presbítero ou dignitário da Igreja não está autorizado a aplicar qualquer penalidade civil a quem quer que seja. Sobre o assunto, Locke afirma que “Por isso, nenhum homem, seja qual for seu cargo eclesiástico que o dignifica, pode privar outro homem que não pertence a sua igreja e a sua fé , da liberdade ou de qualquer parcela de seus bens terrenos em nome daquela diferença entre eles em termos de religião” (Locke, 1994:254). Ou seja, o relacionamento apropriado entre Igreja e Governo Civil deve ser baseado na não interferência mútua e recíproca nos assuntos de competência exclusiva de cada uma destas entidades.
Desta maneira, para o autor, as esferas civil e religiosa devem permanecer dissociadas. Outra passagem que evidencia isto é aquela em que Locke propõe que nenhum cidadão deva sofrer qualquer tipo de sanção civil em virtude de não professar religião: “Se um ateu duvida de ambos os Testamentos, não deve ser punido como cidadão pernicioso. O poder do magistrado e os bens do povo podem ser igualmente assegurados quer um homem acredite ou não nestas coisas” (Ibidem:272).
Contudo, contraditoriamente com o trecho acima transcrito e com sua postura de tolerância religiosa, Locke preconiza a exclusão dos ateus da sociedade civil, alegando que
“Por fim, aqueles que não devem de forma alguma ser tolerados - os que negam a existência de Deus. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, não devem ser mantidos com um ateu. A supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, destrói tudo; além disso, aqueles que por seu ateísmo solapam e destroem toda religião não podem, pretextando religião, reivindicar para si o privilégio da tolerância” (Ibidem:278).
Apesar de defender a estrita desvinculação entre a instituição religiosa e a civil, Locke adverte que a separação entre Igreja e Estado não se estende a situações em que sacerdotes ou presbíteros infringem a lei civil, cometendo delitos e violando-a, mesmo que o façam em ritos religiosos. Neste tipo de situação, o magistrado civil tem competência para aplicar-lhes a punição prevista na lei. A respeito, ele escreve que
“Pode-se indagar, por esta regra, se algumas congregações tivessem uma disposição para o sacrifício de crianças ou (como foram falsamente acusados os cristãos primitivos) libidinosamente afundassem em imundície promíscua, ou ainda praticassem outras enormidades hodiendas, o magistrado civil seria obrigado a tolerá-las pelo fato de serem cometidas em uma assembléia religiosa? Eu respondo que não” (Locke, 1994:266).
Em suma, quanto à desvinculação entre o Governo Civil e a Igreja, o autor recomenda que nem o Governo interfira em assuntos eclesiásticos, nem a Igreja o faça relativamente a assuntos civis, dado que os primeiros são eminentemente de ordem interna, de foro íntimo, e os últimos predominantemente externos (Ibidem:243). Esta rigorosa dissociação pode ser interpretada como tendo o propósito de, ao delimitar de modo claro a jurisdição do Governo Civil, contribuir para que este atue de modo eficiente, e não desperdice os recursos públicos agindo em relação a assuntos de natureza clerical que não são de sua alçada. Sendo o Governo Civil exercido e organizado nas bases de uma democracia representativa, uma maior eficiência do primeiro, obtida em decorrência de sua limitação aos assuntos civis e de sua não ingerência em assuntos eclesiásticos, conseqüência da separação entre Igreja e Estado, contribui para o êxito da segunda.
4. Capítulo 3 – Rousseau e a democracia participativa:
Para abordar o conceito de democracia participativa em Rousseau é necessário, inicialmente, analisar a reconstituição da história hipotética da humanidade realizada pelo autor (Rousseau, 1985, passim 72-118). Ao reconstituir a aludida história, Rousseau faz suposições sobre a evolução do processo de socialização do homem e da conseqüente degradação das relações humanas. Ao concluir esta reconstituição, o autor passa a examinar fatos reais, concretos, tendo como pano de fundo a implantação do despotismo (Ibidem:111), realizando uma crítica direta à monarquia absoluta (Ibidem, passim 104-118). Em seguida, reivindica a necessidade de formulação de uma alternativa legítima de organização política da sociedade, negando validade ao despotismo. Assim procedendo, Rousseau lança as bases de sua elaboração normativa acerca de um modelo legítimo de organização política da comunidade, que será desenvolvido no “Contrato Social”, em contraposição à monarquia absoluta (Rousseau, 1985:107 e 108). O modelo antes aludido terá na democracia direta, participativa, no que se refere ao exercício do poder Legislativo, um elemento de relevância central.
A questão da democracia direta, participativa, na teoria política de Rousseau, será examinada com base nos seguintes pontos de análise: a questão da “Reconstituição da história hipotética da humanidade”; a “Caracterização do contrato social”; as questões que envolvem “O soberano, a lei, o Legislador e a supremacia do poder legislativo”, “O poder Executivo e o Governo”; e, finalmente,uma discussão sobre a democracia participativa e a liberdade positiva no pensamento de Rousseau.
4.1. Reconstituição da história hipotética da humanidade:
Em sua “história hipotética da humanidade”, Rousseau afirma que, no estado de natureza, o homem vivia isolado, de modo autárquico, sem quase ter contato com seus semelhantes, em estágio pré-social. O homem era naturalmente bom, devido à “quietação de paixões e à ignorância do vício” (Rousseau, 1985:74). Neste estado, o homem tinha uma relação estreita com a natureza, mas não com seus semelhantes (Rousseau, 1985:80). Rousseau caracteriza este estado da seguinte forma:
“Concluamos que, estando nas florestas, sem trabalho, sem guerra e sem laços, sem nenhuma necessidade dos seus semelhantes como nenhum desejo de os prejudicar, talvez mesmo sem nunca reconhecer a nenhum individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, possuía apenas os sentimentos e os conhecimentos próprios deste estado” (Ibidem:80).
Referindo-se ao aspecto moral, Rousseau discorda da visão hobbesiana sobre o estado de natureza. Em sua visão, o homem natural vivia em estágio pré-moral e não possuía toda a ferocidade atribuída a ele por Hobbes, se caracterizando, ao contrário, por não fazer distinção entre o bem e o mal por desconhecer o significado da virtude e do vício. Para o autor “os homens nesse estado, não mantendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus e não tinham vícios nem virtudes” (Ibidem:73). A crítica de Rousseau a Hobbes, no que tange ao estado de natureza, refere- se ao fato de este último, ao afirmar que o referido estado é uma guerra de todos contra todos e que o homem natural é extremamente violento, confundir o homem natural com o civil. Para Rousseau, o homem natural de Hobbes é, na verdade, o homem civilizado, violento, impiedoso, voraz e movido por uma série de paixões que são típicas da sociedade civil. A evidência desta crítica está presente no seguinte trecho:
“Sobretudo, não vamos concluir, como Hobbes, que o homem, por não ter nenhuma idéia da bondade, seja naturalmente mau, que seja vicioso porque não conhece a virtude, que negue sempre a seus semelhantes favores que não crê dever-lhes, (...). Hobbes percebeu muito bem a falha de todas as definições modernas do direito natural, mas as conseqüências a que levam a sua mostram que ele a toma num sentido não menos falso. Refletindo sobre os princípios que estabelece, esse autor deveria dizer que o estado de natureza, sendo aquele em que o cuidado com nossa preservação é o menos prejudicial à de outrem, conseqüentemente era o mais favorável à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Ele diz exatamente o contrário, por haver introduzido inoportunamente no cuidado com a preservação do homem selvagem a necessidade de satisfazer uma infinidade de paixões que são obra da sociedade e que fizeram necessárias as leis” (Ibidem:73).
Nesta condição do estado de natureza, o indivíduo possuía, segundo Rousseau, duas características importantes: o “amor de si”, que corresponderia ao instinto de preservação (Rousseau, 1985:153), e a “piedade natural”, que consistiria na compaixão inata possuída pelo homem selvagem em relação a seus semelhantes, o que o impediria de cometer crueldades gratuitas contra estes últimos (Ibidem:76).
O autor aborda, posteriormente, o transcurso do processo de socialização do homem, e, referindo-se à etapa da evolução social humana que denomina de “juventude do mundo”, afirma que
“À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se aperfeiçoam, o gênero humano continua a se domesticar; as ligações estendem-se e os laços estreitam-se. Habituaram-se a se reunir em frente às cabanas ou sob uma grande árvore; o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se o entretenimento, ou antes a ocupação dos homens e das mulheres desocupados e reunidos. Cada qual começou a olhar os outros e também a querer ser olhado, e a estima pública teve um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado; e assim foi dado, a um só tempo,o primeiro passo para a desigualdade e para o vício. Dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação provocada por esses novos germes produziu por fim resultados desastrosos à felicidade e à inocência.
Assim que os homens começaram a se apreciar mutuamente, e que a idéia da consideração formou-se em seu espírito, cada qual pretendeu a ela ter direito, e a ninguém mais foi possível deixar de tê-la impunemente” (Ibidem:90 e 91).
Desta forma, antes mesmo do surgimento da propriedade privada e do estado civil, a idéia de comparação e o furor de se distinguir começam a se desenvolver e a interferir no relacionamento entre os indivíduos, gerando as primeiras manifestações dos sentimentos de rivalidade, deslealdade, inveja, entre outros, que corromperiam, posteriormente, a convivência humana.
Paralelamente à evolução da socialização humana, ocorre o avanço gradual do amor próprio, que só se converte na paixão dominante do homem quando da instituição do estado civil, devido ao reconhecimento legal do direito de propriedade e a conseqüente institucionalização da desigualdade. Estes fatos acarretaram efeitos nefastos para as relações humanas, principalmente o desenvolvimento dos sentimentos corruptores da convivência entre os homens anteriormente referidos (Rousseau, 1985, passim 90-97). Rousseau define o “amor próprio”, que é diferente do “amor de si” do estado natural, como sendo o sentimento derivado das comparações entre os homens, pelo qual o indivíduo tenta obter a supremacia em diferentes setores da vida impondo humilhações a seus semelhantes (Ibidem:153). Desta maneira, o “amor próprio” estaria vinculado ao sentimento de preponderância que o indivíduo seria compelido a concretizar em relação a seu semelhante, prevalecendo sobre ele, humilhando-o. Nisto consistiria a honra na sociedade civil: ser o melhor a qualquer custo impondo o opróbrio ao semelhante (Ibidem:153). A associação do amor próprio, que se transforma na paixão preponderante do homem, com o reconhecimento do direito de propriedade quando da implantação do estado civil, é que resulta na degradação das relações humanas (Ibidem, passim 90-118).
Essa degradação teve como um de seus elementos cruciais o surgimento, reconhecimento e legitimação do direito à propriedade privada e a decorrente institucionalização da desigualdade entre os homens (Ibidem:118). Após a descoberta da propriedade privada é que se inicia verdadeiramente o processo de degeneração da humanidade, na medida em que passou a ocorrer uma competição desenfreada entre os homens com a finalidade de possuir cada vez mais bens materiais, além das demais formas de competição por outros atributos objetos de comparações, tais como a beleza, a força, a habilidade e os talentos. O resultado deste processo foi a ocorrência de um estado de beligerância entre os indivíduos (Ibidem:96 a 98).
Deste modo, após a fase da “juventude do mundo” e depois da descoberta da propriedade, a competição acirrada pela posse de bens materiais e pela distinção, e a conseqüente exacerbação do amor próprio, os homens se enredaram em uma guerra generalizada de todos contra todos, na qual os ricos tentavam usurpar ainda mais propriedades de quem as detivesse, e os pobres investiam contra os ricos para se apossar de seus bens, numa situação análoga à do estado de natureza hobbesiano[5]. Desta forma, estava configurada a situação na qual os ricos tentariam, de modo sagaz, preservar suas propriedades, propondo aos pobres o “Contrato dos Ricos”, a primeira versão do “Contrato Social”. A ocorrência desta situação de desigualdade real, e a adesão dos pobres ao pacto dos ricos, é que vai motivar Rousseau a formular sua proposta normativa de pacto social legítimo, também denominado de pacto “corretivo”, em oposição ao contrato social positivo e espúrio dos ricos. Na proposta do pacto social legítimo, a adoção da democracia direta como modalidade de exercício do poder Legislativo será um elemento de relevância central.
Assim o autor o formulou:
“Unamo-nos, disse-lhes, para livrar os fracos da opressão, conter os ambiciosos, e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais sejam obrigados a conformar-se, que não façam acepção de pessoas, e que de alguma maneira reparem os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco aos mesmos deveres. Em uma palavra, em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que proteja e defenda todos os membros da associação, afaste os inimigos comuns e nos mantenha numa eterna concórdia” (Rousseau, 1985:99).
Esta foi a primeira formulação do “Contrato Social” de Rousseau, cuja conseqüência foi,
“a origem da sociedade e das leis, que criaram novos entraves ao fraco e deram novas forças ao rico, destruíram de maneira irremediável a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma astuta usurpação um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram daí em diante todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria” (Ibidem :100).
Deste modo, para o autor, a celebração desta primeira versão do contrato beneficiou apenas aqueles que detinham propriedade, e que estavam mais ameaçados pelo estado de guerra então reinante. Estes, os ricos, pela celebração do contrato, passaram a ter sua propriedade defendida, enquanto os pobres, que deixaram de tentar obter a propriedade por meio da violência, continuaram sem ela, tendo, em troca, devido à adesão ao contrato, que permanecer passivos e obedientes aos ditames do mesmo. Como conseqüência disto, os pobres abriram mão de obter a propriedade pela força, e ficaram, para sempre, segundo Rousseau, destituídos dos meios para adquiri-la. Um outro fato que motivou os ricos a proporem o seu contrato social foi a necessidade, por parte destes últimos, de legitimar aquela propriedade que havia sido conquistada mediante o uso da força e que, pela força, poderia ser deles retirada (Rousseau, 1985, passim 98-99). Rousseau também destaca o fato de que os pobres, aderindo à primeira versão do “Contrato Social”, destituíram-se voluntariamente do único bem que possuíam, a liberdade (Ibidem:102). Deste modo, são fundados o estado e a sociedade civis com base no ilegítimo “Contrato dos Ricos”.
Fortes, um comentador da obra rousseauniana, faz referência à celebração do “Contrato dos Ricos”, afirmando que “São os ricos que fundam a sociedade civil, na esperança de preservarem suas propriedades dos pobres” (Fortes, 1976:119).
Após descrever o processo de implantação do estado civil, Rousseau, compara o estado de natureza com o civil. Sobre o primeiro, o autor escreve que
“Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os homens, mais ferozes do que maus, e mais atentos em se preservar do mal que pudessem causar-lhe, do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam expostos a contendas muito perigosas. Não havendo entre eles nenhuma espécie de relação, conseqüentemente não conheciam nem a vaidade, nem a consideração, nem a estima nem o desprezo; não tinham a menor noção do teu e do meu e nenhuma idéia verdadeira de justiça; viam a violência que pudessem sofrer como um mal fácil de reparar, e não como uma injúria que se deve punir e nem mesmo pensavam em vingança, ...” (Rousseau, 1985:77).
Referindo-se ao estado civil, o autor afirma, ainda, que
“Se fosse o caso de entrar em detalhes, explicaria facilmente como a desigualdade de prestígio e de autoridade torna-se inevitável entre os particulares, assim que, reunidos numa mesma sociedade, são forçados a se comparar entre si, e a considerar as diferenças que encontram no uso contínuo que têm de fazer uns dos outros. Essas diferenças são de várias espécies; mas, em geral, sendo a riqueza, a nobreza ou a condição, o poder e o mérito pessoal as principais distinções pelas quais as pessoas se avaliam na sociedade, eu provaria que o acordo ou o conflito dessas forças diversas é a indicação mais segura de um Estado bem ou mal constituído. (...). Observaria o quanto esse desejo universal de reputação, de honrarias e de preferências que nos devora a todos, estimula e compara os talentos e as forças, o quanto ele excita e multiplica as paixões, e o quanto, tornando todos os homens concorrentes, rivais, ou antes, inimigos, ele cotidianamente provoca reveses, acontecimentos e catástrofes de toda espécie, levando ao mesmo combate tantos pretendentes. Mostraria que é a essa ânsia de falar de si, a esse furor de se distinguir que nos coloca sempre fora de nós mesmos, que devemos o que há de melhor e pior entre os homens: nossas virtudes e nossos vícios, ...” (Rousseau, 1985:112 e 113).
Deste modo, conclui-se que Rousseau atribui ao estabelecimento da sociedade e do estado civil a responsabilidade por engendrar a desigualdade, na medida em que, no estado de natureza, o homem, vivendo isolado em relação a seus semelhantes, em estágio pré-social e pré-moral, desconhece a idéia de comparação, além do fato de não existir ainda, no estado natural, a propriedade privada. Segundo o autor, o estado civil se caracteriza pelo exercício intenso de comparações e pelo reconhecimento legal do direito de propriedade, o que implica a legitimação e a institucionalização da desigualdade. Rousseau afirma, ainda, que “a desigualdade, sendo praticamente nula no estado de natureza, encontra sua força e seu crescimento no desenvolvimento de nossas faculdades e nos progressos do espírito humano, e enfim torna-se estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis” (Ibidem:118). Deste modo, a principal diferença entre o estado de natureza e o estado civil, é o fato de, no primeiro, não existir a necessidade de comparação nem o desejo de distinção, bem como inexistirem a vaidade e a cobiça excessivas, e outros sentimentos correlatos. Os mencionados sentimentos, decorrência da exacerbação do amor próprio, são características centrais do estado civil, e serão responsáveis pela corrupção do convívio humano (Ibidem, passim 90-113).
Assim as conseqüências da fundação do estado civil, fundamentado no ilegítimo “Contrato dos Ricos”, foram a consolidação do amor próprio como o principal traço do caráter humano, o reconhecimento do direito de propriedade e a implantação do despotismo como sistema político (Rousseau, 1985, passim 97-118). A preponderância do amor próprio resultou no desenvolvimento dos sentimentos correlatos da inveja, deslealdade entre outros do mesmo jaez (Ibidem:112). A legitimação da propriedade privada teve como conseqüência a institucionalização da desigualdade (Ibidem:118). A implantação do despotismo, “último grau da desigualdade” (Ibidem:115), cuja manifestação concreta era o absolutismo monárquico, redundou na prevalência do poder político arbitrário. Este quadro de ilegitimidade da organização política da sociedade, motivado, principalmente, pelo surgimento e legitimação da propriedade privada, é que ensejará a Rousseau a oportunidade de elaborar a sua proposta de organização política legítima da comunidade, contida no “Contrato Social”. Esta proposta se caracterizará pela vigência do princípio da soberania popular, pelo exercício direto, democrático e participativo do ofício de elaboração legislativa pelos cidadãos.
4.2. O “Contrato Social”:
4.2.1. A refutação da autoridade paterna e a crítica ao absolutismo monárquico:
Rousseau inicia a formulação de sua proposta de organização política legítima da sociedade contestando a autoridade paterna como fundamento do poder político. O autor assim procede para viabilizar seu modelo político baseado na adoção da democracia direta como modalidade de exercício do poder Legislativo. Caso contrário, sua proposta política não teria sentido, na medida em que o poder político seria exercido pelo monarca absoluto. Rousseau refuta a tese da origem paterna da legitimidade do poder político afirmando que
“A mais antiga de todas as sociedades e a única natural, é a família. Os filhos só permanecem ligados ao pai, enquanto têm necessidade dele para sua manutenção. Quando essa necessidade cessa, a ligação natural se dissolve. Os filhos, isentos da obediência que devem ao pai, e este isento das obrigações que tem para com os filhos, voltam igualmente à independência anterior” (Rousseau, 1995:70).
Desta forma, descarta a autoridade paterna como fundamento do poder político, na medida em que, cessando a primeira quando atingida a maioridade do filho, como poderia servir de base para o exercício do segundo, que exige execução permanente? Uma autoridade que é transitória não pode estar na base do exercício de um poder, o político, que requer perpétua execução.
O autor reitera sua contestação estabelecendo as diferenças entre a administração privada, particular, da família, que seria exercida pelo pai, e a administração pública, do Estado, que seria exercida pelo magistrado. Demonstrando que a família e o Estado são duas entidades com finalidades diversas, a primeira tendo como objetivo principal a procriação, e o segundo o bem da sociedade como um todo, Rousseau quer demarcar, de forma nítida, a linha divisória entre as duas esferas, negando veementemente qualquer vínculo entre o exercício do poder político, próprio do Estado, e a autoridade paterna, destinada a gerir as unidades familiares, devido à incompatibilidade de finalidades antes referida:
“Mesmo que houvesse entre o Estado e a família tantas relações como pretendem vários autores, não se poderia deduzir daí que as regras de conduta próprias a uma dessas sociedades fossem convenientes à outra: diferem muito em dimensão para que possam ser administradas da mesma forma e haverá sempre uma extrema diferença entre o governo doméstico, ..., e o governo civil (...).
(...). Mas, sendo o fundamento tão diferente, como o governo do Estado poderia ser semelhante ao da família? (...).
(...). as mesmas regras de conduta não convêm ao Estado e à família, (...). Creio que essas poucas linhas são suficientes para derrubar o odioso sistema que o cavaleiro Filmer procurou estabelecer na obra intitulada Patriarcha, que teve a honra de ser refutada em livros por dois autores ilustres” (Rousseau,1995:21 a 24).
Rousseau também critica a monarquia absoluta, que considera um sistema político iníquo e injusto, devido ao fato de se basear numa relação de extrema desigualdade entre o monarca e os súditos. O autor compara a aludida relação à escravidão, ao relacionamento entre senhor e escravo, afirmando “ser uma convenção vã e contraditória estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites” (Ibidem:74 e 75). Deste modo, repele o absolutismo monárquico por este estar fundado numa relação extremamente assimétrica de poder entre o soberano detentor de um poder ilimitado e o súdito impotente.
O autor também investe contra alguns de seus predecessores na teoria política, que, em sua visão, são defensores do absolutismo monárquico e da desigualdade entre os homens. Sobre o assunto, Rousseau afirma que “O raciocínio de Calígula conduz ao de Hobbes e ao de Grotius. Antes deles, também Aristóteles, afirmou que os homens não são em absoluto naturalmente iguais, sendo que uns nascem para a escravidão e outros para dominar“ (Rousseau, 1995:71).
Rousseau também descarta o direito do mais forte como fonte legítima do poder político. A força obriga à obediência pela intimidação e pelo temor, nunca pelo direito. Neste sentido, afirma que
“a força não estabelece o direito, e (...) só se está obrigado a obedecer aos poderes legítimos (...).
Uma vez que nenhum homem tem autoridade natural sobre seu semelhante e que a força não gera nenhum direito, restam então as convenções como base de toda autoridade legítima” (Ibidem:73).
O autor nega, desta maneira, a teoria política que fundamenta o Estado numa relação de dominação injusta e iníqua, base da monarquia absolutista despótica. Em lugar desta, propõe uma alternativa legítima de organização política da sociedade baseada não na autoridade paterna, na escravidão ou no direito do mais forte, mas na anuência da totalidade dos contratantes em ingressar, mediante a celebração de uma convenção, num corpo coletivo dotado de regras e práticas comuns a todos. Esta convenção é o pacto social, o qual será regulamentado por leis estabelecidas, de modo democrático e participativo, pelos próprios cidadãos.
4.2.2. O pacto social e a formação do estado civil:
Para Rousseau o que caracteriza a formação de um povo, e também a de um corpo político, não é a simples agregação de indivíduos, e sim a existência de uma convenção, de um acordo (Rousseau, 1995:77). Para o autor, a referida convenção, que seria o próprio pacto social, é o “ato pelo qual um povo é um povo” (Ibidem:78), e que corresponde ao “verdadeiro fundamento da sociedade” (Ibidem:78).
O autor considera que o pacto social requer a unanimidade, a aquiescência de todo o indivíduo que decide ingressar na associação civil, afirmando que “Há apenas uma lei que, por sua natureza, exige um consentimento unânime. Trata-se do pacto social, uma vez que a associação civil é o ato mais voluntário do mundo. Todo homem tendo nascido livre e senhor de si, ninguém pode submetê-lo sem seu consentimento, sob qualquer que seja o pretexto” (Ibidem:159).
Além da exigência de alicerçar a sociedade em bases lídimas, o pacto seria necessário, também, devido ao fato de, no estado de natureza, a humanidade ter chegado a um ponto no qual os obstáculos naturais a sua sobrevivência teriam se tornado maiores do que as forças dos homens. Nestas circunstâncias, os homens, não podendo criar novas forças, se viram obrigados a reunir as existentes (Ibidem:78).
O contrato de Rousseau é uma suposição, é uma concepção artificial de sociedade cujo objetivo é constituir um referencial normativo sobre qual deve ser a melhor forma de organização social e política dos seres humanos com vistas a fazer com que as deliberações do corpo político, surgido em decorrência da realização do “Contrato Social”, consigam atender, simultaneamente, a exigências de difícil compatibilização: a preponderância do interesse coletivo em relação aos interesses de cada membro individual do corpo político e, ao mesmo tempo, o atendimento aos interesses individuais comuns de todos os integrantes da sociedade, bem como o respeito às suas liberdades individuais. Este problema Rousseau formula da seguinte maneira: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental que o contrato social soluciona” (Rousseau, 1995:78). O “Contrato Social” resolveria o problema fazendo com que todos os componentes do corpo político obedecessem à “vontade geral”, que se dirige ao “interesse comum” dos mencionados membros, após a promoção da integração do homem natural à comunidade política. Desta forma, segundo Rousseau, o indivíduo, se submetendo à vontade geral, estaria obedecendo a si mesmo, e sendo, conseqüentemente, livre, visto que a liberdade, para este autor, é a obediência à vontade geral (Ibidem:82). Esta submissão incondicional do indivíduo à vontade geral, da vontade individual à coletiva, a inexistência de possibilidade de discordância do indivíduo em relação ao poder público, é que vai suscitar a crítica liberal de Benjamin Constant a Rousseau, considerado pelo primeiro “o mais perigoso inimigo da liberdade individual” (Berlin, 1981:164).
O referido processo de integração do indivíduo natural ao corpo político, constituído como conseqüência da celebração do pacto social, é assim descrito por Rousseau:
“Todas essas cláusulas se reduzem claramente a uma, a saber, a total alienação de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidade: primeiramente, dando-se cada um por inteiro, a condição é igual para todos, e sendo a condição igual para todos, ninguém terá interesse em torná-la onerosa aos outros.
Além disso, sendo a alienação feita sem reservas, a união é a mais perfeita possível, não tendo nenhum associado mais nada a reclamar: se restasse qualquer direito aos particulares, subsistiria o estado de natureza e a associação tornar-se-ia necessariamente tirânica ou vã, uma vez que não existiria nenhum superior comum que pudesse pronunciar-se, entre eles e o público, e sendo cada um em alguma questão seu próprio juiz, logo pretenderia sê-lo em todas.
Enfim, dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém, e como não haverá nenhum associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se cedeu, ganha-se o equivalente a tudo que se perde e mais força para se conservar aquilo que se tem” (Rousseau, 1995:79).
Dois aspectos fundamentais do “Contrato Social” são descritos pelo autor neste trecho. O primeiro consiste na ênfase que Rousseau confere à questão da “alienação total”, que é a cessão, à comunidade, dos direitos e da liberdade natural de cada indivíduo. A efetivação do pacto social acarreta a abdicação, por parte de cada membro da sociedade, de seus direitos e liberdade naturais em prol da comunidade. Entretanto, estes mesmos indivíduos recuperam a plenitude da liberdade e dos direitos cedidos mediante a aquisição da liberdade e dos direitos civis e políticos, que consistem, principalmente, na prerrogativa de participar, diretamente, do exercício do poder soberano de elaboração das leis. E isto significa recuperar de modo pleno a liberdade objeto da renúncia anterior, tendo em vista que, para Rousseau, a liberdade significa “obediência à lei que se prescreveu” (Ibidem:82). Ou seja, conforme afirma o autor no final do trecho transcrito, aquilo que é cedido é recuperado, ninguém perde nada, e todos ganham as liberdades política e civil. O caráter igualitário da sociedade que o “Contrato Social” propõe consiste no fato de que todos os membros do corpo social são onerados e contemplados da mesma forma: todos cedem seus direitos e liberdades naturais e todos são contemplados com a aquisição dos direitos e liberdades políticas e civis. Ou, como afirma Rousseau no final do Livro I do “Contrato Social”: “O pacto fundamental, ao invés de destruir a igualdade natural, substitui a desigualdade física, que a natureza pode ter colocado entre os homens, por uma igualdade moral e legítima, e que, podendo ser desiguais na força ou na competência se tornem todos iguais por convenção e direito” (Ibidem:86).
Pelo trecho acima transcrito, apesar de estudiosos como Manent (1990) considerarem Rousseau um crítico contumaz do liberalismo, seria a máxima “Todos são iguais perante a lei” inspirada no pensamento de Rousseau?
Ainda sobre este primeiro aspecto, Fortes analisa esta questão afirmando que o pacto constitutivo da associação política possui uma cláusula que
“reclama de cada membro que renuncie à liberdade ilimitada de que goza em favor do todo ao qual se associa. Conferindo à vontade geral do corpo político, assim constituindo o poder soberano e transformando cada membro da associação em súdito e soberano, simultaneamente, o pacto concilia as exigências contraditórias postuladas pela independência natural de cada indivíduo e pela necessidade do vínculo social que a eles se impõe, exigências cujo confronto descrevia os termos do problema” (Fortes, 1976:73).
Deste modo, Rousseau consegue compatibilizar as necessidades de manutenção da liberdade, referente ao estado natural, e de existência de liame comunitário, relativa ao estado civil. Assim, todos os contratantes do pacto social perdem suas respectivas liberdades e direitos naturais mas, em compensação, adquirem suas respectivas liberdades e direitos políticos e civis, fazendo com que todos, desta forma, fiquem em condição idêntica.
O segundo aspecto é a transformação do homem natural auto-suficiente, que goza de ilimitada liberdade, no homem civil, politicamente ativo, que participa diretamente do exercício do poder soberano de elaborar leis. É o que Fortes classifica como “processo de desnaturação” do homem (Ibidem:83). Este autor escreve, referindo-se a este processo, que “Não há dúvida de que esta nova ordem aparece como absolutamente contrária ao estado de natureza: “as boas instituições sociais – lemos no Emílio – são aquelas que sabem melhor desnaturar o homem, tirar-lhe sua existência absoluta para lhe dar uma relativa e transportar o eu na unidade comum”” (Ibidem:83).
Desta maneira, a questão da adesão ao pacto social tem, como uma de suas questões fundamentais, a inserção de um indivíduo autárquico que não possui obrigações cívicas no estado de natureza, numa nova conjuntura caracterizada pela socialização mais acentuada e pela necessidade de participação política e comunitária. Como conciliar a questão da liberdade individual, marcante no estado natural, com as exigências de caráter coletivo, próprias do estado civil? É a indagações como estas que a formulação de Rousseau acerca do contrato social tenta responder.
Cabe, ainda, enfatizar que o contrato social não é um acordo irrevogável; ele pode ser legitimamente rompido se os cidadãos membros do corpo político assim compreenderem que deva ser feito. Rousseau contempla esta possibilidade ao afirmar que “não existe no Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem mesmo o pacto social: pois se todos os cidadãos se reúnem para romper esse pacto de comum acordo, não se pode duvidar de que ele não tenha sido legitimamente rompido” (Rousseau, 1995:154 e 155). É relevante destacar, também, o fato de o pacto social instituir o corpo político que, na abordagem de Rousseau, vai funcionar, no que se refere ao poder Legislativo, ao Soberano, com base na participação direta dos cidadãos na ratificação ou rejeição das leis, caracterizando, desta forma, a democracia direta, a identidade entre governantes e governados (Sartori, 1965:103) no exercício do poder Legislativo.
Para Rousseau, a formação do estado civil seria a conseqüência da celebração do pacto social, que implicaria a formação de uma “pessoa pública, que se forma assim pela união de todas as outras, antigamente tinha o nome de Cidade e hoje o de República, ou de corpo político...” (Rousseau, 1995:80). É importante esclarecer que o mesmo ato de associação que estabelece o estado civil, a República, também estabelece o Soberano. Entretanto, trata-se de atribuir nomes diferentes à mesma coisa dependendo do contexto. A entidade resultante da celebração do contrato social pode tanto ser chamada de República ou corpo político, como pode ser denominada de Soberano, quando o povo está desempenhando um papel ativo de elaboração das leis, como de Estado, quando o povo está na condição de cumpridor das leis (Ibidem:80). Quando o povo está reunido exercendo o poder soberano de elaboração legislativa, cada um de seus integrantes é denominado de cidadão, que é todo indivíduo que decide, ele próprio, diretamente, sobre os assuntos legislativos, sancionando-os em pessoa. O cidadão, no sistema político de Rousseau, ocupa o papel central de formação e ratificação da legislação soberana (Dent, 1996:63). Este mesmo cidadão, membro do Soberano, quando na condição de cumpridor das leis e membro do Estado, recebe a denominação de Súdito (Rousseau, 1995:80).
Abordando a instituição do estado civil no “Contrato Social”, Rousseau parece incorrer em contradição em relação ao argumento desenvolvido no “Segundo Discurso”, no qual considera que a instituição do citado estado é a principal responsável pela corrupção da humanidade (Rousseau, 1985:96,116 e 117). Inicialmente, no “Contrato Social”, o autor afirma que, em decorrência da implantação do estado civil, o homem, além de ter passado a viver sob a égide do direito e não mais sob o regime da força, passou a se comportar guiando-se pela razão, e não mais pelos instintos. Assevera o autor que
“Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz no homem uma mudança muito significativa, ao substituir na sua conduta o instinto pela justiça, e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava. Só agora, quando a voz do dever sucede ao impulso físico e o direito ao apetite, é que o homem, que até então só havia olhado para si mesmo, vê-se forçado a agir baseado em outros princípios e a consultar sua razão antes de ouvir suas inclinações” (Rousseau, 1995:82).
Entretanto, o autor percebe a incoerência, e faz a seguinte ponderação, reproduzindo, de certa forma, no “Contrato Social”, o espírito da sua argumentação presente no “Segundo Discurso”: “Se os abusos dessa nova condição não o degradassem freqüentemente a uma condição inferior àquela donde saiu, deveria bendizer sem cessar o instante feliz que o arrancou de lá para sempre, e que transformou um animal estúpido e limitado em um ser inteligente e um homem” (Ibidem:83). Esta contradição poderia, também, ser relativizada. Isto porque o “Segundo Discurso”, no qual Rousseau relata as suas hipóteses sobre os fatos da evolução humana, tem natureza descritiva, enquanto o “Contrato Social” tem caráter prescritivo. Desta forma, segundo o autor, mesmo que, na realidade, a implantação do estado civil tenha corrompido a natureza humana, no plano ideal, normativo, deveria tê-la melhorado e enobrecido.
Uma conseqüência importante da implantação do estado civil, mediante a realização do pacto social, destacada pelo autor no “Contrato Social”, é o reconhecimento e a legitimação do direito à propriedade privada. Rousseau salienta que o direito à propriedade privada tornar-se-ia amparado pela legislação do estado civil, afirmando que o contrato social transformaria “a usurpação em direito verdadeiro, e o uso em propriedade” (Rousseau, 1995:85).
Esta postura contrasta com a opinião do autor sobre o mesmo assunto expressa no “Discurso sobre a desigualdade”. Neste último, Rousseau considera a propriedade privada a causa principal dos males da humanidade, responsável fundamental pela desigualdade existente na sociedade humana, usurpação que sentenciou a maior parte da espécie humana à “servidão e à miséria” (Rousseau, 1985:100). Entretanto, no “Contrato Social”, o autor se preocupa em ressaltar que o pacto social legitima o direito à propriedade privada, que se encontraria protegido sob a égide do estado civil. Contudo, Rousseau faz ressalvas a este direito quanto ao fato de que ele não pode ser ilimitado, além de, considerado sob o aspecto individual, estar sempre subordinado ao interesse coletivo e comunitário (Rousseau, 1995:84 a 86). Deste modo, ele enfatiza a função social da propriedade, quando afirma que os bens individuais estão subordinados ao interesse comunal.
A contradição do autor acerca do direito à propriedade privada, o fato de Rousseau considerá-lo extremamente pernicioso para a convivência humana e a principal causa da desigualdade entre os homens no “Segundo Discurso”, e afirmar, no “Contrato Social”, que o estado civil, por meio de legislação, o ampara, regulamenta e protege, é abordada por Manent (1990):
“Daí a extraordinária oscilação do juízo de Rousseau sobre a propriedade: ora ele a define como “sagrada”, mais sagrada até do que a liberdade (...), e ao mesmo tempo, vê nela a usurpação original, a prova de que o fundamento último de toda a sociedade civil reside num ato de força que nunca pode tornar-se plenamente justo, harmônico ao direito” (Manent, 1990:117).
Rousseau, ao contrário de Locke, considera que o direito de propriedade não existe no estado de natureza, só existindo no estado civil. No “Discurso sobre a desigualdade”, o autor afirma que “Além disso, o direito de propriedade, sendo apenas de convenção e instituição humanas ...” (Rousseau, 1985:106 e 107). No “Contrato Social”, Rousseau afirma que “O direito do primeiro ocupante, mesmo que mais real que o do mais forte, só se torna verdadeiro depois do estabelecimento do direito de propriedade” (Rousseau, 1995:84). Em ambas as passagens percebe-se que, para o autor, o direito de propriedade só surge em decorrência de instituição humana que o estabeleça, ou seja, só existe materialmente como conseqüência de convenção, inexistindo antes da celebração desta última.
Outro aspecto destacado pelo autor em relação à implantação do estado civil é o fato de este último introduzir a moralidade no comportamento humano. Rousseau se refere textualmente a esta moralidade como sendo o direito de o homem ser livre prescrevendo a si mesmo as leis às quais deve obedecer, em contraste com o “impulso do puro apetite” (Ibidem:83), característico do estado de natureza. Esta moralidade pode ser entendida da seguinte forma: o que é bom para a coletividade é bom para o indivíduo, o que é ruim para a coletividade é ruim para o indivíduo. Deste modo, a obediência individual à decisão coletiva, expressa pela vontade geral, significa o exercício da liberdade (Ibidem:82), sendo, assim, benéfica para o indivíduo. O que Rousseau pretende com isso é amoldar as vontades particulares à vontade geral, de modo a fazer com que o povo seja virtuoso. O que ele deseja é incutir no homem natural isolado e auto-suficiente as primeiras noções de respeito às normas e regras coletivas. Assim, Rousseau quer desnaturar o homem natural para torná-lo apto à vida civil, habilitando-o a participar de modo ativo do exercício democrático e participativo do poder Legislativo, base de sua proposta política. Uma outra interpretação para este conteúdo moral que o estado civil introduziria na vida do indivíduo seria simplesmente o de que tal conteúdo seria referente ao fato de que o homem civil seria um cidadão, ou seja, um portador de direitos e obrigações para com o corpo político e para com seus concidadãos, condição que inexistiria no estado de natureza, no qual a socialização do homem seria quase nula (Dent, 1993:164). Deste modo, como cidadão, o indivíduo deve tomar parte, de maneira diligente e direta, do estabelecimento das leis que regulamentarão a associação civil, as quais serão a “declaração da vontade geral” (Rousseau, 1995:149).
4.3. A vontade geral e sua representação:
A vontade geral, categoria central na abordagem política de Rousseau, é, segundo o autor, algo que sempre tende ao bem comum, ao benefício da coletividade:
“Há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta olha apenas o interesse comum, a outra olha o interesse privado e é só uma soma de vontades particulares; mas ao retirar dessas vontades os mais e os menos que aí se introduzem, a soma das diferenças é a vontade geral” (Rousseau, 1995:90).
A noção de vontade geral, como algo vinculado ao interesse comum de cada cidadão, o que pressupõe que o interesse individual comum de que se trata se refere ao indivíduo inserido numa coletividade social, não sendo o interesse individual isolado em relação à coletividade, característico do estado natural, parece ser mesmo aquela que mais se aproxima do significado atribuído pelo autor a este conceito. A respeito disto, Rousseau afirma que
“Nesse sentido, deve-se compreender que aquilo que generaliza a vontade é menos o número de vozes manifestas que o interesse comum que as une: nessa instituição cada um se submete às condições que impõe aos outros; acordo admirável do interesse e da justiça que dá às deliberações comuns um caráter de eqüidade, que se dissipa na discussão de todo problema particular, resultado de um interesse comum que una e identifique a posição do juiz com a da parte” (Ibidem:93).
O que Rousseau parece querer destacar na categoria de vontade geral é a questão do indivíduo inserto numa comunidade, o fato de que o interesse individual tem que ser avaliado, sempre, e obrigatoriamente, levando-se em consideração o interesse social e coletivo. É a questão da solidariedade social, do vínculo e do liame social e coletivo que Rousseau parece querer ressaltar no conceito de vontade geral. Este aspecto é enfatizado pelo autor quando considera que, se o contrato social foi celebrado em decorrência da necessidade de se tentar harmonizar e conciliar as divergências humanas, foi, em grande parte a convergência, o acordo entre os distintos interesses dos indivíduos, o interesse comum, que seria a base do posterior vínculo social e da vontade geral, que viabilizou a constituição da sociedade civil:
“se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, é o acordo desses mesmos interesses que a tornou possível. É isso que existe de comum nos diferentes interesses que formam a união social, e se não houvesse algum ponto em que os interesses estivessem de acordo nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unicamente sob esse interesse comum que a sociedade deve ser governada” (Rousseau, 1995:87).
Fica evidenciado nesta passagem que a base do governo no sistema político de Rousseau é o que existe de comum, é a interseção dos interesses individuais dos cidadãos, ou seja, dos membros da coletividade, que possuem direitos e obrigações entre si e perante a sociedade, e não a interseção de interesses particulares de indivíduos desvinculados da coletividade social. É precisamente esta idéia de que a sociedade deve ser governada tendo como referência a intersecção dos interesses individuais considerados coletivamente que constitui a essência do conceito de vontade geral. Este fato também confere ao conceito de vontade geral um aspecto significativo de eqüidade, na medida em que, participando do processo de ratificação ou rejeição das leis fundamentais que irão regulamentar as condições da associação civil, em caso de prevalecer a vontade geral, todo cidadão terá seu interesse individual, considerado em relação à coletividade, contemplado pela decisão tomada pelo Soberano. Isto confere ao pensamento político de Rousseau uma natureza igualitária e equânime significativa. Dent (1996) trata deste assunto, afirmando que
“Uma vontade para ser verdadeiramente geral, deve dar voz aos interesses que cada pessoa tem em comum com todas as outras. Se qualquer pessoa for desatendida ou desconsiderada, a vontade deixa de ser geral, a lei para essa pessoa é tirânica e ela não tem a obrigação de obedecer-lhe. Só através da vontade geral é que a justiça pode ser feita a cada pessoa em comum com todas as outras” (Dent, 1996:218).
Segundo Rousseau (1995, passim 87-93 e 157-158), a vontade geral tem as seguintes características principais: o fato de não poder ser representada, tender sempre para a igualdade, não ser dirigida a objetos particulares, ter caráter globalizante, e nunca ser anulada ou corrompida.
A vontade geral não pode ser representada pelo fato de a soberania ser inalienável e indivisível. Nesse sentido, a vontade rousseauniana sempre tende para a igualdade, tendo em vista que expressa o interesse comum de todo o cidadão em relação à sociedade na qual está inserido, ao contrário da vontade particular, que tende sempre para a conveniência individual.
A vontade geral não pode ser dirigida a objetos particulares, tendo em vista que a lei, para Rousseau, é a sua expressão, sendo esta sempre de natureza genérica.
A vontade geral tem caráter globalizante, na medida em que deve se originar de todos os cidadãos para ser executada sobre todos os cidadãos; quanto menor for a discordância entre os membros do Soberano sobre as deliberações coletivas, mais plenamente a vontade geral se manifestará. Deste modo, a mencionada vontade, para se manifestar de modo puro, requer unanimidade, o que transmite a idéia de que o sistema político de Rousseau é essencialmente estático, ou seja, uma vez estabelecidas as leis que regerão a associação civil, muito dificilmente elas serão modificadas, devido à dificuldade de obtenção da unanimidade.
Finalmente, a vontade geral nunca pode ser anulada ou corrompida, na medida em que, sendo sempre constante, inalterada, somente o julgamento distorcido dos cidadãos poderá macular a sua manifestação pura e plena. Entretanto, pode acontecer que ela seja obscurecida em situações de decomposição social e do Estado, nas quais os indivíduos coloquem seus interesses particulares, dissociados da coletividade, acima do interesse da sociedade na qual estão inseridos.
O referido obscurecimento da vontade geral é conseqüência daquele que, para Rousseau, é o maior perigo para a manifestação plena e pura da citada vontade, que é a existência de múltiplas sociedades parciais, de diversas facções, no interior do Estado, cada uma tentando impor, ao restante da sociedade, a sua vontade sectária, facciosa, particular, à vontade geral legítima da comunidade (Rousseau, 1995, passim 90-91 e 157). O autor adverte para o risco de que alguma dentre estas facções adquira proporções tão expressivas que subjugue as demais, tornando-se hegemônica, e termine por impor, ao restante da sociedade civil, seu interesse particular, faccioso (Ibidem:91). Como modo de prevenir este mal, Rousseau afirma que, em não sendo possível impedir a formação das facções, a solução apropriada para neutralizar suas conseqüências maléficas é promover a sua multiplicação. Deste modo, existindo inúmeras facções, é mais difícil para qualquer uma delas conquistar a hegemonia política (Ibidem:91). Madison, no Federalista n°10, parece se inspirar nesta idéia de Rousseau.
Rousseau também se dedica a discorrer sobre as maneiras de aferir a manifestação da vontade geral. O mecanismo de aferição da aludida vontade será a contagem dos sufrágios nas eleições que ocorrerem no Soberano (Ibidem:159). Rousseau estabelece que, com exceção do pacto social, que exige consentimento unânime para ser efetivado, as leis devem ser aprovadas pelo princípio da maioria, e comenta sobre a compatibilização entre a liberdade individual e a submissão a uma decisão tomada pela maioria da qual o indivíduo discorda (Rousseau, 1995:159). Como ser livre e, ao mesmo tempo, ser obrigado a acatar uma decisão majoritária em relação à qual individualmente não se deu consentimento? Respondendo a esta pergunta, Rousseau afirma que “O cidadão dá seu consentimento a todas as leis, mesmo àquelas que foram aprovadas sem sua anuência e até mesmo àquelas que o punem, quando ousa violar algumas delas” (Ibidem:159).
O argumento de Rousseau é o de que, caso o indivíduo seja voto vencido em determinada questão submetida à eleição regida pela pluralidade dos sufrágios, o que ocorre é o engano deste cidadão sobre aquilo em que consistia a vontade geral. Resta a ele admitir o equívoco, e reconhecer que aquilo que foi decidido pela maioria corresponde ao interesse individual comum, considerado em relação à coletividade, de cada um dos cidadãos, inclusive o seu, tendo o indivíduo cometido um erro de julgamento, devendo ele acatar a decisão majoritária (Ibidem:160).
Rousseau também aborda um outro aspecto da vontade geral, que consiste no grau de respaldo social que a expressão da mencionada vontade deveria alcançar para que distintas modalidades de deliberação coletiva fossem tomadas. Assim o autor se pronuncia a respeito do assunto:
“Duas máximas gerais podem servir para regular essas relações (entre a unanimidade e a igualdade):uma é que quanto mais as deliberações são importantes e graves, tanto mais a opinião deve aproximar-se da unanimidade; a outra é que quanto mais o assunto precisa de rapidez, mais se deve abreviar a diferença na divisão das opiniões; nas deliberações em que se precisa resolver imediatamente, deve bastar a diferença de um único voto. A primeira dessas máximas parece mais conveniente às leis e a segunda, aos negócios” (Ibidem:161).
Esta orientação de Rousseau se encontra presente em Constituições atuais de países, como, por exemplo, o Brasil. A Constituição brasileira exige maioria de três quintos para aprovação de emenda constitucional, maioria absoluta (metade mais um do total de deputados e senadores da respectiva casa legislativa) para aprovação de leis complementares, e maioria simples (metade mais um dos que estiverem presentes em plenário nas respectivas casas legislativas) para aprovação de leis ordinárias (Artigos 69,60 e 47 da Constituição Federal Brasileira, respectivamente).
Poderia se indagar qual a diferença entre as formas de aferição da vontade geral e o princípio da maioria. A meu juízo, esta diferença consiste no fato de que a vontade geral tem seu significado estritamente associado ao fato de que o interesse individual tem que ser considerado sempre tendo em vista o interesse social e coletivo. A vontade geral teria, então, uma associação com a questão dos laços e vínculos sociais existentes entre os indivíduos na sociedade civil, característica que não existiria em relação ao princípio da maioria, o qual não apresentaria um sentido comunitário tão acentuado quanto a vontade geral.
Um tópico importante concernente à vontade geral é o da sua representação política. Em relação a ele, o trecho a seguir transcrito do capítulo XV do livro III do “Contrato Social” retrata, de modo inequívoco, a opinião de Rousseau sobre a questão da representação política, além de ser, também, uma defesa da democracia direta, no que se refere ao exercício do poder Legislativo, por parte do autor:
“A soberania não pode ser representada, pela mesma razão porque não pode ser alienada, consistindo essencialmente na vontade geral e a vontade não se faz absolutamente representar: ela é a mesma ou é outra, não havendo meio termo. Logo, os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes, são apenas seus comissários, não podem concluir nada definitivamente. Toda lei que não foi ratificada pelo Povo em pessoa, é nula; não é de forma alguma uma lei. O povo Inglês julga ser livre; engana-se redondamente, pois só durante a eleição dos membros do Parlamento ele é livre; tão logo eles são eleitos, é um escravo, não é nada (...).
De qualquer modo, um Povo não é mais livre a partir do instante em que se dá representantes: ele não mais existe” (Rousseau, 1995:148 e 150).
Cabe ressaltar que Rousseau não admite a representação política no que se refere ao poder Legislativo soberano (“o povo submetido às leis deve ser o seu autor”(Ibidem:99)), admitindo-a, porém, quanto ao exercício do poder Executivo: “Chamo então Governo ou suprema administração o exercício legítimo do poder executivo, e de Príncipe ou magistrados, o homem ou o corpo encarregado dessa administração” (Rousseau, 1995:115). Isto porque a soberania, una e indivisível, é desempenhada por meio do exercício do poder Legislativo, e a soberania, para Rousseau, não pode ser representada. Deste modo, a soberania não poderia ser praticada também pelo poder Executivo, já que, se isto ocorresse, aconteceria a fragmentação de seu exercício, possibilidade inconcebível para Rousseau. O trecho em que o autor deixa clara sua posição sobre este tema é o seguinte: “Se a lei nada mais é do que a declaração da vontade geral, fica claro que o Povo não pode ser representado no poder legislativo, mas pode e deve sê-lo no poder executivo, que é a força aplicada à lei” (Ibidem:149).
Nos Escritos Políticos, Rousseau (1992), nas “Considerações sobre o Governo da Polônia”, na qual faz adaptações ao modelo do “Contrato Social” para aplicá-lo à realidade de um Estado concreto e de dimensões consideráveis, expressa um outro ponto de vista sobre a questão da representação política, em relação àquele que apresenta no “Contrato Social”. Escreve ele: “Um dos maiores inconvenientes dos grandes Estados, aquele de todos que torna a liberdade o mais difícil de conservar neles, é que o poder legislativo não pode mostrar-se por si mesmo e só pode agir por deputação” (Rousseau, 1992:434).
Além disso, nas “Considerações sobre o Governo da Polônia”, Rousseau chega mesmo a propor medidas que compõem um sistema de controle sobre a representação política:
“Vejo dois meios de prevenir esse mal terrível da corrupção, que do órgão da liberdade faz o instrumento da servidão.
O primeiro é, como já disse, a freqüência das dietas, que, mudando freqüentemente os representantes, torna sua sedução mais custosa e difícil. (...) e quando tirado ou modificado o liberum veto[6], não vejo nenhuma outra mudança a fazer, salvo a de acrescentar algumas dificuldades ao envio dos mesmos Núncios a duas dietas consecutivas e impedir que eles sejam eleitos um grande número de vezes. (...).
O segundo meio é o de submeter os representantes a seguirem suas instruções e a prestarem contas rigorosamente a seus constituintes de sua conduta na dieta” (Rousseau, 1992:434 e 435).
Desta maneira, o Rousseau inimigo da representação política se transforma no arauto do exercício do controle rigoroso dos representantes pelo eleitorado. O autor preconiza, deste modo, a prestação de contas dos deputados para com seus eleitores e propõe, também, que se proceda a uma diversificação e a um revezamento entre os indivíduos eleitos para a representação política, como forma de coibir abusos, desmandos e a corrupção política. Em suma, nesta parte de sua obra, Rousseau está preconizando a responsividade dos representantes aos representados, que é uma das características principais do conceito contemporâneo de representação política, de acordo com Pitkin (1967:209 e 210).
Ainda sobre a vontade geral, o autor escreve que “nada mais sendo a soberania que o exercício da vontade geral, não pode alienar-se, e que o soberano, que é apenas um ser coletivo, só pode ser representado por ele mesmo” (Rousseau, 1995:87). Ou seja, a vontade geral estaria ligada ao funcionamento do Soberano, que seria a entidade na qual se exerceria a soberania, que Rousseau define como sendo o poder, dirigido pela vontade geral, que o corpo político tem sobre seus membros (Ibidem:91), que não poderia ser representado, cabendo ao próprio povo exercê-lo diretamente (Ibidem, passim 147-150).
4.4. O Soberano, a lei, o Legislador e a supremacia do poder Legislativo:
O Soberano seria uma das conseqüências do ato de associação em que consistiu o contrato social. Seria o
“corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantas vozes tenha a assembléia, que recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma assim pela união de todas as outras,..., quando é passivo é chamado por seus membros de Estado, quando é ativo de Soberano ...” (Rousseau, 1995:80).
A função do Soberano é a de elaborar as leis (Ibidem:144), sendo estas sempre de caráter geral, assim como a vontade que legisla (Ibidem:98). O Soberano seria, portanto, o poder Legislativo no sistema político de Rousseau. O autor enfatiza, acentuadamente, que a natureza dos temas a serem tratados pelo Legislativo é essencialmente genérica: “Resumindo, toda função que diz respeito a um objeto individual não pertence ao poder legislativo” (Ibidem:98).
O ato de todo povo legislar sobre todo o povo, sem nenhuma divisão do todo, obedecidas as condições de serem gerais a natureza do assunto objeto do ato legislativo bem como a vontade que o aprova, é, na definição de Rousseau, a lei (Ibidem:97 e 98). O Soberano só agiria quando o povo estivesse reunido (Ibidem:144). O exercício da soberania consistiria no ato de fazer as leis que regulamentariam a vida social, ato este realizado pelo povo, de modo direto (“O povo submetido às leis deve ser o seu autor” (Ibidem:99)). Portanto, a democracia direta seria a modalidade de desempenho do poder Legislativo no sistema político de Rousseau, que considera que “Toda lei que não foi ratificada pelo Povo em pessoa, é nula; não é de forma alguma uma lei” (Ibidem:148). O autor considera a lei tão importante que afirma que “a obediência à lei que se prescreveu significa liberdade” (Ibidem:83).
Entretanto, apesar das afirmações transcritas acima, Rousseau cogita da possibilidade de o povo não ter o discernimento necessário e suficiente para elaborar apropriadamente as leis que irão regulamentar o funcionamento da sociedade e do corpo político. Tal fato seria devido à dificuldade que cada membro individual do povo tem de se desprender de seus interesses particulares e agir em prol da coletividade. Então, apesar de afirmar que o povo deve obedecer às leis de sua autoria, Rousseau, devido à referida incapacidade dos indivíduos de se dissociarem de suas conveniências individuais para se engajarem no interesse público, propõe que estas leis sejam elaboradas por um Legislador, externo ao Soberano. O citado Legislador, entretanto, não tomaria parte na aprovação das leis, prerrogativa indeclinável do povo. Sobre isto, o autor afirma, se referindo à sua assertiva anterior de que o povo deve se submeter às leis que ele próprio elabora, o seguinte:
“Mas como regulamentá-las? Em comum acordo, por meio de uma súbita inspiração? O corpo político tem um órgão para enunciar essas vontades? Quem lhe dará a previsão necessária para formar os atos e publicá-los antecipadamente, ou então como os pronunciará no momento em que for necessário? Como uma multidão cega, que freqüentemente não sabe o que quer, porque raramente sabe aquilo que lhe é bom, executará um empreendimento tão grande, tão difícil quanto um sistema de legislação. O povo, por si mesmo, sempre quer o bem, mas nem sempre o vê. A vontade geral é sempre reta, mas o julgamento que a guia nem sempre é esclarecido” (Rousseau, 1995:99).
Deste modo, um motivo importante para a introdução da figura do Legislador na teoria política de Rousseau é o esclarecimento do julgamento do povo que aprova as leis diretamente no Soberano. O aludido Legislador tem como característica o fato de não tomar parte no poder Legislativo, ou seja, ele não participa das votações das leis, se limitando a redigi-las para que o povo diretamente decida sobre elas nas deliberações soberanas. O autor afirma que aquele que redige as leis não deve participar do processo deliberativo porque suas paixões poderiam interferir indevidamente no processo legislativo. Rousseau afirma que
“Então, aquele que redige as leis não tem ou não deve ter nenhum direito legislativo, e o próprio povo não pode despojar-se quando quiser, desse direito incomunicável, porque, segundo o pacto, só a vontade geral obriga os particulares, e só podemos assegurar-nos que uma vontade particular esteja conforme a vontade geral, depois de tê-la submetido aos sufrágios livres do povo: já me referi a isso, mas não é inútil repeti-lo”(Ibidem:101).
Como justificativa adicional para que o Legislador não participe das votações das leis, assim Rousseau justifica este fato, alegando que tal participação poderia causar interferências não apropriadas na formação da vontade geral: “aquele que comanda as leis não deve absolutamente comandar os homens; de outra forma, suas leis – instrumentos de suas paixões – freqüentemente não fariam mais do que perpetuar suas injustiças, e não poderia nunca evitar que opiniões particulares alterassem a íntegra de sua obra” (Rousseau, 1995:101). Deste modo, Rousseau reitera que o direito de aprovar as leis pertence única e exclusivamente ao povo.
O autor, incorrendo em contradição consigo mesmo após afirmar categoricamente que o povo deve obedecer às leis das quais é o autor, ao argumento já mencionado de que os membros do povo elaborariam as leis de acordo com suas conveniências pessoais, acrescenta um outro: o de que o povo seria incapaz de redigir leis apropriadas devido ao fato de ter pouca familiaridade com os assuntos públicos (Ibidem:102). Esta última proposição parece ser aquela na qual Sartori (1994) se baseia para se posicionar contrariamente à participação popular direta na política. Por ela se justifica a exclusão do cidadão comum das decisões públicas sob a alegação de que os assuntos políticos estão fora das suas áreas de atuação e interesse, que seriam aquelas atinentes aos negócios particulares. Escreve Rousseau, referindo-se ao povo, que “As opiniões muito gerais e os objetos muito distantes também estão fora de sua compreensão; cada indivíduo, apreciando apenas o plano de governo que diz respeito ao seu interesse particular, dificilmente percebe as vantagens que deve retirar das contínuas privações que impõem as boas leis” (Rousseau, 1995:102). Rousseau está querendo dizer que, pelo fato de os cidadãos particulares terem pouca intimidade com os assuntos políticos, de natureza coletiva, isto faria com que eles rejeitassem leis rigorosas, porém benéficas para a sociedade.
Rousseau reconhece as limitações da condição do Legislador, que tem, segundo o autor, uma missão dificílima, que é dotar um povo da melhor legislação possível, não possuindo, para tal, qualquer poder ou autoridade, posto que não participa das votações das leis, limitando-se a redigi-las. O autor faz referência a isto afirmando que “Dessa forma, encontram-se ao mesmo tempo na obra da legislação dois elementos que parecem incompatíveis: um empreendimento acima das forças humanas, e, para executá-lo, uma autoridade que não é nada”(Rousseau, 1995:102). Ou seja, Rousseau constata, na verdade, a impotência do legislador, que tem o encargo de executar uma penosa tarefa e é privado dos meios de levá-la a cabo, posto que não participa das deliberações coletivas.
Um outro aspecto relevante acerca do Legislador, é que sua função não é soberana, visto que não participa das votações das leis no poder Legislativo, nem de magistratura, dado que não exerce o poder Executivo. A natureza de sua função seria, por um lado, constitutiva da República, tendo em vista seu trabalho de elaboração legislativa, e, por outro, seria divina, visto que, para o autor, “Seriam necessários Deuses para dar leis aos homens”(Ibidem:100 e 101).
A função do conjunto de leis, da legislação, no sistema de Rousseau, é a de movimentar e conservar o corpo político criado em decorrência da realização do pacto social (Ibidem:96). O autor considera que não adianta apenas criar o corpo político; é necessário que ele seja ativado, e tal fato se dá por intermédio do processo de elaboração legislativa. A outra função atribuída ao poder Legislativo é a de conservação do corpo político. As condições da associação civil, a serem estabelecidas por intermédio das leis políticas, que são aquelas que regulam as relações do Soberano com o Estado, serão os principais mecanismos que nortearão o funcionamento da sociedade e preservarão o corpo político (Ibidem:112 e 113).
A Lei é quase uma entidade sagrada no sistema político de Rousseau. Ele classifica a Lei em quatro tipos: políticas, civis, criminais e os modos e costumes (Rousseau, 1995:112 e 113). As leis que constituem o autêntico objeto de interesse de Rousseau são as já referidas leis políticas ou fundamentais, que são aquelas que regulamentam a relação entre o Soberano e o Estado (Ibidem:113). As leis civis são as que regulam a relação dos membros da sociedade entre si. As criminais se referem às sanções decorrentes da violação dos dois primeiros tipos de leis. Por fim, os modos e costumes, que Rousseau considera a mais importante de todas as leis, a qual “não se grava nem sobre o mármore nem sobre o bronze, mas nos corações dos cidadãos” (Ibidem:112 e 113), e que corresponderiam aos hábitos de um povo. Entretanto, o objeto principal da reflexão de Rousseau são as leis políticas (Ibidem:112 e 113).
Para o autor, um povo estará em condições de receber um sistema adequado de legislação quando ainda não estiver suficientemente velho para estar totalmente corrompido. Assim, para receber o aludido sistema, o povo tem que ser jovem, o país que habita deve ter dimensões medianas, ter um território que proporcione o desenvolvimento de seus habitantes e uma população compatível com sua produção de alimentos (Ibidem, passim 104-108). A condição que, efetivamente, impede um povo de receber a legislação apropriada é a sua velhice. Esta última deve ser entendida no sentido de que a corrupção dos costumes, em conseqüência da conversão do amor próprio na paixão dominante do homem (Rousseau, 1985, passim 96-98), já está tão disseminada no tecido social que o poder das leis é nulo, sendo amplamente superado pela força dos vícios, tornando a ação política inócua.
A respeito da necessidade de que um povo seja jovem para que uma legislação adequada surta efeito, Fortes (1976) afirma que “Entre o momento da instalação da propriedade e aquele no qual a riqueza não é ainda o valor dominante para todo o povo, situa-se o campo da política. É neste período da juventude ou da maturidade do povo, no qual ele ainda é vigoroso e no qual, por conseguinte, a ação do Legislador é possível” (Fortes, 1976:120). Ainda no estado de natureza a política é supérflua porque os homens são bons e quase não há interação social. Após a prevalência do amor próprio como fator preponderante da conduta humana, da transformação da riqueza no valor social dominante e da implantação do despotismo, ápice da desigualdade, no qual a vontade particular de um, o déspota, prevalece sobre o interesse de toda a sociedade, os costumes do povo já estão corrompidos e a política é inútil (Rousseau, 1985, passim 97-115).
O poder Legislativo em Rousseau, exercido diretamente pelo povo, é, assim como em Locke, o poder supremo. Esta supremacia é tão expressiva que, quando o Legislativo se encontra reunido para deliberar, o Governo, o poder Executivo, tem suas atividades suspensas: “No momento em que o povo se encontra legitimamente reunido no corpo Soberano, cessa toda jurisdição do Governo, suspende-se o poder executivo, e a pessoa do último cidadão é tão sagrada e inviolável quanto a do primeiro Magistrado”(Rousseau, 1995:146). A relevância que o autor atribui ao poder Legislativo fica evidente quando ele afirma que “O princípio da vida política está na autoridade Soberana. O poder legislativo é o coração do Estado, (...). Portanto, não é através das leis que o Estado sobrevive, mas por meio do poder legislativo”( Ibidem:143).
Quando o autor afirma que “o povo submetido às leis deve ser o seu autor” (Ibidem:99) fica caracterizada a adoção, por Rousseau, da democracia direta, participativa cuja principal característica é a identidade entre governantes e governados (Sartori, 1965:103), como modalidade de exercício do poder Legislativo. Analisando-se o “Contrato Social” conjuntamente com o “Discurso sobre a desigualdade”, pode-se supor que esta escolha da democracia direta como forma de se praticar o poder Legislativo é uma maneira encontrada por Rousseau para atenuar as diferenças sócio-econômicas da sociedade burguesa, tendo em vista que pobres e ricos teriam a mesma prerrogativa de participar do processo de deliberação coletiva sobre as leis que iriam regulamentar a vida no estado civil, independentemente da extensão de seus respectivos patrimônios materiais.
Rousseau considera muito importante que o poder Legislativo esteja separado, seja exercido por pessoas diferentes daquelas que exercem o poder Executivo. O autor considera não ser conveniente que o povo exerça, de modo direto, o poder Executivo. Esta posição fica clara no seguinte trecho:
“Aquele que faz as leis sabe melhor do que ninguém como deve ser executada e interpretada. Então, parece que não se teria melhor constituição do que aquela onde o poder executivo está unido ao legislativo; mas isso é o mesmo que tornar esse Governo insuficiente em certos aspectos, porque as coisas que devem ser diferenciadas não o são, e sendo o Príncipe e o Soberano a mesma pessoa, formam por assim dizer, um Governo sem Governo.
Não é bom que aquele que faz as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos interesse gerais para atribuí-la a interesses particulares” (Rousseau, 1995:123).
Pode-se concluir, então, que, para Rousseau, deve haver separação entre os aludidos poderes porque, caso contrário, o Governo ficará em um plano de importância idêntico ao do Soberano. Com isto, a supremacia do Legislativo seria comprometida e limitada, na medida em que um Executivo em igualdade de poder e condições com o Legislativo iria, certamente, contrariá-lo e tolhê-lo. Esta possibilidade vai de encontro ao princípio, defendido por Rousseau, da soberania popular no exercício do poder Legislativo. Este princípio é central na abordagem política do autor e, de acordo com ele, os próprios cidadãos devem, eles próprios, instituir, de modo democrático e participativo, as leis às quais obedecerão. O apelo à participação política dos cidadãos fica claro quando Rousseau afirma que “Quando alguém disser dos negócios do Estado, que me importa? Pode-se ter certeza de que o Estado está perdido ” (Ibidem:147 e 148).
Além disto, existe uma incompatibilidade entre a natureza das decisões do poder Executivo, particular, e o caráter genérico das deliberações legislativas soberanas (Rousseau, 1995:98). Como explicação adicional para justificar a separação entre estes poderes no sistema político de Rousseau, pode-se citar o fato de que, para ele, a soberania é una e indivisível, não podendo ser desempenhada simultaneamente em dois poderes distintos (Ibidem:88).
4.5. O poder Executivo e o Governo:
Rousseau considera legítimo “todo governo guiado pela vontade geral” (Rousseau,1995:98). Para ele, uma das condições de legitimidade do Governo é que ele não se confunda com o Soberano, e seja “ministro do Soberano” (Ibidem:98). O autor considera que a República, o corpo político constituído como conseqüência do pacto social, é um Governo legítimo. Sobre o assunto, escreve ele: “Chamo então de República todo Estado regido por leis, qualquer que seja a forma de administração que possa existir, pois somente o interesse público governa, e a coisa pública é algo. Todo Governo legítimo é republicano” (Ibidem:98).
A condição mais importante para que um corpo político e um Governo sejam legítimos é a obediência à vontade geral, é o primado da vontade geral. Aquilo que representa o interesse comum entre os diferentes interesses particulares, e que resume a vontade da sociedade, tem que prevalecer nas deliberações coletivas, sob pena de preponderar o interesse privado. Neste caso, isto destruiria a legitimidade do corpo político e significaria o retrocesso ao despotismo, no qual ocorre o oposto do que acontece no corpo político legítimo: prevalece o interesse particular do déspota sobre o interesse público. A respeito deste assunto, Fortes (1976) explica que
“A submissão à vontade geral é submissão à minha própria vontade, pois a vontade geral pode ser descrita como a vontade de cada membro da associação, enquanto dirigida ao interesse geral da coletividade. Uma associação que obedeça a este requisito é legítima e a submissão do indivíduo a uma ordem exterior pode-se converter em obrigação, na medida em que esta ordem é expressão da vontade geral. (...). A República ou Corpo político é uma ordem legítima porque somente o conceito de vontade geral é capaz de conciliar os termos contraditórios liberdade e dependência” (Fortes, 1976:79).
Entende-se por liberdade a auto-suficiência e a independência possuídas pelo homem no estado de natureza, aquela parte da vida individual não referente ao Estado, a qual deveria ser minimamente protegida quando do ingresso na ordem social. Este âmbito da preservação da individualidade / liberdade do homem teria que ser compatibilizado com a questão da dependência, que corresponderia aos laços sociais, aos vínculos comunitários existentes entre os indivíduos no estado civil. A legitimidade da ordem política dependeria desta última harmonizar, equilibrar, estes dois aspectos. Entretanto, os críticos liberais de Rousseau, como Benjamin Constant, segundo Berlin (1981:164), o acusam de minimizar a esfera privada dos indivíduos, desprezando a questão da liberdade negativa, maximizando o poder de intervenção da entidade coletiva na vida individual.
O Governo corresponderia ao poder Executivo no sistema de Rousseau. Ele seria “Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o Soberano, para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil quanto política” (Rousseau, 1995:115). Rousseau enfatiza o fato de que o Governo, o poder Executivo, é totalmente subordinado ao Soberano, o poder Legislativo, um comissário deste último (Ibidem:115). A subordinação do Governo ao Soberano é abordada por Rousseau quando este afirma, referindo-se ao povo reunido no Soberano, que os “depositários do poder executivo não são de forma alguma os senhores do povo, mas seus funcionários, que ele pode estabelecê-los e destituí-los quando lhe agradar” (Ibidem:153).
Especificamente sobre a instituição do Governo, Rousseau explica que se trata de um ato complexo constituído por dois outros procedimentos: o primeiro é um ato do Soberano, neste caso uma lei, pela qual o Soberano determina que existirá um corpo de Governo que se organizará de forma monárquica, aristocrática ou democrática; o segundo ato, de caráter particular, consistirá na nomeação, pelo povo, dos magistrados que integrarão o Príncipe e formarão o Governo (Rousseau, 1995:152).
Rousseau também destaca a questão da degeneração do Governo, afirmando que o Príncipe, que é o corpo de magistrados encarregado da administração pública (Ibidem:115), movido pela vontade facciosa e corporativa dos magistrados, distinta da vontade geral do conjunto do povo, tenta usurpar a soberania continuamente (Ibidem:140). Caso o Príncipe consiga se impor ao Soberano, ou seja, caso o Executivo prevaleça sobre o Legislativo, ocorre o rompimento do contrato social e a destruição do corpo político (Ibidem:140).
Fortes (1976) faz uma percuciente observação em relação a esta questão da degeneração do Governo. Para ele, a usurpação do Soberano pelo Príncipe, ou seja, do poder Legislativo pelo Executivo, é a conseqüência, no âmbito político, da decomposição moral dos costumes de um povo cujos integrantes não mais amam as leis e que só levam em consideração suas vontades particulares, desprezando a vontade geral e os interesses coletivos. O referido autor afirma que
“Um povo livre é, pois, aquele em que o processo de corrupção dos costumes não atingiu o seu grau extremo de desenvolvimento. Em termos estritamente políticos, este grau extremo corresponde à usurpação do poder legislativo pelo poder executivo. Mas esta usurpação não é senão um dos aspectos do processo de corrupção, não é senão um reflexo no plano das estruturas jurídico-políticas do processo de corrupção que, em essência, é um processo moral. É o avanço inevitável da corrupção dos costumes, da gradativa transformação do amor de si em amor próprio e da insensibilização dos cidadãos à voz da consciência, que comanda o processo. É ele que torna necessário um fortalecimento cada vez maior do poder executivo, o que oferece condições para que o magistrado leve a cabo a usurpação da soberania” (Fortes, 1976:124).
Como forma de tentar evitar a usurpação do poder Legislativo pelo Executivo e impedir a degeneração do Governo, Rousseau propõe que haja a realização, freqüente e constante, de assembléias legislativas populares que seriam destinadas à manutenção do tratado social (Rousseau, 1995:154). Nas citadas assembléias, os cidadãos deliberariam sobre se seria mantida a forma de governo até então adotada e se os magistrados encarregados do exercício do poder Executivo continuariam em seus cargos (Ibidem:154). Para o autor, estas assembléias são “a proteção do corpo político e o freio do Governo”(Ibidem:147), e deveriam ser realizadas, segundo ele, porque “quanto mais o Governo tem força, mais o Soberano deve com freqüência se fazer presente” ”(Ibidem:145). Desta forma, a finalidade da realização das referidas assembléias seria a fiscalização e o controle do poder Executivo, o Governo, pelo poder Legislativo, exercido diretamente pelo povo. Rousseau, ao propor a realização destas assembléias, se inspira nos grandes comícios da plebe da República Romana, que é seu modelo político favorito (Ibidem:144,154,162 e 163).
Apesar de Rousseau adotar a democracia direta como forma de desempenho do poder Legislativo, ele não o faz em relação ao Governo, ou seja, ao exercício do poder Executivo. Para o autor, a melhor forma de Governo é a aristocracia eletiva. Ele escreve que
“Há então três tipos de Aristocracia:natural, eletiva e hereditária. A primeira convém apenas a povos simples; a terceira é a pior de todos os Governos. A segunda é a melhor: é a Aristocracia propriamente dita. (...)
(...) Em uma palavra, a melhor regra e a mais natural é que os mais sábios governem a multidão, quando estamos certos de que a governarão em seu proveito e não no deles; não é necessário multiplicar em vão seus recursos, nem fazer com vinte mil homens o que cem homens escolhidos podem fazer ainda melhor” (Ibidem:126).
Rousseau não concorda com a adoção da democracia como forma de Governo porque, segundo ele, quanto maior a quantidade de magistrados, menor é a força do Governo (Ibidem:120), tendo em vista a definição de democracia para o autor como sendo a forma de Governo na qual existem mais cidadãos magistrados do que cidadãos particulares (Rousseau, 1995:122). Isto porque Rousseau considera que, em relação aos magistrados, existem três tipos de vontade: a própria, que tende para o benefício da pessoa do magistrado, a corporativa, que favorece o Príncipe e a geral (Ibidem:120). Como, para o autor, a vontade geral, neste caso, é a mais fraca, sendo seguida pela corporativa e, finalmente, pela própria, que prepondera, caso a quantidade de magistrados exercendo o Governo seja expressiva, a vontade geral será relegada a um plano subalterno tantas vezes quantas sejam os magistrados, e será sobrepujada pelas vontades pessoais e corporativas destes últimos. Como conseqüência, ocorrerá o enfraquecimento da vontade geral, acarretando o não acatamento, pelo Príncipe, das decisões do Soberano (Ibidem:120), tendo em vista o fortalecimento do primeiro e o enfraquecimento do último. Esta situação, segundo Rousseau, “se opõe diretamente àquela que exige a ordem social” (Ibidem:120). Por este raciocínio, pode-se concluir porque o autor é contrário à adoção da democracia como forma de Governo: a vontade geral seria superada pelas vontades particulares e corporativas dos cidadãos magistrados tantas vezes quantas fosse a quantidade destes últimos. Segundo as palavras do autor:
“Ao contrário, unamos o Governo à autoridade legislativa, façamos um Príncipe do Soberano, e tantos magistrados de quantos são os Cidadãos, e veremos que, então, a vontade do corpo, confundida com a vontade geral, não terá mais atividade que ela e deixará à vontade particular a toda a sua força. Assim, o Governo, sempre com a mesma força absoluta, estará no seu minimum de força relativa ou de atividade” (Ibidem:120 e 121).
A citação transcrita acima sugere, claramente, que os poderes Legislativo e Executivo devem permanecer separados, sendo exercidos por pessoas diferentes.
Um último aspecto relevante referente ao tema é que Rousseau considera que não existe uma única forma de Governo que seja a mais apropriada para ser adotada nos diferentes países. Tendo em vista que “É o supérfluo dos particulares que produz o necessário do público” (Ibidem:134) cada país, a depender, basicamente, de um fator primordial, que é a dimensão do excedente gerado por sua população (Rousseau, 1995:134), o que, por sua vez, depende de outros fatores, tais como a fertilidade do clima, a espécie de trabalho que a terra requer, a força e o consumo necessário de seus habitantes (Ibidem:134), vai demandar o tipo de Governo (monárquico, aristocrático ou democrático) que mais se compatibilize com as condições acima referidas, específicas de cada país. Deste modo, não é possível estabelecer, de antemão, qual seria a melhor forma de Governo a ser aplicada em qualquer país, em qualquer situação. Concluindo, Rousseau sintetiza esta questão da indeterminação da forma de governo única que seja a melhor a ser adotada em qualquer situação e país, afirmando que
“Em todas as épocas se discutiu muito sobre a melhor forma de Governo, sem considerar que cada uma delas é a melhor em certos casos e a pior em outros.
Se nos diversos Estados o número de magistrados supremos deve estar em proporção inversa à do número de cidadãos, conclui-se que, em geral, o Governo Democrático convém aos pequenos Estados, a Aristocracia aos medíocres e a Monarquia aos grandes. Essa regra deriva imediatamente do princípio; mas como considerar a variedade de circunstâncias que podem causar exceções?”(Ibidem:123).
Todavia, a indeterminação à qual o autor alude é relativa à qual seria a melhor maneira de se desempenhar o Governo, ou seja, o poder Executivo. Quanto à prática do poder Legislativo, Rousseau afirma e reitera sua opção pela democracia direta, considerada como sendo o regime político no qual há identidade entre governantes e governados (Sartori, 1965:103). Esta opção é explicitada quando o autor assevera que “O povo submetido às leis deve ser o seu autor” (Rousseau, 1995:99), ou quando ele afirma que “Toda lei que não foi ratificada pelo povo em pessoa, é nula; não é de forma alguma uma lei” (Ibidem:148).
4.6. A democracia participativa e a liberdade positiva:
Relativamente à questão da democracia, no caso de Rousseau, a participativa, trata-se de um tema que não é simples, em função da ambigüidade do autor em relação ao assunto.
O autor define democracia da seguinte forma: “o Soberano pode confiar o Governo a todo o povo ou à maior parte do povo, de tal forma que haja mais cidadãos magistrados do que simples cidadãos particulares. Dá-se a essa forma de Governo o nome de democracia” (Rousseau, 1995:122).
Rousseau adota a democracia participativa, direta, caracterizada pela identidade entre governantes e governados (Sartori, 1965:103), como sistema de instituição das leis quando sustenta que:
“Não é suficiente que o povo reunido tenha uma vez fixado a constituição do Estado, sancionando um corpo de leis; não é suficiente que tenha estabelecido um governo perpétuo ou que tenha promovido, de uma vez por todas, a eleição dos magistrados. Além das assembléias extraordinárias que os casos imprevistos podem exigir, é necessário que existam outras fixas e periódicas” (Rousseau, 1995:145).
Deste modo, pode-se considerar que Rousseau, ao contrário de Locke, é um defensor do que Berlin (1981) denomina de liberdade positiva. Esta modalidade de liberdade, segundo Berlin, tem origem no “desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelo menos, de participar do processo através do qual minha vida deve ser controlada” (Berlin, 1981:142). Rousseau, ao discorrer sobre o processo democrático direto quanto ao exercício do poder Legislativo, ao acentuar que o povo deve ele próprio estabelecer as normas que regulamentarão a vida social e civil da comunidade na qual está inserido (Rousseau, 1995:99), está ressaltando o componente positivo da liberdade, que, por sua vez, está associado à democracia participativa. Este componente concerne ao exercício ativo dos direitos políticos da cidadania (fixar a constituição do Estado, sancionar as leis, estabelecer o Governo, eleger os magistrados (Ibidem:145)) correspondendo ao que Berlin afirma quando assevera que “O sentido “positivo” da palavra liberdade tem origem no desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor” (Berlin, 1981:142). Berlin, se referindo ao conceito de liberdade em Rousseau, que consiste em estabelecer por si mesmo as leis às quais se obedecerá (Rousseau, 1995:98), afirma que
“Rousseau afirma de modo exultante que as leis da liberdade eram comprovadamente mais austeras do que o jugo da tirania. Com liberdade não se refere ele à liberdade “negativa” do indivíduo não sofrer interferências numa área definida, mas a posse por todos, e não somente por alguns membros mais qualificados de uma sociedade, de uma cota do poder público que pode interferir em todos os aspectos da vida de todos os cidadãos. Os liberais da primeira metade do século XIX anteviram corretamente que a liberdade nesse sentido “positivo” poderia facilmente destruir muitas das liberdades “negativas” que reputavam sagradas. Enfatizavam que a soberania do povo poderia facilmente destruir a dos indivíduos” (Berlin, 1981:163).
Assim, fica configurada a crítica liberal à democracia participativa de Rousseau no desempenho do poder soberano. Os liberais acusam e recriminam Rousseau por este não se preocupar com a proteção da incolumidade da esfera privada do cidadão contra intervenções indevidas da autoridade pública. Segundo estes críticos (Benjamin Constant, Isaiah Berlin), Rousseau somente atribuiria importância ao direito de os cidadãos participarem ativamente da esfera política, instituindo as leis às quais obedeceriam, conferindo relevância apenas à liberdade positiva, e subestimando a negativa. De acordo com Berlin (1981:163), o componente positivo da liberdade é aquele relacionado ao desempenho diligente dos direitos políticos da cidadania.
A este respeito, Berlin afirma que Benjamin Constant via em Rousseau o mais perigoso inimigo da liberdade individual (Ibidem:164). Isto devido ao fato de Constant julgar falsa a afirmativa de Rousseau de que o Soberano jamais oprimiria qualquer membro individual do corpo político, porque, na opinião do primeiro, tendo o corpo político o poder e a autoridade pública na plenitude, a opressão sobre o indivíduo seria inexorável (Ibidem:164).
Desta maneira, fica caracterizada a apologia da liberdade positiva em Rousseau, bem como a crítica liberal ao pensamento político deste autor. Esta crítica, que teve em Benjamin Constant um dos seus expoentes, se refere, basicamente, ao fato de o autor suíço depositar, segundo a visão liberal, todo o poder e autoridade pública nas mãos do corpo político coletivo, que, na teoria política de Rousseau, é o Soberano. Este fato, associado ao de a vontade geral se manifestar de forma mais pura e plena se houver unanimidade de opinião dos cidadãos quanto às questões públicas, faz com que os liberais acusem Rousseau de conceder ao indivíduo pouco espaço para discordar e para exercitar uma das liberdades negativas fundamentais, que é a de pensamento e expressão. Esta última consiste na garantia de que a entidade pública não intervirá naquilo que o indivíduo pensa e fala. Trata-se, portanto, da liberdade negativa no sentido de se estabelecer uma área cujos limites o organismo coletivo não poderá transpor, sob pena de violar a esfera privada do indivíduo, sendo estes limites, no caso, o conteúdo do pensamento e da comunicação do indivíduo. A crítica dos liberais e de Berlin é motivada por trechos em que Rousseau afirma que “Quanto mais a harmonia reina nas assembléias, ou seja, quanto mais as opiniões se aproximam da unanimidade, tanto mais a vontade geral é dominante; mas os longos debates, as discussões, (...), anunciam a acedência dos interesses particulares e o declínio do Estado” (Rousseau, 1995:158). Nesta passagem fica caracterizada a recriminação que Rousseau faz aos debates e às discussões, que constituem o elemento central, o cerne, das liberdades negativas de pensamento e expressão, o que torna a crítica de Berlin procedente, bem como o elogio que Rousseau faz da unanimidade, o que suscitou a crítica liberal de que seu pensamento político teria um teor totalitário, e que a soberania do povo, no caso, a vontade geral, destruiria a soberania individual (Berlin, 1981:163). Deste modo, o organismo coletivo oprimiria o indivíduo na sua singularidade.
Retornando à questão da democracia propriamente dita, Rousseau, apesar de adotá-la como forma de exercício do poder Legislativo, tece as seguintes considerações acerca da democracia como modo de desempenho do Governo, ou seja, do poder Executivo, no capítulo IV do Livro III do “Contrato Social”:
“Tomando-se o termo no rigor da acepção, nunca existiu a verdadeira democracia e jamais existirá. É contra a ordem natural que o maior número governe e que o menor seja governado. Não se pode imaginar que o povo permaneça constantemente reunido para deliberar sobre os negócios públicos, e se compreende, claramente, que não se poderia estabelecer comissões para isso sem que se mude a forma de administração” (Rousseau, 1995: 123-124).
Além disto, o autor considera que tal sistema de governo só seria viável em um país de reduzidas dimensões, entre outros inconvenientes, conforme o trecho a seguir:
“Além disso, que dificuldades de reunião não supõe esse Governo? Primeiramente, um Estado muito pequeno onde seja fácil reunir o povo e onde cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes que evite a variedade de assuntos e discussões espinhosas. Em seguida, muita igualdade nos cargos e nas fortunas, sem o que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e na autoridade. Finalmente, pouco ou nenhum luxo, pois o luxo ou é efeito das riquezas, ou as torna necessárias, corrompendo tanto o rico quanto o pobre, um pela posse e o outro pela cobiça, entregando a pátria à indolência e à vaidade, subtraindo ao Estado todos os seus Cidadãos, para submeter uns aos outros, e todos à opinião. ” (Ibidem:124).
Rousseau, assim, repele a democracia como forma de Governo, ou seja, como modo de praticar o poder Executivo. Entretanto, preconiza a democracia direta, participativa, como forma de desempenho do poder Legislativo (Ibidem:99 e 148). A democracia direta no exercício do poder Legislativo, o poder soberano, desempenha uma função central no pensamento político de Rousseau. Para ele, a não participação dos cidadãos no exercício do mencionado poder pode acarretar a ruína do Estado e a morte do corpo político. Sobre isto, ele afirma que “Desde que o serviço público deixa de ser a principal atividade dos Cidadãos, preferindo antes servir com sua bolsa do que com sua pessoa, o Estado já está perto da ruína. (...). Quando alguém disser dos negócios do Estado, que me importa? Pode-se ter certeza de que o Estado está perdido ” (Ibidem:147 e 148). Deste modo, o autor considera a participação política direta dos cidadãos na esfera pública vital para a sobrevivência do Estado.
Dent (1996) corrobora o argumento de que Rousseau adota a democracia participativa, direta, quanto ao desempenho do poder Legislativo, mas a recusa como modo de se praticar o poder Executivo. O referido autor afirma que, no sistema político de Rousseau, “as leis fundamentais aplicáveis em qualquer Estado requerem, para sua legitimidade, a autorização de todos os membros do Estado” (Dent, 1996:96). Além disto, este autor afirma que Rousseau, em relação ao governo democrático participativo “formula muitas outras objeções a um tal arranjo: há tempo insuficiente para as pessoas se reunirem em assembléia; não podem reunir-se num só lugar; os assuntos a tratar devem ser mantidos num nível muito simples” (Ibidem:97).
A defesa que Rousseau realiza da democracia direta, participativa, como forma de praticar o poder Legislativo, pode ser atestada por algumas de suas posições expressas nas “Considerações sobre o Governo da Polônia”. Nesta obra, o autor critica a ordem social polonesa, que exclui a maior parte da população do exercício do poder soberano. Referindo-se ao fato de somente a nobreza polaca desempenhar o poder legislativo soberano, excluindo a maior parte da população, composta por burgueses e camponeses, assim Rousseau se pronuncia:
“Tal é ou deve ser , na Polônia, a Lei do Estado. Mas a Lei da Natureza, esta Lei santa, imprescritível que fala ao coração do homem e à sua razão, não permite que se estreite assim a autoridade legislativa e que as leis obriguem quem quer que seja que não tenha votado pessoalmente (...). Não se viola impunemente esta Lei sagrada; e o estado de fraqueza, a que se acha reduzida uma tão grande nação, é obra desta barbárie feudal que faz desmembrar do corpo do Estado sua parte mais numerosa e, por vezes, a mais sadia” (Rousseau, 1982:43).
O autor não se restringe à crítica; ele propõe explicitamente a integração de burgueses e camponeses à vida política polonesa. Afirma ele que “O segundo meio, sem o qual o primeiro não é nada, é abrir uma porta aos servos para adquirir a liberdade e aos burgueses para adquirir a nobreza” (Ibidem:94). O autor propõe a criação de “Comitês de Beneficência”, que teriam, como uma de suas incumbências principais, a de selecionar os camponeses que teriam sua liberdade estabelecida pelas “dietinas” (os parlamentos regionais) (Rousseau, 1982:94). O mesmo procedimento seria adotado em relação ao enobrecimento dos burgueses (Ibidem:94 e 95). O autor advoga, para a Polônia, a extensão dos direitos políticos da cidadania a camponeses e burgueses, reafirmando o princípio da soberania popular contido no “Contrato Social”. Desta maneira, reitera seu compromisso com a prática da democracia direta, participativa, como a forma mais apropriada de desempenho do Poder Legislativo. Rousseau também o faz ao afirmar não ser admissível o estreitamento da autoridade legislativa a apenas um segmento da população (Ibidem:43), numa crítica ao fato de somente a nobreza, na Polônia, exercer o poder soberano, e ao asseverar ser inaceitável “que as leis obriguem quem quer que seja que não tenha votado pessoalmente” (Ibidem:43).
Como forma de preservar a democracia participativa no desempenho do poder Soberano e de evitar a usurpação do Legislativo pelo Governo, Rousseau prega a prática do direito de resistência “preventivo”. Com base nos comícios romanos, que eram assembléias populares nas quais a plebe, na República, deliberava sobre temas políticos, Rousseau, salientando que o Príncipe age sem cessar com o desiderato de usurpar o Soberano, recomenda que o povo que, em seu sistema político, exerce ele próprio o poder Legislativo, para evitar a referida usurpação, realize assembléias periódicas para servir de “freio do Governo” (Rousseau, 1995 passim 144 a 147). Estas assembléias deliberariam sobre duas proposições principais: se o povo alteraria ou manteria tanto a forma de Governo quanto os magistrados incumbidos da administração pública (Ibidem:144). Seria uma forma de o povo se antecipar a qualquer tentativa de exercício indevido de seu poder soberano por parte dos magistrados detentores do poder Executivo; daí a qualificação de direito de resistência “preventivo”. Em caso de o povo considerar haver indícios de uma conspiração por parte dos magistrados, os destituiria na assembléia, antes que perpetrassem o golpe.
Quanto à rejeição da democracia como forma de Governo, além dos motivos já elencados, - a inviabilidade de reunião dos cidadãos para tratar dos assuntos ordinários da administração pública e as necessidades de que o Estado seja de reduzidas proporções e de que os cidadãos se conheçam mutuamente -, Rousseau acrescenta mais um. Este último consistiria nos prejuízos que adviriam de os poderes Legislativo e Executivo serem exercidos pelo mesmo corpo de integrantes, o que seria a conseqüência da implantação da democracia como forma de Governo. Isto porque o corpo soberano elaborador das leis seria transformado em executor das mesmas leis, em Príncipe, e os cidadãos em magistrados. Em decorrência disto, a vontade geral seria suplantada pelas vontades particulares e corporativas dos cidadãos magistrados, acarretando o enfraquecimento do Soberano e o fortalecimento do Príncipe, podendo implicar, assim, o rompimento do tratado social. Rousseau adverte para os perigos daí decorrentes:
“Aquele que faz a lei sabe melhor do que ninguém como deve ser executada e interpretada. Então parece que não se teria melhor constituição do que aquela onde o poder executivo está unido ao legislativo; mas isso é o mesmo que tornar esse Governo insuficiente em certos aspectos, porque as coisas que devem ser diferenciadas não o são, e sendo o Príncipe e o Soberano a mesma pessoa, formam por assim dizer, um Governo sem Governo.
Não é bom que aquele que faz as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos interesses gerais, para atribuí-la aos objetivos particulares” (Rousseau, 1995:123).
Rousseau também se refere ao sistema de Governo democrático como sendo “a forma de Governo sempre incerta e oscilante” (Ibidem:141). O único aspecto positivo da democracia como forma de Governo identificado por Rousseau, seria o fato de o “Governo Democrático poder ser estabelecido de fato por um ato da vontade geral” (Ibidem:153).
5. Capítulo 4 - Participação x Representação – Comparação entre os pensamentos políticos de Locke e Rousseau:
A finalidade deste capítulo é fazer uma comparação entre os pensamentos políticos dos dois autores, destacando as convergências e divergências, semelhanças e distinções entre as duas concepções políticas, tendo como referência de análise as duas questões centrais de nosso estudo: a democracia representativa e a democracia participativa em Locke e Rousseau, respectivamente. Os pontos de comparação considerados os mais relevantes serão a seguir examinados.
5.1. A contestação da autoridade paterna como origem da legitimidade para o exercício do poder político:
Os dois autores contestam, de duas formas principais, a autoridade paterna como fonte de legitimidade para o exercício do poder político. A primeira delas consiste em circunscrever a autoridade paterna à fase de menoridade dos filhos, na qual, por uma necessidade de assegurar a sobrevivência da prole, os pais podem exercer poder, o pátrio poder, sobre os filhos, que são obrigados a obedecê-los. Entretanto, alcançada a maioridade pelos filhos e findo este período da tutela paterna, os pais perderiam o direito de exercer poder sobre os filhos. A questão que se coloca é a seguinte: como um poder cuja natureza é transitória, posto que se extingue com a maioridade dos filhos, não existindo mais depois que a referida maioridade ocorre, pode servir de fundamento a um poder, no caso, o político, que precisa ser permanentemente exercido? Com base na autoridade paterna, o Governo Civil somente teria jurisdição sobre os menores de idade, o que é absurdo. Sobre o assunto, Locke afirma que “A sujeição do menor atribui ao pai governo temporário que termina ao terminar a menoridade do filho” (Locke, 1973:66), e Rousseau, na mesma linha, sustenta que “A mais antiga de todas as sociedades e a única natural, é a família. Os filhos só permanecem ligados ao pai, enquanto têm necessidade dele para sua manutenção. Quando essa necessidade cessa, a ligação natural se dissolve” (Rousseau, 1995:70).
A segunda forma de contradizer o argumento da origem paterna da legitimidade do poder político é a de estabelecer claramente as diferenças entre o poder paterno e o poder político, como faz Locke, e distinguir de forma inequívoca o Estado da família, conforme faz Rousseau. Para Locke (1973), o pátrio poder consiste no controle temporário que os pais exercem sobre o comportamento dos filhos durante a sua menoridade, quando ainda não possuem discernimento para gerir suas propriedades, para garantir sua subsistência, enquanto o poder político consiste em fazer leis que defendam e assegurem a fruição do direito de propriedade, bem como punam aqueles que invistam contra o ordenamento jurídico e contra a propriedade alheia (Locke, 1973:108). As duas modalidades de poder, o paterno e o político, têm finalidades diversas, e, devido a esta diversidade de objetivos, o primeiro não pode servir de fundamento ao segundo. Sobre o assunto, Locke afirma que
“A natureza dá o primeiro destes poderes, isto é, o pátrio poder, aos pais para benefício dos filhos durante a menoridade, para suprir-lhes a falta de capacidade e de entendimento em como administrar a propriedade (...). O pátrio poder reside unicamente na menoridade que torna o menor incapaz de gerir a propriedade;o político, quando os homens têm propriedade à sua disposição” (Ibidem:108).
Deste modo, fica estabelecida uma das características distintivas entre as duas modalidades de poder: o pátrio seria destinado àqueles desprovidos de discernimento para administrar suas propriedades, e o político seria aquele exercido sobre os que detivessem o referido discernimento.
Acerca do poder político, Locke afirma que
“Considero, ..., poder político o direito de fazer leis com pena de morte e, conseqüentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade, e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comunidade de dano exterior; e tudo isso tão só em prol do bem público” (Ibidem:40).
Desta maneira, Locke vincula tanto o pátrio poder quanto o poder político à questão da propriedade, central em sua análise. O primeiro subsistiria somente enquanto o filho fosse menor e tivesse que ser tutelado pelo pai, até o momento em que adquirisse discernimento para administrar seus bens e propriedades e ficasse sujeito à jurisdição do Governo Civil, responsável pelo exercício do segundo. Deste modo, como o poder político é exercido, pelo Governo Civil, sobre homens que têm discernimento para administrar suas propriedades, seu fundamento não pode residir numa modalidade de poder que é praticado em relação a indivíduos incapazes de gerir seus patrimônios.
Rousseau contesta a autoridade paterna como base do poder político por meio de explicação similar. Todavia, ele baseia sua distinção entre poder paterno e poder político se concentrando nas diferenças entre a administração privada, que estaria circunscrita à família, que seria comandada pelo pai e teria como finalidade precípua a procriação, e a administração pública, que corresponderia ao Estado, e cujo objetivo principal seria o bem comum da sociedade. Rousseau afirma que organizações com finalidades tão diversas não podem ser geridas pela mesma modalidade de poder; o pátrio poder seria compatível com as famílias e com a economia e administração privadas, enquanto o poder político seria apropriado para o Estado e a economia e administração públicas (Rousseau, 1995, passim 21-24).
No “Contrato Social”, Rousseau, a exemplo de Locke, afirma que a autoridade paterna se restringe ao período da menoridade do filho, que, uma vez findo, extingue o pátrio poder que o pai exercia em relação a seus filhos, que de forma alguma ficam obrigados a obedecer às determinações do pai no que se refere a suas vidas civis. Referindo-se ao aludido período, ao longo do qual os filhos necessitam do auxílio paterno para sua subsistência, o autor afirma que, “Quando essa necessidade cessa, a ligação natural se dissolve” (Ibidem:70). Por conseguinte, um poder que se extingue após certo período, o pátrio poder, não pode servir de fundamento para outra modalidade de poder que requer execução permanente, perene, como é o caso do poder político. A respeito da incompatibilidade existente entre os mencionados poderes, o autor afirma que “ainda é possível deduzir a solução de um sofisma muito familiar aos políticos reais; trata-se não só de comparar o Governo civil ao Governo doméstico e o príncipe ao pai de família – erro que já foi refutado – (...)”(Rousseau, 1995:131).
Locke concorda com a argumentação de Rousseau acerca da distinção entre família e Estado, pátrio poder e poder político, ao afirmar que “Consideremos então um chefe de família com todas essas relações subordinadas de mulher, filhos, servos e escravos, unidos sob a regra doméstica da família; a qual, seja qual for a semelhança que possa ter em sua ordem, ofícios e número com uma pequena comunidade, está muito longe dela, tanto na constituição como no poder e objetivo” (Locke, 1973:72).
A refutação da autoridade paterna como fonte de legitimidade do poder político é extremamente relevante para a teoria política dos dois autores porque, se ela não fosse eliminada, Locke e Rousseau ficariam sem argumento, na medida em que se o poder político fosse exercido por monarcas absolutos que derivassem sua autoridade do legado paterno de Adão, os sistemas políticos concebidos pelos dois autores teriam sua existência comprometida. Isto porque nem o Legislativo exercido por representantes escolhidos pelo povo, base da democracia representativa de Locke (Ibidem:92,96,101,124,125), nem o Soberano composto pelos próprios cidadãos elaboradores das leis, fundamento da democracia direta, participativa, preconizada por Rousseau quanto ao desempenho do poder Legislativo (Rousseau, 1995:99,144,145,148), poderiam subsistir. Se a mencionada refutação não fosse feita, o poder político seria exercido pelo rei absolutista e por mais ninguém, e as propostas políticas dos dois autores perderiam a razão de ser. Para viabilizar a existência de suas teorias políticas, era preciso fundamentar a legitimidade do poder político em outras bases.
5.2. O consentimento como a base da legitimidade do exercício do poder político e a exigência de unanimidade para celebração do pacto social :
Para viabilizar seu modelo político, Locke retira a legitimidade do exercício do poder político da autoridade paterna e da origem divina, o que faz no “Primeiro Tratado sobre o Governo Civil”, e a coloca como dependente da anuência de cada indivíduo membro da sociedade política, assunto essencial abordado no “Segundo Tratado sobre o Governo Civil”. O consentimento individual é o fundamento das categorias mais importantes do pensamento deste autor, tais como comunidade política, Governo Civil, lei, entre outras.
Em relação à formação da sociedade política e ao Governo Civil, este autor afirma que “Assim sendo, o que dá início e constitui realmente qualquer sociedade política nada mais é do que o assentimento de qualquer número de homens livres capazes de maioria para se unirem e incorporarem a tal sociedade. E isto, e somente isto deu ou podia dar origem a qualquer governo legítimo no mundo” (Locke, 1973:78). Desta forma, a legitimidade do exercício do poder político pelo Governo Civil reside na aprovação espontânea dos governados no que se refere à ação da entidade que vai exercer o poder político em nome da comunidade, o Governo Civil.
Com referência à lei, a concordância individual também está na base deste conceito, quando o autor sustenta que “sem isto a lei não teria o que é absolutamente necessário a sua natureza de lei: o consentimento da sociedade” (Ibidem:92).
A anuência individual também fundamenta o pensamento de Rousseau sobre a questão da adesão ao pacto social. Referindo-se a este último, o autor afirma que “a associação civil é o ato mais voluntário do mundo. Todo homem tendo nascido livre e senhor de si, ninguém pode submetê-lo sem seu consentimento” (Rousseau, 1995:159). Desta forma, Rousseau concorda com Locke no que se refere ao repúdio a qualquer forma arbitrária de Governo, entendida esta última como sendo aquela imposta ao povo sem a sua autorização expressa. Para Rousseau, “a força não estabelece o direito” (Rousseau, 1995:73), “só se está obrigado a obedecer aos poderes legítimos” (Ibidem:73), que são aqueles instituídos pela vontade popular, a vontade geral.
Rousseau também se refere a um outro aspecto relativo ao contrato social, em relação ao qual também existe convergência com o pensamento de Locke: trata-se do fato de que o pacto social, para ser celebrado de forma válida e entrar em vigor, requerer o beneplácito de todo o integrante da sociedade que a ele aderir. A respeito deste assunto, escreve o autor: “Há apenas uma lei que, por sua natureza, exige um consentimento unânime. Trata-se do pacto social” (Ibidem:159).
Locke também aborda a questão da adesão ao contrato social. Para ele, todo indivíduo, indistintamente, tem que dar sua aprovação ao ingresso no estado civil e à instauração da comunidade política. A respeito da necessidade de consentimento unânime dos indivíduos para validar o contrato social, o autor afirma “Quando qualquer número de homens, pelo consentimento de cada indivíduo, constituiu uma comunidade, tornou, por isso mesmo, essa comunidade um corpo” (Locke, 1973:77). O que faz concluir que o autor afirma que é necessária a aprovação unânime dos indivíduos para o ingresso no estado civil é a expressão “pelo consentimento de cada indivíduo” (Ibidem:77).
O pacto social será o ponto de partida comum, na teoria política de Locke e Rousseau, do estado civil. A forma pela qual este estado será gerido, a modalidade de Governo para o exercício da administração pública da comunidade política, que será proposta por cada um dos autores será, contudo, distinta. Locke propugnará que o poder político da comunidade seja desempenhado por parlamentares selecionados pelos cidadãos governados (Ibidem:92,96,101,124,125), configurando, deste modo, a democracia representativa. Rousseau defenderá que o poder Legislativo seja praticado diretamente pelos cidadãos (Rousseau, 1995:99,144,145,148), caracterizando, assim, a adoção da democracia direta, participativa como modalidade de exercício do aludido poder.
5.3. Pontos de vista em relação ao poder absoluto e à monarquia absoluta:
Ambos os autores são críticos contumazes do absolutismo monárquico e defensores da soberania popular. Locke e Rousseau diferem, fundamentalmente, no modo de propor o exercício do poder soberano popular: Locke preconiza que o mesmo seja exercido por parlamentares ou deputados (Locke, 1973:92,96,101,124,125), ao passo que Rousseau advoga o exercício direto da soberania pela população (Rousseau, 1995:99,144,145 e 148).
Locke considera a monarquia absoluta uma forma de Governo incompatível com a sociedade política, posto que, segundo o autor, nesta última existe “uma autoridade conhecida para a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano que lhe causem ou controvérsia que possa surgir, e à qual todos os membros dessa sociedade terão que obedecer“(Locke, 1973:74), inexistindo tal autoridade sob a monarquia absoluta. Isto devido ao fato de, nesta última, a conveniência do príncipe prevalecer sempre, invariavelmente. O autor repudia o absolutismo monárquico, asseverando que, em tal Governo, não existe o juiz imparcial para solucionar os contenciosos que ocorrerem entre os indivíduos, e afirma que o que torna a monarquia absoluta pior do que o estado de natureza é a desigualdade, em termos de poder, que se observa entre o príncipe absolutista e seus súditos. Locke compara a citada desigualdade a uma relação de escravidão, na qual o senhor, no caso, o príncipe, detém todo o poder, e o súdito é completamente impotente. Por outro lado, no estado de natureza, todos os homens detendo, em princípio, o mesmo poder executivo da lei de natureza, observa-se uma disparidade muito menos acentuada em termos de quantidade de poder possuído por cada indivíduo, podendo um homem, eventualmente, ser mais forte do que outro, mas sem, contudo, configurar uma correlação de forças tão assimétrica quanto a que se verifica na relação príncipe absolutista – súditos (Locke, 1973, passim 44-45). Sobre o assunto, Locke afirma, referindo-se ao príncipe absolutista, que
“Supondo-se que ele tenha concentrado em si todo o poder, não só legislativo como executivo, não se achará qualquer juiz, e ninguém deparará com a possibilidade de apelar para quem decida imparcial e indiferentemente com autoridade e de cuja decisão possa esperar-se remédio ou reparação para qualquer dano ou transtorno, causado pelo príncipe ou por sua ordem; de sorte que um homem desses intitulado “czar” ou “grão-senhor”, ou como quiserem, encontra-se tanto no estado de natureza tendo tudo sob seu domínio como ele próprio está para com o resto dos homens, pois sempre que existam dois homens sem qualquer regra estabelecida ou juiz comum para o qual apelar na Terra para a resolução de controvérsias de direito entre eles, estarão ainda no estado de natureza , e sob todos os inconvenientes deste, somente com esta deplorável diferença para o súdito, ou antes, escravo, de príncipe absoluto; enquanto no estado ordinário de natureza possui a liberdade de julgar do seu direito e, conforme lhe for possível de acordo com as suas forças, sustentá-lo, sempre que lhe invadam a propriedade por ordem ou vontade do monarca, não terá meios de apelar como os que estão em sociedade devem ter, (...), mas nega-se-lhe ainda a liberdade de julgar ou defender o próprio direito” (Ibidem:74 e 75).
Conforme se depreende da passagem acima, o que o autor considera o elemento que torna o estado de natureza preferível ao absolutismo monárquico é a inexistência, no primeiro, da extrema desigualdade de poder que prevalece no segundo. Neste último, o príncipe – senhor exerce um jugo extremamente opressivo sobre seus súditos – escravos, relação de disparidade de poder esta que dificilmente se reproduzirá no estado de natureza, no qual todos detêm os mesmos direitos e liberdades naturais já mencionados.
Um outro trecho no qual Locke expressa seu ponto de vista de que a monarquia absoluta é pior do que o estado de natureza é aquele no qual o autor afirma que
“os monarcas absolutos são apenas homens, e se o governo deve ser o remédio para aqueles males que se seguem necessariamente ao fato de serem os homens juízes em causa própria, não sendo por isso suportável o estado de natureza, desejo saber que espécie de governo é esse, e em que medida é melhor do que o estado de natureza, onde um homem governando uma multidão tem a liberdade de ser juiz em causa própria, podendo fazer aos seus súditos tudo quanto lhe aprouver, sem o menor questionamento ou controle por parte daqueles que lhe executam as vontades, devendo todos a ele submeter- se, seja lá o que for que ele faça, levado pela razão, pelo erro ou pela paixão? Muito melhor será no estado de natureza, no qual os homens não estão obrigados à vontade injusta de outrem; e se aquele que julga julgar erroneamente no seu próprio caso ou no de terceiros, é responsável pelo julgamento perante o restante dos homens” (Locke, 1973: 44).
Desta forma, o autor reitera sua repulsa à monarquia absoluta, enfatizando a extrema desigualdade entre o poder do Príncipe, a quem tudo é permitido fazer sem que os súditos possam contestar ou se opor mesmo minimamente, e a impotência do súdito, ou seja, uma verdadeira relação de escravidão, entre senhor e servo. No estado de natureza, pelo menos, não se reproduz semelhante relação de disparidade, e as desigualdades são menos acentuadas, além de cada homem responder a todos os outros pelas decisões que tomar, o que não ocorre no absolutismo monárquico. Neste, o príncipe não presta contas a ninguém de seus atos, o que vem a ser outro fator que ratifica a superioridade do estado de natureza sobre a monarquia absoluta, de acordo com Locke.
O autor inglês sustenta, ainda, que o absolutismo monárquico é pior do que o estado de natureza no sentido de que a fruição do direito à propriedade privada é mais precário no primeiro do que no segundo. A respeito disto, Locke assevera, referindo-se à monarquia absoluta, que “a propriedade não está de modo algum segura, (...), se quem os governa tem o poder de tirar de qualquer pessoa particular a parte que quiser da propriedade desta, usando-a e dela dispondo conforme lhe aprouver” (Ibidem:95). No modelo político de Locke, ao contrário do absolutismo monárquico, a tributação sobre a propriedade do cidadão está condicionada à aprovação deste último ou de seu representante político (Ibidem:96).
Rousseau também repele de modo acentuado o absolutismo monárquico, tanto no “Discurso sobre a desigualdade” quanto no “Contrato Social”. No final do “Segundo Discurso”, quando Rousseau (1985:98) aborda o epílogo da fase da “juventude do mundo” e do estado de natureza, na qual o amor próprio e o surgimento da propriedade privada já estão atuantes no processo de corrosão e decomposição moral das relações humanas, ele caracteriza o despotismo como sendo algo funesto, o ápice da desigualdade entre os homens, afirmando que
“É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, erguendo gradativamente a cabeça hedionda e devorando tudo quanto percebesse de bom e de são em todas as partes do Estado, chegaria finalmente a espezinhar as leis e o povo, e a estabelecer-se sobre as ruínas da república. Os tempos que precedessem essa última mudança seriam tempos de tumultos e de calamidades, mas no fim, tudo seria devorado pelo monstro,e os povos não teriam nem chefes, nem leis, mas tão-somente tiranos” (Rousseau, 1985:114).
Rousseau, compara, a exemplo de Locke, a monarquia despótica ao regime de escravidão, fundado numa relação de profunda desigualdade, na qual o senhor tudo pode ordenar e o escravo a tudo tem que obedecer, sem nada poder reivindicar. Sobre isto, o autor afirma que, depois da implantação do despotismo, “a mais cega obediência é a única virtude que resta aos escravos” (Ibidem:115). O autor define o despotismo como o Governo do arbítrio do déspota, do príncipe, como sendo a lei suprema, devido à revogação das leis civis legítimas (Ibidem:115).
Rousseau também repele o despotismo e o absolutismo monárquico no “Contrato Social”. A respeito do assunto, ele afirma que
“Uma vez que nenhum homem tem autoridade natural sobre seu semelhante e que a força não gera nenhum direito, restam então as convenções, como base de toda a autoridade legítima entre os homens.
(...), se um homem pode alienar sua liberdade e se tornar escravo de um senhor, por que todo um povo não poderia fazê-lo e se tornar súdito de um rei? (...). Alienar significa dar ou vender. Ora, um homem que se faz escravo de um outro não se dá, ele se vende – no mínimo por sua subsistência. Mas, e um povo, por que se venderia? Um rei está longe de fornecer aos seus súditos a subsistência, ao contrário, retira deles a sua; e segundo Rabelais, um rei não vive com pouco. Os súditos dão então sua vida com a condição de lhes tomarem também seus bens? Não vejo o que lhes resta para conservar.
Alguns dirão que o déspota assegura a seus súditos a tranqüilidade civil – que seja. Mas que ganham eles com isso, se as guerras que sua ambição atrai sobre eles, se sua insaciável avidez, se as vexações de seu ministério os desolam mais do que suas dissensões? O que ganham com isso, se sua tranqüilidade é uma de suas misérias? (...).
Enfim, trata-se de uma convenção vã e contraditória estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites. (Rousseau, 1995:73 a 75).
Depreende-se da passagem acima transcrita o repúdio de Rousseau à monarquia absoluta que, para ele, é constituída em conseqüência da venda de um povo a um soberano. O autor alerta para os efeitos nefastos de tal fato, alegando que ele acarreta a renúncia aos próprios “direitos da humanidade” (Ibidem:74) por parte da população que consente em ser governada por um rei, e que tal negociação somente seria vantajosa para o monarca, que dominaria amplamente, em detrimento da população, que seria oprimida e de tudo despojada. Da mesma forma que Locke, Rousseau compara a relação rei – súdito ao relacionamento senhor – escravo, e também destaca a assimetria deste último, relação absolutamente desigual de poder, recriminando-a por prever, pelo lado do monarca, autoridade absoluta e total, e, pelo lado dos súditos, sujeição, submissão e obediência irrestritas. Uma forma de Governo fundamentada numa relação tão díspare, em termos de correlação de forças, não pode subsistir, nem, tampouco, ser justa. Rousseau, referindo-se à monarquia absoluta, afirma que “trata-se de uma convenção vã e contraditória estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites” (Ibidem:74 e 75). Por isto, tanto Locke quanto Rousseau, para conferirem sentido às suas propostas políticas, negam validade e legitimidade ao absolutismo monárquico como alternativa de organização política, o que, obviamente, justifica as saídas políticas preconizadas por cada um dos autores.
Deste modo, ambos os autores, para conferirem sentido às suas propostas políticas, negam validade e legitimidade ao absolutismo monárquico como alternativa de organização política. O sistema político do inglês caracteriza-se pela adoção da democracia representativa como forma de Governo da comunidade política (Locke, 1973:92,96,101,124,125), enquanto o modelo político do suíço tem como traço distintivo o exercício democrático e participativo do poder Legislativo pelos cidadãos (Rousseau, 1995:99,144,145,148).
5.4. A questão do direito de propriedade:
Existem duas diferenças fundamentais nas abordagens dos dois autores sobre este assunto. A primeira é que, para Locke, o direito de propriedade já existe no estado de natureza, é um direito natural do indivíduo, que antecede à formação da comunidade política e do estado civil e não depende do beneplácito dos demais indivíduos (Locke, 1973:42,51,52 e 88). Este último fato é justificado pelo autor com o argumento de que, se cada homem fosse obrigado a aguardar o consentimento de todos os outros para se apropriar dos bens disponíveis na natureza, os homens pereceriam, a despeito da abundância de bens disponibilizados na natureza (Ibidem:52). Por outro lado, para Rousseau, tal direito passa a existir somente em conseqüência de convenção e instituição humana (Rousseau, 1985:106 e 107 e 1995:84 e 85), que transformam a posse, típica do estado natural, em propriedade no estado civil, legitimada pelo pacto social e por convenção. Estes últimos também convertem o direito do primeiro ocupante, baseado na força, que não gera direito, em direito de propriedade legalmente estabelecido e reconhecido, fundamentado, amparado e legitimado no direito e na lei civil (Rousseau, 1995, passim 83-86).
Entretanto, apesar desta primeira diferença, Locke, preconiza que o estado civil e a sociedade política sejam constituídos para assegurar o usufruto seguro do direito à propriedade privada (Locke, 1973:88). Deste modo, assim como Rousseau, o autor inglês afirma que o direito à propriedade privada é amparado pelo estado civil, e nisto percebe-se uma convergência entre os dois. Desta forma, tanto Locke quanto Rousseau sustentam que o direito à propriedade privada se encontra protegido sob a égide do estado civil. Todavia, os autores diferem no sentido de que o primeiro preconiza que o mencionado estado estruture seu poder Legislativo sob a forma de uma democracia representativa, na qual a população jurisdicionada seleciona representantes políticos para desempenharem o poder político (Locke, 1973:92,96,101,124,125). Este último, para o autor inglês, consiste no “direito de fazer leis (...) para regular e preservar a propriedade” (Ibidem:40). O autor suíço, por seu turno, sustenta que a instituição do estado civil propicia a transformação da “posse, que nada mais é que a força ou o direito do primeiro ocupante” (Rousseau, 1995:83) na “propriedade que só pode estar fundada num título positivo” (Ibidem:83). O poder Legislativo do estado civil, praticado direta e democraticamente pelos cidadãos é uma característica central da proposta política de Rousseau (Ibidem:99,144,145,148).
A segunda distinção que merece destaque parte, inicialmente, de uma semelhança entre os dois. Tanto Locke, preliminarmente, quanto Rousseau, estabelecem limites ao direito de propriedade. A diferença é que Rousseau os mantém e sustenta ao longo de toda a sua argumentação, ao passo que Locke anula os próprios princípios que havia estabelecido no começo do capítulo cinco do “Segundo Tratado”, no qual aborda a questão da propriedade. O autor inglês propõe, inicialmente, que sejam observadas três limitações ao direito de propriedade, que funcionariam como controle da acumulação: o princípio da suficiência, o da deterioração e o do trabalho. Pelo primeiro, a quantidade do bem a ser apropriado teria que ser tal que ainda proporcionasse uma oferta do referido bem, objeto da apropriação, suficiente para atender à demanda das outras pessoas. Pelo segundo, só seria lícito a um homem possuir um bem, no valor correspondente ao trabalho empregado pelo indivíduo para dele se apropriar, até o momento em que o aludido bem se estragasse, se deteriorasse; a partir deste instante, as demais pessoas que estavam excluídas da propriedade deste bem poderiam legitimamente dele se apropriar. Pelo terceiro, um indivíduo só poderia se apropriar de uma quantidade de bens correspondente ao trabalho por ele empregado para adquiri-los (Locke, 1973, passim, 51-60). Entretanto, Locke afirma que o surgimento do dinheiro, matéria imperecível pela qual pode-se trocar os bens acumulados, anula os três princípios e abre caminho para a acumulação ilimitada (Ibidem:58 e 59). O autor, referindo-se mais especificamente à apropriação de terras, considerando que as terras ocupadas sempre serão mais produtivas do que as não ocupadas, e generalizando este argumento para a totalidade dos bens, afirma que não é mais necessário respeitar a condição de sempre proporcionar uma quantidade suficiente dos referidos bens às demandas das outras pessoas, após a efetivação da apropriação: a aquisição irrestrita de bens pela humanidade, baseada no trabalho, sempre contribuirá para aumentar o bem estar da mesma. Não há mais, portanto, a necessidade de consideração de se, após a apropriação, ainda existe ou não quantidade suficiente dos bens apropriados para atender ao consumo dos outros indivíduos (Ibidem:55). Desta maneira, pode-se acumular sem preocupação com a disponibilidade de bens para os outros, posto que a acumulação sempre reverterá em benefício para a coletividade, segundo Locke. Além disto, em decorrência da invenção do dinheiro, os bens acumulados pelo indivíduo não terão sua propriedade contestada, na medida em que estes bens, sendo trocados por dinheiro que não se estraga, não se deteriorarão (Ibidem, passim 53-59). Neste caso, o limite da deterioração também é invalidado. E, finalmente, caso o indivíduo consiga vender no mercado seus bens por um valor superior àquele conferido aos mesmos em correspondência ao seu trabalho quando da apropriação dos referidos bens, o indivíduo passa a deter uma quantidade de riqueza superior àquela propiciada por seu trabalho. Desta forma, cancela-se a terceira e última limitação, operando-se, deste modo, a desvinculação entre trabalho e propriedade (Ibidem:59), associação inicialmente feita por Locke (Ibidem:51).
Rousseau, ao contrário, afirma a existência de limites à acumulação de propriedades e os mantém ao longo de todo o seu argumento. Ele afirma que todo homem deve ter direito a possuir o necessário, sem, contudo, ter nada além desta parcela essencial (Rousseau, 1995:84), numa formulação similar ao princípio da suficiência inicialmente adotado por Locke. Este autor também ressalta a função social da propriedade, ao afirmar que o direito individual à propriedade privada é sempre subalterno em relação ao interesse comunitário. Sobre o assunto, Rousseau afirma que
“Cada membro da comunidade dá-se a ela, quando da sua formação, tal como se encontra naquele momento, ele e todas as suas forças, das quais os bens que possui fazem parte. (...). Mas como as forças da Cidade são incomparavelmente maiores do que as de um particular, também a posse pública é mais forte e mais irrevogável, sem ser mais legítima, (...). Isto ocorre porque o Estado, pelo contrato social, que serve de base a todos os direitos, é senhor dos bens de todos os seus membros” (Ibidem:83 e 84).
5.5. A dissolução do Governo, a separação dos poderes, a supremacia do poder Legislativo e o direito de resistência:
Ambos os autores compartilham do ponto de vista de que a dissolução do Governo ocorre, na maior parte dos casos, em conseqüência da usurpação do poder soberano, o Legislativo, pelo poder subordinado, o Executivo (Locke, 1973, passim 124-126, e Rousseau, 1995, passim 140-146 e 153-155).
Locke explica que a referida decomposição pode ocorrer em decorrência de dissolução da sociedade política e, em conseqüência disto, ocorreria a desintegração do Governo (Locke, 1973:124). Esta última poderia acontecer, também, em virtude de alterações do poder Legislativo (Ibidem:124). Estas seriam resultado dos seguintes fatores: implantação do despotismo pelo detentor do poder Executivo; impedimento da reunião do poder Legislativo, pelo Príncipe; modificação discricionária das regras de eleição dos membros do Legislativo, pelo detentor do poder Executivo, sem a anuência da população governada; entrega do povo, pelo Príncipe, à sujeição estrangeira (Ibidem, passim 124-126). O primeiro destes fatores implicaria a imposição da vontade arbitrária do Príncipe sobre as leis consentidas pela sociedade. O segundo significaria a imposição de obstáculos para que o Legislativo desempenhasse as tarefas que lhe foram confiadas pela comunidade. O terceiro acarretaria a distorção da representação política em benefício do Príncipe e em detrimento da população. O quarto implicaria a imposição, pelo dominador externo, de um Legislativo dócil às suas exigências. O autor também inclui nestas hipóteses de desintegração governamental a situação na qual o Executivo não procede ao cumprimento das leis, que ele considera equivalente à ausência de leis (Locke, 1973:126), o que tem como resultado a anarquia. Como elemento comum a todas estas possibilidades, encontramos o desrespeito à vontade popular, a subversão da aquiescência da população governada, fundamento tanto da democracia representativa de Locke quanto da participativa de Rousseau.
Relativamente à degeneração do Governo, Rousseau apresenta uma argumentação que possui aspectos similares à de Locke. Isto porque o autor suíço se concentra na questão da usurpação da autoridade soberana pelos detentores do Executivo e reafirma o direito de a população destituir, pela força, se necessário, o governante despótico, restabelecendo as prerrogativas legítimas do poder Legislativo, caracterizando, desta forma, o exercício da soberania popular (Rousseau, 1985:115).
Ainda a respeito da degeneração do Governo, Rousseau afirma que esta ocorre em virtude de dois fatores primordiais: primeiro, o fechamento do Governo e, segundo, a dissolução do Estado (Rousseau, 1995, passim 140-142). Quanto ao primeiro, o autor explica que este decorre da forma de Governo passar de uma exercida por vários magistrados para outra exercida por um menor número de magistrados, o que corresponderia à passagem da democracia para a aristocracia, e desta para a monarquia. A conseqüência deste fato seria, segundo o autor, o Príncipe se apoderar indevidamente da autoridade soberana (Ibidem, passim 140-141).
Sobre a dissolução do Estado, Rousseau esclarece que ela pode ser decorrência do fato de o Príncipe como um todo, ou seja, a totalidade unificada de seus integrantes, dos magistrados, se apropriar ilegitimamente do Soberano. Isto faria com que o Estado passasse a ser composto apenas pelos membros do Governo, que passaria a exercer a tirania em relação ao resto do povo (Rousseau, 1995: 141-142). Além disto, a mencionada dissolução pode, também, ser o resultado da usurpação, por parte de cada membro individual do Príncipe, de parcelas da autoridade soberana, fazendo com que passe a haver “tantos Príncipes quanto Magistrados, e o Estado, não menos dividido que o Governo, perece ou muda de forma” (Ibidem:142). Nesta situação, vários tiranos oprimiriam o povo.
Cabe, ainda, destacar os significados de tirano e usurpador para cada um dos autores. Para Locke, tirano é aquele que exorbita de suas prerrogativas ou competências legais (Locke, 1973:118), enquanto o usurpador é quem se apossa daquilo que pertence legitimamente a outra pessoa (Ibidem:117). Para Rousseau, tirano é aquele que se apropria indevidamente do poder Executivo, enquanto usurpador é quem se apodera ilegitimamente do poder Legislativo (Rousseau, 1995:142). Desta forma, um tirano nem sempre será um déspota, posto que o Executivo se subordina ao Soberano, mas o déspota sempre será um tirano, visto que o Legislativo prepondera sobre o Governo.
Sobre a questão do funcionamento dos poderes, Locke e Rousseau apresentam a convergência de afirmarem a preponderância do poder Legislativo sobre os demais poderes. Contrariamente a esta teoria, Montesquieu afirma, em sua doutrina, que existe eqüipotência entre os poderes, ou seja, todos poderes são igualmente importantes e não existe qualquer tipo de supremacia entre eles (Bobbio, 1963:271 e 272). Os três concordam no que tange à necessidade de separação entre os poderes, mesmo assim, não completamente, posto que Locke advoga que seus poderes Executivo e Federativo sejam exercidos pelo mesmo magistrado. Entretanto, no que se refere aos poderes Legislativo e Executivo, Locke recomenda a separação. Este autor o faz alegando que seria demasiadamente temerário confiar a execução das leis àqueles que as elaboraram, tendo em vista que estas pessoas poderiam se considerar acima das leis que elas próprias sancionaram, julgando desnecessário obedecê-las pelo fato de as terem instituído (Locke, 1973:97). Além disto, poderiam adaptá-las a suas conveniências pessoais e corporativas (Ibidem:97).
Já Rousseau considera que os poderes Legislativo e Executivo devem permanecer dissociados porque, caso os dois fossem exercidos pelos mesmos mandatários, isto comprometeria a supremacia do Soberano, o seu poder Legislativo, de autoridade incontrastável. Caso o Soberano tivesse um equivalente, a própria soberania estaria ameaçada de usurpação, já que, para o autor, a soberania é indivisível, tornando inconcebível a possibilidade de um outro poder, no caso, o Executivo, também ser responsável pelo seu exercício. Neste caso, isto acarretaria a fragmentação do desempenho da soberania, situação inadmissível para o autor que afirma que ”a vontade ou é geral, ou não, ou é aquela do corpo do povo ou somente a de uma parte” (Rousseau, 1995:88). Esta defesa da separação é feita, então, pelo autor, devido à impossibilidade de fragmentação do desempenho do poder soberano, que só pode ser praticado pelos próprios cidadãos. Como decorrência disto, os poderes Legislativo e Executivo ficam desvinculados na teoria política de Rousseau. Caso o Executivo fosse equivalente em termos de poder ao Legislativo, este perderia a autonomia que deveria possuir, e uma outra vontade, a corporativa, dos magistrados, estaria a se contrapor à vontade geral, inviabilizando o modelo político de Rousseau. Sobre o assunto, o autor escreve que “não existe mais o Soberano a partir do momento em que tem um Senhor, e desde então destrói-se o corpo político” (Ibidem:88). O autor alega, também, como motivo para a adoção da dissociação entre os referidos poderes, a incompatibilidade existente entre a natureza geral das leis e o caráter particular das decisões tomadas pelo poder Executivo (Rousseau, 1995:123).
Tanto em Locke quanto em Rousseau existe a hegemonia do poder Legislativo em relação aos demais poderes. Em Locke, esta superioridade tem relação com a própria definição de poder político do autor, que seria, para ele, o poder de fazer leis com a finalidade de regulamentar, proteger e amparar o direito de propriedade (Locke, 1973:40). Logicamente, a modalidade de poder que mais se coadunaria com esta definição de poder político, o poder político por excelência, seria o Legislativo (“poder de fazer leis” (Ibidem:40)). Locke, no capítulo do “Segundo Tratado sobre o Governo Civil” no qual discorre sobre a hierarquia dos poderes da comunidade, afirma que “o legislativo é o poder supremo; o que deve dar leis a outrem deve necessariamente ser-lhe superior; (...), o legislativo necessariamente terá de ser supremo, e todos os outros poderes em membros ou partes quaisquer da sociedade dele derivados ou a ele subordinados” (Ibidem:99).
Entretanto, no modelo de Locke, o poder político desempenhado pelo Legislativo é limitado, além de ser a ele atribuído pelo povo que elege seus representantes, que, por sua vez, deverão promulgar as leis da comunidade em nome dos constituintes (Ibidem:92,96,101,124,125), caracterizando, deste modo, a democracia representativa. O autor adverte que, em o Legislativo se excedendo no exercício do poder a ele confiado pela população, caso desrespeite as leis da comunidade, ou atente contra a propriedade dos súditos, a população tem o direito lídimo de resistir a estas arbitrariedades, recorrendo à força, se necessário, para destituir os representantes que exorbitem de suas competências legais (Ibidem passim 101, 125-131). É o direito de resistência, que é uma conseqüência do princípio da soberania popular na teoria política deste autor, o qual consiste no fato de que o detentor efetivo do poder político é o povo, que pode retomá-lo caso seus representantes desrespeitem o ordenamento jurídico. Locke cogita desta possibilidade afirmando que
“Sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão sob poder arbitrário, entra em estado de guerra com ele, que fica assim absolvido de qualquer obediência, (...) .Sempre que, portanto, o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade, e por ambição, temor, loucura ou corrupção, procurar apoderar-se ou entregar às mãos de terceiros, o poder absoluto sobre a vida, liberdade e propriedade do povo perde, por esta infração ao encargo, o poder que o povo lhe entregou para fins completamente diferentes, fazendo-o voltar ao povo, que tem o direito de retomar a liberdade originária e, pela instituição de novo legislativo, conforme achar conveniente, prover à própria segurança e garantia, o que constitui o objetivo da sociedade” (Locke, 1973:127).
Rousseau também preconiza a preponderância do Legislativo porque, na teoria política deste autor, os atos de soberania, as leis, são objeto de deliberação deste poder (Rousseau, 1995: 88), sendo o Executivo, o Governo, um cumpridor das determinações emanadas do Soberano, totalmente subordinado a este último (Ibidem:115). A hegemonia do Legislativo para Rousseau é justificada, também, pelo fato de ser por meio dele que os cidadãos regulamentam a associação civil, que vem a ser o próprio pacto social, que é a mais importante das leis, o verdadeiro fundamento da sociedade civil (Ibidem:78). Deste modo, o autor preconiza que o poder Legislativo seja praticado, de forma direta e participativa, pelos próprios integrantes do corpo político, configurando, assim, a democracia direta quanto ao desempenho do citado poder (Ibidem:99,144,145,148). A preeminência do poder Legislativo é atestada por Rousseau quando este afirma que “é errado pensar, através dos princípios aqui estabelecidos, que o poder executivo não possa pertencer à generalidade, como Legisladora ou Soberana” (Ibidem:115). Neste trecho fica caracterizada a aludida preeminência, quando o autor afirma que o poder Executivo “pertence” à coletividade legisladora ou soberana, ou seja, o poder Executivo pertence ao Legislativo. A relevância deste último na teoria política de Rousseau é tão significativa que, referindo-se ao enfraquecimento das leis, o autor afirma que, em decorrência disto, “não existe mais poder legislativo e (...) o Estado não está mais vivo” (Ibidem:143).
Com referência ao direito de resistência, Rousseau prega a sua prática contra um Executivo tirano. No “Discurso sobre a Desigualdade”, quando se refere ao despotismo, ápice da desigualdade, preconiza o direito de resistência contra o déspota (Rousseau, 1985:115), que seria o detentor do poder Executivo. No “Contrato Social”, o autor defende o direito de os cidadãos não terem a obrigação de obedecer às ordens do Príncipe usurpador (Rousseau, 1995:141), devido à sua ilegitimidade, sendo, entretanto, coagidos a fazê-lo pela força. Neste caso, mais uma vez, o exercício do direito de resistência se faz contra o detentor do poder Executivo. Por fim, Rousseau desenvolve uma interessante abordagem do que poderia se considerar como sendo um “direito de resistência preventivo”. Inspirando-se nos comícios romanos, que eram assembléias populares nas quais a plebe deliberava sobre assuntos públicos, durante a República, Rousseau, sempre enfatizando que o Príncipe, o poder Executivo, tenta incessantemente usurpar o Soberano, o poder Legislativo, recomenda que o povo, que em seu sistema político desempenha ele próprio o poder Legislativo, para evitar a referida usurpação, realize assembléias populares para servir de “freio do Governo”. Deste modo, evitaria, que seu poder soberano fosse violado indevidamente (Ibidem, passim 144 a 147). Estas assembléias deliberariam sobre duas proposições principais: se o povo alteraria ou manteria tanto a forma de Governo quanto os magistrados encarregados da administração pública (Ibidem:144). Seria uma forma de o povo soberano se antecipar a qualquer tentativa de usurpação de seu poder soberano por parte dos magistrados detentores do poder Executivo, daí a qualificação de direito de resistência “preventivo”; caso o povo considerasse haver indícios de uma conspiração por parte dos magistrados, os destituiria na assembléia, antes que perpetrassem o golpe.
5.6. Diferentes definições sobre o Governo:
Os dois autores apresentam conceituações diversas acerca do Governo. Para Locke, as distintas formas de Governo que uma comunidade política (Commonwealth) pode adotar vai depender da modalidade de administração que seus membros, por decisão da maioria (Locke, 1973:91), escolherem para exercer o poder Legislativo da comunidade (Ibidem:91). A forma de Governo, referente à modalidade pela qual o poder de elaborar leis vai ser exercido, seguindo a divisão de Aristóteles, adotada tanto por Locke quanto por Rousseau, pode ser democrática, caso a comunidade destine o referido poder a muitos representantes, aristocrática, caso o aludido poder seja conferido a poucos magistrados (embora Locke faça alusão à forma degenerada da aristocracia, a oligarquia), ou monárquica, quando a comunidade o fizer em relação a um único magistrado singular (Ibidem:91). A respeito do assunto, Locke afirma que “Dependendo a forma de governo da situação do poder supremo, que é o legislativo – (...) - , conforme se coloca o poder de fazer leis, assim também é a forma da comunidade”(Ibidem:91). O autor propõe que a forma da comunidade política seja uma democracia representativa (Ibidem:92,96,101,124,125), ao preconizar que o poder político, que é o direito de fazer leis para amparar o exercício do direito à propriedade privada (Ibidem:40), seja praticado por representantes eleitos pelos cidadãos governados.
Já Rousseau associa o Governo e as formas que este pode assumir ao exercício do poder Executivo, e não ao Legislativo, como faz Locke. Para este autor, o Governo é “o exercício legítimo do poder executivo” (Rousseau, 1995:114). Sobre as formas de Governo, Rousseau afirma que elas se diferenciam entre si de acordo com “o número de membros”(Ibidem:122) que compõem o Governo. Rousseau analisa as formas de Governo como sendo diferentes tipos de relação de supremacia entre o poder Legislativo (Soberano) e o poder Executivo (Governo), que seria apenas uma “comissão, um emprego no qual simples oficiais do Soberano exercem em seu nome o poder do qual ele os fez depositários, e que ele pode limitar, modificar e retomar quando quiser” (Ibidem:115). Sobre o assunto, Rousseau afirma que
“o Soberano pode confiar o Governo a todo o povo ou à maior parte do povo, de tal forma que haja mais cidadãos magistrados do que simples cidadãos particulares. Dá-se a essa forma de Governo o nome de democracia.
Ou então ele pode colocar o Governo nas mãos de um pequeno número, de maneira que haja mais simples Cidadãos que magistrados, e essa forma recebe o nome de Aristocracia.
Enfim, pode concentrar todo o Governo nas mãos de um único magistrado, do qual todos os outros recebem seu poder. Esta terceira forma é a mais comum, e se chama Monarquia ou Governo real” (Rousseau, 1995:122).
O autor considera que a melhor forma de Governo, ou seja, de desempenho do poder Executivo, é aquela em que uma reduzida quantidade de magistrados eleitos o exerce, caracterizando, assim, a aristocracia eletiva (Ibidem:126). Rousseau expressa esta preferência quando sustenta que “a melhor regra e a mais natural é que os mais sábios governem a multidão (...); não é necessário multiplicar em vão os recursos, nem fazer com vinte mil homens o que cem homens escolhidos podem fazer ainda melhor” (Ibidem:126). Entretanto, quanto ao poder Legislativo, o autor assevera que “O povo submetido às leis deve ser o seu autor” (Ibidem:99) e afirma que “Toda lei que não foi ratificada pelo povo em pessoa, é nula; não é de forma alguma uma lei” (Ibidem:148), optando, deste modo, pela democracia direta, participativa, como modalidade de desempenho do poder soberano. Cabe salientar que, para o autor, a lei é a declaração da vontade geral (Ibidem:148), e a soberania é o “exercício da vontade geral” (Ibidem:87).
Rousseau, a exemplo de Locke, também adota a divisão aristotélica das formas de Governo, com a diferença que não as aplica ao exercício do poder Legislativo como faz Locke, e sim ao exercício do poder Executivo.
5.7. A forma de exercício do poder Legislativo, as democracias representativa e participativa e a representação e participação políticas:
A diferença essencial entre as concepções acerca do poder Legislativo entre Locke e Rousseau é a referente ao fato de que, para o primeiro, ele deve ser exercido por representantes eleitos pela população governada para esta finalidade (Locke, 1973:92,96,101,124,125), caracterizando, assim, a democracia representativa. Para o segundo, contudo, o mencionado poder deve ser praticado diretamente pela população (Rousseau, 1995:99,144,145 e 148), configurando, deste modo, a democracia direta, participativa. Também se pode considerar uma distinção relevante entre os dois autores o fato de que, para o primeiro, as leis mais importantes para o ordenamento jurídico da sociedade são aquelas que amparam, protegem e regulamentam o direito à propriedade privada (Locke, 1973:92), enquanto, para o segundo, as leis fundamentais são as políticas, que, além de regulamentarem a associação civil, definem e regulam as relações entre o Soberano e o Estado (Rousseau, 1995:112 e 113), isto é, entre o corpo político quando atua como elaborador das leis e o corpo político quando atua como cumpridor das leis. Cabe ressaltar que, para Rousseau, as leis políticas, que são aquelas que interessam à sua reflexão, devem existir em pequena quantidade e durarem muito tempo, revestindo-se de um caráter quase sagrado (Ibidem:143 e 156). A lei, para Rousseau, é conseqüência de um ato de soberania, autêntica declaração da vontade geral (Ibidem:148).
Locke preconiza a adoção da democracia representativa como forma de governo de uma comunidade política, a Commonwealth, quando afirma que
“Nenhum governo pode ter direito à obediência de um povo que não a consentiu livremente; o que não se pode nunca supor que façam até que se encontrem em condições de inteira liberdade para escolher governo e governantes, ou pelo menos até que tenham tais leis promulgadas a que por si ou por intermédio de representantes deram assentimento” (Locke, 1973:115).
Nesta passagem, o autor faz referência à escolha dos governantes pela população jurisdicionada, configurando a democracia. Além disto, faz alusão à aprovação de leis por representantes da população governada, caracterizando, desta forma, a representação política.
A idéia de representação política no pensamento de Locke é tão presente que o autor chega a propor um sistema de controle do desempenho da referida representação a ser exercido pelos próprios cidadãos – eleitores. A respeito deste assunto, Locke afirma que
“Quem julgará se (...) o legislativo age contrariamente ao encargo recebido? (...). A isto respondo: O povo será o juiz; porque quem poderá julgar se o depositário ou o deputado age bem e de acordo com o encargo a ele confiado senão aquele que o nomeia, devendo, por tê-lo nomeado, ter ainda poder para afastá-lo quando não agir conforme seu dever?” (Locke, 1973:136).
Assim, Locke reitera o princípio da soberania popular, asseverando que o mandato político pertence ao constituinte, e não ao representante.
Rousseau, por seu turno, embora rejeite a democracia como forma de Governo, ou seja, como modo de exercício do poder Executivo, adota a democracia direta, participativa, como modalidade de exercício do poder Legislativo (Rousseau, 1995:99,144,145,148). O autor o faz, também, quando denomina os membros do corpo político de “Cidadãos, quando participantes da autoridade soberana” (Ibidem:80), posto que um ato de soberania, para Rousseau, “tem valor de lei” (Ibidem:88). Desta maneira, pode-se concluir que, no modelo político de Rousseau, são os próprios cidadãos que aprovam as leis do Estado, configurando, deste modo, a democracia direta, participativa. Rousseau repele, veementemente, a representação política no capítulo XV do Livro III do “Contrato Social”, afirmando que os homens de sua época, ao contrário dos romanos e dos espartanos, preferem tratar de seus interesses privados a cuidar dos assuntos públicos, pagando representantes para esta finalidade, o que, segundo ele, resulta na “venda” da pátria” (Ibidem:147). São várias as referências que Rousseau faz ao mundo antigo como exemplo de participação política e mobilização do povo para as questões públicas (Ibidem, passim 144-155). Numa delas, quando preconiza a realização de assembléias populares periódicas para tentar prevenir a usurpação do poder Legislativo pelo Executivo, afirma que
“O Soberano, não tendo outra força que não seja o poder legislativo, age apenas através das leis, e sendo as leis atos autênticos da vontade geral, o Soberano só age, quando o povo está reunido. O povo reunido – diz-se! Que quimera! Hoje é uma quimera mas não o era há dois mil anos: os homens mudaram de natureza?” (Ibidem:144).
O modelo político de democracia direta, participativa, preferido por Rousseau é a República romana, um grande Estado segundo ele (Rousseau, 1995:144), com população expressiva que, apesar de numerosa, se reunia freqüentemente para deliberar sobre os assuntos coletivos nos comícios da plebe. De acordo com o autor, “poucas semanas se passaram, sem que o povo romano fosse reunido e até mesmo muitas vezes, ele não exercia apenas os direitos de soberania, mas uma parte dos direitos do Governo. Tratava de certos assuntos, julgava certas causas e todo esse povo era freqüentemente, na praça pública, tão magistrado quanto cidadão” (Ibidem:144).
Sartori (1994) é outro autor, além de Bobbio (1987:41), Pateman (1992:35) e Weffort (1992:107), que ratifica a adoção da democracia direta por Rousseau, no que se refere ao exercício do poder Legislativo, ao afirmar que este autor “Rejeitava os representantes, queria uma democracia direta e, tanto quanto possível, unânime, e exigia que os magistrados não tivessem vontade própria, mas apenas o poder de impor a vontade geral” (Sartori, 1994a:79).
5.8. A submissão à maioria e à vontade geral e suas relações com a discordância individual:
Tanto a questão da preponderância da maioria no modelo político de Locke, quanto a prevalência da vontade geral no sistema de Rousseau têm relação com um aspecto fundamental da vida política, que é o processo de deliberação coletiva. Ambos ressaltam a importância de conferir movimento ao corpo político constituído em decorrência da celebração do contrato social, pois seria incoerente criar a comunidade política para que ela permanecesse estática. Para Locke, este movimento sempre se dá na direção apontada pela maioria (Locke, 1973:77), enquanto que, para Rousseau, o que movimenta o corpo político é a vontade geral, cuja manifestação determina as leis que regulamentam a associação civil, estabelecida pelo pacto social. Para este autor, a lei é a declaração da vontade geral (Rousseau, 1995:148).
Locke, tratando do início das sociedades políticas, se refere à constituição da comunidade política e prontamente faz alusão à forma de funcionamento do corpo político, cuja ação se dá tão somente pela vontade e resolução da maioria (Locke, 1973:77). O autor enfatiza que é necessário que o corpo se mova em um determinado sentido, e que este sentido é, obrigatoriamente, aquele para o qual conduz a força maior, representada pela aprovação da maioria (Ibidem:77). Outro aspecto relevante de sua abordagem sobre este assunto é o fato de Locke afirmar que o ato da maioria representa o ato de todos (Ibidem:77), mesmo daqueles que discordam de tal ato. Tal obrigação de o indivíduo acatar a decisão majoritária dos integrantes da comunidade política mesmo dela divergindo está na base do compromisso e do vínculo social estabelecido quando da realização do pacto social; se tal obrigação puder ser descumprida, a coesão social se enfraquece, e o acordo firmado no contrato social torna-se sem valor. Para o autor, se este dever de submissão à decisão majoritária não for compulsório, o próprio ato de instituição da sociedade perderia o valor e a credibilidade. A respeito disto, referindo-se à obrigatoriedade de obediência individual às determinações majoritárias, Locke argumenta que
“se assim não fosse, esse pacto inicial, pelo qual ele juntamente com outros se incorpora a uma sociedade, nada significaria, deixando de ser pacto, se aquele indivíduo ficasse livre e sob nenhum outro vínculo senão aquele em que se achava no estado de natureza. Porquanto, que aparência haveria de qualquer pacto? Que novo compromisso, se não estivesse mais vinculado por qualquer decreto da sociedade do que pensasse apropriado e ao qual desse assentimento?” (Ibidem:77).
Desta forma, não haveria sentido na associação civil se cada um pudesse se conduzir de forma totalmente autônoma e independente do resto da comunidade; o mínimo vínculo social e comunitário tem que ser conservado. Este mínimo de coesão social, no sistema político de Locke, é assegurado pela submissão compulsória dos indivíduos dissonantes à decisão majoritária.
Este ponto de vista de Locke suscitou críticas, como as de Kendall (Monson, in Armstrong e Martin, 1968:187 e 188), pelas quais se questiona o individualismo liberal de Locke, além de ser feita, contra ele, a acusação de ser um coletivista, pelo fato de considerar obrigatória a sujeição do indivíduo à deliberação majoritária, mesmo que ele individualmente discorde da referida deliberação. Locke seria então um defensor intransigente dos valores comunitários, e não dos valores individuais. Estes críticos também identificam nesta característica do pensamento lockeano traços de autoritarismo, na medida em que o indivíduo seria oprimido pela coletividade, ao não ter o direito de concretizar sua discordância em relação à maioria. John Stuart Mill denominou esta característica da democracia como sendo a “tirania da maioria” (Mill, 1991:48 e 49)[7]. Entretanto, Locke, de acordo com Yolton (1996:246), e conforme pode-se depreender da leitura do capítulo do “Segundo Tratado” sobre a hierarquia dos poderes da comunidade, defendia a representação política proporcional (Locke, 1973:102), que constitui uma forma de atenuar o problema da tirania da maioria, na medida em que possibilita a representação de todos os setores sociais no Legislativo, inclusive as minorias. O autor também sugere a adoção da representação política ao discorrer sobre a questão de o ato da maioria ser considerado o ato de todos, ao afirmar que
“Se o assentimento da maioria não fosse recebido em razão como ato de todos, obrigando a cada indivíduo, nada, senão o consentimento de cada um, poderia fazer com que qualquer ato fosse o de todos; mas tal consentimento é quase impossível de conseguir-se se considerarmos as enfermidades e as ocupações de negócios que em um grupo qualquer, embora muito menos que em uma comunidade, afastarão necessariamente muitos membros da assembléia pública” (Ibidem:78).
O trecho transcrito, do qual, certamente, Rousseau divergiria veementemente, pode ser interpretado como sendo uma apologia da representação política. Isto porque esta última seria a solução para a dificuldade destacada por Locke de ser quase impossível, a cada decisão a ser tomada pela comunidade, consultar e obter a anuência de todos os membros do corpo político para a decisão a ser efetivada, o que poderia inviabilizar o processo político. Cabe recordar que Locke sustenta que o referido corpo político seja administrado por um Governo Civil organizado sob a forma de uma democracia representativa (Locke, 1973:92,96,101,124,125). Nesta última, a população jurisdicionada designaria representantes políticos para sancionarem leis em seu nome para proteção e amparo do direito à propriedade privada (Ibidem:40).
O elemento que movimenta o sistema político de Rousseau é a vontade geral. Este conceito extremamente controvertido tem, a meu juízo, um significado que se aproxima da noção de interesse comum, conforme definição do próprio Rousseau (1995:90). Seria o interesse “compartilhado” dos indivíduos inseridos na sociedade civil. Para fazer uma analogia com o princípio da maioria defendido por Locke, e que, matematicamente, pode-se considerar que equivaleria à metade mais um da quantidade de integrantes da sociedade, Rousseau afirma que quanto mais próximo da unanimidade estiver o conjunto das opiniões dos membros do Soberano, mais a vontade geral se manifestará de modo pleno (Ibidem:158). Este autor afirma que a lei é a declaração da vontade geral (Ibidem:148). Rousseau destaca o aspecto de que a vontade geral é sempre pura, constante e inalterada; entretanto, outros elementos podem se sobrepor a ela e distorcer a sua manifestação e, dentre estes, os mais perigosos são as vontades particulares e as corporativas. Estas últimas são conseqüências, principalmente, da existência de sociedades parciais ou facções, consideradas um perigo indesejável ao Estado (Ibidem, passim 156-158). Com o propósito de neutralizar a ação desagregadora das facções no Estado, Rousseau propõe a multiplicação da quantidade de sociedades parciais (Ibidem:90 e 91). O autor também afirma, acerca da vontade geral, que esta se direciona ”para a igualdade” (Ibidem:87), ao contrário da vontade particular, que se dirige sempre “para suas preferências” (Rousseau, 1995:87), e que a vontade geral “está sempre certa e tende sempre à utilidade pública; mas não se pode dizer que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retidão” (Ibidem:90). Rousseau atribui este desencontro entre a deliberação coletiva feita pelo povo e a vontade geral à existência das facções. Devido a esta interferência das sociedades parciais distorcendo a manifestação da vontade geral é que o autor afirma que “a lei da ordem pública nas assembléias não está tanto em nelas manter a vontade geral, mas em fazer com que seja sempre consultada e que sempre se manifeste”(Ibidem:157). A principal medida a ser tomada pelo Estado para proporcionar a plena manifestação da vontade geral seria, desta maneira, a obliteração das facções ou sua multiplicação e conseqüente neutralização, de forma a que nenhuma fosse hegemônica (Ibidem:91).
Conforme ressalta Sartori (1994:79), Rousseau preconiza um sistema político estático, imóvel, no qual escassas alterações deveriam ser feitas no arcabouço jurídico, principalmente no que se refere às condições da associação civil. Isto porque o autor suíço afirma que o Estado necessita de poucas leis (Rousseau, 1995:156), e elogia as leis antigas (Ibidem:156), denotando considerar que a melhor conduta política que os cidadãos podem assumir é a de modificar o menos possível a sua legislação política e fundamental. Sobre o movimento do corpo político no seu sistema, Rousseau afirma que este será realizado com base na declaração da vontade geral, a qual será feita com base na contagem dos votos, dos sufrágios (Ibidem:160). O autor preconiza uma relação inversa entre a quantidade de votos que uma deliberação coletiva necessite para ser aprovada e a relevância e a urgência de sua adoção (Ibidem:160). Desta forma, as leis deveriam obter uma quantidade de sufrágios próxima da unanimidade, daí o caráter inercial do modelo político de Rousseau apontado por Sartori, enquanto os negócios, de menor importância, mas que requerem uma execução mais célere, poderiam ser aprovados pela diferença de um único voto (Ibidem:160 e 161).
Acerca do posicionamento de cada autor sobre a questão da aparente contradição entre a submissão à decisão majoritária e a da manutenção da liberdade individual dos que dela discordam, embora Locke não evite comentá-la, Rousseau a aborda de forma mais direta, indagando
“Mas, pode-se perguntar, como um homem pode ser livre e forçado a se conformar com vontades que não são as suas? Como podem ser livres e submetidos a leis às quais não deram seu consentimento?
Minha resposta é que a questão está mal colocada. O Cidadão dá seu consentimento a todas as leis e até mesmo àquelas que o punem, quando ousa violar algumas delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral. É por meio dela que são cidadãos e livres. (...) a declaração da vontade geral deriva do cálculo dos votos. Assim, quando ela corresponde a uma vontade diferente da minha, isso não prova outra coisa, a não ser que me enganei, e que aquilo que acreditava ser a vontade geral, não o era. Se minha opinião particular tivesse predominado, eu teria feito outra coisa diferente do que aquilo que queria, aí sim, eu não seria livre” (Rousseau, 1995:159 e 160).
Desta maneira, percebe-se que, da mesma forma como em Locke, acontece, no sistema de Rousseau, a submissão do indivíduo discordante à resolução da maioria. A principal diferença está na maneira de cada um justificar esta submissão. Enquanto Locke afirma que se o ato da maioria não tiver a validade de ato de todos o corpo político entrará em processo de dissolução, posto que não será acionado (Locke, 1973:78), Rousseau justifica a aludida sujeição com base em duas premissas: a primeira é a de que é a vontade geral que determina a autêntica vontade particular, não a vontade particular do indivíduo natural, não inserido na comunidade política, mas a vontade particular do indivíduo inserto no corpo político, na coletividade, a vontade do indivíduo desnaturado, e a segunda é que a obediência à lei que se prescreve significa liberdade (Rousseau, 1995:83,159 e 160). Desta forma, quando ocorre um desencontro entre a vontade do indivíduo e a vontade geral, isto é conseqüência de um erro de avaliação do indivíduo: em vez de votar a deliberação com base em sua vontade particular inserida na coletividade política, o indivíduo o fez considerando apenas sua vontade individual isoladamente, sem levar em conta as vontades de seus concidadãos membros da comunidade política. Partindo da suposição de que é a minoria dos cidadãos que comete este equívoco, a vontade geral prevalece, corrigindo os erros dos desviantes, e é como se os que votaram em dissonância com a vontade geral tivessem votado a seu favor. Após isto, o indivíduo discordante obedeceria à lei emanada da vontade geral e seria livre. A vontade geral, sempre reta (Rousseau, 1995:99), iria sempre prevalecer, indicando aos indivíduos discordantes quais as suas verdadeiras vontades particulares (“A vontade geral é sempre reta, mas o julgamento que a guia nem sempre é esclarecido” (Ibidem:99)), e os mencionados indivíduos, por fim, seriam compelidos a serem livres ao obedecerem às leis estabelecidas por eles próprios e seus concidadãos no Soberano (“quem recusar obedecer à vontade geral será obrigado a isso por todo o corpo: o que não significa outra coisa a não ser que será forçado a ser livre” (Ibidem:82)). Este estabelecimento das leis pelos próprios cidadãos integrantes do corpo soberano caracteriza a adoção, por Rousseau, da democracia participativa como modo de desempenho do poder Legislativo em seu sistema político (Ibidem:99,144,145,148).
Uma outra distinção relevante que se nota no que se refere à forma como cada um destes autores explana a questão da tirania da maioria, é a ênfase mais acentuada atribuída por Rousseau à questão da prevalência da vontade geral como algo relativo à coesão social, os aspectos do liame e dos vínculos sociais, do patriotismo, a existência de solidariedade social na idéia de que a vontade geral corresponde ao interesse comum e compartilhado de todos os integrantes da comunidade política (Ibidem: 87, 90, 156, 159, 160). Deste modo, Rousseau enfatiza um sentido de compartilhamento no que se refere aos aspectos social e cívico do funcionamento da comunidade política que não está presente em Locke e em seu conceito de supremacia da maioria. Este último, embora afirme que se o indivíduo não for obrigado a acatar a decisão majoritária o pacto social será inválido (Locke, 1973:77), consignando, desta forma, que a submissão à decisão da maioria tem relação com a coesão social, não o faz com a mesma intensidade de Rousseau. Além disto, seu argumento é mais no sentido de considerar que, caso a vontade majoritária não seja considerada a vontade de todo o corpo político, este não se moverá e a sociedade política acabará por desintegrar-se (Locke, 1973:78). Enquanto isto, a justificativa de Rousseau para o indivíduo ser obrigado a acatar a decisão majoritária transcende a questão da viabilização ou operacionalização do funcionamento do corpo político, aspecto enfatizado por Locke, e se reveste de um viés de solidariedade comunitária, de interesse comunal compartilhado, principalmente quando o autor suíço relaciona a vontade geral ao fato de que
“se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, é o acordo desses mesmos interesses que a tornou possível. É isso que existe de comum nos diferentes interesses que formam a união social, e se não houvesse algum ponto em que os interesses estivessem de acordo, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unicamente sob esse interesse comum que a sociedade deve ser governada” (Rousseau, 1995:87).
Este interesse comum é representado pela vontade geral.
5.9. Locke e a liberdade negativa e Rousseau e a liberdade positiva:
Pode-se depreender que Locke é um dos precursores da concepção de liberdade negativa conforme conceituada por Berlin, como sendo o estabelecimento de limites para a ação da autoridade pública em relação à esfera privada do indivíduo (Berlin, 1981:137). A liberdade negativa será a base dos direitos individuais naturais inalienáveis e invioláveis à liberdade, à vida e à propriedade, base do Jusnaturalismo, ou teoria dos direitos naturais. Seria a liberdade individual no sentido de que o Estado, o poder coletivo, não poderia intervir neste três setores da esfera privada do cidadão sem o consentimento deste. A noção de liberdade negativa em Locke fica caracterizada quando este autor estabelece que o Governo é limitado pelo consentimento da população governada (Locke, 1973:78), não podendo o poder público exorbitar das prerrogativas que lhe foram atribuídas pelo povo. A referida noção também é explicitada por este autor quando ele afirma que o poder Legislativo só poderá tributar a propriedade dos cidadãos com a acedência destes (Locke, 1973:96), configurando, desta maneira, uma situação em que a parte da esfera privada do indivíduo referente à propriedade fica protegida contra a ingerência indevida da autoridade pública, delimitando claramente onde começa a esfera privativa do indivíduo e onde termina a prerrogativa legal do poder público.
Pode-se considerar, então, que a defesa que Locke faz da representação política (Ibidem:92,96,101,124,125) é uma apologia da liberdade negativa: ao incumbir um representante político do desempenho das tarefas políticas, o cidadão passa a ter condições de se devotar à sua esfera privada. Seria uma proteção conferida ao indivíduo no sentido de evitar que os temas públicos, do Estado, ocupem a plenitude da sua vida, como ocorria na polis grega e na República romana. Assim, pode-se concluir que a dimensão negativa da liberdade está associada à democracia representativa.
Já Rousseau seria o defensor da liberdade no sentido positivo, que Berlin define como sendo referente “à posse por todos, e não somente por alguns membros mais qualificados de uma sociedade, de uma cota do poder público que pode interferir em todos os aspectos da vida de todos os cidadãos” (Berlin, 1981:163). Rousseau seria um apologista da liberdade positiva na medida em que defenderia a participação direta do povo na elaboração das leis e sua interferência ativa no processo político, sendo a população protagonista deste último. A idéia de exercício compartilhado do poder, presente na definição de liberdade positiva de Berlin, corresponde à maneira direta, democrática e participativa pela qual Rousseau preconiza que seja exercido o poder Legislativo em seu modelo político. Assim, a liberdade positiva estaria associada à democracia participativa. Esta apologia da liberdade positiva pode ser constatada quando Rousseau afirma que “o povo submetido às leis deve ser o seu autor” (Rousseau, 1995:99), ou quando escreve que “Toda lei que não foi ratificada pelo povo em pessoa é nula; não é de forma alguma uma lei” (Rousseau, 1995:148). Liberdade positiva tem a ver com participação política e com exercício ativo da cidadania e dos direitos políticos, que são elementos onipresentes na abordagem política de Rousseau.
Para complementar este item, convém abordar um autor que estuda em profundidade a questão da liberdade na teoria política, que é Quentin Skinner (1998). Ele reconstitui e resgata a denominada teoria neo-romana sobre a liberdade civil, que foi relegada ao esquecimento pela preponderância da teoria clássica do liberalismo político acerca da questão da liberdade civil (Skinner, 1998:67, 83 e 91). Skinner resgata o pensamento de autores ingleses contemporâneos de Locke, tais como Milton, Needham, Sidney, entre outros, os quais ele denomina de neo-romanos, por possuírem uma noção de liberdade semelhante à dos antigos romanos. Esta noção de liberdade corresponderia, em termos contemporâneos, ao que Berlin (1981) conceitua como sendo liberdade positiva, conforme definição apresentada anteriormente. Seria, deste modo, o componente da liberdade vinculado à participação política e ao exercício ativo dos direitos políticos e civis da cidadania.
Skinner (1998), referindo-se ao conteúdo do pensamento político dos neo-romanos, afirma que, para autores como Milton, Needham e Sidney, a liberdade pode ser definida como “o desfrute sem constrangimentos de um número de direitos civis específicos” (Skinner, 1998:27). De acordo com Skinner, os autores antes mencionados desenvolveram a “Teoria dos Estados Livres”, pela qual só é possível a existência de liberdade individual em Estados ou comunidades livres, que eles consideram como sendo aqueles nos quais “as leis que o governam (...) devem ser decretadas com o consentimento de todos os seus cidadãos, os membros do corpo político como um todo” (Ibidem:33). Percebe-se uma convergência com Rousseau, mas existe a diferença de que estes autores, Milton, Needham, etc, são contrários à democracia direta, partilhando do julgamento negativo de teóricos políticos clássicos, tais como Platão e Aristóteles[8], acerca da democracia como forma de governo, sendo favoráveis à representação política, considerando que “A solução correta, (...), é que a massa do povo seja representada por (...) uma assembléia escolhida (...) para legislar em seu benefício” (Skinner, 1998:37).
Após realizar a reconstituição da teoria neo-romana sobre a liberdade civil, Skinner (1998) cita algumas críticas a esta teoria no que concerne à sua conceituação de liberdade. O primeiro crítico citado é Hobbes, que é o primeiro a fazer a contestação à teoria dos Estados livres, que seria retomada por liberais clássicos mais recentes, como Benjamin Constant e Isaiah Berlin. Para Hobbes, os neo-romanos tratavam não da liberdade de homens particulares, mas da liberdade da comunidade (Skinner, 1998:56), o que acarretaria a sujeição indevida da liberdade individual ao crivo do corpo coletivo. A crítica de Constant é no sentido de que a valorização do que ele chama de “liberdade dos antigos” pelos autores neo-romanos pode acarretar a reconstrução de “toda a estrutura constitucional das antigas cidades – Estado, incluindo instituições tão obviamente alheias e tirânicas como o ostracismo e a censura” (Ibidem:94). Desta maneira, para Constant, a revitalização da “liberdade dos antigos” poderia vir acompanhada da ressurreição de instituições incompatíveis com alguns dos direitos individuais naturais invioláveis e inalienáveis, principalmente, no caso, o direito à liberdade de pensamento e expressão, de natureza antagônica ao instituto da censura. Já Berlin (1981), sintetiza sua crítica à concepção neo-romana de liberdade, afirmando que a soberania da coletividade pode facilmente desintegrar a soberania do indivíduo (Berlin, 1981:163).
Skinner (1998:91) afirma que o conceito de liberdade que prevaleceu foi o de liberdade negativa, do liberalismo clássico, principalmente a formulação de Berlin (1981), relegando ao esquecimento a concepção neo-romana. Skinner afirma que a conceituação de liberdade negativa de Berlin considera a liberdade como sendo a não interferência de outras pessoas na conduta do indivíduo (Skinner, 1998:91), o que teria por conseqüência o estabelecimento de limites em relação à ingerência da autoridade pública no comportamento particular do indivíduo. O autor afirma que esta noção de liberdade como não interferência seria contraposta à coerção, que seria justamente caracterizada pela interferência deliberada de outros, ou do poder público, na conduta individual (Ibidem:92). Desta forma, Skinner afirma que a noção de liberdade que preponderou na teoria política foi a de liberdade negativa, pela qual a autoridade pública não poderia imiscuir-se em determinados aspectos da conduta particular dos indivíduos – cidadãos, não podendo intervir no que se refere à vida, à liberdade e à propriedade destes últimos sem sua acedência. Esta seria a base dos direitos individuais invioláveis e inalienáveis à vida, à liberdade e à propriedade, base do Jusnaturalismo, ou teoria dos direitos naturais. Skinner conclui sua argumentação questionando se a preponderância do conceito de liberdade negativa e o descrédito lançado sobre a teoria neo-romana foi uma opção acertada por parte da teoria política (Ibidem:95). De sua argumentação, pode-se depreender que este autor considera relevantes ambos os componentes da liberdade, tanto o positivo quanto o negativo e que eles são complementares, em vez de opostos. Isto porque, tão importante quanto proteger os cidadãos da intervenção indevida da autoridade pública, é impedir que os mesmos se sujeitem ao arbítrio desta mesma autoridade pública, o que só se poderá assegurar se os cidadãos exercerem sua autodeterminação, elegendo seus governantes, exercendo a soberania política, por meio do desempenho ativo dos direitos civis e políticos da cidadania (componente positivo da liberdade), mesmo que por meio da representação.
6. Capítulo 5 – As democracias participativa e representativa e a teoria política contemporânea – Sartori, Pateman e Bobbio:
Para examinar a questão das democracias participativa e representativa na teoria política contemporânea, foram selecionados três autores: Giovanni Sartori (1994), Carole Pateman (1992) e Norberto Bobbio (1987 e 2000)[9]. O primeiro e o último são partidários da democracia indireta e da representação política. A segunda é adepta da democracia direta e da participação política dos cidadãos.
6.1. A diferença conceitual, descritiva, entre as democracias direta e representativa:
Sartori (1994, passim 156 a 161) estabelece as diferenças conceituais, descritivas entre as democracias direta e representativa. Quanto à democracia direta, este autor a define como sendo aquela na qual o povo governa a si mesmo, sem representantes ou prepostos políticos, sem recorrer a mecanismos de transmissão de representatividade (Ibidem:156). O autor também aponta a existência de uma subespécie da democracia direta, à qual ele denomina de democracia de referendo, que seria um sistema democrático no qual o demos, o povo, decidiria as questões diretamente , sem a mediação da representação política. Entretanto, as deliberações coletivas não ocorreriam mediante reuniões em assembléia, como na ágora ateniense ou nos comícios romanos, mas por meio do instrumento do referendo, por meio do qual cada cidadão, isoladamente, decidiria, em frente a um terminal de vídeo, se pronunciando a favor, contra ou se abstendo, as questões públicas e coletivas (Ibidem:157). Para o autor, a democracia de referendo representa a superação, devido ao avanço tecnológico, da limitação de tamanho e espaço que era um empecilho para que a democracia direta fosse reeditada nos tempos atuais nos grandes Estados-nação. Sartori justifica classificar a democracia de referendo como sendo uma modalidade da democracia direta, devido ao fato de a primeira dispensar intermediários. Todavia, reconhece que ela não apresenta uma característica importante da democracia direta dos antigos, que é o fato de que, na Antigüidade Clássica, na ágora ateniense e nos comícios romanos, havia a interação física dos indivíduos que deliberavam sobre as questões coletivas (Sartori, 1994:157). Ao contrário, a democracia de referendo é um sistema democrático de indivíduos distintos e isolados (Ibidem:157 e 158). O autor alude ao fato de que o instrumento do referendo pode também ser utilizado na democracia representativa, caracterizando, desta forma, o que Sartori denomina de democracia semidireta[10] (Sartori, 1994a:41).
Bobbio (2000), também aborda a questão da democracia direta, participativa, e sua distinção em relação à sua congênere representativa. Caracterizando a democracia antiga, direta, o autor considera que a imagem que melhor a sintetiza é a de “uma praça ou então uma assembléia na qual os cidadãos eram chamados a tomar eles mesmos as decisões que lhes diziam respeito” (Bobbio, 2000:372). Portanto, na democracia antiga, direta, participativa, o povo exercia ele próprio a soberania. Bobbio chega a afirmar que a democracia antiga acarretava o poder do próprio povo decidir acerca de todas as atividades governamentais, tais como guerra e paz, finanças, tratados, a legislação, obras públicas entre outras, e não eleger prepostos para o desempenho destas funções (Ibidem:372). Percebe-se, nesta descrição de Bobbio, que o povo antigo, na ágora grega ou nos comícios romanos, ao contrário do modelo político de Rousseau, exercia tanto os direitos de soberania (legislação) quanto os de magistratura (obras públicas, finanças etc). No sistema de Rousseau, os cidadãos somente desempenhariam diretamente o poder Legislativo (Rousseau, 1995:99,144,145 e 148). Contudo, Bobbio assinala que a democracia direta do passado previa, em alguns casos, o instituto da eleição dos magistrados como forma de corrigir eventuais erros da participação direta (Bobbio, 2000:374).
Relativamente à democracia representativa, indireta, Sartori a define como sendo aquela na qual o povo não administra politicamente os assuntos públicos por si mesmo, mas por meio da eleição de representantes políticos que exercerão o Governo (Sartori,1994a:37). Este autor também conceitua democracia representativa como sendo “um sistema difuso e aberto de controle de grupos em competição eleitoral entre si” (Sartori, 1994:226). Por esta última, o autor acrescenta, à conceituação apresentada inicialmente, outras características ao sistema democrático representativo. Estas são os fatos de que tais sistemas são abertos, no sentido de que existe liberdade de organização política e de habilitação para concorrer nos pleitos, e apresentam difusão de controle do poder, o que acarreta a dispersão do exercício do poder político e decisório entre diversos centros de poder diferentes. Estes últimos desempenham, uns sobre os outros, um controle mútuo e recíproco, impedindo que quaisquer deles exerça o poder hegemônico. Esta é uma das bases do conceito de poliarquia de Robert Dahl (Ibidem:211). O autor afirma, ainda, que as eleições na democracia representativa não são para decidir sobre as questões públicas, mas para determinar aqueles que irão decidi-las (Ibidem:152). Sobre este tema, o autor sustenta, ainda, que, na democracia representativa, o momento em que o povo governa é o momento das eleições e que, nesta modalidade de democracia, a opinião dos governados é o verdadeiro fundamento do Governo. Deste modo, este último é classificado como de consentimento, sendo responsivo à opinião dos governados (Ibidem, passim 124-126). A responsividade significa que, quando os integrantes do Governo, caso almejem a reeleição, formulam e executam as políticas públicas, levam em consideração qual será a reação dos governados-eleitores a estas mesmas políticas.
Bobbio (2000) caracteriza a democracia representativa contemporânea, afirmando que o traço principal desta última são as eleições, e que, nestas, “o voto não é para decidir, mas sim para eleger quem decide” (Bobbio, 2000:372). Portanto, na democracia moderna, o exercício da soberania é delegado a representantes. Este autor também ressalta o fato de que a democracia representativa contemporânea pode adotar, em algumas cirscunstâncias, mecanismos de participação política direta da população, tais como os plebiscitos e os referendos[11] (Ibidem:374), configurando a chamada democracia semidireta. O autor afirma que a posição da participação política na democracia representativa contemporânea é mais marginal do que a da eleição na democracia direta pretérita: “a eleição era considerada uma necessária e útil correção do poder direto do povo, não como ocorre hoje nas democracias modernas, para as quais a eleição constitui uma verdadeira alternativa em relação à participação direta” (Ibidem:374). Ou seja, segundo Bobbio, havia um maior equilíbrio e uma menor exclusão no que se refere à relação entre a adoção de métodos representativos e a participação direta na democracia antiga, do que na relação equivalente entre a adoção de mecanismos participativos e a realização de eleições representativas na democracia contemporânea. O autor sintetiza a diferença fundamental entre as duas modalidades de democracia asseverando que “Nas duas formas de democracia, a relação entre participação e eleição está invertida. Enquanto hoje a eleição é a regra e a participação direta a exceção, antigamente a regra era a participação direta, e a eleição a exceção” (Ibidem:374).
Embora contestada por Sartori, poder-se-ia considerar a existência de uma terceira modalidade de sistema democrático, a democracia semidireta, que consistiria na adoção, pela democracia representativa, de mecanismos de participação política direta da população, tais como os plebiscitos e os referendos. Seria um tipo intermediário de democracia entre a direta e a indireta, cuja adoção seria efetivada quando da decisão acerca de questões controvertidas e de significativa relevância para a vida da população, tais como a questão da forma de governo a ser adotada por um país, como foi o caso da Itália, na qual foi realizado um referendo em 1946 (Bobbio, 2000:449), no imediato pós-guerra, para que a população decidisse entre a monarquia ou a república. Este também foi o caso do Brasil, no qual foi realizado um plebiscito em abril de 1993, para que a população decidisse sobre a forma de governo a ser adotada pelo país, assim como acerca do sistema de governo, se presidencialista ou parlamentarista. Sobre o assunto Sartori afirma que
“estaremos nos iludindo se considerarmos os referendos e as iniciativas populares de legislação como substitutos e equivalentes modernos da democracia direta. Mesmo se as chamadas formas de integração direta da democracia representativa funcionassem como seus primeiros defensores esperavam, certamente não produziriam uma democracia “semidireta”. A questão permite gradações, mas não é passível de soluções meio a meio” (Sartori, 1994a:41).
Maurice Duverger adota a classificação de democracia semidireta para descrever o sistema político que, aos mecanismos institucionais da democracia representativa, acrescenta instrumentos de participação política direta dos cidadãos (Duverger, 1959: 227). Esta posição de desprezo de Sartori para com a adoção de mecanismos de participação direta da população na democracia representativa é contestável na medida em que a referida adoção poderia contribuir para restaurar nos cidadãos o interesse e a disposição para a mobilização pelas questões públicas e coletivas. Esta poderia ser, talvez, uma alternativa de solução para o problema da apatia dos cidadãos em relação à política (Sartori, 1994:146), nesta época atual em que a esfera pública está tão amesquinhada e a esfera privada assumiu proporções expressivas. Entretanto, o autor não considera esta possibilidade.
6.2. A diferença valorativa entre as democracias direta e representativa:
Este item se refere ao fato de que os fundamentos valorativos, axiológicos, das duas modalidades de democracia são diversos em dois aspectos principais: nas dimensões vertical e horizontal da política e da democracia, e na distinção entre a concepção antiga de liberdade e a sua equivalente moderna. Esta diferença, identificada pioneiramente por Benjamin Constant em 1819 (Sartori, 1994 a: 42 e 53), consiste no fato de que a primeira, característica da democracia direta dos antigos, tem um significado eminentemente político, e, a segunda, própria da democracia representativa dos modernos, acarreta o reconhecimento de direitos individuais inatos ao ser humano (Ibidem, passim 41-46).
A dimensão vertical da política e da democracia se refere ao aspecto do processo político que consiste na estruturação hierárquica das coletividades (Sartori, 1994:181). É uma dimensão associada à democracia representativa, cujo principal valor é a liberdade. Isto porque, por intermédio desta dimensão, os indivíduos podem delegar o exercício das funções públicas a seus representantes, passando a dispor de mais tempo para se dedicar a suas atividades particulares, o que é exatamente o contrário do que acontecia na Antigüidade Clássica (Atenas democrática e Roma republicana) (Sartori, 1994 a:45). A principal função da dimensão vertical é reduzir a vontade de milhões de cidadãos, expressa nos pleitos, a apenas uma autoridade, estando relacionada com as idéias de obediência, superioridade, poder, comando, domínio, coerção, Estado (Sartori, 1994:182).
Já a dimensão horizontal da política e da democracia seria referente à democracia direta, participativa, e seu valor central seria a igualdade. Teria relação com a idéia de nivelamento e com deliberações coletivas tomadas de modo compartilhado e conjunto pela totalidade dos cidadãos. Nas democracias representativas, mesmo esta dimensão não sendo preponderante, pode-se nelas encontrar categorias que a expressam, como é o caso dos conceitos de opinião pública, eleições, participação política, controle social, entre outras (Ibidem:182).
Uma das principais constatações feitas por Sartori sobre estas dimensões da política se refere ao fato de que a dimensão vertical alcançou elevado grau de desenvolvimento, no sentido de ter suas práticas implantadas nos sistemas democráticos representativos contemporâneos, sem o respaldo de valores correspondentes que a sustentassem axiologicamente. Por outro lado, o contrário ocorreu com o componente horizontal, que teve débil desenvolvimento, apesar da acentuada base valorativa da teoria política que o sustenta (Sartori, 1994, passim, 226-231), que é a teoria participativa da democracia. O autor, um adepto confesso do componente vertical da política e da democracia representativa, e um crítico corrosivo e mordaz do componente horizontal, tem como uma de sua preocupações centrais tornar mais densa a base valorativa do elemento vertical da política. Sartori, apesar de constatar que este último vence o confronto com o componente horizontal no que se refere à prática política, não se conforma com sua derrota no que tange aos valores. O propósito de Sartori passa a ser, então, tentar explicar o motivo pelo qual a dimensão vertical perde a batalha dos valores para o elemento horizontal. A conclusão a que o autor chega é a de que a teoria política que sustenta o componente vertical da democracia, o elitismo, tem como categoria central um conceito que é neutro em termos valorativos, que é o conceito de elite entendido como de natureza exclusivamente altimétrica. Isto significa que uma parcela minoritária, dominante, exerce o poder em determinado grupo social, estando situada no topo deste último (Ibidem:226 e 227). Este conceito de elite foi formulado pelo italiano Mosca. Tal situação não ocorre pelo lado da teoria política que respalda a dimensão horizontal da política, a teoria participativa da democracia, que realça com intensidade o conteúdo valorativo de seu conceito central, a igualdade. A solução que Sartori propõe para revitalizar, em termos axiológicos, a teoria política que fundamenta o componente vertical da política, é a de restaurar o conteúdo valorativo do conceito de elite. Isto implica dotar novamente esta palavra da acepção que possuía na Antigüidade Clássica, relativa à idéia de seleção, de algo concernente à escolha do que existe de melhor, ou seja, elite relacionada à seleção dos melhores (áristoi, os melhores em grego, e seligere, seleção ou selecionar em latim) (Sartori, 1994:226 e 228). Adicionalmente, o autor propõe remover do significado da palavra elite a acepção de discriminação atribuída a este conceito pelos partidários da dimensão horizontal da política e pela teoria participativa da democracia (Ibidem:227). É interessante notar que Sartori vai buscar na Antigüidade Clássica, tão criticada por ele, a solução para um problema atual da teoria política sobre a democracia. O autor também destaca que o componente vertical da democracia representativa continua funcionando apesar de uma pressão valorativa que o deprecia cada vez mais (Ibidem:226), sendo este o principal objeto do inconformismo do autor: Como este componente que é aquele que assegura a manutenção da liberdade do homem ocidental pode ser tão desprezado pela teoria política, que só faz valorizar a dimensão horizontal da democracia?, é a pergunta que sintetiza bem a perplexidade de Sartori.
O segundo aspecto sobre a diferença valorativa entre as democracias direta e indireta diz respeito à questão dos conceitos antigo e moderno de liberdade. Sartori menciona que foi Benjamin Constant o precursor no tratamento deste tema, em uma clássica conferência proferida em 1819 (“A liberdade dos antigos comparada à liberdade dos modernos”) (Sartori, 1994a:42). Esta diferença consiste no fato de que os antigos concebiam a liberdade como sendo eminentemente política, dizendo respeito exclusivamente à liberdade de participar da vida pública da polis, sendo muito reduzido o espaço para a dedicação à vida particular. Era um conceito que tornava a liberdade sinônimo de cidadania, sendo o homem um cidadão, e não um indivíduo. Para que o homem pudesse ser cidadão todo o tempo é que existia a escravidão na Grécia Antiga; os escravos realizavam os trabalhos domésticos para que o cidadão se dedicasse plenamente à esfera pública da polis (Ibidem:40 e 53). Esta situação contrasta com o conceito moderno de liberdade, do século XIX, que consiste na noção positiva do indivíduo, considerado portador de direitos individuais naturais invioláveis e inalienáveis à liberdade, à vida, à propriedade e à dignidade. Estes direitos são a base do Jusnaturalismo (Sartori, 1994a, passim 42-46). Sartori afirma que, na Grécia Antiga, para os cidadãos da polis, a distinção entre a esfera pública e a privada era ignorada, o indivíduo era plenamente absorvido pela esfera pública, e “Para os gregos,“homem” e “cidadão” significavam exatamente a mesma coisa, assim como participar da vida da polis, de sua cidade, significava “viver”” (Ibidem:43). Já a concepção moderna de liberdade implica o reconhecimento de que cada indivíduo detém uma liberdade individual fundamentada em direitos pessoais, com direito a uma esfera privada, particular e inviolável. A diferença entre as duas concepções de liberdade, a antiga, característica da democracia direta da Antigüidade Clássica, e a segunda, da moderna democracia representativa, é sumarizada por Sartori, que afirma que
“Portanto, a diferença básica entre a concepção antiga de liberdade e a moderna reside precisamente em acreditarmos que um homem é mais que um cidadão de um Estado. Segundo nossa concepção, um ser humano não pode ser reduzido à sua cidadania. Para nós, um homem não é apenas um membro de um plenum coletivo” (Ibidem:42).
Bobbio (2000) também destaca a contribuição de Benjamin Constant para a teoria política, no que se refere à questão da liberdade. O primeiro destaca que, para o segundo, a principal distinção entre a liberdade dos antigos e a dos modernos é o fato de que “”O fim dos antigos - escreve ele – era a divisão do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria: era a isto que eles chamavam liberdade. O fim dos modernos é a segurança dos gozos privados; e eles chamam liberdade às garantias acordadas pelas instituições a esses gozos”” (Bobbio, 2000:104). Pode-se considerar, também, que a liberdade dos antigos e a dos modernos corresponderiam às liberdades positiva e negativa, respectivamente, conforme conceituadas por Berlin (1981:136,137,142 e 163).
Desta forma, conforme pensava Benjamin Constant, a liberdade individual, dos modernos, não pode ser condicionada à ““ sujeição do indivíduo ao poder do todo”” (Sartori, 1994a:45), conforme ocorria com a liberdade dos antigos. Pela argumentação de Sartori, depreende-se que ele considera que a dimensão vertical da democracia, assentada na representação política, assegura a existência de liberdade e a ausência de escravidão. Isto porque permite que o indivíduo, delegando as funções públicas aos representantes, tenha tempo para cuidar de seus afazeres particulares, sem a necessidade de escravizar alguém. Isto era o que ocorria na Antigüidade Clássica, na qual o cidadão da polis só podia se dedicar completamente à vida pública na medida em que existiam escravos para realizar suas tarefas domésticas (Sartori, 1994 a: 40 e 53). Rousseau abordou esta questão ao afirmar que
“Entre os Gregos, tudo que o povo tinha que fazer, fazia-o por si mesmo, estando constantemente reunido na praça. Tinham um clima ameno, não eram ávidos, os escravos faziam seus trabalhos, sua grande preocupação era sua liberdade. (...).
Qual! A liberdade só se mantém com o apoio da servidão? Talvez. Os dois opostos se tocam. (...). Tais posições infelizes como essas estabelecem-se onde só se pode conservar a liberdade às expensas de outrem, e onde o cidadão só é perfeitamente livre, enquanto o escravo é extremamente escravo. Esta era a posição de Esparta” (Rousseau, 1995:149 e 150).
Pode-se depreender, por esta argumentação, que Sartori atribui ao elemento vertical da política, alicerçado no instituto da representação política, o fator responsável pela existência e manutenção da liberdade nas democracias modernas.
Em suma, a democracia direta dos antigos, bem como seu conceito de liberdade, se baseavam em valores que se orientam no sentido de priorizar o aspecto coletivo, público, em relação ao individual e particular. É este aspecto que Bobbio (2000) ressalta quando afirma que “A filosofia política dos antigos não é predominantemente uma filosofia individualista, e muito menos atomizante. A sua inspiração dominante é aquela bem expressa na tese aristotélica do homem originariamente animal social” (Bobbio, 2000:378). Por outro lado, a democracia representativa e o conceito moderno de liberdade se fundamentam em valores pelos quais o aspecto individual, particular, tem precedência sobre o coletivo, público. Para os antigos, o indivíduo existiria para servir ao Estado, ou à polis; para os modernos, o Estado existe para servir ao indivíduo.
6.3. A teoria política da democracia representativa - a teoria competitiva da democracia:
Para Sartori, a teoria competitiva da democracia se fundamenta em dois argumentos centrais: a definição procedimental de democracia de Schumpeter e o princípio das reações antecipadas (Sartori, 1994:209).
A definição schumpeteriana de democracia como método é a base da teoria competitiva da democracia. Segundo ela ”o método democrático é um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor” (Schumpeter, 1961:328). Esta definição se restringe àquilo que pode ser considerado a matéria prima da democracia, seu insumo, o que constitui a origem e a fonte do poder político democrático, que são os pleitos competitivos multipartidários e periódicos. A referida conceituação de Schumpeter pode ser considerada uma das bases da democracia representativa, na medida em que explicita que a aplicação do “método democrático” determina quem vai decidir sobre as questões públicas, e não se destina a decidir, em caráter definitivo, qualquer questão pública. Entretanto, esta definição não faz referência ao exercício do Governo, ao que ocorre depois da realização das eleições, após os políticos eleitos para o Governo assumirem o poder e iniciarem o processo de elaboração e implementação das políticas públicas. Deste modo, a conceituação schumpeteriana não contempla as conseqüências do processo democrático-eleitoral.
O outro fundamento da teoria competitiva da democracia, segundo Sartori, que diz respeito aos efeitos das eleições e fornece indicações sobre o comportamento dos governantes no exercício da administração pública, é o princípio das reações antecipadas. Por este último, os governantes, que aspiram à reeleição, têm seu comportamento político-administrativo influenciado pela avaliação que os governados, eleitores, fazem a respeito da administração que estão realizando. Desta maneira, os governantes levam em consideração a opinião dos governados ao decidirem sobre as questões públicas. A isto se denomina responsividade, que é também uma forma de controle que os eleitores exercem sobre seus líderes e governantes (Sartori, 1994:209). Desta forma, pode-se considerar que as eleições pluripartidárias, competitivas e periódicas geram o poder democrático, cujo exercício é orientado pelo princípio das reações antecipadas, pelo qual os governados influenciam o comportamento político e administrativo dos governantes. Isto porque estes últimos podem ser destituídos pelos eleitores nos pleitos e, por isso, levam em conta a opinião dos governados na execução das políticas públicas. Ao conjunto destas duas características o autor denomina “teoria da retroalimentação da democracia” (Ibidem:210). Isto porque os pleitos têm como resultado Governos que vão sofrer a influência do julgamento dos eleitores durante sua gestão, e vão se submeter à avaliação popular na eleição subseqüente. Esta, por sua vez, poderá gerar um novo Governo, desencadeando novamente o ciclo e caracterizando o que Sartori classifica como “retroalimentação”.
A corrente da teoria política que defende a democracia representativa, a teoria competitiva da democracia, na qual Sartori se enquadra, é complementada por uma outra corrente teórica, que é a da teoria poliárquica de Dahl. Conforme afirma Sartori, Schumpeter está interessado em compreender o funcionamento da democracia, enquanto Dahl tem como objetivo promover a democracia (Ibidem:211). Dahl, segundo Sartori (Ibidem:211), utiliza a palavra democracia para descrever o ideal, e poliarquia para se referir à manifestação da democracia no mundo real. A poliarquia pode ser definida como o sistema no qual o exercício do poder político está disperso por uma multiplicidade de centros de poder e órgãos públicos, de modo a evitar a excessiva concentração de poder e mando em um único órgão, contribuindo, desta maneira, para minimizar o risco de surgimento de tirania e de degeneração da democracia (Sartori,1994:23). Sartori aponta que, além do aspecto mencionado, referente ao fato de que a poliarquia de Dahl é um sistema no qual ““o poder sobre as autoridades é amplamente (...) partilhado ”” [12] (Ibidem:23), Dahl também enfatiza o grau expressivo de controle que os constituintes exercem sobre as lideranças políticas (Ibidem:23), propiciado pela realização de pleitos multipartidários periódicos. A teoria política de Dahl é, também, pluralista, que é a abordagem da Ciência Política que considera o dissenso, a diversidade e a discordância valores centrais da política e benéficos para esta última (Ibidem:131). A poliarquia, segundo Dahl, seria um sistema político caracterizado por alguns elementos que poderiam ser considerados como sendo as regras do jogo democrático. Estes elementos seriam, principalmente: a livre manifestação das preferências políticas dos cidadãos entre as alternativas políticas apresentadas, por meio do sufrágio nos pleitos competitivos, pluripartidários e periódicos; o peso idêntico atribuído ao voto de cada cidadão; o fato de a alternativa com a maior quantidade de votos ser declarada a vencedora da eleição; a livre habilitação de agremiações políticas para concorrer aos pleitos (Dahl, 1989:84). Estes, entre outros elementos são, em linhas gerais, as características das democracias representativas ocidentais contemporâneas.
Desta maneira, fica caracterizada a corrente da teoria política que defende a democracia representativa. Segundo esta vertente, a democracia é um sistema político no qual os partidos políticos concorrem pelas preferências dos eleitores, expressas nos pleitos multipartidários, competitivos e periódicos, os quais têm como conseqüência a formação de Governos. Os membros destes últimos, por sua vez, nas políticas públicas que executam, caso almejem a reeleição, sofrem a influência da avaliação dos governados que, na eleição seguinte, decidirão se os governantes continuam ou não no poder, configurando, assim, a responsividade do governo à opinião e ao julgamento dos governados. Esta última consiste no controle exercido pelos eleitores sobre seus líderes a que se refere Dahl. Uma característica complementar desta teoria da democracia representativa é a diluição do exercício do poder político entre várias instâncias político-administrativas. Esta diluição é uma forma de tentar evitar o domínio hegemônico de uma facção sobre o conjunto da sociedade, o que reforça o controle anteriormente referido e assegura, segundo Sartori, aquele valor sagrado para o autor que é a liberdade, defendendo-a, segundo ele, da opressão (Sartori, 1994 a:41). A aludida diluição do exercício do poder político é o cerne do conceito de poliarquia (Sartori, 1994:23). É relevante ressaltar que esta teoria competitiva da democracia é uma teoria de caráter elitista, porque, em sua abordagem, Sartori resgata a acepção de seleção, de escolha dos melhores, para a palavra elite (Ibidem:226 e 227). Para ele, estas eleições multipartidárias são ocasiões em que os eleitores escolhem os melhores, os mais capazes, as elites, que vão governar o Estado (Ibidem:226 e 227). Neste aspecto, Sartori é um aristocrata. Conforme ele próprio escreve “A teoria competitiva-poliárquica de democracia é, em termos gerais, uma teoria descritiva que explica de fato como as democracias funcionam e atuam”(Ibidem:221) e a mesma constitui “uma teoria de referência de elites” (Ibidem:221). Além disto, o autor propõe que a democracia seja “uma poliarquia seletiva e de mérito” (Ibidem:221), caracterizando, assim, a natureza elitista da citada teoria.
6.4. A teoria política da democracia participativa:
Para Pateman (1992), os dois teóricos mais importantes da democracia participativa são Rousseau e John Stuart Mill. A autora considera que Rousseau foi um teórico da democracia da Cidade-Estado antiga, enquanto Mill o foi em relação à moderna sociedade industrial (Pateman, 1992:35). Segundo a autora, do pensamento político dos dois extrai-se uma das proposições básicas da teoria da democracia participativa. Esta proposição se refere à existência de vinculação entre a estrutura de autoridade das instituições nas quais os indivíduos estão inseridos e atuam, nas esferas do governo local e não governamental, e as qualidades e atitudes psicológicas destes indivíduos no que se refere à participação ou abstenção na esfera política de nível nacional (Pateman, 1992:42).
Com referência a Rousseau, Pateman afirma que “Toda teoria política de Rousseau apóia-se na participação individual de cada cidadão no processo político de tomada de decisões” (Ibidem:35). Isto é verdadeiro no que tange ao exercício do poder Legislativo, visto que, para Rousseau, o povo deve ser representado no que se refere ao exercício do poder Executivo (Rousseau, 1995:148).
Para Pateman, a participação política desempenha três funções principais na teoria política de Rousseau: a de fazer com que o indivíduo seja o soberano de si mesmo, a de facilitar a aceitação, pelo indivíduo, das decisões coletivas das quais ele participou diretamente, e a de proporcionar ao indivíduo o sentimento de pertencer a uma comunidade (Pateman, 1992: 39 e 40). A primeira função está relacionada à definição de liberdade de Rousseau, pela qual a mesma consiste em obedecer à lei que se estabelece para si mesmo (Rousseau, 1995:82). De acordo com a autora, para Rousseau, a única maneira de fazer com que a lei garanta a liberdade de todos os membros da sociedade é fazer com que todo indivíduo aja de modo socialmente responsável por meio do processo político participativo (Pateman,1992:40). Esta interpretação de Pateman é coerente, na medida em que, instituindo as leis que terá que cumprir, cada cidadão estará, ele próprio, estabelecendo as regras que regulamentarão sua vida, sendo desta forma, senhor ou soberano de si mesmo, e livre. Esta primeira função da participação política teria relação com o conceito de liberdade positiva tal como apresentado por Berlin (1981), segundo o qual “O sentido “positivo” da palavra “liberdade” tem origem no desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor” (Berlin, 1981:142).
A segunda função da participação política no sistema de Rousseau, segundo a autora, é a de propiciar maior facilidade de acatamento individual às decisões coletivas. Isto seria decorrência de o processo participativo, ao fazer com que a totalidade dos cidadãos decidam, em condição de igualdade, sem qualquer exercício de domínio de um sobre o outro, as leis que irão regulamentar a vida de cada um, sendo compulsória a obediência de todos, sem exceção, às disposições legais estabelecidas em conjunto e de modo impessoal, facilitar, desta forma, a aceitação individual às deliberações coletivas (Pateman, 1992:41). Deste modo, o processo participativo gerará um sentimento de comprometimento e lealdade individual em relação ao grupo, cuja conseqüência é a facilitação da obediência individual à deliberação coletiva, em relação a uma situação na qual o citado sentimento inexistisse. A terceira função, a de integração do indivíduo à comunidade (Ibidem:43), é uma decorrência natural do processo participativo e uma conseqüência da segunda função. Isto porque o fato de deliberar conjuntamente com seus concidadãos e , junto e de comum acordo com eles, obedecer às leis instituídas, criará o sentimento de lealdade e comprometimento. Este último vem a ser exatamente o vínculo social e comunitário, que só pode existir se o indivíduo sentir que pertence a uma autêntica comunidade.
Em relação a John Stuart Mill, Pateman (Ibidem, passim 44 a 47), afirma que este teórico ressaltava a função educativa da participação política, considerando que o envolvimento com as questões públicas estimula o desenvolvimento das faculdades individuais e do espírito público, o que não ocorre quando o indivíduo se dedica somente a seus afazeres particulares. O autor inglês, baseado em Tocqueville, reconheceu a relevância tanto da existência de instituições políticas locais, quanto da descentralização político-administrativa, considerando fundamental a participação política em nível local como aprendizado para o exercício do poder político na democracia em nível nacional (Ibidem:46). Isto porque, segundo Mill, de acordo com Pateman, o mero ato de votar em intervalos regulares é absolutamente insuficiente para habilitar o cidadão ao exercício da cidadania política e a participar de modo responsável e ativo do processo democrático em nível nacional (Pateman, 1992:46). Entretanto, Pateman detecta contradições no pensamento de Mill, a principal delas referente à incompatibilidade entre a ênfase deste último na necessidade do governo representativo numa sociedade de grandes dimensões, e o papel essencial que este autor atribui à função educativa da participação (Ibidem:47). Como conciliar a ênfase na representação política com o destaque dado à participação? O autor inglês também apresenta, de acordo com a autora, uma faceta elitista, ao defender que a população será governada, necessariamente, pela minoria instruída da sociedade (Ibidem:47). Mesmo detectando estas inconsistências, e considerando que o sistema político de Mill, apesar de admitir o sufrágio universal, não apresenta um componente educativo tão acentuado quanto o do sistema de participação direta de Rousseau, devido à valorização da representação política e do governo representativo, Pateman ainda o considera um importante referencial teórico para a teoria da democracia participativa. Isto porque a ênfase de Mill na participação no governo em nível local, e não no nacional, que seria representativo, poderia propiciar a participação direta dos cidadãos na tomada de decisões, cumprindo, desta forma, a função educativa da participação política (Ibidem:49). Além disto, a autora afirma que Mill concorda com Rousseau em relação às outras duas funções da participação política mencionadas: a facilitação da aceitação individual de decisões coletivas e a função de integração (Ibidem:49). Contudo, o fator mais relevante, apontado por Pateman, para justificar a inclusão de John Stuart Mill na teoria da democracia participativa, é a ênfase que este autor atribui à participação no local de trabalho, na indústria, como indutora da participação do indivíduo na esfera política mais ampla, de nível nacional (Ibidem:51). A respeito do assunto, a autora escreve que “Em suas últimas obras, Mill chegou a visualizar a indústria como outra área onde o indivíduo poderia ganhar experiência na administração dos assuntos da coletividade, exatamente como ele poderia fazer no governo local” (Ibidem:49). Desta forma, Mill considerava que a atuação direta do cidadão na administração dos negócios locais, da mesma forma que a participação direta do trabalhador-cidadão na adoção das decisões coletivas no ambiente de trabalho, no caso, a indústria, habilitaria e incentivaria o indivíduo a se envolver diretamente com a política em nível nacional. A referida habilitação aconteceria porque o indivíduo, ao tratar dos assuntos locais e das decisões coletivas no ambiente de trabalho, adquiriria experiência administrativa e de negociação que o tornaria apto a participar da política em nível nacional. Além disto, geraria nele um espírito de iniciativa e autoconfiança que o estimularia naturalmente a participar em âmbito mais amplo. Estas qualidades psicológicas individuais positivas (espírito de iniciativa, autoconfiança, autoestima) suscitadas pelo processo participativo direto de elaboração legislativa de Rousseau e pela participação do indivíduo no governo local e no ambiente de trabalho na teoria de Mill, é que são de interesse central para a teoria da democracia participativa, de acordo com Pateman (1992:60 e 61). Segundo ela, caso os argumentos de Mill sejam estendidos para a totalidade de subsistemas políticos e institucionais da sociedade, mais precisamente, para as estruturas de autoridade dos aludidos subsistemas e instituições, que seriam democratizadas, o resultado deste processo seria a existência de uma sociedade efetivamente democrática e participativa. Nesta sociedade, os indivíduos possuiriam o conjunto de atitudes psicológicas requeridas pelo processo participativo, conforme a autora afirma no trecho a seguir:
“A sociedade pode ser vista enquanto um conjunto de vários sistemas políticos, cujas estruturas de autoridade têm um efeito importante sobre as qualidades e atitudes psicológicas dos indivíduos que interagem dentro deles; assim para o funcionamento de uma política democrática a nível nacional, as qualidades necessárias aos indivíduos somente podem se desenvolver por meio da democratização das estruturas de autoridade em todos os sistemas políticos” (Ibidem:51).
Desta maneira, a autora considera que a participação em instâncias não governamentais da sociedade e governamentais de hierarquia inferior (governo local), cujas estruturas de autoridade tenham sido democratizadas, induz à participação na esfera política em nível mais amplo, nacional. Como conseqüência, quando as estruturas de autoridade destas instâncias não governamentais e do próprio governo local forem democratizadas, no sentido de que sejam transformadas de modo a permitir a participação efetiva dos cidadãos no processo decisório, a sociedade como um todo, bem como a própria política, também se democratizarão.
6.5. A crítica à teoria competitiva da democracia:
Pateman (1992) denomina de teoria da democracia contemporânea o que Sartori chama de teoria competitiva da democracia. Para Pateman, as origens teóricas da referida teoria são os pensamentos de Mosca e de Michels. Para o primeiro, os grupos são comandados por minorias e toda sociedade precisa de uma elite no governo. Para o último, as organizações estruturadas de modo democrático degeneram em oligarquias (Pateman, 1992:10). A autora americana caracteriza esta vertente da teoria política da seguinte forma:
“Nessa teoria, a “democracia” vincula-se a um método político ou uma série de arranjos institucionais a nível nacional. O elemento democrático característico do método é a competição entre os líderes (elite) pelos votos do povo, em eleições periódicas e livres. As eleições são cruciais para o método democrático, pois é principalmente através delas que a maioria pode exercer controle sobre os líderes. A reação dos líderes às reivindicações dos que não pertencem à elite é assegurada em primeiro lugar pela perda do mandato nas eleições. A “igualdade política”, na teoria, refere-se ao sufrágio universal e à existência de igualdade de acesso aos canais de influência sobre os líderes. Finalmente, “participação”, no que diz respeito à maioria, constitui a participação na escolha daqueles que tomam as decisões. Por conseguinte,a função da participação nessa teoria é apenas de proteção; a proteção do indivíduo contra decisões arbitrárias dos líderes eleitos e a proteção de seus interesses privados. É na realização desse objetivo que reside a justificação do método democrático.
São necessárias certas condições para conservar a estabilidade do sistema. O nível de participação da maioria não deveria crescer acima do mínimo necessário a fim de manter o método democrático funcionando, ou seja, deveria manter-se no nível que existe atualmente nas democracias anglo-americanas” (Ibidem:25).
Nesta caracterização pormenorizada da teoria democrática contemporânea, que pode ser considerada o “mainstream” da teoria política sobre a democracia, a corrente principal, a autora ressalta o caráter elitista da mesma, sendo o povo eleitor dirigido pelos líderes escolhidos, que compõem a elite política que administra os negócios públicos. É ressaltado também o controle que os liderados exercem sobre os líderes, controle político desempenhado unicamente nas eleições, quando a população pode destituir seus governantes de modo legítimo, bem como a influência que os eleitores exercem sobre o comportamento administrativo dos eleitos, pelo mesmo motivo de possibilidade de perda do mandato por estes últimos nos pleitos competitivos. Esta possibilidade Sartori denomina de princípio das reações antecipadas (Sartori, 1994:209). O aspecto mais relevante da teoria elitista, para Pateman, é o conceito de participação política adotado pelos adeptos da mencionada teoria. É uma definição restrita de participação, tendo em vista que estes estudiosos, tais como Dahl, Berelson, Sartori, Schumpeter, entre outros, são refratários a um aprofundamento da participação popular na política. Todos estes, de um modo geral, preconizam que o nível apropriado de participação política da população é aquele que assegura a estabilidade democrática, que é identificado, como a autora menciona na passagem transcrita, como sendo aquele verificado nas democracias dos Estados Unidos e do Reino Unido. Este argumento é, coerentemente com a teoria que o apresenta, de natureza profundamente elitista. Isto porque ele se baseia, principalmente, na idéia de Dahl de que as pessoas que estão situadas nos estratos mais pobres da sociedade, que geralmente são politicamente inativas, possuem “personalidades autoritárias”, antidemocráticas, e que a incorporação destas pessoas ao processo político-democrático causaria instabilidade nas democracias (Pateman, 1992:20).
O argumento de Dahl citado acima tem relação com a constatação, por este autor, de que um dos principais elementos responsáveis pela estabilidade política das democracias é o consenso acerca das regras do jogo democrático (Dahl, 1989:77), o qual tende a diminuir, segundo ele, com a incorporação dos setores desfavorecidos da população à vida política. Isto devido ao fato de, de acordo este autor, nestes estratos sociais mais pobres, ser maior e mais expressiva a incidência de personalidades autoritárias (Dahl, 1989:90), o que, por sua vez, reduziria o aludido consenso entre os cidadãos politicamente ativos e causaria os problemas de instabilidade política para os sistemas democráticos (Ibidem:90). As mencionadas regras, seriam, basicamente, as seguintes: a livre manifestação das preferências políticas dos cidadãos entre as alternativas políticas apresentadas, por meio do sufrágio nos pleitos competitivos, pluripartidários e periódicos; o peso idêntico atribuído ao voto de cada cidadão; o fato de a alternativa com a maior quantidade de votos ser declarada a vencedora da eleição; a livre habilitação de agremiações políticas para concorrer aos pleitos, etc (Ibidem:84).
O conceito limitado e restritivo de participação política da teoria contemporânea da democracia é crucial para efeito de comparação com o mesmo conceito adotado pelos teóricos da democracia participativa. Para os adeptos da teoria da democracia competitiva, a participação significa apenas uma proteção que o indivíduo possui para se defender de uma possível opressão por parte dos líderes e dos governos que elege (Pateman, 1992:25). Deste modo, o poder de destituir os líderes nos pleitos periódicos funcionaria como uma garantia, para os governados, contra eventuais desmandos dos governantes. Os teóricos contemporâneos consideram benéfico que a participação política dos cidadãos nos sistemas democráticos seja inexpressiva, e justificam este posicionamento argumentando que, além do motivo apontado por Dahl apresentado anteriormente, a apatia política desempenha uma função relevante para a estabilidade democrática. Isto porque a apatia suavizaria, abrandaria, amorteceria a intensidade dos conflitos ideológicos que caracterizam a democracia, assegurando a estabilidade política e evitando a ocorrência de rupturas institucionais (Berelson, 1954, citado por Sartori, 1994:167 e 179 e Pateman, 1992:16). É exatamente a constatação que faz Pateman ao afirmar que “na teoria da democracia contemporânea, o que importa é a participação da elite minoritária, e a não participação do homem comum, apático, com pouco senso de eficácia política é vista como a principal salvaguarda do sistema contra a instabilidade” (Pateman, 1992:139). Pode-se considerar que, em relação à questão da participação política direta dos cidadãos no governo, a teoria contemporânea da democracia representa um prosseguimento da teoria política clássica, na medida em que considera nociva a participação direta dos governados na administração pública, conforme consideravam Platão e Aristóteles. O primeiro, na “República”, considerava o governo democrático responsável pela “desagregação social” (Bobbio, 2000:375), e “um modelo para tiranos de todos os tempos, cuja tarefa é restabelecer a ordem, ainda que a ferro e fogo. Aristóteles não fica atrás: na distinção entre formas de governo boas e más, o termo “democracia” serve para designar o mau governo popular” (Ibidem:375).
Já a teoria da democracia participativa considera a participação política vital para que se alcance uma autêntica democracia política. Esta última seria um sistema no qual, efetivamente, o cidadão comum influenciaria os destinos da coletividade, o que, segundo a autora, “se efetua por meio da “educação pública”, a qual, no entanto, depende da participação em muitas esferas da sociedade na “atividade política”, entendida num sentido bastante abrangente” (Pateman, 1992:34). Desta forma, os teóricos da democracia participativa preconizam a participação não somente na política partidária, mas também em outros setores da vida social, principalmente no ambiente de trabalho e em associações da esfera não governamental, o que educaria e prepararia os cidadãos para a participação política ativa e responsável em nível nacional, contribuindo, desta maneira, para aprofundar o processo democrático (Ibidem, passim 139-146). Desta forma, pode-se depreender que a participação, para os adeptos da teoria democrática participativa, transcende o âmbito político, e abrange outros setores, tais como os das relações de trabalho e aqueles referentes à vida comunitária, nos quais, por meio de participação intensa, os cidadãos se habilitarão para o exercício da prática democrática política em nível mais amplo, nacional. Como conseqüência da ocorrência deste processo educativo ao qual cada cidadão se submeteria, no governo local, no ambiente de trabalho e na esfera não governamental, o indivíduo se tornaria apto a exercer de modo mais eficaz sua cidadania na própria democracia representativa. Sobre o assunto, a autora afirma que
“O homem comum poderia ainda se interessar por coisas que estejam próximas onde mora, mas a existência de uma sociedade participativa significa que ele estaria mais capacitado para intervir no desempenho dos representantes em nível nacional, estaria em melhores condições para tomar decisões de alcance nacional quando surge a oportunidade para tal, e estaria mais apto para avaliar o impacto das decisões tomadas pelos representantes nacionais sobre sua própria vida e sobre o meio que o cerca. No contexto de uma sociedade participativa o significado do voto para o indivíduo se modificaria: além de ser um indivíduo determinado, ele disporia de múltiplas oportunidades para se educar como cidadão público” (Pateman, 1992:146).
Deste modo, pode-se depreender que o conceito de participação para os adeptos da teoria participativa da democracia é transcendente em relação ao âmbito político-partidário. Deste modo, tal conceito se vincula a um aspecto mais abrangente de uma sociedade participativa, na qual o indivíduo tomaria parte de modo ativo nas decisões coletivas no governo local, na esfera não governamental, comunitária, e no ambiente de trabalho, o que o habilitaria ao desempenho da cidadania ativa em nível político nacional. Pateman considera a participação como uma oportunidade de o cidadão não só se educar em termos políticos, mas, também, de aproveitar suas potencialidades na plenitude. Ela destaca ,principalmente, o aspecto pedagógico da participação, como fundamento para o exercício de uma cidadania politicamente responsável (Ibidem: 139). Por fim, cabe ressaltar que, na opinião da autora, a participação do indivíduo nas esferas comunitária e do ambiente de trabalho, iriam capacitá-lo para exercer sua cidadania política de modo mais eficaz e ativo também no sentido de uma fiscalização e monitoramento mais rigorosos da conduta dos representantes políticos em nível nacional, contribuindo para o aperfeiçoamento do processo democrático (Ibidem:146). Em suma, a participação política seria benéfica também para a própria democracia representativa.
Além disto, Pateman considera que o aprofundamento da participação popular na política não representa um perigo para a estabilidade democrática, na hipótese de os cidadãos de camadas econômicas subalternas terem sido submetidos ao processo pedagógico-educativo suscitado pela participação em instâncias não governamentais. Sobre isto, a autora afirma que “Se aqueles que acabam de chegar à arena política tivessem sido previamente “educados” para ela, sua participação não representaria risco nenhum para o sistema” (Pateman, 1992:139).
6.6. A crítica à teoria participativa da democracia:
A teoria política da democracia participativa, que Sartori denomina de antielitismo, tem como objeto de críticas a teoria competitiva da democracia e seu complemento teórico, a poliarquia pluralista de Robert Dahl. Por sua vez, o antielitismo é o alvo preferencial da refutação de Sartori.
O autor inicia a sua polêmica antiparticipacionista questionando a base teórica do pensamento político defensor da democracia participativa, constituída, principalmente, por Rousseau e John Stuart Mill. Sartori alega que Rousseau, na verdade, era um elitista, um adepto da aristocracia eletiva como forma de Governo (Rousseau, 1995: 126) , que repudiava a democracia como forma de exercício do poder Executivo (Rousseau, 1995:123 a 125). Além disto, o autor suíço, segundo Sartori, considerava Genebra seu modelo de sistema político, o qual excluía, de acordo com o autor italiano, “mais de 90% da população (...) não apenas do acesso a cargos públicos, mas também do direito de votar” (Sartori, 1994:216). Entretanto, Rousseau é considerado um adepto da democracia direta, quanto ao exercício do poder Legislativo, pelo próprio Sartori (1965:312 e 1994a:79), por Bobbio (1987:41), por Weffort (1992:107) e por Pateman (1992:35).
O outro autor que Sartori considera como indevidamente classificado como sendo defensor da participação política direta dos cidadãos é John Stuart Mill. O autor italiano afirma que este último, apesar de ter escrito favoravelmente à participação popular no exercício do Governo, estava aludindo apenas àquela parcela da população habilitada e instruída, chegando a defender até a negação do direito ao voto aos pobres que não pagassem impostos (Sartori, 1994:217)[13]. Sartori não considera, porque não é do seu interesse, tanto a parte da obra de Rousseau que preconiza a participação política direta dos cidadãos no exercício do poder Legislativo (Rousseau, 1995:99,144,145,147e148), a democracia direta, participativa, no que se refere ao desempenho deste poder, quanto a parte da obra de John Stuart Mill no qual este ressalta a importância da participação política do cidadão comum nos assuntos do Governo local[14], como pré-requisito e aprendizado para a participação política em nível nacional, e a relevância da participação no ambiente de trabalho, na indústria, de acordo com Pateman (1992, passim 49 e 50).
Sartori questiona os antielitistas também no que concerne à inconsistência e ausência de definição clara e inequívoca do conceito político central de sua teoria, que é exatamente o de participação política. Sobre o assunto, Sartori sustenta que “a teoria da democracia participativa repousa na “participação” como uma palavra que não é passível de fundamentação conceitual” (Sartori,1994:220). O autor acusa os membros desta vertente política de evitarem definir de forma clara e precisa a referida categoria. Sartori (Ibidem:218 e 219) destaca o fato de que a tese participativa não aborda a questão da dimensão da democracia, tratando, da mesma forma, sem estabelecer as devidas distinções, a questão da participação política tanto em colegiados de reduzidas dimensões (microdemocracias) quanto em grandes colegiados (macrodemocracias). Esta crítica de Sartori é procedente, na medida em que não se pode deixar de levar em consideração as diferenças entre coletividades de pequenas e grandes proporções. Ao tratar indiscriminadamente a questão da participação política em eleitorados amplos e diminutos, parece que os adeptos da democracia participativa estão querendo evitar a questão dos colossais custos internos que se verificariam em decorrência da adoção da democracia direta em um país com grande população, cuja conseqüência prática seria a inviabilização, no referido país, desta modalidade de democracia.
Outra fragilidade detectada por Sartori na teoria da democracia participativa é a omissão desta última em relação ao fato de que a politização generalizada e acentuada da sociedade conduziria à radicalização e à polarização (Sartori, 1994:222). Esta situação poderia ter como conseqüências o extremismo (Ibidem:222), em decorrência da exacerbação das preferências, e até a ruptura da ordem institucional democrática. A teoria antielitista não apresenta resposta a este questionamento dos adeptos da teoria competitiva da democracia. Sobre o assunto, o autor afirma que
“Ao tratar, no capítulo anterior, da democracia de referendo, deparamo-nos com a descoberta de que a participação se relaciona com a intensidade e a intensidade, por sua vez, com o extremismo. (...). Devemos, esperar, portanto, pelas contra-evidências participativistas, ou pelo menos por contra-argumentos relacionados à “intensidade”; mas só encontramos, sobre essa questão, o mais completo silêncio” (Ibidem:222).
Por fim, Sartori destaca uma última debilidade na teoria da democracia participativa, que é o não tratamento, por esta última, do fato de que a participação política pode ser considerada como sendo um bem público, sujeito a problemas de ação coletiva (Ibidem:206 e 223). Sobre o assunto, referindo-se ao argumento de Mancur Olson, em sua obra “A lógica da ação coletiva”, de 1965, Sartori afirma que
”os partidos e sindicatos fornecem a seus membros e seguidores em geral, bens coletivos (indivisíveis), isto é, benefícios que cabem a cada membro do grupo, seja ele ou não um participante, contribua ou não para suas conquistas. Portanto, o indivíduo “não tem incentivo para sacrificar voluntariamente seu tempo ou dinheiro para ajudar uma organização a obter um bem coletivo; sozinho, não pode ser decisivo para determinar se esse bem coletivo será ou não obtido, mas se é obtido pelo esforço dos outros, ele de qualquer forma estará inevitavelmente em condições de usufruí-lo”[15].(...). Nesse caso, a própria natureza dos benefícios coletivos indivisíveis justifica e motiva a apatia” (Sartori, 1994:206).
Desta maneira, o bem público, ou coletivo, é um tipo de bem cujo custo de exclusão é muito alto. Isto devido ao fato de ser quase impossível evitar que quem não contribuiu para a fabricação ou para a melhoria do bem público usufrua dos benefícios gerados pela sua fabricação ou melhoria. Esta situação gera incentivo para que o indivíduo não tome parte no processo de fabricação ou melhoria do bem público, na medida em que ele se beneficiará participando ou se omitindo. Os que participarem irão concorrer para que aquele que se omite aufira os benefícios. Um exemplo é o da greve. Se os trabalhadores filiados ao sindicato fizerem uma paralisação e obtiverem dos patrões um aumento salarial, aqueles que não participaram da greve terão sua renda aumentada mesmo não tendo tomado parte na paralisação das atividades da empresa. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao caso da participação política, no que se refere ao processo de deliberação coletiva, principalmente em grandes colegiados, nos quais a possibilidade do voto individual ser decisivo é irrisória. Isto porque um cidadão que não seja muito atuante pode raciocinar como o trabalhador que não participa da greve. Deste modo, este cidadão pode concluir que se seus pares decidirem algo que seja benéfico para a comunidade, ele receberá este benefício participando ou não da deliberação coletiva. Esta situação gera incentivos para a não participação, para a abstenção. Tem razão Sartori quando afirma que “a expansão dos bens públicos fundamenta a expectativa de que os incentivos à participação de massa estão diminuindo. Esse é certamente um problema que o participativista devia enfrentar. Mas não encontramos uma palavra sobre isso”(Ibidem:223).
6.7. A defesa da representação política:
Sartori argumenta que o instituto da representação política acarreta a ocorrência de um processo de tomada de decisões coletivas mais refletido e ponderado do que se o mesmo ocorresse em meio a uma assembléia popular da democracia direta. Isto porque, antes de as decisões públicas serem tomadas em caráter definitivo, elas têm que ser submetidas ao exame de várias instâncias institucionais, tais como o poder Executivo, o Parlamento e, eventualmente, até o poder Judiciário. Sobre o assunto, o autor sustenta que “um processo de tomada de decisões políticas constituído de múltiplos estágios e filtros, contém, exatamente em virtude ser indireto, precauções e restrições que a forma direta não tem” (Sartori, 1994a:39). É isto que o autor ressalta quando afirma, também, que “Uma multidão vai aprovar entusiasticamente uma proposta que sem dúvida rejeitaria caso fosse apresentada às mesmas pessoas divididas em pequenos grupos” (Sartori, 1994:170). Desta maneira, uma assembléia em praça pública, na qual milhares de pessoas decidem coletivamente sob a pressão emocional do povo reunido, situação na qual os ânimos e as emoções se encontram exacerbados, não constitui, para o autor, o ambiente propício para tomar as deliberações coletivas. Estas últimas devem ser necessariamente precedidas de reflexão e debate racional, o que é incompatível com a prática da democracia direta, em sua opinião.
Sartori (1994, passim 289 a 298) analisa, também, o funcionamento do processo de tomada de decisões coletivas. O autor afirma que toda decisão coletiva implica a ocorrência de custos internos e riscos externos.Os primeiros são referentes ao próprio ato de decidir, e dizem respeito aos indivíduos que deliberam, envolvendo tempo e energia destas pessoas. Os últimos são relativos a quem irá sofrer as conseqüências das decisões coletivas a serem adotadas, os destinatários das decisões coletivas, e podem constituir prejuízos eventuais para estes destinatários. Sartori explica que os custos internos das decisões coletivas são diretamente proporcionais à quantidade de pessoas que participam da decisão. Deste modo, os referidos custos variam diretamente em relação ao tamanho do órgão decisório: quanto mais pessoas decidem, maiores são os custos procedimentais (Sartori, 1994:291). Por outro lado, quanto maior for o número de pessoas a participar efetivamente do aludido processo, menores serão os riscos externos, portanto, os mencionados riscos são inversamente proporcionais ao tamanho do órgão decisório (Ibidem:292). Estas relações são coerentes, na medida em que, se mais pessoas decidirem sobre as questões públicas, cada pessoa a mais participando do processo apresentará novas demandas a serem contempladas para votar a favor ou contra certa decisão, e, para atender a suas exigências, mais recursos terão que ser despendidos, gerando custos internos adicionais. Por outro lado, se a quantidade de pessoas decidindo aumenta, diminui o número de pessoas externas às decisões e a quantidade de destinatários é reduzida. Como conseqüência, os riscos externos também diminuem. A questão que agora merece a análise de Sartori é encontrar uma forma de compatibilizar estas duas variáveis (o montante de custos internos e procedimentais e os riscos externos) que se relacionam, de modo antagônico, com a variável dimensão do órgão decisório. A indagação que sintetiza a questão é a seguinte: Como encontrar a dimensão ótima para o órgão decisório de modo a proporcionar riscos externos os menores possíveis sem, contudo, aumentar excessivamente o número de pessoas que decidem as questões públicas, a ponto de inviabilizar o processo de tomada de decisões por terem se tornado proibitivos os custos internos? A resposta está na representação política que, ao propiciar uma diminuição substancial do universo dos representados para um grupo menor de representantes, possibilita uma contração relevante dos riscos externos sem elevar em demasia os custos internos (Ibidem:298). Em suma, a representação política viabiliza o processo político-democrático nos Estados que possuem expressiva população. Uma democracia direta na qual a totalidade dos cidadãos participasse ativamente das decisões coletivas geraria custos internos tão elevados que inviabilizariam o processo político-democrático em nível nacional. Os riscos externos a que alude Sartori são concernentes ao perigo de uma maioria ser oprimida por uma minoria (Sartori, 1994:298).
Sobre o conceito contemporâneo de representação política cabe esclarecer que, de acordo com Pitkin (1967), este não possui o significado que possuía para Hobbes e Locke no passado. De acordo com a autora, Hobbes sugeria que o “o representante é livre para fazer o que queira (pelo menos até onde disser respeito a seus constituintes)” (Pitkin, 1967:4). Para Locke, segundo a autora, o exercício da representação política não implicaria a “transparência dos atos do Governo aos governados ou sua responsividade às pretensões destes últimos”(Ibidem:129). Por outro lado, a autora afirma que a definição contemporânea de representação política implica que
“representar aqui significa agir no interesse dos representados, de um modo responsivo a eles. O representante deve agir de modo independente; sua ação deve envolver discernimento e julgamento, ele deve ser aquele que age. Os representados devem também ser considerados capazes de ação independente e julgamento, não sendo meramente passivos em relação aos representantes. E, apesar do potencial de conflito entre representantes e representados sobre o que deve ser feito, este conflito normalmente não acontece. O representante deve agir de tal modo que não haja conflito; se isto ocorrer, uma explicação é requerida. Ele não deve estar persistentemente em desacordo com as pretensões dos representados sem que exista uma justificativa apropriada para esta incompatibilidade entre seus interesses e as aspirações de seus eleitores” (Ibidem:209 e 210).
A autora enfatiza, ainda, que os representantes políticos devem ser “pessoas capazes de cuidar dos interesses de outras pessoas de maneira responsiva” (Ibidem:239). Desta forma, fica caracterizada a principal diferença, de acordo com Pitkin, entre as definições contemporânea e pretérita, de Hobbes e Locke, acerca da representação política. Esta diferença consiste no fato de que, na primeira, o representante deve ter independência para agir, mas seu comportamento terá que ser direcionado às aspirações de seus constituintes, que estarão, por sua vez, controlando e monitorando a conduta dos parlamentares, que poderão ser destituídos nos pleitos, caso os eleitores considerem que sua conduta foi inadequada, característica esta ausente da concepção pretérita. A responsividade da representação política ao eleitorado seria a característica distintiva entre as noções de Hobbes e de Locke e a contemporânea de representação política. Isto porque, na atualidade, o comportamento dos representantes políticos é influenciado pela avaliação que os constituintes fazem da conduta dos parlamentares, tendo em vista o poder que os primeiros possuem de destituir os últimos nas eleições. Entretanto, Pitkin (1967) adverte que o exercício da representação política não ocorre segundo um modelo ideal e racional, tendo em vista que nem sempre os representantes se comportam visando a atender às aspirações de seus eleitores e ao bem da nação (Pitkin, 1967:219). Os parlamentares podem vir a trair os que neles votaram e confiaram, defendendo interesses diversos daqueles de seus constituintes (Ibidem:222).
A democracia representativa, na visão de Sartori, proporciona a ocorrência de decisões coletivas cujos resultados são de soma positiva, ou seja, situações em que todos os atores institucionais podem ganhar (Sartori, 1994:299). Esta situação, segundo o autor, contrasta com a democracia direta, na sua modalidade democracia de referendo, na qual as decisões coletivas propiciam a ocorrência de resultados de soma zero, ou seja, a maioria vencedora tudo ganha, enquanto a minoria derrotada tudo perde. Esta situação é socialmente negativa, gerando um ressentimento social dos vencidos para com os vencedores, acarretando a radicalização e a polarização da sociedade em dois lados antagônicos, o ganhador e o derrotado, sem meio termo. Sobre o assunto, o autor sustenta que:
“O tipo de resultado deve ser reduzido à sua formulação mais abstrata, qual seja, se em geral é vantajoso numa modalidade de soma positiva, ou não vantajoso (para todos) numa modalidade de soma zero. (...). Diz-se que um jogo é de soma zero quando um jogador ganha exatamente o que outro perde. (...). Em qualquer dos casos, quando um jogo é de soma zero, a alternativa é simplesmente ganhar ou perder. Inversamente, diz-se que um jogo tem soma positiva quando todos os jogadores podem ganhar. Nesse caso, o problema é, em última instância, como dividir e repartir os ganhos. Na teoria dos jogos, os de soma positiva são explicados como jogos cooperativos e de negociação. (...). Com esse problema em mente, eu formularia a questão da seguinte forma: à medida que nos afastamos da “política como guerra” e nos aproximamos da “política como negociação”, é correto dizer que passamos, na mesma medida, de políticas de soma zero para políticas de soma positiva” (Sartori, 1994:299).
A “política como guerra” seria a praticada na democracia direta, associada à instabilidade das massas populares decidindo os assuntos coletivos na praça pública, como ocorria, no passado, na ágora ateniense ou nos comícios romanos. Esta prática seria responsável, segundo o autor, pela má reputação da democracia na teoria política clássica (Platão e Aristóteles)[16], política esta na qual a maioria tudo ganha e a minoria tudo perde. Por outro lado, a “política como negociação” seria a praticada na democracia representativa, caracterizada, pelo autor, como sendo aquela em que as decisões públicas são objeto de reflexão e ponderação por parte de representantes políticos especialmente designados para este fim (Sartori,1994a:39). Isto tem como conseqüência decisões públicas melhores do que as que são adotadas na democracia direta (Sartori, 1994:158). Além disto, na democracia representativa, ao contrário da participativa, direta, haveria a possibilidade da ocorrência de resultados de jogos de soma positiva, nos quais todos os atores institucionais poderiam sair ganhando (Ibidem:299).
Sartori advoga a representação política e critica a participação política direta da população quando enfatiza a incompetência cognitiva do cidadão comum para tomar as decisões coletivas apropriadas. O autor afirma que o eleitor comum, médio, sofre de incompetência cognitiva, que seria uma espécie de incapacidade para tomar decisões acertadas sobre assuntos públicos, dado que seu discernimento para temas desta natureza é limitado, devido ao fato de o universo político não ser aquele no qual ele está acostumado a atuar (Ibidem:151). Em relação a este último aspecto, Sartori considera que “O campo político não é a “esfera dos interesses reais” do cidadão comum” (Ibidem:151). Na opinião do autor, o cidadão comum, quando instado a decidir sobre assuntos públicos, se comportaria de modo inadequado devido ao fato de não entender o funcionamento da política. Assim Sartori aborda o assunto:
“Com respeito ao parâmetro cognitivo, Schumpeter apresentou o argumento muito relevante de que “o cidadão típico cai para um nível mais baixo de atividade mental assim que entra no campo político. Argumenta e analisa de uma forma que reconheceria imediatamente como infantil na esfera de seus interesses reais. Torna-se primitivo outra vez. Seu pensamento torna-se associativo e afetivo”[17]... Trata-se de um exagero? Provavelmente não, porque a redução da atividade mental é a regra sempre que saímos do território onde atuamos. A razão disso é óbvia, qual seja, que as questões que entendemos são aquelas com as quais temos experiência pessoal” (Sartori, 1994:151).
As palavras acima transcritas são de um elitismo excessivo, e podem ser facilmente contestadas com base nas próprias palavras do elitista: Se Sartori considera que “as questões que entendemos são aquelas com as quais temos experiência pessoal” (Ibidem:151), pode-se argumentar que, a partir do momento em que os cidadãos participassem mais intensamente das decisões sobre assuntos públicos, eles passariam a ter, em relação à política, experiência pessoal. Desta forma, como dedução lógica, apresentariam maior aptidão para decidir sobre questões coletivas e políticas. Seus adversários, teóricos da democracia participativa, poderiam utilizar suas próprias palavras para desestruturar seu argumento refratário à participação política dos cidadãos. Este discurso excessivamente elitista de Sartori retoma uma tradição antiga na teoria política, que considera o povo, o “vulgo”, a “plebe”, a “ralé”, incapaz de governar, da qual Platão e Aristóteles são integrantes (Bobbio, 2000:376). Para Sartori, portanto, o poder político não deve ser praticado diretamente pelos cidadãos, que seriam incompetentes para desempenhá-lo, mas por representantes políticos especialmente designados para esta finalidade.
Uma formulação mais apropriada desta questão da incompetência cognitiva é o conceito de “paradoxo tecnocrático”, de Germani(1985), assunto abordado por Bobbio (2000). Este último defende a representação política e considera o aludido paradoxo um óbice à adoção de práticas políticas caracterizadas pela participação popular direta nas democracias representativas contemporâneas (Bobbio, 2000:383). Isto porque, segundo o conceito de paradoxo tecnocrático, haveria uma incompatibilidade entre a exigência crescente de controle popular sobre as políticas públicas executadas pelo Estado, a denominada “democratização do Estado”, sobre a qual se sustenta o regime democrático, e a necessidade que toda a sociedade avançada tem de realizar deliberações coletivas que requerem conhecimentos técnicos cada vez mais sofisticados e especializados, inacessíveis ao povo (Ibidem:383). Desta forma, como se responderia à pergunta: De que maneira a população vai tomar as decisões coletivas apropriadas se não possui os conhecimentos necessários sobre os assuntos acerca dos quais vai decidir? Ao que se pode responder que a sociedade pode consultar especialistas, de dentro e de fora da burocracia pública, para desta última não se tornar refém, debater com eles e, com isso, se informar a respeito dos assuntos sobre os quais vai deliberar. Posteriormente, após reunir, no processo de consulta, as informações necessárias e de fazer um processo de reflexão coletiva, aí sim, poderia decidir corretamente.
6.8. A defesa da participação política:
Pateman (1992), para estabelecer uma contraposição à teoria contemporânea da democracia, caracteriza a teoria da democracia participativa como aquela alicerçada na afirmação central de que os indivíduos e suas instituições não podem ser considerados isoladamente, sendo a existência de instituições representativas em nível nacional insuficiente para a materialização da democracia (Pateman, 1992:46). A participação política intensa das pessoas requer que sua socialização ou “treinamento” para a política ocorra em outras esferas além da esfera política, e antes de os indivíduos iniciarem suas militâncias políticas. Isto para que as atitudes e qualidades psicológicas, requeridas pela participação política ativa, sejam desenvolvidas, o que será conseqüência do próprio processo participativo (Pateman, 1992, passim 60-62). Desta maneira, pode-se enunciar uma das proposições centrais da teoria participativa da democracia: os diferentes tipos de estrutura de autoridade existentes nas instituições políticas, sociais, comunitárias e associativas, nas quais os indivíduos estão inseridos e atuam, estimulam ou não a formação do desenvolvimento das qualidades psicológicas que farão com que o cidadão seja politicamente ativo ou apático (Ibidem:72). Portanto, o grau de abertura das mencionadas instituições à participação dos indivíduos é um fator relevante para que a participação política em nível mais abrangente, nacional, seja mais ou menos expressiva (Ibidem:72). Este postulado da teoria da democracia participativa constitui o seu cerne, e o conjunto de qualidades psicológicas anteriormente aludido constitui o conceito crucial de senso de eficácia política (Ibidem:67). Por meio deste último, os adeptos da democracia participativa tentam refutar o argumento elitista de que um aprofundamento da participação política dos cidadãos gera instabilidade no sistema democrático, resultando, daí, o efeito benéfico, para os elitistas, da apatia e do desinteresse político como salvaguarda da democracia (Ibidem:16 e 139). As proposições da teoria participativa da democracia são, neste aspecto, antagônicas às da teoria elitista, posto que esta última ressalta a importância do desinteresse político para o apropriado funcionamento da democracia, ao passo que a primeira enfatiza a relevância e os benefícios da participação e mobilização políticas generalizadas por parte dos cidadãos em relação às questões coletivas (Ibidem:139). Para os adeptos da teoria participativa da democracia, tal participação ampliada na esfera nacional, desde que exercida por cidadãos politicamente educados por um processo participativo precedente, ocorrido nos níveis hierárquicos inferiores da política (local e regional) e na esfera não governamental, comunitária, e no ambiente de trabalho, não representaria de forma alguma um risco para a estabilidade do sistema democrático (Pateman, 1992:139). Deste modo, conforme afirma Pateman, a teoria competitiva tem como preocupação básica de sua reflexão política a garantia e manutenção do exercício do poder político por uma elite minoritária, eleita pelos cidadãos em eleições competitivas e multipartidárias, enquanto a teoria participativa pretende incorporar, ao processo político, o cidadão apático e desinteressado, preconizando um aprofundamento da democracia (Pateman, 1992:138 e 139). A cidadania passiva, apática, preconizada pelos elitistas se enquadra bem na seguinte passagem de John Stuart Mill, que, citado por Pateman, afirma que ““Um ato político que apenas se repete com o intervalo de alguns anos, e para o qual não teve o preparo nos hábitos cotidianos do cidadão, deixa seu intelecto e suas disposições morais inalteradas”[18]” (Ibidem:46). Desta forma, os teóricos da democracia participativa argumentam que uma participação política que se circunscreva ao ato de votar elegendo representantes políticos periodicamente é insuficiente para o desenvolvimento do conjunto de requisitos pessoais para o exercício ativo e apropriado da cidadania política em nível nacional, ou seja, para desenvolver o senso de eficácia política do indivíduo.
Desta maneira, os participacionistas alegam que a participação ativa no governo local e em organizações comunitárias e não governamentais, bem como no ambiente de trabalho (indústria), favorecem o desenvolvimento, no indivíduo, do senso de eficácia política, capacitando-o e estimulado-o a participar politicamente, de modo ativo, em nível nacional (Ibidem:72). A autora enfatiza acentuadamente que o fato de o ambiente de trabalho ser mais ou menos propenso à participação dos cidadãos trabalhadores é essencial e determinante no desenvolvimento do senso de eficácia política dos indivíduos (Ibidem:75). O citado senso será crucial para a participação política ativa do cidadão em nível nacional ou para a sua apatia política (Ibidem:75). Deste modo, se a estrutura de autoridade no local de trabalho do indivíduo estimular sua participação e sua capacidade de iniciativa para decidir sobre assuntos relativos à sua própria atividade, este indivíduo tende a ser politicamente ativo. Caso contrário, se a estrutura de autoridade de seu ambiente de trabalho o obrigue a obedecer a ordens de modo passivo, a tendência é a de que este indivíduo seja politicamente apático. Isto devido ao fato de que, no primeiro caso, o indivíduo teve estímulo para desenvolver seu senso de eficácia política, o que não ocorre na segunda situação (Pateman, 1992, passim 70-72). A autora cita exemplos empíricos concretos de experiências de democratização da estrutura de poder de ambientes de trabalho industriais que apresentaram resultados compatíveis com os argumentos antes apresentados (Ibidem, passim 72-75).
O senso de eficácia política, além de abranger o conjunto de qualidades psicológicas requeridas pelo processo político participativo, também é definido por Pateman como sendo a percepção, pelo indivíduo, de que sua ação política tem, ou pode ter, um impacto sobre o processo de deliberação coletiva do qual participa, seja na comunidade, no trabalho ou na política (Ibidem:66). É a suposição de que a ação individual pode influenciar as decisões da coletividade. Desta forma, pode-se descrever o círculo virtuoso da teoria da democracia participativa da seguinte maneira: a democratização das estruturas de autoridade das instituições do governo local e da esfera não governamental (associações comunitárias, grupos de defesa de minorias entre outros), o que significa que, nestas organizações, os indivíduos passariam a ter parcela efetiva do poder decisório, geraria um ambiente estimulante para a participação. Este fato, por sua vez, suscitaria a formação de um senso de eficácia política nos indivíduos, no sentido de que estes, além de adquirirem experiência administrativa na resolução de questões coletivas, exercitariam suas capacidades de iniciativa, negociação e diálogo. Assim, seria desenvolvido o conjunto de qualidades psicológicas individuais requeridas à participação política ativa dos cidadãos em nível nacional, o senso de eficácia política (Ibidem:72), que seria uma decorrência da participação dos mesmos nas esferas anteriormente citadas. Deste modo, a participação na política local e na esfera não governamental, principalmente no ambiente de trabalho, mais especificamente na indústria, seria indutora da participação política em nível nacional, o que é uma das teses básicas dos adeptos da teoria democrática participativa (Pateman, 1992:72,75 e 76).
A autora (Ibidem, passim 60-61) reitera que a principal função da participação política na teoria democrática participativa é educativa, no sentido de habilitar o indivíduo ao exercício da democracia em nível nacional. Devido à democratização das estruturas de autoridade das instituições nas esferas do governo local, não governamental e do ambiente de trabalho, os indivíduos, antes de iniciar sua militância política, passariam por um processo de aprendizado militando ativamente nestas esferas. Como conseqüência desta participação, desenvolveriam o senso de eficiência política necessário para participar ativamente da política em nível nacional (Ibidem:72 e 76). Assim, Pateman considera que a existência efetiva de uma sociedade participativa está condicionada à democratização das estruturas de autoridade, geralmente hierárquicas e verticais, das instituições sociais (Ibidem:65), de modo a que estas últimas concedam efetivo poder decisório a seus membros. Como decorrência, haverá o incremento da participação dos cidadãos na política em nível nacional (Ibidem:72 e 76).
Com referência a outras divergências entre as teorias competitiva e participativa da democracia, Pateman aponta a diferença quanto à definição de governo democrático. Para os elitistas, este último teria como característica crucial a existência dos líderes em competição escolhidos e destituídos pela população governada nos pleitos pluripartidários competitivos e periódicos (Ibidem:140). Por outro lado, para os adeptos da teoria participativa, o elemento central para a existência de um governo democrático seria o fato de o sistema político oferecer aos cidadãos a oportunidade efetiva de participar diretamente das decisões públicas (Ibidem:140). Outra distinção destacada pela autora é a referente ao fato de que os teóricos participativos consideram que o conceito do termo política deve ser ampliado para além do governo representativo nacional, de modo a contemplar também a esfera não governamental, ponto de vista não partilhado pelos elitistas (Pateman, 1992:140 e 141).
Apesar de fazer a defesa ostensiva da teoria da democracia participativa, Pateman (Ibidem:63) reconhece a existência de uma eventual inviabilidade, até mesmo uma impossibilidade, de materialização, de concretização, do ideal da democracia direta. A autora o faz quando afirma que “não fica claro até que ponto o paradigma da participação direta pode se repetir em condições onde a representação está se tornando amplamente necessária” (Ibidem:63). A autora está se referindo ao problema das dimensões dos atuais Estados nacionais, o que dificulta sobremaneira a implantação da democracia direta, fator destacado por Sartori. A consolidação da representação política como mecanismo de exercício do poder político também é reconhecida como óbice para a experiência da democracia participativa, mas o efeito educativo gerado pelo processo participativo pode melhorar as condições do cidadão para fiscalizar de modo mais eficaz os próprios mecanismos institucionais da democracia representativa (Ibidem:146).
6.9. O presente e o futuro da democracia:
Antes de abordar o futuro, Bobbio (1987) tece considerações sobre o presente da democracia. Para ele, está em curso, na época contemporânea, um processo de democratização da sociedade. Este último se caracteriza pela extensão dos mecanismos institucionais democráticos para instâncias que estão além da esfera política, como, por exemplo, a família, a escola, as relações de consumo, entre outras, que têm como traço comum a estrutura hierárquica de autoridade. Sobre o assunto, o autor afirma que
“O que acontece agora é que o processo de democratização, (...) está se estendendo da esfera das relações políticas, das relações nas quais o indivíduo é considerado em seu papel de cidadão, para a esfera das relações sociais, onde o indivíduo é considerado na variedade de seus status e de seus papéis específicos, por exemplo, de pai e de filho, de cônjuge, de empresário e de trabalhador, (...), de produtor e de consumidor” (Bobbio, 1987:54).
Desta maneira, após os sistemas políticos dos países ocidentais, dos quais o italiano é exemplo e objeto de análise do autor, terem, em termos políticos, chegado ao limite da democratização, na opinião de Bobbio, depois da adoção do sufrágio universal, com a extensão do direito de voto às mulheres e a permissão para votar concedida aos maiores de dezoito anos, passou-se de uma etapa de democratização do Estado para outra de democratização da sociedade. Em decorrência, ocorreu a democratização de instâncias extrapolíticas, tais como a família, a escola, etc (Ibidem, passim 56-60). Entretanto, o autor adverte que duas instâncias sociais ainda permanecem intocadas em termos de democratização: a grande empresa capitalista e a administração pública (Ibidem:57). Bobbio afirma que o processo de democratização da sociedade não será completo se as instituições anteriormente referidas não forem a ele submetidas (Ibidem:57). O autor, nesta obra, se manifesta cético em relação à concretização integral da democratização da sociedade, mas considera esta uma meta desejável (Ibidem:57).
Em relação ao futuro, Bobbio (2000) considera que uma das principais ameaças à democracia interna dos países é aquela proveniente do setor das relações externas, das questões internacionais. Este setor é aquele no qual as decisões políticas são excluídas, de forma mais acentuada, do debate público, sendo a política externa dos diferentes Estados quase nunca objeto da livre escolha das populações governadas (Bobbio, 2000:384). Outra característica que torna problemático este setor para a questão da democracia é a sua opacidade, sua falta de transparência. Neste setor operam os serviços secretos que, muitas vezes, não são alcançados nem pelo controle parlamentar e menos ainda pela opinião pública (Ibidem:384). Como conseqüência do escasso controle social sobre a política externa, pode advir um risco para o futuro da democracia nos países nos quais ela é adotada. Além do aspecto referente à relação da política para o setor externo de determinado país com a sua democracia interna, o autor também destaca outra questão central, que é a relação entre os diferentes países democráticos e o espaço internacional organizado de forma não democrática e extremamente assimétrica em termos de poder. Para Bobbio, o fato de a comunidade internacional ser organizada de modo não democrático e existirem nela países com regimes autocráticos, constitui um perigo para o futuro da democracia no mundo (Bobbio, 2000:384). Esta é uma das questões centrais da reflexão política contemporânea de Bobbio. Ele discorre sobre a falta de democracia na ordem internacional analisando a organização não democrática da Organização das Nações Unidas. Nesta, a instituição de um poder comum acima das partes contratantes não obteve êxito. Onde há concórdia, como na Assembléia Geral, na qual todos os Estados têm o mesmo direito de voto, não há poder. Onde haveria poder, no Conselho de Segurança, não há acordo, devido à existência de direito de veto (Ibidem:386). Com isto, não há garantia de que uma política de não agressão seja praticada internacionalmente e a obediência às decisões da ONU seja respeitada. Em suma, para o autor, a principal ameaça à democracia em qualquer país reside no fato de que um Estado atualmente democrático está inserido numa comunidade internacional que, em seu todo, é não democrática, ou seja, contém países autocráticos, além dela própria estar estruturada em bases extremamente assimétricas e não democráticas (Ibidem:386). As soluções propostas por Bobbio para viabilizar o futuro da democracia são a ampliação da esfera dos Estados democráticos e a democratização do sistema internacional de relações de força entre os países. Estes dois processos são, em sua opinião, interdependentes, e se reforçam mutuamente (Ibidem:386). O autor, propondo sua solução para viabilizar o futuro da democracia, a sintetiza recorrendo ao projeto de paz perpétua de Kant. Por este projeto, a ordem internacional seria pacífica somente se todos os Estados integrantes da referida ordem possuíssem a mesma forma de Governo, que seria a “República”, na qual, para um país decidir ir à guerra, seria necessária a acedência dos cidadãos (Ibidem:386). Desta maneira, o controle das políticas externas dos países democráticos por suas populações governadas é o fator que pode evitar a desintegração das democracias nestes países no futuro. Bobbio transfere para a população governada a responsabilidade pela viabilização do futuro da democracia, o que é contraditório em relação às críticas duras que faz à democracia direta, participativa, e à defesa que realiza da democracia indireta, representativa[19]. O que o faz proceder assim? Sendo o povo incapaz de administrar ele próprio os outros setores da vida e da administração públicas, por que confiar a ele a decisão de fazer ou não a guerra? Tendo em vista a proposta de Bobbio, a guerra do Iraque teria sido evitada? Muito provavelmente não, tendo em vista a vitória do Partido Republicano nas últimas eleições legislativas nos Estados Unidos.
6.10. Convergências e Divergências entre os três autores
Depreende-se da análise destes três autores relevantes da teoria política contemporânea que discorrem sobre a questão democrática, uma convergência relativa entre Sartori e Bobbio, e uma dissonância de Pateman principalmente em relação a Sartori. Me refiro à convergência entre os dois autores italianos como sendo relativa devido ao fato de, na abordagem de Sartori acerca da democracia, serem quase inexistentes as referências à relevante relação entre o setor das relações internacionais, externas, e a questão democrática interna dos países, tema central na análise de Bobbio. Os dois concordam quanto às diferenças descritiva e valorativa existentes entre as democracias representativa e participativa, mas Bobbio enfatiza a necessidade de a população governada exercer a soberania sobre as políticas de relações exteriores de seus países, controlando-as plenamente. Isto porque, para este autor, é neste setor da política que se encontra o risco mais significativo para o futuro das democracias internas dos países, principalmente devido à opacidade deste setor, no qual agem, também, os diversos serviços secretos dos diferentes países, o que contribui ainda mais para acentuar a aludida opacidade (Bobbio, 2000:384). A falta de transparência das políticas externas, sob a égide das quais atuam os serviços secretos dos países, se constitui num obstáculo para o controle social destas políticas, bem como uma ameaça ao futuro da democracia, na opinião de Bobbio. Sartori, por outro lado, não se refere a esta questão e chega a criticar o excesso de transparência das democracias representativas (Sartori, 1994:326). Seu ponto de vista chega a ser antagônico ao de Bobbio quando afirma que
“Tudo considerado, quando “mais visibilidade” é apresentada, como tem sido, como uma panacéia universal, talvez crie mais problemas que os que resolve. À medida que a visibilidade impede o comportamento responsável, instiga a venda da imagem e a demagogia, intensifica conflitos, leva à paralisia decisória ou, na política internacional, leva à derrota, nessa mesma medida os riscos externos são melhor prevenidos por outros meios e formas de controle”(Sartori, 1994:326).
Neste aspecto, Sartori e Bobbio divergem radicalmente. Para o segundo, a transparência em todos os setores da política, principalmente no setor externo, é um princípio basilar da democracia, e é por intermédio dela que a população governada pode exercer o controle social sobre as políticas públicas, coibindo eventuais abusos dos governantes. Sartori, em contradição com um dos fundamentos da teoria democrática à qual diz pertencer, que é o grau elevado de controle do eleitorado sobre suas lideranças, uma das bases da poliarquia de Robert Dahl, defende a opacidade da política externa, advoga o não controle público e democrático do setor cuja falta de transparência é apontada por Bobbio como sendo um dos mais importantes perigos ao futuro da democracia. Neste assunto, Sartori está muito defasado em relação a seu compatriota.
Outro ponto importante é a questão da formulação do paradoxo tecnocrático como obstáculo à adoção da democracia direta. Sartori se refere a este assunto de forma pouco rigorosa, concordando com o argumento da incompetência cognitiva de Schumpeter sem reflexão, conforme fica claro quando este autor afirma que o cidadão comum é ignorante em relação aos assuntos públicos e não reconhece a própria incapacidade a respeito destes temas (Sartori, 1994:151). Bobbio, ao contrário, formula esta questão, baseando-se no conceito de paradoxo tecnocrático de Germani, de forma articulada, definindo-a como um obstáculo à adoção da democracia direta, pelo fato de as decisões públicas serem cada vez mais baseadas em conhecimentos técnicos e especializados, aos quais o cidadão comum não tem acesso, sendo portadores destes conhecimentos os tecnocratas e os cientistas (Bobbio, 2000:383). Como então a população decidiria sobre questões em relação às quais não possui os conhecimentos especializados requeridos? Como compatibilizar a necessidade de controle democrático das ações do Estado pela população com a exigência de conhecimentos técnicos cada vez mais sofisticados? A consulta a especialistas sobre o assunto, e a reflexão coletiva e conjunta pelas comunidades sobre estas questões pode ser uma saída, mas este é um tema extremamente relevante para a reflexão dos teóricos da democracia participativa.
Quanto a Pateman, sua divergência é mais acentuada com Sartori e com os outros expoentes da teoria competitiva da democracia (Dahl, Schumpeter, Berelson), principalmente no que se refere ao conceito de participação política. A autora americana repele a noção de participação política dos elitistas como sendo um mero mecanismo de proteção do indivíduo contra uma eventual opressão por parte do Estado (Pateman, 1992:25). A autora considera que a participação política é uma forma de o indivíduo exercer sua liberdade, estabelecendo ele próprio as regras que terá que cumprir (Ibidem:39 e 40). Também diverge radicalmente das seguintes proposições elitistas: que o nível de participação política direta da população nas decisões públicas deve se manter baixo, para que não haja instabilidade no sistema político; que a apatia política é benéfica, porque suaviza a intensidade dos conflitos inerentes à prática democrática; e que um aprofundamento da participação popular na política, e a conseqüente incorporação de setores desfavorecidos da sociedade ao processo político, serão nocivos e perturbadores para o sistema democrático, causando instabilidade política neste último (Ibidem: 20 e 139). Isto porque é nestes setores mais pobres que ocorre, segundo Dahl (1989:90), a maior incidência de “personalidades autoritárias”. A autora responde a todas estas proposições elitistas afirmando que, uma vez democratizadas as estruturas de autoridade das instituições do governo local, do ambiente de trabalho e das instituições não governamentais, os cidadãos participariam diretamente das decisões coletivas nestas instâncias. Assim, adquiririam o conhecimento administrativo necessário, bem como exercitariam as capacidades de iniciativa, negociação e diálogo. Com isso, se educariam politicamente (Pateman, 1992:139). Deste modo, seria formado o senso de eficácia política destes cidadãos (Ibidem:139). Este fato os capacitaria e estimularia a participar responsavelmente das decisões políticas em nível nacional e, conforme afirma Pateman, a participação de cidadãos politicamente educados não constituiria nenhuma ameaça à estabilidade política da democracia (Ibidem:138 e 139). Isto porque, devido ao processo de educação política ao qual se submeteram, estes cidadãos não atentariam contra o processo político participativo do qual seriam os protagonistas. Por esta argumentação, mesmo os cidadãos integrantes das camadas subalternas da sociedade, que geralmente estão empregados em setores nos quais restringem-se a cumprir ordens e não têm oportunidade de exercitar suas capacidades de iniciativa e decisão, cidadãos estes que a autora reconhece serem “mais agressivos e severos” (Ibidem:71), iriam ser submetidos ao processo educativo suscitado pela participação. Este processo educativo seria decorrente da democratização das estruturas de mando das instituições políticas e sociais (Ibidem:65). Com isto, a incorporação destes cidadãos ao processo político e democrático não acarretaria nenhum risco para a democracia, posto que, devido ao processo de educação política a que foram submetidos, não atentariam contra o sistema fundado em sua participação. Deste modo, a aludida incorporação se constituiria não numa ameaça, mas num aprofundamento do processo democrático.
7. Considerações finais:
John Locke e Jean Jacques Rousseau são pensadores vitais da teoria política, tendo estabelecido os fundamentos do pensamento político sobre as democracias representativa e participativa, respectivamente. Tanto um quanto o outro repelem a autoridade paterna como fundamento do poder político (Locke, 1994, passim 69-75 e Rousseau, 1995, passim 70-72), assim como o absolutismo monárquico como alternativa legítima de organização política da sociedade (Locke, 1973, passim 44-45 e 74-75 e Rousseau, 1995, passim 73-77). Esta rejeição tanto da autoridade paterna quanto da monarquia absoluta é realizada pela necessidade de viabilização das propostas políticas dos dois autores. Para tanto, ambos transferem a base da legitimidade do poder político da autoridade paterna para o consentimento individual (Locke, 1973:77 e Rousseau, 1995:159). Mediante este último, os indivíduos concordarão em estabelecer as normas que regerão a vida coletiva mediante a celebração de uma convenção, que será o pacto social, cuja conseqüência será a instituição do estado civil. Ambos assinalam que o referido estado amparará e regulamentará o direito à propriedade privada (Locke, 1973:40 e 88 e Rousseau, 1995, passim 82-86). Quanto ao funcionamento dos poderes do estado civil, os modelos políticos dos dois autores são de supremacia do poder Legislativo (Locke, 1973:99 e Rousseau, 1995:115) e de subordinação do poder Executivo ao Legislativo (Locke, 1973:100 e Rousseau, 1995:146). Entretanto, Locke e Rousseau apresentam propostas diversas sobre como o poder Legislativo do estado civil deve ser desempenhado.
A proposta de Locke caracteriza-se pelo fato de a população jurisdicionada eleger representantes para o exercício do poder político, que consiste, para o autor inglês, no direito de elaborar leis para amparo e regulamentação do direito à propriedade privada (Locke, 1973:40). Desta forma, Locke preconiza que o poder Legislativo da comunidade política e do estado civil seja estruturado sob a forma de uma democracia indireta, representativa (Ibidem:92,96,101,124,125). Cabe salientar que a democracia lockeana seria restrita aos proprietários de terra, na medida em que somente estes últimos seriam considerados portadores dos direitos políticos de cidadania (Vieira, 1997:41).
Já a proposta de Rousseau advoga que o poder Legislativo seja praticado diretamente pelos cidadãos, sem intermediários. O autor suíço repele a representação política, por considerar que a soberania, que é o exercício da vontade geral (Rousseau, 1995:87), cuja declaração é a lei (Ibidem:149), não pode ser alienada a representantes ou deputados (Ibidem, passim 147-150). Devido a isto, Rousseau preconiza que os próprios cidadãos estabeleçam as condições que irão regulamentar a associação civil. Assim, o povo em pessoa sancionará as leis que regularão o pacto social, desempenhando diretamente o poder Legislativo. Fica, desta maneira, configurada a democracia participativa quanto ao exercício do poder soberano no pensamento político de Rousseau (Ibidem:99,144,145,148).
Analisando-se os autores políticos modernos e contemporâneos estudados, pode-se concluir que representação e participação políticas não são conceitos excludentes entre si, nem totalmente antagônicos, podendo ser considerados complementares. Entre os referidos autores, somente Sartori (1994) é radicalmente refratário a qualquer tipo de iniciativa que acarrete participação direta dos cidadãos na política. Locke preconiza a adoção da democracia representativa como forma de Governo da comunidade política (Locke, 1973:92,96,101,124,125). Entretanto, admite que, em caso de o Legislativo exorbitar de seus poderes, a própria população exerça o poder Legislativo (Ibidem:137). Rousseau, por seu turno, estabelece a democracia direta como modalidade de desempenho do poder Legislativo (Rousseau, 1995:99,145,147,148). Contudo, considera necessária a existência de representação política no que tange ao exercício do poder Executivo, ao afirmar que “Se a lei nada mais é do que a declaração da vontade geral, fica claro que o povo não pode ser representado no poder Legislativo, mas pode e deve sê-lo no poder executivo” (Ibidem:149).
Entre os autores contemporâneos, com a já consignada exceção de Sartori, há também convergência quanto ao fato de que representação e participação podem ser consideradas complementares entre si, e não antagônicas. Pateman (1992) destaca que a participação ativa do cidadão na esfera não governamental (comunitária, associativa e no ambiente de trabalho) e na esfera política local e nacional, ao educar, em termos cívicos, o referido cidadão, o torna apto a exercer de modo mais eficaz o controle e o monitoramento dos mecanismos institucionais da própria democracia representativa. A respeito deste assunto, e referindo-se ao cidadão comum, a autora afirma que “a existência de uma sociedade participativa significa que ele estaria mais capacitado a intervir no desempenho dos representantes a nível nacional, (...), e estaria mais apto para avaliar o impacto das decisões tomadas pelos representantes nacionais sobre sua própria vida e sobre o meio que o cerca” (Pateman, 1992:146). Bobbio (1987) também faz referência ao fato de que representação e participação políticas são complementares e não opostas ao afirmar que “Parto de uma constatação sobre a qual podemos estar todos de acordo: a exigência tão freqüente nos últimos anos, de maior democracia exprime-se como exigência de que a democracia representativa seja ladeada (...) pela democracia direta” (Bobbio, 1987:41). O mesmo autor preconiza, também, que as duas modalidades de democracia são complementares e não totalmente antagônicas, ao considerar que a instituição de mecanismos de participação política direta dos cidadãos, sem, contudo, suprimir a estrutura institucional das democracias representativas, é uma aspiração legítima, que contribuirá para o aperfeiçoamento do processo democrático, desde que não acarrete a adoção do tipo puro de democracia direta. A este respeito, Bobbio afirma que “Creio assim ter indicado, (...), a estrada capaz de conduzir ao alargamento da democracia sem desembocar necessariamente na democracia direta. Pessoalmente, estou convencido de que a estrada é justa, embora repleta de perigos” (Ibidem:64). Desta maneira, pode-se depreender que uma alternativa que pode ser adotada para tentar restaurar nos indivíduos o interesse pelas questões públicas e coletivas seja a adoção de instrumentos de participação política direta dos cidadãos no contexto institucional da democracia representativa, sem que o citado arcabouço institucional seja subvertido. Poderia ser um sistema no qual, em questões controvertidas e de relevante interesse para a sociedade e para a vida dos cidadãos, estes últimos decidissem diretamente as referidas questões, sem que isto implicasse a desestruturação dos mecanismos institucionais de representação política das democracias indiretas. Estes instrumentos de participação política direta dos cidadãos seriam, principalmente, os plebiscitos e os referendos. Estes mecanismos seriam adotados para resolução de questões polêmicas tais como o aborto, a eutanásia e outras desta natureza. Talvez esta seja uma das possíveis soluções apropriadas para tentar resolver o problema da apatia e do desinteresse do cidadão comum em relação à política. Esta solução não desestruturaria o arcabouço institucional da democracia representativa e, simultaneamente, poderia vir a despertar, nos cidadãos, a mobilização para os assuntos de natureza pública, configurando, desta maneira, o que Duverger denomina de “democracia semidireta” (Duverger, 1959:227), uma solução intermediária entre a democracia representativa e a participativa.
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[1] - Rousseau (1995:148).
[2] Uma comprovação do desinteresse do eleitorado pela política e pelas eleições foi a alta taxa de abstenção, “inéditos 28%” do total de eleitores aptos a exercer o direito de voto, verificada no primeiro turno da última eleição presidencial francesa, realizada no primeiro semestre de 2002, o que configura um significativo incremento em relação à taxa de abstenção ocorrida na mesma eleição em 1995, que foi de 21,6% (Editorial do jornal “O Estado de São Paulo”, “Quem foi derrotado na França”, publicado em 23/4/2002, anexo 1 desta dissertação). A conseqüência desta elevada taxa de abstenção foi a habilitação do extremista de direita Le Pen para o segundo turno, e a eliminação do socialista Jospin, então primeiro ministro.
[3]-Outro exemplo concreto deste desinteresse foi a elevada taxa de abstenção no primeiro turno das eleições legislativas na França, país com uma democracia já consolidada, realizadas em junho de 2002, “recorde histórico de abstenção em todos os pleitos legislativos da França nas suas cinco repúblicas – 36%-, comprovando que a ausência de motivação do eleitorado permanece” (notícia “Na França, direita vence eleição de abstenção recorde”, publicada em “O Estado de São Paulo”, em 10/6/2002, ver anexo 2 ).
[4] - Estes trechos de Kendall, citados por Monson (in Armstrong e Martin, 1968:187) constam, segundo este último, da obra “John Locke e a doutrina da regra da maioria”, publicada pela Universidade de Illinois, 1941, nas páginas 66,105,112 e 113.
[5] - Cabe esclarecer que o estado de natureza de Rousseau é equivalente ao de Hobbes somente em seu último estágio, imediatamente antes da realização do “pacto dos ricos”.
[6] - De acordo com Vieira (1997) era “um direito de todo nobre polonês, garantido constitucionalmente, de paralisar, por meio de um veto, qualquer decisão da autoridade pública que não fosse de seu agrado” (Vieira, 1997:106).
[7] -“a “tirania do maior número” se inclui, hoje, geralmente, entre os males contra os quais a sociedade se deve resguardar. Como outras tiranias, a tirania do maior número (...) é encarada com terror, principalmente quando opera por intermédio dos atos das autoridades públicas. (...). A sociedade pode executar e executa os próprios mandatos; e, se ela expede mandatos errôneos ao invés de certos, ou mandatos relativos a coisas nas quais não deve intrometer-se, pratica uma tirania social mais terrível que muitas formas de opressão política” (Mill, 1991:48).
[8]- Esta informação sobre o julgamento desfavorável dos referidos teóricos políticos clássicos em relação à democracia como forma de Governo consta de Bobbio (2000:375).
[9] Os dois primeiros autores foram escolhidos em função de serem aqueles cujas abordagens sobre a questão democrática são estudadas na disciplina Teoria Política Contemporânea do Mestrado em Ciência Política da Universidade de Brasília. O último foi selecionado em virtude de sua relevância como intérprete da teoria política. Os itens sobre as diferenças entre as democracias representativa e participativa e o referente à defesa da representação política serão baseados em Sartori e Bobbio. Os relativos à teoria competitiva da democracia e à crítica à teoria participativa da democracia serão baseados em Sartori. Aqueles concernentes à teoria participativa da democracia, crítica à teoria competitiva e defesa da participação política, serão baseados em Pateman. O item sobre o presente e o futuro da democracia será baseado em Bobbio.
[10] - Silva (2000) afirma que a “democracia semidireta combina (...) instituições de participação direta com instituições de participação indireta” (Silva, 2000:51).
[11] - Segundo Silva (2000), o referendo popular “se caracteriza no fato de que projetos de lei ou propostas de emendas constitucionais aprovados pelo Legislativo devam ser submetidos à votação popular, (...), de sorte que o projeto ou proposta se terá por aprovado apenas se receber aprovação popular, do contrário reputar-se-á rejeitado” (Silva, 2000:51). O plebiscito seria equivalente ao referendo, com a diferença que, neste caso, os projetos de lei ou propostas de emendas constitucionais são submetidos à apreciação do eleitorado antes mesmo de serem aprovados pelo Legislativo. Caso sejam rejeitados pelos eleitores, nem os projetos nem as propostas entram em vigor.
[12] Segundo Sartori (1994:38), esta citação consta da página 73 da obra de Dahl intitulada “Modern political analysis”, publicada pela editora Prentice –Hall, de Nova Jersey, em 1963.
[13] - “É importante, também, que a assembléia que vota os impostos, tanto gerais quanto locais, deve ser eleita exclusivamente pelos que pagam os referidos impostos” (Mill, 1980:90).
[14] - “Por mais que a autoridade central possa ser superior à autoridade local (...), o grande objetivo sobre o qual tanto já insistimos, ou seja, a educação social e política dos cidadãos, exige nesses assuntos a plena soberania deles” (Ibidem:156). Atribuindo aos próprios cidadãos o poder soberano em relação aos temas locais, Mill reitera a relevância da participação política direta dos cidadãos na gestão dos aludidos temas.
[15] - De acordo com Sartori (1994:240), este trecho encontra-se na página 134 do livro “The logic of collective action: public goods and the theory of groups”, publicado em 1965 pela Harvard University Press, de Cambridge, Massachussets.
[16] - De acordo com Sartori (1994 a:38 e 53).
[17] - “O cidadão típico, por conseguinte, desce para um nível inferior de rendimento mental logo que entra no campo político. Argumente e analisa de uma maneira que ele mesmo imediatamente reconheceria como infantil na sua esfera de interesses reais. Torna-se primitivo novamente. O seu pensamento assume o caráter puramente associativo e afetivo” (Schumpeter, 1961:318).
[18]- De acordo com Pateman (1992:46) este trecho encontra-se na página 229 da obra “An Essay on Government”, de John Stuart Mill, publicada em 1937 pela Cambridge University Press.
[19] - “Exatamente porque a democracia sempre foi concebida unicamente como governo direto do povo e não mediante representantes do povo, o juízo predominante sobre essa forma de governo foi, a começar pela Antigüidade, negativo” (Bobbio, 2000:375).
Publicado por: Carlos Frederico R. P. de Alverga
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