Cosmogonia, Mitos e Ritos - A Reestruturação Social Marúbo pós-período da borracha

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1. Resumo

SERTORIO, Gustavo Baron. COSMOGONIA, MITOS E RITOS: A reestruturação social Marúbo pós-período da Borracha. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, graduação em bacharel pelo curso de História, Campinas, 2017.

Este trabalho enfoca na reestruturação social do povo Marúbo pós-período da borracha, quando houve uma fragmentação dos membros dessa etnia. Através da síntese de dados colhidos por diversos autores, o embasamento realizado aqui veio a permitir a elaboração de uma discussão bibliográfica acerca dos Marúbo no que diz respeito aos mitos e aos ritos, bem como também as disputas políticas que levaram à fragmentação social e como o imaginário comum foi capaz de auxiliar em sua reestruturação.

Palavras-chave: Marúbo; reestruturação; fragmentação; borracha; mitos; imaginário coletivo

Abstract

SERTORIO, Gustavo Baron. COSMOGONIA, MITOS E RITOS: A reestruturação social Marúbo pós-período da Borracha. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, graduação em bacharel pelo curso de História, Campinas, 2017

This work focuses on the social restructuring of the Marúbo people after the rubber period, when there was a fragmentation of the members of the ethnic group. Through the introduction of texts collected by several authors, the basis here is for the elaboration of a bibliographical discussion about Marúbo with respect to myths and rites, as well as political disputes that led to social fragmentation and as the common imaginary and able to aid in its restructuring.

Descriptors: Marúbo; restructuring; fragmentation; rubber; myths; collective imaginary

2. Introdução

Este trabalho tem como proposta realizar uma discussão bibliográfica relacionada à reestruturação social Marúbo pós o período da borracha, utilizando como base textual, essencialmente os trabalhos de campo de Julio Cezar Melatti e Delvair Montagner, Pedro Cesarino, Elena Welper, entre outros. Além desses autores principais, foram utilizados autores secundários como fonte referencial ou base argumentativa, como é o caso de Claude Lévi-Strauss, Karen Armstrong, Javier Ruedas e Philippe Erikson.

O trabalho irá debater como o povo Marúbo foi capaz de se reagrupar utilizando como premissa as ideias cosmológicas e míticas empregadas na figura político-religiosa de João Tuxaua. Para isso, o trabalho apresentará elementos progressivos para melhor entendimento, dando a premissa ao leitor acerca do tema capítulo por capítulo. No primeiro capítulo, poderá compreender-se o universo cosmológico e cosmogônico. Serão abordados nesta primeira etapa os mitos que descrevem o gênesis da cultura dos Marúbo, Wenía, e o da origem dos não índios, Shoma Wetsa. Em continuidade, serão retratadas as camadas celestes e terrestres que incorporam a cosmologia desse povo. Seguindo, serão apresentados os três tipos de espíritos que funcionam como representativos benevolentes; malevolentes e neutros que são empregados no cotidiano, sobretudo à figura do pajé que serão abordados no encerramento desta primeira parte. No segundo capítulo, será tratada a organização espacial Marúbo e serão retomados princípios acerca da exploração da borracha e da madeira na região do Javari. Por fim, serão retratados as inúmeras cisões e conflitos que fizeram com que esse povo por muito tempo não pudesse ser reunido como um só, vindo a mudar somente com o pajé João Tuxaua, que com sua “fala boa”, conseguiu estabelecer uma reforma social e assim, pode unir todas as seções, fazendo com que pudessem ser vistos como um povo único, os Marúbo.

O termo “Marúbo”, ao qual se referem a esse povo, não é uma autoatribuição, embora a aceitem. É importante salientar que não existe uma denominação própria com que eles se tratem. Segundo o Relatório de campo inicial de Melatti e Montagner (1975), até aquele estudo de campo, consideravam diversos grupos indígenas sob essa denominação. Como explicam:

O nome Marubo é um tanto impreciso, pois vários grupos indígenas da região, alguns ainda em processo de atração, são denominados por esse termo. Além disso, Marubo não é o nome que os índios aplicam a si mesmos, mas é um nome que os civilizados lhes atribuem. O problema se resolveria facilmente se o grupo que estudamos tivesse um nome que aplicasse a si mesmo; mas esse nome não existe. Existe o termo yora, mas com ele não denominam apenas a seu grupo, mas a todos os indígenas; a ele contrapõem o termo nawa, com que chamam os civilizados. Por conseguinte, neste relatório aplicaremos o termo Marubo somente aos índios das cabeceiras do Ituí e do Curuçá, excluindo todos os demais que por acaso até aqui tenham sido chamados por esse termo, uma vez que esses índios não reconhecem a outros como incluídos no seu grupo. Portanto, logo que chegamos à região, tivemos de corrigir a nossa ideia inicial de Marubo, que envolvia índios de uma área bem maior. Isso reduziu bastante o âmbito geográfico de nossa pesquisa, pois pensávamos que teríamos de percorrer um extenso território, que na verdade é ocupado por grupos que não se reconhecem como formando uma unidade e, alguns deles, ainda em processo de pacificação, o que não permite, por enquanto, a pesquisa. (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 4)

Elena Welper (2009) confirma o “Relatório sobre os índios Marúbo”, como o ponto inicial, no qual se passa a delimitar o povo Marúbo dos demais:

O nome “marubo” (Herndon, 1854) bem como suas aparentes variantes _ Moruas (Acuna, 1641: 25), Marovas (Castelnau, 1851: 40), Marobas (Raimondi, 1862 apud Steward & Metraux, 1948: 552), Marugos (Cunha Gomes, 1897 apud Pessoa, 1985), Maropas, Marubas, Marobos, Marahuas (Tessman, 1930: 582) — não correspondem a qualquer autodenominação do grupo, tendo sido, até meados da década de 70 do século passado, um termo genérico aplicado por regionais e funcionários da FUNAI a diferentes grupos de índios “arredios” da bacia do Javari. Foi somente após o Relatório sobre os Índios Marubo (Melatti & Montagner, 1975), que constatou a ausência de relação entre todos os índios assim denominados, que o nome passou a definir de modo exclusivo a população residente nas cabeceiras dos rios Ituí e Curuçá, precisamente a que havia sido objeto de estudo dos autores do mencionado relatório. (WELPER, 2009, p. 23)

Os pesquisadores utilizam no relatório a mesma grafia das cartilhas utilizadas pela Missão Novas Tribos do Brasil1 e seguirei a mesma grafia, além de deixar claro que o povo indígena ao qual estou chamando de “Marúbo” neste trabalho, é o mesmo ao qual os pesquisadores estudaram.

Esse Relatório foi o ponto chave em muitos aspectos, e esse foi um dos motivos principais pela escolha dele como fonte principal desta minha pesquisa bibliográfica. A maioria de dados e informações são provenientes ou derivados dele.

O motivo do Relatório, segundo eles, foi à falta de informações referentes, além da urgência de relatórios consistentes acerca dos povos dessa região, tendo em vista que estava para ser iniciada a construção da Rodovia Perimetral, que liga a cidade de Benjamin Constant a cidade de Cruzeiro do Sul, no Acre. Além disso, a Petrobrás iniciava pesquisas na região visando a extração de linhito2 ou busca por petróleo, o que levaria a necessidade de uma nova mão de obra, fornecendo novas formas de relação de trabalho, diferentes das conhecidas (e exploradas) na época do ciclo da borracha e da madeira.

A escolha dos pesquisadores em específico sobre os “Marúbo” se deu pelo fato de provavelmente, a época, manterem boa parte de seus costumes intactos e preservados, considerando que o contato com os brancos civilizados era extremamente recente, o que ao longo da pesquisa foi comprovado exatamente o contrário, esse povo já mantinha relações (inclusive comerciais) com povos dos Andes. Outro fator foi o fato de já terem tido o contato e estarem aptos a receberem antropólogos para pesquisa. Julio Cezar Melatti trabalhava para a Universidade de Brasília e a Delvair Montagner Melatti para a FUNAI.

No meu caso, a escolha se deu primariamente por questão de preferência e gosto por estudos indígenas. Os encaixes na ideia inicial de pesquisa e a facilidade na análise, também foram ponto chave para a escolha em específico desse povo e dessa região.

O conceito de mito utilizado aqui é o apresentado por Karen Armstrong (2005), em que, ela estabelece cinco aspectos do mito baseada em túmulos de Neandertais:

Primeiro, ele se baseia sempre na experiência da morte e no medo da extinção. Segundo, os ossos de animais indicam que o sepultamento foi acompanhado de um sacrifício. A mitologia em geral é inseparável do ritual. Muitos mitos não fazem sentido separado de uma representação litúrgica que lhes dá vida, sendo incompreensíveis num cenário profano. Terceiro, o mito de Neandertal foi invocado ao lado de um túmulo, no limite da vida humana... O mito trata do desconhecido; fala a respeito de algo para o que inicialmente não temos palavras. Portanto, o mito contempla o âmago de um imenso silêncio. Quarto, o mito não é uma história que nos contam por contar. Ele nos mostra como devemos nos comportar... Entendida corretamente, a mitologia nos põe na atitude espiritual ou psicológica correta para a ação adequada, neste mundo ou no outro. (ARMSTRONG, 2005, pp. 9-10)

A partir dessa premissa, é possível entender que a mitologia trata de outros planos (majoritariamente divino), que, de certa maneira, ampara os indivíduos, auxiliando-os a lidarem com as dificuldades humanas mais inerentes. Para a autora:

Os mitos dão forma e aparência explícita a uma realidade que as pessoas sentem intuitivamente. Eles contam como os deuses se comportam, não por mera curiosidade ou porque os contos são interessantes, mas sim para permitir que homens e mulheres imitem esses seres poderosos e experimentem, eles mesmos a divindade. (ARMSTRONG, 2005, p. 10)

A mitologia não tenta primariamente construir relatos históricos, embora muitos com o passar do tempo acabem se misturando às narrativas históricas. A mitologia em si, é cercada por hipóteses, que são animados através de rituais. Os rituais são a conexão inata da construção da ideia de um mito com a sua realização prática.

Os mitos servem essencialmente de “guias” para que possamos viver de um modo completo a partir de suas orientações, caso contrário o mito fracassa. Se não o executarmos e vivenciarmos o mito, ele se torna incompreensível e sem sentido (ARMSTRONG, 2005).

É certo que à medida que o tempo passa, a sociedade muda e os conceitos mudam, existe uma necessidade real de contar as histórias de outro modo, para dessa forma, evidenciar sua verdade intemporal. E assim, os mitos atuam suprindo cada lacuna atemporal da História (ARMSTRONG, 2005). Para os Marúbo, a questão mitológica é refletida em sua vida cotidiana, desde os nomes das seções até a proibição ou liberação para comer determinada fruta. Toda mitologia Marúbo se reflete na questão estrutural e organizacional, uma vez que leva os indivíduos a cumprirem regras sociais e morais impostas, estabelecendo uma estabilidade na estrutura social.

3. Sobre os Marúbo

Os Marúbo encontram-se no alto curso dos rios Curuçá e Ituí, afluentes do Rio Javari, localizados na Terra Indígena do Vale do Javari, extremo oeste do estado do Amazonas. Além dos Marúbo, nessa região encontram-se povos indígenas de outras etnias como: os Matís, Matsés, Mayás, Korubos, Kanamaris, Kulína Pano e outros. O etnólogo Philippe Erikson (1992), fundamentado pelas semelhanças linguísticas e culturais do povo Marúbo com os Katukina-Pâno, Rêmo e Poyanáwa (Brasil) e os Kapanáwas (Peru), considerados o conjunto linguístico como “o ramo central da família Pâno” (MELATTI, 1998).

Estima-se que exista uma população superior a 4.400 indivíduos de diferentes etnias vivendo no Vale do Javari, segundo dados demográficos do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) (2013) disponibilizado pelo site “terrasindigenas.org.br”. No que diz respeito à população Marúbo, em 2014, contava com cerca de 2.000 indivíduos segundo a Siasi/Sesai (MELATTi, 1998).

Desde o primeiro contato com os caucheiros3 e seringueiros, por volta do final do século XIX, os Marúbo se encontram geograficamente no mesmo local. Porém, sabe-se, que alguns indivíduos se encontravam estabelecidos no Rio Batã, afluente do Rio Jaquirana4. Provavelmente, esses indivíduos estavam empregados por seringalistas. Com a criação de postos da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) no médio Curuçá e no médio Ituí, destinado ao atendimento e assistência aos Matís, a população Marúbo acabou atraída para uma localização mais abaixo (MELATTI, 1998). A Figura 1 mostra a área onde se localiza o Vale do Javari:

Figura 1- Em laranja a área correspondente à localidade das Terras Indígena do Vale do Javari.

Fonte: GOOGLE, 2017

Sobre a distribuição espacial dos povos habitantes do Vale do Javari é possível notar na Figura 2 sua distribuição por etnia:

Figura 2. Distribuição espacial das etnias pano nas terras Indígenas do Vale do Javari.

Fonte: ERIKSSON, 1992, p. 242.

Acerca do crescimento demográfico é possível estabelecer por meio de dados colhidos por Julio Cezar Mellati e Delvair Montagner, em 1977, com dados de outros etnógrafos, um quadro comparativo. Dá para se notar o crescimento da população Marúbo a partir do fim da segunda metade do século XX.

A Tabela 1 foi mimetizada e adaptada a partir de dados do antropólogo Walter Coutinho Jr. por Julio Cezar Melatti (1998). Essa tabela organiza os grupos locais em quatro setores com certa espacialidade temporal entre eles. No discorrer deste trabalho, será tratada a organização social Marúbo mais a fundo, possibilitando o cruzamento de dados de levantamentos feitos a partir das pesquisas de campo de 1975 e 1977, realizadas por Julio Cezar Melatti e Delvair Montagner, tais dados serão apresentados de modo mais detalhado, classificando e enumerando a população por seções e gênero.

Tabela 1 - Crescimento demográfico Marúbo no final da segunda metade do século XX.

Rios

Setores

Anos

 

 

1975

1978

1980

1985

1995

1998

Rio Ituí

a) Foz do Rio Novo de Cima

-

21

26

65

114

88

b) Acima foz do Paraguaçu

227

253

254

289

344

380

Rio Curuçá

c) Entre fozes Pardo e Arrojo

91

66

53

86

133

182

d) Igarapé Maronal

141

110

116

149

204

231

 

OUTROS

10

12

-

5

23

37

TOTAL

 

397

462

460

594

818

918

Fonte: MELATTI, 1998.

O Rio Ituí (a) refere-se a uma proximidade de um posto da FUNAI, construído para assistência aos Matís; ainda no Rio Ituí (b), refere-se à confluência com o rio Paraguaçu, indo até as cabeceiras, incluindo a concentração de malocas da sede missionária Vida Nova. Já no rio Curuçá (c), acima da foz do rio Pardo, onde se localizava uma concentração de grupos locais que eram conhecidos como São Sebastião, abaixo da foz do rio Arrojo. No igarapé Maronal5, afluente do alto Curuçá, refere-se ao ano de 1998, com base em dados de Javier Ruedas. No ano de 2000, os Marúbo contavam com uma população com cerca de 1.040 indivíduos. (MELATTI, 1998).

Para melhor compreender os dados cartográficos expostos, a Figura 3 mostra os principais rios que cortam o Vale do Javari:

Figura 3 - Rios que cortam o Vale do Javari.

Fonte: AMAZONIA.ORG

4. O período da borracha

O período da borracha delimitou um verdadeiro divisor de águas para o povo Marúbo, considerando que foi a época em que o contato se fez mais forte, também foi quando foram inseridos no sistema de exploração da borracha, passando a consumir e depender de produtos industrializados. Com o declínio do preço da borracha e o isolamento causado pelo êxodo dos civilizados6, a fragmentação foi intensificada, fazendo com que alguns indivíduos Marúbo fossem obrigados a migrar para outros rios ou afluentes.

De acordo com o relatório de campo de Melatti e Montagner (1975), a ocupação efetiva da bacia do Javari na parte brasileira, teve início em meados do século XIX. No ano de 1874, existem relatos de uma migração para essa região a fim de explorar a borracha e o caucho7.

A respeito da ocupação da área, Melatti e Montagner dizem:

Em 1874 há notícia de migração para o Javari com o objetivo de explorar as seringueiras. Em 1899 o Javari já estava bem povoado até a confluência com o Itacoaí; a navegação era efetuada com regularidade até essa confluência, onde estava o povoado Remate de Males; no tempo das cheias os vapores subiam até o Curuçá; daí para cima o Javari só era navegado por lanchas até a confluência com o Galvez (afluente da margem peruana). No mesmo ano se calculava que a população do Javari acima da confluência do Galvez (quando passa a ter o nome de Jaquirana), do Batã e de grande parte do Ipixuna (afluente do Juruá) e seus afluentes era superior a cinco mil pessoas, todas de origem peruana, sendo que os patrões e os agentes das casas fornecedoras de Iquitos falavam o espanhol e os trabalhadores, indígenas, falavam o quíchua. O Itacoaí era então habitado por cerca de 1.500 cearenses e peruanos, que extraíam o caucho e a seringa. Esses dados se baseiam no bom resumo de Branco (1950, pp. 204-207). Portanto, o povoamento da parte brasileira da bacia do Javari se realizou motivado pela procura da seringa e do caucho. E esse povoamento não foi efetuado exclusivamente por brasileiros, mas também por peruanos, civilizados ou indígenas. (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 6)

Através desse relato, pode-se afirmar que o povoamento da região da bacia do Javari, especificamente o lado brasileiro, ocorreu devido à exploração tanto do caucho quanto da seringa. Ao que tudo indica, os peruanos possuíam uma preferência quase exclusiva para o caucho, enquanto os brasileiros preferiam a exploração do látex da seringueira. Essa afirmação é comprovada pelos pesquisadores:

O alto Itacoaí também era ocupado por peruanos. No Curuçá havia peruanos e brasileiros. Portanto, os peruanos habitavam as áreas em que era mais frequente o caucho, isto é, as cabeceiras. Um informante civilizado também nos disse que outrora, nos altos rios, quase todo caucheiro era peruano; outro civilizado comentou que, enquanto o seringueiro brasileiro é sedentário, vivendo com sua mulher e filhos junto a sua "estrada", o peruano era, sobretudo, caucheiro e nômade. (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 7)

Com o povoamento da região pelos civilizados, veio à implantação do sistema de barracões, regatões8, patrões9 e sistema de aviamento. Tentarei explicar de modo breve e sucinto, uma vez que não é o foco central aqui, mas é importante a compreensão dos termos.

O “barracão” caracteriza-se como uma espécie de sede administrativa e comercial do seringal. O sistema de barracão, geralmente é baseado em um modo de pagamento através de mercadorias — na maioria das vezes é feito de modo abusivo, deixando os seringueiros endividados — em troca de serviços, nesse caso da Amazônia em específico, as trocas eram feitas por pélas10 de borracha. De modo simplificado, os seringueiros extraíam as pélas de borracha e trocavam (só poderia haver a troca com o barracão) por produtos industrializados. Os Marúbo nessa época também passaram a extrair o látex e o caucho e participar desse sistema de barracão.

Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Muller (2008) discorrem a respeito desse sistema:

A disposição desta mão de obra não só resolveu o problema de sua escassez relativa – pois ela era até então quase inexistente na área amazônica – como reforçou a tendência ao estabelecimento de relações de trabalho compulsório. Estas tanto se baseavam na utilização da única força de trabalho disponível na área – as populações indígenas – que passaram a ser “compulsoriamente aliciadas para a produção da borracha e para os trabalhos ligados à navegação fluvial”, como na coação que foi exercida sobre a população nordestina para que ela se ajustasse ao trabalho no seringal, onde o “barracão” e os capangas reiteravam ao trabalhador sua sina. (CARDOSO & MULLER, 2008, p. 18)

Utilizando do exemplo ocorrido no Rio Solimões, Cardoso e Muller citam baseados no trabalho de Oliveira (1973), a dependência dos indígenas ao entrar nesse sistema de barracões, fato muito similar ao ocorrido com os indígenas do Javari, como poderá ser observado no decorrer deste meu trabalho.

Não se deve esquecer a incorporação dos indígenas à atividade coletora. Por exemplo, “os Tucuna foram engajados na economia da coleta do látex desde o momento em que os seringalistas se apropriaram de suas terras, em princípios do século. Os que habitavam os igarapés afluentes do rio Solimões – e que continuam a ser hoje a maioria – passaram automaticamente à condição de ‘servos’ de gleba dominados pelo ‘regime de barracão’, a saber, pelo escambo compulsório”. (CARDOSO & MULLER, 2008, p. 20)

Os “regatões” são uma espécie de comerciantes fluviais que mantém seu comércio nos rios e vendem seus produtos a um preço menor ao ofertado pelos barracões dos patrões.

Os “patrões” eram os donos dos seringais. Eram os responsáveis pelo fornecimento de materiais para a extração do látex e muitas vezes, inclusive, era quem fornecia as passagens para que o seringueiro fosse trabalhar para ele. Esse endividamento prévio fazia com que os seringueiros ficassem dependentes do patrão. Em sua ausência, quem assumia era o “gerente”.

Todo esse sistema de barracões, regatões e patrões formam o sistema de aviamento. Esse sistema, nada mais é do que uma rede de fornecimento de mercadorias a crédito, com o objetivo principal de exportar a borracha. O comerciante adianta bens de consumo e instrumentos que auxiliam na extração da borracha ou na agricultura, e o pagamento é realizado através de pélas de borracha ou produtos agrícolas (ARAMBURU, 1994).

Euclides da Cunha em sua obra “À Margem da História” (1999) trata dessas relações, como pode ser visto nesse trecho:

Desde o momento que deixava sua comunidade, começava a dever ao patrão. Devia a passagem do navio até o Pará e o dinheiro que recebia para se preparar para a viagem. E daí sua dívida aumentava constantemente. (CUNHA, 1999 apub DA SILVA; DA COSTA SILVA, [200?]).

Cardoso e Muller definem bem toda a relação nesse sistema:

A primeira característica é o chamado “sistema de aviamento”, que se desenvolveu na Amazônia. A atividade econômica extrativo-predatória no interior das matas; a distância entre as seringueiras, o que exigia longas caminhadas; as condições impostas pelo proprietário, não permitindo roçado (geralmente, mandioca); a necessidade de mão de obra para aumentar a produção; o pagamento obrigatório dos trabalhadores aos patrões do custo da viagem do nordeste à Amazônia, dos instrumentos de trabalho, das provisões, enfim, o regime de trabalho e o padrão de vida dos seringueiros baseavam-se no endividamento prévio e posterior, isto é, no endividamento reiterado, o que colocou o trabalhador nas mãos do proprietário comerciante. Por sua vez, este dependia dos fornecimentos e da compra das bolas de borracha feitas por um comerciante maior. Formava-se, assim, uma cadeia que atingia as grandes casas exportadoras de Manaus e Belém. Este esquema de funcionamento da economia é que se denomina aviamento. Em outras palavras, o fornecimento de mercadorias (instrumentos de trabalho e bens de consumo) a crédito e o bombeamento da borracha para Manaus, mas, principalmente, para Belém, e daí para o mercado internacional, geraram uma rede complexa e extensa de canais através dos quais respirava a economia. (CARDOSO & MULLER, 2008, p. 22).

A Figura 4 mostra um exemplo de como esse sistema atua.

Figura 4 - Exemplo de esquema de aviamento.

Fonte: (LOREN, 2014)

O auge da borracha durou 41 anos (1870-1911), até chegar a seu período de estagnação (1911-1945), em que houve uma derrocada no preço da borracha, levando os civilizados a lentamente abandonarem a região, fazendo com que os Marúbo, até então já incorporados ao sistema de exploração da borracha, do caucho e posteriormente da madeira ficassem isolados. Nesse período, desponta uma desorganização em sua distribuição espacial, uma vez que pelo menos parte dos Marúbo provavelmente atuavam como fregueses dos patrões seringalistas ou dos “regatões”. Ainda nesse período, estima-se que boa parte dos Marúbo por contato com os civilizados adquiriram muitas doenças e vieram a óbito, reduzindo seu número gradativamente, o que seria uma das prováveis causas da fragmentação social desse período, entretanto, os Marúbos consideram essa fragmentação como fruto de guerras intertribais e disputas políticas.

Acerca da gripe, Melatti e Montagner descrevem um relato sobre indígenas Rêmo, no Javari e como a gripe os fizeram migrar, dando uma noção de como pode também ter afetado a população Marúbo da região:

Iniciaremos pelo Javari. Raimundo Luzeiro, nascido em 1910, nos contou que seu pai (Raimundo de Souza Luzeiro) comprou, de um peruano, por volta de 1902, um seringal na foz do Batã, afluente do alto Javari. Seu pai criava um índio Remo, apanhado pelos peruanos. O índio se retirou para viver entre os de seu grupo e, anos depois, apareceu com oitenta deles, com a intenção de viver junto ao seringal. A gripe de 1921 quase acabou com eles, que ficaram reduzidos a uns trinta. A irmã de Raimundo Luzeiro contou que a gripe se deu em 1918 e que morriam de 3 a 4 índios por dia. Diz que eram índios muito pacíficos e que do Batã se mudaram para o Peru; afirmou que eram em número de trezentos. Referiu-se a alguns de seus costumes, como a cremação dos cadáveres e a mistura de suas cinzas com mingau de milho, a destruição dos objetos, roças e animais domésticos do falecido, a grande casa redonda com duas portas, o uso do trocano, a posse de muitos algodoeiros, os vários furos nos lábios e pelo menos um no nariz, o uso do pilão em forma de canalete, a bebida de pupunha e a de macaxeira, o uso de rãs como alimento, as bolas de milho, o peixe assado em embrulhos de folhas, a conservação de grandes beijus dentro do chão. Essa senhora nos citou uns poucos vocábulos Remo, muito semelhantes aos Marubo. (MELATTI & MONTAGNER, 1975, pp. 10-11)

No mesmo relato demonstram como a crise da borracha fez com que muitas famílias migrassem:

Os Remo extraíam o látex do caucho e vendiam ao pai dela. Entre eles havia 4 ou 5 mulheres bem claras e de olhos azuis e que, dizia-se, eram filhas de peruanos. Depois da retirada dos Remo, o pai dos informantes recebeu três índios Marubo (do grupo que visitamos), que vieram do Curuçá, com suas famílias; um civilizado, que morava perto, e era aviado de seu pai, também protegia uma famí1ia Marubo. Em 1929, a família dos informantes abandonou o Batã, descendo o Jaquirana até onde passa a receber o nome de Javari, isto é, no local onde hoje está a guarnição brasileira de Palmeiras. Disse-nos Raimundo Luzeiro que saíram por causa do ataque de índios, mas pouco depois afirmou que seu pai estava devendo a seu próprio gerente, o espanhol José Larrinaga, 29 mil cruzeiros e, como não tinha como pagar, pois, a borracha não dava, entregou-lhe o barracão como pagamento. Em outras palavras, a família se retirou na verdade por causa da crise da borracha. (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 11)

Em meio ao auge do período da borracha, o Vale do Rio Javari, bem como alguns rios próximos, passou a receber migrantes oriundos do Rio Jari, antigo ponto central da extração da borracha no Baixo Amazonas, o que veio a caracterizar uma efetiva ocupação pelos não índios (que serão tratados aqui como “civilizados”) no interior da área do Javari.

Passado o período de estagnação da borracha, possivelmente as populações indígenas ainda presentes tiveram a oportunidade de se reestruturar socialmente, principalmente no período em que se deu a alta da exploração da madeira na região, no ano de 1945.

Ainda hoje, a principal fonte de renda dos Marúbo advém da extração de látex e exploração da madeira. Segundo Melatti e Montagner (1975), existia uma autonomia dos Marúbo com relação à exploração da madeira, uma vez que os próprios vendiam a madeira para um comprador que por sua vez revendia, basicamente houve uma herança do sistema de aviamento do período da borracha com.

O período de exploração na Amazônia, sobretudo do látex, alavancou a economia das grandes cidades da região, especialmente a capital Manaus. Existia uma espécie de triangulo comercial, no qual Manaus estava no centro. Toda a goma de borracha era enviada à Manaus e de lá era exportada. Nesse período, o Brasil detinha o monopólio até o momento em que foram enviadas sementes de seringueira para a Europa, mais precisamente para a Inglaterra e de lá passando a ser cultivada na Malásia. Com isso, o preço despencou e ouve a crise da borracha. O comércio de madeira do Javari se dava mais regionalmente. O fato é que esse período foi de suma importância para a economia de toda região Norte.

5. Considerações finais

A sociedade Marúbo se constituiu por volta de meados do século XIX, nas cabeceiras dos já citados rios Curuçá e Ituí, a partir de remanescentes de povos da raiz linguística Pano. Esses remanescentes são resquícios de conflitos internos dos grupos e, paulatinamente da exploração do látex e do caucho na região.

Esses remanescentes agruparam-se, tendo como influência a figura do xamã/pajé e líder político, João Tuxaua. No entre séculos do XIX e XX, Tuxaua veio a reunir os povos dispersos, tendo como principal argumento a perspectiva de parentesco e o xamanismo. Pedro Cesarino (2008) acerca disso diz:

Faz com que as pessoas deixem de guerrear entre si e as estimula a adorar um modus vivendi baseado no trabalho em grandes roçados, na elaboração de grandes festivais (saiki) e no aprendizado de um vasto conhecimento xamanístico. Os nomes provenientes de antigos grupos tribais transformam-se então em segmentos de uma nova morfologia social, tais como Povo-Azulão (Shanenawavo), Povo-Sol (Varinawavo), Povo-Jaguar (Inonawavo), Povo-Japó (Rovonawavo), Povo-Arara (Shawãnawavo), entre outros. É assim que o sistema social acaba guardando de maneira particular os vestígios da diversidade anterior. Tal diversidade se faz notável, por exemplo, no papel central em que a oratória e a diplomacia possuem na vida social, bem como nas próprias comparações com os brancos: “somos como vocês, que se dividem em portugueses, brasileiros, peruanos, americanos...” (CESARINO, 2008, p. 135).

Sob esse princípio, é possível estabelecer a ideia de que houve diversas fragmentações sociais ao longo do tempo, mas que a mais agravante, provavelmente, se deu com os conflitos internos e na virada do século, por meio da exploração econômica na região. É fato também que João Tuxaua foi a peça central do reagrupamento, ou de como chamo aqui “reestruturação social”, uma vez que possuía forte influência política entre os grupos, além de atuar como xamã, uma das figuras mais importantes na sociedade Marúbo, se não a mais importante.

A sociedade Marúbo é complexa, desde sua mitologia até sua organização social, e o intuito neste trabalho é tentar demonstrar por meio de diversos pesquisadores como a figura de um xamã, aliada à mitologia, cosmogonia e imaginário comum cotidiano, auxiliou na reestruturação social desse povo.

5.1. Cosmogonia: A mitologia e o imaginário Marúbo

A Cosmogonia na mitologia grega remete à “origem do Caos” em sentido literal e não literal, uma vez que para os gregos, no início da criação existia somente o Caos, o vazio primordial. Depois surge Gaia (Terra) como a moradia dos Deuses no Olimpo, Tártaro11 e Eros (amor/desejo). Do Caos surge Érebo (escuridão profunda/ trevas) e Nyx (noite). Nyx, fecundada por Érebo, dá a luz a Hemera (dia) e a Éter (ar). Depois, Gaia gera a Urano (céu), e se relacionam, dessa relação provêm basicamente todas as criaturas (deuses, titãs e homens). (PERRONE, 2008).

A cosmogonia na mitologia Babilônica conta que no princípio existiam Abzu e Tiamat, representando os elementos referentes ao feminino e ao masculino da água (doce e salgada), da origem ao universo e a Terra. Tiamat originou o céu, de onde surgiu Ea (magia), que por sua vez deu origem a Marduk (protetor da Babilônia). De acordo com a mitologia, Marduk venceu todos os outros deuses, inclusive Tiamat, partindo seu corpo em duas partes separando assim, o Céu da Terra e originando o primeiro homem através do sangue do próprio Tiamat (PERRONE, 2008).

O que essas — e outras mitologias cosmogônicas — têm em comum? Todas buscam responder questões primordiais que sempre permearam o imaginário da humanidade.

O significado de “cosmogonia”, segundo o dicionário Michaelis, é de: “Conjunto de teorias, princípios ou doutrinas, com base científica, religiosa ou meramente mítica, que procura explicar e descrever a origem e a formação do Universo” (MICHAELIS, 2017).

A partir dessa premissa, podemos estabelecer o mito como uma narrativa que visa, sobretudo, narrar às origens de tudo: homem, fogo, água, animais, universo, sol, lua, etc. O mito utiliza de elementos sobrenaturais para conseguir construir uma explicação acerca dessas questões.

No caso Marúbo, isto se encaixa perfeitamente, uma vez que existe uma correlação ritualística também no que se refere à procura por essas respostas. Nesse caso especifico, existe uma busca no sobrenatural para encontrá-las. A importância do conhecimento ritualístico e mitológico se mostra de suma importância, principalmente na jornada que a alma fará após a morte.

O povo Marúbo explica o surgimento de sua cultura, costumes e seções por meio do mito de Wenía12, dispondo de três versões desse mito. Julio Cezar Melatti (1986) diz:

O mito de Wenía conta como surgiram os homens e como os Marúbo aprenderam, ao longo de sua marcha, importantes itens de sua cultura: os nomes pessoais e a maneira de transmiti-los, a aplicação dos termos de parentesco, a prática do parto, a proibição do incesto, o modo correto de chorar, a comestibilidade da pupunha, a “injeção de sapo”, a origem das plantas, a maneira de cultivá-las, a utilização dos cães. Não há consenso quanto à ordem de ocorrência desses episódios míticos, mas se pode tentar uma ordenação geral aproximativa através da comparação das versões disponíveis. (MELATTI, 1986, p. 3)

As três versões desse mito convergem para o nascimento do povo Marúbo. Ao que tudo indica, segundo o pesquisador, o termo “Wenía” possui o significado de “nascer”. O mito retrata a caminhada dos Marúbo ao longo de um grande rio, com o baixo curso sendo conhecido como “Noa”, nome que hoje os Marúbo chamam os rios Solimões e Juruá. Segundo o pesquisador, “o termo Noa Tae (pé) Ri (talvez indicador de direção), que, na tradução do cântico de cura Kais Kawã, foi explicado como o lugar onde o sol nasce, parece assinalar que esse rio tem um ponto final, um pé, quiçá uma foz” (MELATTI, 1986).

Outra versão sugere que o lugar no qual os Marúbo surgiram seria em um “pé do céu”, no Oceano Atlântico, chamado de Nai (céu) Tae Ri, o que sugere uma forte influência geográfica dos civilizados, adaptando-as às suas crenças míticas. Tanto Noa Tae Ri quanto Nai Tae Ri, referem-se a uma mesma direção, enquanto Noa Tae e Nai Tae, provavelmente correspondem a um mesmo lugar, sendo a borda mais oriental do horizonte. O mito diz que a grande caminhada foi realizada de jusante13 para montante14, o que leva a indagação de que talvez o início da caminhada tenha sido localizado fundamentado no curso dos maiores rios da região, que geralmente tomam a direção de oeste para leste (MELATTI, 1975).

Melatti (2001a), em seu artigo referente às suas aulas, descreve de modo sucinto, porém muito completo sobre o mito, pegando os principais (e mútuos) aspectos das três versões. Cada versão possui suas particularidades, mas aqui não se faz necessário demonstra-las, uma vez que o foco não é o mito propriamente dito, mas a importância do mesmo para explicar o surgimento da cultura, entre outras coisas. Caso o leitor sinta-se interessado em aprofundar-se no tema, deixo na nota de rodapé 12 a referência. Em anexo A, encontra-se uma versão resumida do mito feito por Julio Cezar Melatti.

O mito de Wenía busca compreender os aspectos da cultura Marúbo, desde sua origem, até o conhecimento cotidiano acerca dos alimentos ou dos ritos fúnebres. Pode ser observado também no mito de Shoma Wetsa, onde se explica o surgimento do branco-civilizado.

Assim como o mito de Wenía, esse mito também possui três versões distintas. Sobre o mito, utilizarei o resumo e versão de Pedro Cesarino (2008):

A versão marubo de tal tema se encontra na história de Shoma Wetsa, uma mulher de ferro que possuía lâminas afiadas nos braços, com as quais exterminava seus inimigos para, em seguida, devorá-los. Shoma Wetsa vivia em sua maloca com a irmã e o filho, Rane Topãne. Andando na floresta, Topãne encontra Shetã Veka, uma mulher que havia conseguido escapar do naufrágio da Ponte-Jacaré, e decide levá-la para casa como sua esposa. Shoma Wetsa não gosta da decisão do filho, pois sabe que sua nora é uma pessoa ruim, que deveria ter morrido no episódio da Ponte. Seu filho, no entanto, tem três bebês com a mulher e os deixa sob os cuidados de Shoma Wetsa, que, sucessivamente, os esquarteja e devora. Dando-se conta disso, Topãne decide matar sua mãe, mas as diversas tentativas fracassam, pois, a mulher é de ferro. Em um determinado momento, Topãne percebe que a mãe teme o fogo. Decide jogá-la dentro de um buraco cavado no meio da maloca, onde há uma fogueira. Antes de morrer queimada, Shoma Wetsa aconselha seu filho a preparar duas espécies de ayahuasca, a ayahuasca do estrangeiro (nawã oni) e a do pássaro txõtxõ (txõtxõ oni). Em seguida, ela explode nas chamas: seu fígado cai em algum lugar do rio noa e se transforma em machado; seus dentes, em ouro; seus ossos, em ferro. Atrapalhado, Rane Topãne troca as infusões de ayahuasca e acaba por tomar aquela que deveria ter ficado reservada para o duplo de sua mãe, que retornaria após a morte do corpo. Quando a mãe vem chegando de volta à maloca, Topãne e sua mulher pensam se tratar dos brancos violentos. Shoma Wetsa se ofende e parte para jusante levando os duplos de seus três netos mortos, dizendo que os brancos voltarão em outra era para matá-los. Um dos duplos de Shoma Wetsa vai então viver junto com o Inca-Machado (Roe Inka) na direção do poente; o outro vai viver a jusante, na direção do sol nascente: dão origem aos brancos, tais como os brasileiros que vivem em Manaus e Brasília. A narrativa está em relação de transformação com o mito jê de Auké: ali, é a figura de D.Pedro II que surgia a partir do conflito em um núcleo familiar inicial. (CESARINO, 2008, p. 137)

A narrativa acerca do mito se dá através da interpretação da visão (e das palavras) dos informantes ao pesquisador. Os pesquisadores em geral mantêm a estrutura do mito exatamente como lhes foi transmitida, provavelmente a fim de manter a originalidade e buscar interpretações tangíveis. Cesarino (2008), no entanto, resumi de modo espetacular as três versões e a condensa em um resumo de fácil compreensão, esse foi o motivo da escolha por sua versão.

Ao que se refere ao mito de Shoma Wetsa, ela é uma representação daquilo que transforma Marúbo em civilizado, na perspectiva dos Marúbo e a mitificação do surgimento dos “não Marúbo”.

Julio Cezar Melatti, em outro artigo publicado na Revista Ciência Hoje, trata especialmente desse mito. Para o pesquisador, Shoma Wetsa é a “transfiguração mítica dos vapores que percorriam os afluentes do rio Amazonas no auge do período da borracha” (MELATTI, 1989). Considerando as representações simbólicas que envolvem ao mito, Melatti diz:

As grandes lâminas de metal que saíam dos cotovelos desse personagem mítico feminino corresponderiam às pás das rodas propulsoras daquelas embarcações. Sua voracidade canibal seria a imagem da avidez com que caucheiros e seringueiros arrebanhavam à força homens, mulheres e crianças indígenas, e os embarcavam, para levá-los aos patrões. Seu corpo invulnerável, de metal, valeria pela resistência que os fortes costados e as cabines revestidas de chapas desses barcos ofereciam às flechas e dardos dos índios. Finalmente, a transformação final de Shoma Wetsa — bem como a das almas que devorara — em civilizados faria às vezes da perda da identidade étnica dos índios incorporados como mão de obra nas atividades gomíferas... Ademais, Shoma Wetsa era altamente inflamável — sobretudo sua urina, que seria gorda como o óleo diesel, tal a quantidade de seres humanos que comia — e por isso temia o fogo, característica que prejudica sua comparação com as embarcações do começo do século providas de grandes fornalhas e vistosas chaminés. (MELATTI, 1989, p. 1)

Cesarino (2013) compartilha da ideia de Melatti, e traça um comparativo entre o mito de Shoma Wetsa e alguns mitos estudados por Lévi-Strauss em “História de lince”, onde é fruto de estudo a mitologia do povo da raiz linguística , tendo por base o personagem mítico Auké. Em suma, para ambos os mitos pode ser descrito como um personagem excêntrico que não pode ser morto por seus parentes, e quando o matam conseguem fazê-lo através do fogo. Um tempo depois, esse personagem ressurge dando origem aos brancos através de matérias ligadas a eles. No caso de Shoma Wetsa, o faz através de partes de seu corpo15, dando origem ao Inca (Roe Inka) e aos brasileiros bravos16. Já Auké, dá origem através da madeira da casa onde irá viver, originando os negros, o gado, e os cavalos.

Outra analogia pode ser encontrada em Capistrano de Abreu (1941) que trata a respeito de um mito caxinauá denominado “A onça que comeu os netos”. Esse mito narra uma onça que se alimentava de todos seus netos (tal como Shoma Wetsa). Isso fazia com que seu filho furioso tentasse matá-la (tal como Topáne). Entretanto, seus golpes de nada faziam, uma vez que sua mãe tinha um corpo invulnerável, até que o filho atira a onça na fogueira, matando-a. O mito se encerra ai, enquanto o Marúbo continua com o retorno de Shoma Wetsa dando origem aos brancos e mantendo em segredo os conhecimentos das atividades industriais.

Isso pode ser embasado também por Melatti e Montagner (1975), em seu relatório de campo quando descrevem uma parte de uma das versões do mito de forma mais primária:

[...] A velha chegou e disse: "Bem, meu filho, eu queria que todos se santificassem que nem eu, mas você fez essa ingratidão e agora vai trabalhar que nem os civilizados velhos." Porque ela queria que todos virassem santos (Yobé). Ela disse: "Bem, eu queria que todos se santificassem; esses que vieram comigo são anjos (baca) que nem eu; fique aí meu filho." E ela voltou com os que tinham vindo com ela. Aí o filho correu para atalhá-la, para ver se ela voltava, mas não voltou; ela se tinha santificado. Ela foi para Sromawetsa, que deve ser Jerusalém. Daí foram geradas todas essas coisas: negócio de avião, motor, tudo. Os civilizados começaram assim; e os índios não sabem fazer nada de negócio de fábrica. Os civilizados ficaram com muita indústria e os índios não têm indústria nenhuma... Os outros foram embora com Sromawetsa. Foram para onde vocês moram, Europa [...] Sromawetsa é fábrica, faz tudo: espingarda, fazenda, caminhão, avião, miçangas (MELATTI & MONTAGNER, 1975, pp. 23-24).

É perceptível a influência da absorção de cultura e conceitos por parte dos Marúbo, para que pudessem representa-los através da mitologia. É possível constatar isso algumas vezes ao decorrer do mito.

Sobre a invulnerabilidade do personagem mítico, no caso específico de Shoma Wetsa, é explicado por seu corpo de metal. Capistrano, em outro mito faz referência ao metal e a onça, em um mito intitulado “A onça agradecida”, onde um caçador panema17 retira um osso de veado dos dentes da onça e essa em retribuição te dá uma azagaia18, auxiliando o caçador a abater muitas caças.

Essas associações com o metal nos leva a compreender que o contato dessas tribos com o metal é anterior ao contato com os civilizados. No caso Marúbo é um pouco mais específica, uma vez que, o já citado mito Inka rõe yõká19, refere-se ao encontro com os incas (há divergências se é o inca pano ou o inca andino). Outro fato curioso é de que a fabricação do metal depende exclusivamente do fogo, elemento que tanto a onça, quanto Shoma Wetsa temem.

Ao que tudo indica, os incas foram agentes fundamentais para a cultura dos Marúbo. Melatti evidencia isso:

Ora, segundo uma das versões do mito marubo, quando Shoma Wetsa morre, seu corpo explode e seus pedaços se espalham. Numa das vezes em que o fígado é mencionado, diz-se que se enrolou num galho de miratuá e depois foi para o poente, afundando na água no porto do Roe Inka [Melatti, 1985, p. 143-144]. Seu espírito do coração, associado ao lado direito, vai-se embora para o poente, onde Roe Inka mora, enquanto seu espírito do lado esquerdo vai para o fundo de um rio, onde sua casa é de tijolo (Melatti, 1985, p. 144 e 149-151). Embora fugaz e obscurecida pelo trecho seguinte, temos aqui uma referência nítida e extremamente sugestiva, por dois motivos. Em primeiro lugar porque Roe Inka é o “inca”, e o termo roe quer dizer “machado”. Há informações que permitem admitir que se trata, antes de tudo, de “machado de metal”, cuja fábrica pertence aos incas. Já a referência à casa de tijolo seria, segundo o tradutor marubo, uma alusão à metamorfose do segundo espírito em homem branco. Em segundo lugar, porque talvez a complexa multiplicidade de espíritos marubo possa se condensar em dois espíritos, o da direita e o da esquerda, sendo o primeiro hierarquicamente superior ao segundo, uma vez que lhe é possível ganhar a imortalidade numa camada celeste, enquanto o outro está ligado a terra [Montagner, 1985, p. 118-132]. Ora, é o espírito superior que se dirige para o “inca”, enquanto o inferior se transforma em branco. (MELATTI, 1989, P. 3)

Essa associação ao inca é comprovada através do nome ao quais os Marúbo dão ao Rio Javari, “Roé Ené” ou “rio do Machado”. De acordo com Capistrano de Abreu (1941), o inca é apontado por outros povos da região. Melatti discorre:

Em três mitos caxinauás transcritos também por Capistrano de Abreu [1941, p. 442-454] — O ĩcá, A aranha e O roubo do sol — o inca é o senhor do frio, do escuro e do sol e, além disso, canibal. Uma versão dos mesmos mitos tomada por André Marcel d'Ans [1975, p. 83-88] confirma essas características. Outro mito registrado por esse autor [1975, p. 325-336] mostra que os caxinauás atribuem aos incas, além do canibalismo, um grande poder de adivinhar acontecimentos a que não assistiram e palavras cochichadas na sua presença ou proferidas na sua ausência, bem como línguas e costumes estranhos. Possuiriam ainda flechas de grande poder destrutivo. (ABREU, 1941 apub MELATTI, 1989, p. 3-4)

Em seu texto, Melatti, apresenta na Tabela 2 o resumo dos acontecimentos para cada povo. Porém, cabe evidenciar antes de qualquer coisa que os Marúbo, Conibos e os Xibipos, veem o inca como “detentor de importantes itens da cultura material”, enquanto “os caxinauás veem nele, além de um poderoso adivinho; “profeta” — capacidades não necessariamente culturais como o é as suas flechas destruidoras —, o senhor de elementos naturais” (MELATTI, 1989).

A tabela da próxima página representa a visão referente aos Incas com base nos diferentes povos habitantes do Sudoeste amazônico.

Tabela 2 - representação sobre a mitologia e a visão acerca dos incas por diferentes povos do sudoeste da Amazônia.

RESUMO

Relação com

Sociedades indígenas atuais

Sociedades Pré-Históricas

Metal

Marúbo

Caxinauá

Xibipo

Conibo

Mochica

Vicus

Flechas

Shoma Wetsa/ Inca

Onça

-

-

Felino

Felino

Artefatos em geral

-

-

Inca (Bom Inca)

Inca Riós

-

-

Agricultura

Marido de Shoma Wetsa

-

Shãno Inca (Mau Inca)

-

-

-

Magia

-

Inca

-

-

-

-

Elementos naturais

-

Inca

-

-

-

-

Canibalismo

Shoma Wetsa

Onça/Inca

Yanapuma,

provavelmente

-

Cabeça decepada na mão de felino

-

Caranguejo

Shoma Wetsa

-

-

-

Oposto ou fundido a felino

-

Brancos

Shoma Wetsa

-

Yanapuma

-

-

-

Fonte: MELATTI, 1989, p. 4.

Esta tabela demonstra, sobretudo, a relação dos povos Pano com o povo dos Andes, e pode ser observada também no fato de terem consciência acerca do metal sem o conhecimento prévio dos meios de fundição para obtê-lo. Talvez, seja o motivo da associação do fogo a um animal que instintivamente tenha medo do fogo ou de um senhor do fogo que veio a perdê-lo.

Em Wenía, é retratada a jornada dos Marúbo saindo dos buracos no chão de onde se deslocaram de suas seções indo até o lugar onde hoje se estabelecem. Nesse trajeto, relatam o encontro com Oni Weshti, o criador dos vegetais cultivados, possuindo diversas esposas, cada qual representada por uma espécie de animal distinta: jacu, inhambu, sapo cururu, veado e caranguejo. A esposa-caranguejo era a representação própria de Shoma Wetsa, segundo o mito. Sobre isso Melatti diz:

Esse achado lançava luz sobre certas características da figura: carapaça do caranguejo explicaria seu corpo duro; as pinças teriam um correspondente nas lâminas que lhe saíam dos cotovelos. Ainda assim, a esdrúxula conjunção de onça e caranguejo num mesmo personagem me traria grandes dificuldades de interpretação, não tivesse eu tido a sorte de encontrar, em dois livros dedicados aos mochicas, fotos de vasos de cerâmica, cujos ornamentos mostravam a mesma figura conjunção. (MELATTI, 1989, p. 6)

Os livros ao qual Melatti refere-se são: The Mochica: a Culture of Peru, Elisabeth P. Benson, 1972 e o Moche Art of Peru: Pre-Columbian Symbolic: Comunication, Christopher B. Donnan, 1978.

O livro de Benson traz a ilustração de diversos potes Mochica, todos com o bocal com formato de estribo e com desenhos de figuras humanoides geralmente com dentes de felinos e a representação ou de uma carapaça ou de um caranguejo. Alguns exemplos são: Uma com dentes de felino, que aflora da carapaça de um caranguejo; uma que ilustra o combate entre um guerreiro com dentes de felino e um caranguejo; uma figura humanoide com dentes felinos, pinças no lugar de braços e pares de membros similares ao de um caranguejo. Essa última representação é encontrada também no livro de Donnan (DONNAN, 1978 apud MELATTI, p. 6, 1989), que retrata uma estatueta de um ser humanoide com seios, dentes similares ao de um felino e uma cabeça decepada em sua mão direita, com uma faca cerimonial na mão esquerda. Dessa cabeça, surgem outras duas, ambas de felino (MELATTI, 1989).

A representação dessas imagens pode ser observada nas figuras Figura 5 e Figura 6:

Figura 5 - Pote Mochica. Nele a representação de uma figura humanoide com presas de felino e cinto de serpente, segurando em uma das mãos um objeto cortante, lutando contra o que aparenta ser um caranguejo.

Fonte: MELATTI, 1989 / Museum für Völkerkunde de Viena.

Figura 6 - Pote Mochica com a representação de uma figura humanoide com pinças de caranguejo e presas de felino.

Fonte: MELATTI, 1989 / Staatliches Museum für Völkerkunde de Munique.

Os mitos de Wenía e de Shoma Wetsa embasam a ideia de que os Marúbo ao longo do tempo utilizaram de aspectos culturais de outros povos, como os Incas e os civilizados, a fim de através de sua mitologia conseguir explicar o surgimento “do outro”. Essa característica pode ser observada em outros povos da mesma região, sobretudo no que se refere aos incas. Talvez, seja essa a explicação mais contundente acerca da similaridade de formas e características dos mitos ou de seus heróis mitológicos. O certo é que esses mitos remetem a uma memória cultural verdadeira, o que caracteriza que não é um grupo fechado ou isolado, mas sim que fazem parte de um sistema de relações aberto.

Em Wenía é possível traçar um rumo do surgimento mítico das seções até onde se localizam hoje. O mito trata também dos conflitos internos das seções e das experiências através do tempo de tentativa e erro para saber se determinada pupunha era comestível ou não ou qual sapo utilizar no rito de “injeção de sapo”. Isso demonstra uma memória cultural forte, transmitida de geração a geração por meio da oralidade mitológica. Isso explica as diferentes versões de cada mito. Entretanto, existe a problemática de se explicar o novo, o diferente. Os Marúbo utilizam de sua mitologia e a adapta para novos fatores, como é o caso de Shoma Wetsa, que representa o metal, a onça e dá origem aos brancos bravos. A conclusão a que Julio Cezar Melatti e Pedro Cesarino chegam demonstra exatamente isso, uma vez que a representação de Shoma Wetsa aparenta se referir aos vapores dos rios que levavam os Marúbo juntos aos civilizados para trabalharem nos seringais e isso, de certo modo, fazia com que deixassem de ser Marúbo e passassem a ser civilizados20.

Esse fenômeno pode ser visto em Claude Lévi-Strauss (1991) e traduzido por Cesarino:

Fenômeno incompreensível, dizia eu, a não ser que se admita que o lugar dos brancos estivesse cravado nos sistemas de pensamento fundados sobre um princípio dicotômico que, passo a passo, obriga a duplicar os termos, de modo que a criação dos índios pelo demiurgo tornava simultaneamente necessário que ele houvesse criado também os não-índios. (LÉVI-STRAUSS, 1991 apub CESARINO, 2008, p. 137)

Os incas, para os Marúbo e outros povos Pano são a representação das relações antecessoras que no futuro viriam a ser com os caucheiros peruanos e posteriormente com os brasileiros. No mito Inka roe yõká, é mencionado como os antepassados dos Marúbo rumaram a oeste com a finalidade de conseguir machados de ferro ou de pedra com os incas. Cesarino diz:

Ao longo do trajeto, os povos antigos mais uma vez encontram uma série de outros tais como o “Povo das Mulheres” (Ai vo Nawa), com as quais devem copular intensamente a fim de que não sejam devorados. Após uma série de visitas aos povos que se encontram na viagem, chegam enfim à casa de pedra do inca, que lhes oferece uma caiçuma de fezes (poi waka, uma metáfora para café, explicavam-me). Aquele que a ingerir por inteiro terá um machado bom; aquele que recusar um machado ruim. Na posse dos utensílios, retornam para suas terras a fim de cultivar roçados mais extensos. Hoje em dia, é para as cidades adjacentes à Terra Indígena que os marubo viajam para obter instrumentos industrializados, agora, junto aos brasileiros. (CESARINO, 2008, p. 138)

Outra característica é a de que os Marúbo representam a oposição entre os pontos cardeais, referenciando aos brancos e aos incas, ou seja, os brancos são tidos como vivendo a leste ou ao sul, enquanto os incas são tidos como vivendo a oeste. Característica interessante se tomarmos como referência o ponto geográfico no qual estão inseridos, uma vez que estão próximos à fronteira do Brasil com o território peruano. Melatti (1985) traz na Figura 7 uma ilustração que demonstra melhor isso:

Figura 7 - Ilustração acerca do mito de Shoma Wetsa, onde ela dá instruções a Rane Topáne sobre os tipos de ayahuasca que poderia tomar. Na ilustração vemos referencias opostas entre o Oeste, onde encontram-se os incas e o Leste onde encontram-se os civilizados.

Fonte: MELATTI, 1985.

A ilustração refere-se ao mito de Shoma Wetsa, no qual ela dá instruções a Rane Topáne para que ele faça uso apenas da ayahuasca Yové oni (Norte) e Txõtxó oni (Sul), proibindo ele de fazer o uso da Nawa oni (Leste). O Oeste representa o Roe Inka (os incas).

Topáne faz uso justamente da ayahuasca do leste, o que faz com que Shoma Wetsa fique brava em seu retorno e parta com seus netos. Daí ela dá origem aos brancos — lembrando que nawa possui o significado de “outro” — que remete ao Leste. O Leste e o Oeste são relacionados aos duplos de Shoma Wetsa, ou seja, o Oeste representa a alma do coração, enquanto o Leste representa a alma do lado esquerdo. A alma do lado esquerdo é inferior ao do Coração, o que leva a considerar que os incas para os Marúbo se encontram de modo superior aos brancos.

Cabe dizer também, que o universo cosmológico Marúbo, como poderá ser observado no decorrer desse capítulo, é composto por caminhos, céus, terras e viagens, onde os xamãs (romeya) se encontram direta ou indiretamente com espíritos a fim de obter conhecimento. Para Cesarino:

Os espíritos yovevo organizam-se também em sociedades e estendem suas relações de parentesco aos marubo, cujo xamanismo é um trabalho de tradução e mediação entre as intermináveis populações do mundo aquático, dos estratos celestes e subterrâneos. Seus duplos passeiam por tais habitações como quem passeia pelas cidades: as casas dos espíritos Ni Okevo são todas de pedra, ao modo das casas dos brancos; o duplo do Sol é um estrangeiro barbado, que vive também em uma casa de pedra e possui objetos tecnológicos. O xamanismo marubo replica para o cosmos um esquema similar ao das redes de relação características dos mundos amazônicos: também aqui os xamãs são “diplomatas”, ao transitar por uma profusão de coletividades que não deixam nada a desejar às cidades dos brancos e, de certa forma, as antecipam. O neologismo “sociocosmos” aplica-se bem a sistemas xamanísticos tais como o marubo, para o qual o socius ultrapassa os limites visíveis. Com seus olhares alterados, os xamãs podem ver o mundo da copa das árvores (Tama Shavá) como uma miríade de aldeias e casas, onde vivem intermináveis espíritos com suas línguas e costumes distintos. A paisagem, dizem, é mais vasta do que a de cidades como São Paulo ou Manaus. (CESARINO, 2008, pp. 138-139)

Através desses dois mitos em específico, além do Inka roe yõká (Pedindo machado ao inca), é possível traçar essa memória cultural coletiva que demonstra que eles se veem como um povo distinto, e através disso, posteriormente, João Tuxaua, fez com que uma reorganização estrutural fosse possível entre as seções Marúbo.

5.2. Universo cosmológico: Camadas, céus e terras.

O universo Marúbo é complexo, sendo constituído de diversas camadas inferiores e superiores sobrepostas. Segundo os Marúbo, as camadas foram formadas por seus ancestrais, da mesma forma com que o mito de Wenía apresenta. Segundo a ideia Marúbo, a formação das camadas se deu através da sucessiva disposição de partes de seres, sobrepondo um ao outro até os dias atuais.

Como já mencionado anteriormente, para os Marúbo, todo indivíduo possui várias almas21 que basicamente se resumem em duas: a do lado direito (coração) e a do lado esquerdo.

Quando o indivíduo morre, a alma do lado esquerdo permanece nesta camada terrestre (Bei Mai Mai), enquanto a alma do lado direito ruma em direção à segunda camada celeste (Sroco Nai), caso a alcance atingirá a imortalidade. Porém, para isso deve percorrer o Caminho da Névoa, o Vei Vai.

A alma do lado direito ao percorrer o caminho da névoa, se depara com diversos obstáculos (pode ser entendido também como provações), onde será testado diversas vezes, não devendo ceder, caso isto ocorra, a alma se transformará em uma casa de cupins ou em um dos próprios obstáculos, ficando ali para sempre. Em outras camadas, a alma poderá transformar-se em um espírito malevolente (yochi).

Delvair Montagner (1996) através de dados colhidos apresenta a seguinte estratificação do cosmo Marúbo:

  • Camadas Celestes:

Coi Nai (Céu da Fumaça ou Nuvens)

Quene Nai (Céu do Desenho ou da Escrita)

Imi Nai (Céu do Sangue)

Osro Nai (Céu Branco)

Srane Nai (Céu Azul ou Verde)

Sroco Nai (Céu de trocar de Pele)

Bei ou Chete Nai (Céu Nebuloso ou do Urubu)

  • Camada Intermediária:

Tama Srabá (Claro dos Paus)

  • Camadas Terrestres:

Bei Mai Mai (Terra Nebulosa onde vivemos)

Rane Mai (Terra da Conta ou das Miçangas)

Srawã Mai (Terra da Arara Vermelha)

Robo Mai (Terra do Japu do Bico Branco)

Quene Mai (Terra do Desenho e da Escrita)

Osro Mai (Terra Branca)

Cõi Mai (Terra da Fumaça ou das Nuvens)

No relatório de campo (1975), em conjunto com o pesquisador Julio Cezar Melatti, exibem uma comparação decorrente de três versões advindas de três informantes distintos referentes à disposição das camadas celestes. Algumas se coincidem, enquanto outras se diferenciam, entretanto, todas concordam quanto às posições da primeira e da última camada (celeste e terrestre). A Tabela 3 exibe a comparação exposta no relatório de campo da superior para a inferior:

Tabela 3 - Comparação acerca das três informações a respeito das posições da camada.

1ª informação

2ª informação

3ª informação

Camadas Celestes

Coĩ Nai

 

Coĩ Nai

 

Coĩ Nai

 

Quene Nai

 

Srane Nai

 

Imi Nai

 

Imi Nai

 

Imi Nai

 

Quene Nai

 

Srane Nai

 

Quene Nai

 

Srane Nai

 

Osro Nai

 

-

Osre Nai

 

Sroco Nai

 

Sroco Nai

 

Sroco Nai

 

Bei (ou Chete) Nai

 

Bei Nai

Bei Nai

 

Camadas Terrestres

Bei Mai

 

-

Bei Mai

 

Rane Mai

 

-

Rane Mai

 

Srawã Mai

 

-

Osro Mai

 

Robo Mai

 

-

Robo Mai

 

Coĩ Mai

 

-

Imi Mai

 

-

-

Srane Mai

 

-

-

Coĩ Mai

Fonte: MELATTI E MONTAGNER, 1975.

O termo Nai tem o significado de “Céu”, enquanto o termo Mai tem o significado de “Terra”. Na tabela, a segunda versão o informante não descreveu as Terras. De acordo com os pesquisadores, o informante citou a camada Osro Nai, mas esqueceu de dispô-la na ordem. Já na terceira versão, o informante chamou essa camada de Osre Nai, o que não fica claro se foi algum engano ou não. Existe convergência entre a camada mais superior (Coĩ Nai) e as duas camadas Celestes inferiores (Srono Nai e Osro Nai). As camadas intermediárias apresentam as principais divergências. Algo parecido ocorre nas camadas Terrestres, uma vez que os informantes da primeira e da terceira versão — lembrando que o segundo não forneceu dados a respeito dessa camada — concordam quanto a posição das duas camadas mais superiores (Bei Mai e Rane Mai) e a mais inferior (Coĩ Mai).

Por conta das divergências entre as posições, estarei optando por utilizar a versão de Delvair Montagner (primeira exposta) como base de análise, uma vez que é ela quem fornece mais detalhes e informações. Utilizarei da mesma ordem a qual ela dispõe os dados, lembrando que ela aborda apenas algumas características e obstáculos referentes à jornada cósmica por entre as camadas.

Delvair Montagner em sua tese pediu a alguns de seus informantes para que desenhassem a fim de obter uma representação visual. Através de um desses desenhos22, estarei analisando para demonstrar alguns desses obstáculos. Existem outros, entretanto esses dispostos por Montagner são mais do que necessários para essa discussão.

Figura 8 - Desenho-representação do Caminho do Perigo (Bei Bai), desenhado por um informante de Montagner, em 1982.

Fonte: MONTAGNER, 1996.

O desenho foi feito por um informante de Delvair Montagner, um jovem de nome Topãpa, em 1982, no rio Ituí.

O item 1 representa o dono da Maloca, enfatizando o intertino e o coração. No item 2 temos a Maloca com as portas sendo representadas pelo espaço em branco. O item 3 que representa o caminho longo com a bifurcação ao fim é o Caminho do Perigo (Bei Bai). No item 4 temos a representação da Alama do lado direito rumando para o Caminho do Perigo, após a morte do indivíduo. O item 5 representa a poça de lama. O item 6 representa a Rede estendida. O item 7 a Goiabeira. O item 8 ilustra o Macaco-preto em cima da maloca (da qual é dono). O item 9 representa o Jabuti. O item 10 ilustra Bei Maya. O 11 ilustra a coruja. No item 12 a localização das malocas de acordo com as seções, tendo no final de cada caminho (Yora Bai), uma maloca. No item 13 vem à representação da maloca dos civilizados com seu caminho próprio (Náwa Bai) (MONTAGNER, 1996).

O desenho ilustra a cena da jornada cósmica da alma e dos obstáculos até chegar à camada superior. Cabe dizer que o Caminho do Perigo simboliza o sofrimento para aqueles indivíduos que tem o comportamento inadequado e desrespeitoso segundo as regras de comportamento Marúbo. É tido como uma etapa de transição para a alma entrar no Céu de Trocar de Pele (Sroco Nai) (MONTAGNER, 1996). É basicamente uma avaliação de como o indivíduo viveu sua vida terrena, tendo como resultado final chegar à camada superior ou perecer nesse caminho.

Os mitos descrevem a criação do Caminho dos Perigos e as formas para passar pelos obstáculos, por isso, o indivíduo deve conhecer a fundo, a fim de quando fizer a jornada saber como lidar com cada situação. Alguns dos obstáculos são representações de espíritos yochí (malevolente) que induzem e atraem as almas utilizando os mais diversos recursos, como: sexo, uma boa conversa ou pela oferta de algo apetitoso para comer, a fim de matar as almas. Em contrapartida, a alma pode debater com os perigos evidenciando suas qualidades e tentando os convencer a deixa-la passar (MONTAGNER, 1996).

O Caminho do Perigo (Bei Bai) é o mais popular, uma vez que possui uma forte representação do “pós-morte” dos Marúbo. Cabe a observação de duas coisas. A primeira é a utilização de tons escuros, muito diferentes da maioria dos desenhos feitos pelos Marúbo, dando ênfase a tristeza. A outra é a de que somente algumas seções usam esse caminho, as demais utilizam outro. Apesar disso, todas rumam em direção ao Céu de Trocar de Pele (Sroco Nai).

O primeiro obstáculo onde aparecem os Espíritos Malevolentes (Yochí) Nebulosos é o encontro das inúmeras Árvores Frutíferas Nebulosas. Aqui, a alma da direita encontra-se com fome, por conta da dura e longa jornada. A alma colhe apenas uma fruta e come somente a metade, jogando fora a outra. Essa é a única maneira de comer e não se transformar em uma das árvores. Isso se explica, uma vez que para os Marúbo os frutos silvestres não são considerados “alimentos nobres” ao contrário dos alimentos advindos da agricultura, associando à ideia de trabalho. Essa camada é a da Goiabeira (Vei Yõká).

A próxima é a Maloca do Macaco-Preto Nebuloso que fica em cima da Maloca vigilante, sempre na intenção de atacar a alma. Na Maloca encontram-se a mulher Água Fervente, uma Rede Nebulosa (Vei Pani) e um Poço de água Fervente Nebulosa. Em torno da Maloca Nebulosa encontram-se Urtigas Nebulosas e sobre a Maloca encontra-se uma Juriti23 Nebulosa. Todos os seres aqui presentes tentam impedir que alma atravessasse a maloca: Se a alam deitar na Rede, ele será jogado na Água Fervente ou se entristecerá com o canto da Juriti.

Aqui, as almas penalizadas são as que na vida terrena roubaram ou se envolveram com um indivíduo que não seja pano ou txai, esposa ou esposo potencial. Nesse obstáculo, o Macaco-Preto Nebuloso simboliza a vigília para evitar esses comportamentos condenados pelos Marúbo. Outra coisa a ser observada é a simbologia dos obstáculos: Água fervente e urtiga. Ambos representam o calor, conotando um sentimento de extrapolação dos sentimentos emocionais, refletidos pela relação sexual com indivíduos que não são “corretos”, de acordo com o que acreditam os Marúbo. A Rede só deve ser utilizada quando se está doente ou para dormir, além disso, se for utilizada o indivíduo passa a ser taxada como preguiçoso, desprestigiando-o como parceiro matrimonial. O cantar da Juriti vem a despertar sentimentos na alma, o que leva a perder tempo na jornada, uma vez que ela para com a finalidade de se lamentar. Por esse motivo, os parentes dos mortos devem evitar se lamentar ou sentir saudades, uma vez que isso atrapalha a alma em sua jornada. Então, todo sentimentalismo é contido, a fim da alma conseguir cumprir sua jornada24.

Ao prosseguir em sua jornada, a alma se para com Rio Nebuloso ao qual deve atravessar, entretanto a ponte existente encolhe-se no momento em que ela tenta atravessar por ela e isso faz com que a alma caia na água Fria Nebulosa, onde o Camarão Grande Nebuloso e o Caranguejo Nebuloso a esperam a fim de feri-la.

A alma da mulher, aqui, consegue atravessar utilizando de diversos artifícios, como a retirada de um estilete nasal (adorno utilizado antigamente por seus ancestrais) ou utiliza a mesma espátula que utilizam para bater fio na tecelagem, assim, puxam a Ponte Nebulosa, sobem nela e a atravessam. Os objetos tênues utilizados pela alma têm como associação as pernas finas dos crustáceos. Essa metáfora através dos objetos e dos animais tem como objetivo a idealização de um indivíduo trabalhador. No caso da espátula de tecelagem, pode ser entendido uma vez que a confecção de enfeites corporais e a pescaria de peixes pequenos e crustáceos são atividades exclusivas das mulheres25. O simbolismo da água é novamente exposto, mas dessa vez é colocada como fria, estando em oposição à Água quente anteriormente citada. Com isso, enfatiza novamente a conotação da proibição sexual com “parentes” (incesto), porque a alma ao cair nas águas do Rio Nebuloso, ocorre pela infração da regra matrimonial26.

Seguindo, a alma se depara com a Coruja Nebulosa que está empunhando um arco pronto para matá-la. Aqui, está representado o simbolismo do diálogo ritual e a utilização dos termos de parentesco durante a conversa. Entre os Marúbo, os homens costumam fazer monólogos longos, tanto em voz baixa quanto em voz alta, sempre sentada em bancos paralelos. Os assuntos são sempre de interesse coletivo e considerados de suma importância para aquele momento. Muitas vezes são advertências ou críticas acerca de algum acontecimento ocorrido.

Saber fazer uso dos termos de parentesco é necessário para poder se relacionar em meio ao grupo ou para simplesmente dirigir-se a alguém. Os Marúbo tem uma canção de ninar, no qual a letra é simplesmente um jogo de termos de parentesco. Um civilizado só é de fato aceito quando é acolhido por determinado grupo doméstico e passa a ser referenciado através do termo de parentesco adequado. A Coruja Nebulosa, então, simboliza o vigilante zelo à manutenção das regras expostas. Seu piado noturno sinaliza como pressagio a chegada de visitantes de outras malocas, sendo geralmente parentes.

Em sequência a alma se depara com as Gentes Nebulosas que agarras as almas cansadas que na vida terrena tiveram relações fora do matrimônio. Talvez, os espíritos das Gentes Nebulosas sejam as Almas Malevolentes de Gente, análogo ao lado esquerdo (alma do lado esquerdo). De acordo com a crença Marúbo, a Alma de Gente Nebulosa surge e dialoga com os indivíduos que não viveram de acordo com as regras sociais Marúbo, uma vez que se envolveram com indivíduos que não são pano (ou praticaram o incesto) e/ou eram muito “namoradeiro”. A terminologia “Gente” (yora) tem diversos significados dependendo do contexto onde aparece, como “ações humanas”, “ter vida social”, etc (MONTAGNER, 1996).

Adiante na jornada, a alma encontra a Fogueira Nebulosa. Aqui a alma deve pulá-la, evitando ser queimada. Caso se queime, é sinal que não realizou algum dos ensinamentos. O fogo (elemento natural) é adverso a determinadas concepções culturais dos Marúbo que a alma teria noção enquanto viva, como:

Respeitar a família e os mais velhos. O respeito é uma qualidade incutida nos indivíduos desde a infância, principalmente aos de idade mais madura, pois detêm os ensinamentos socioculturais da comunidade;

Recepcionar condignamente os visitantes e os convidados. Para que isso ocorra, um bom líder necessita ter alimento para servi-los, o que implica ter uma roça grande e ser trabalhador;

Trabalhar é outra qualidade implícita ao Fogo Nebuloso, que tem a habilidade de reconhecê-la na alma do morto;

Conhecer adequadamente as normas de comportamento e as regras sociais, e agir de acordo com elas; enfim, “saber conversar direito”, como se expressou um informante (MONTAGNER, 1996, p. 39).

O Fogo Nebuloso pode ser associado ao modo com que os espíritos curadores — Sroma (Seios) e Onisrãco (Broto de Ayahuasca) — utilizam para curar os enfermos através do uso do fogo, eles espantam os espíritos yochi (malevolentes) de dentro do corpo. O simbolismo aqui se dá pela violação das normas sociais, culturais e morais dos Marúbo.

Em seguida, no Caminho do Perigo a alma encontrará no topo das árvores outros obstáculos, dessa vez as Contas de Adornos Nebulosos. A alma pode coletar alguns, mas deve se apressar, caso contrário se transformará em um cupinzeiro (MONTAGNER, 1996).

Os obstáculos aqui representam a mulher trabalhadeira e o latrocínio. As mulheres ficam encarregadas de confeccionar os adornos. Esses adornos expressam a ideia de mulher trabalhadora, que assim como no caso dos homens, é levado em consideração quanto à escolha do parceiro matrimonial. Em sequência, a alma se depara com as Pontes Nebulosas sobre a Lama Nebulosa (Vei Matsá). Aqui a alma deve saltar, caso contrário ficará aprisionada para sempre. Neste obstáculo, as almas que mais sentem dificuldades aqui são as que “namoraram errado”; as que namoraram membros de seções proibidas. A alma em seguida encontra os Espíritos Guardiões Nebulosos (Femininos e Masculinos). Esses Espíritos buscam seduzir a alma que em vida manteve relações extraconjugais, e assim, as transforma em cupinzeiros. Caso a alma em sua vida terrena tiver cedido a relações fora do casamento, cederá ao espírito yochi (malevolente). Novamente, nota-se a seriedade com que está regra é tratada entre os Marúbo.

O caminho do Perigo possui obstáculos próprios para as mulheres, como é o caso dos Espíritos Malevolentes Nebulosos de Crianças Erradas de Brotos de Banana, de Mamão e outros. A intenção desses espíritos é de matar a alma (de mesmo modo que se mata um corpo na vida terrena). Esses Espíritos estão associados aos problemas ginecológicos. Os obstáculos aqui, se associam ao aborto provocado, tema proibido e condenado pela sociedade Marúbo, uma vez que um de seus maiores medos é o de sua extinção como grupo étnico.

A jornada da alma é árdua e os perigos e obstáculos não param ai, mas se depois de todas as provações a alma enfim consegue chegar ao Céu de Trocar de Pele (Sroco Nai) se depara com o Japu27 Pequeno Nebuloso, o Japiim Nebuloso e a mulher Papagaio Nebuloso. Todos são espíritos cantadores e são os responsáveis por informar aos parentes da chegada da alma.

Delvair Montagner, ainda cita outros caminhos e evidencia acerca do estrato intermediário:

Na cosmologia Marúbo é o estrato intermediário, Claro dos Paus, que desempenha um papel fundamental na concepção religiosa, devido ao número de caminhos que servem como elos para os níveis superiores. Nele encontram os Caminhos do Perigo e da água, imóveis, laterais, que ligam o mundo de cima com o de baixo, servindo como meio de locomoção às almas dos mortos. Nem todo o Marúbo tem acesso ao mundo dos espíritos, apenas o xamã, após ter recebido um treinamento especial. A sua Alma do Coração e os espíritos benevolentes andam pelo Caminho Arbóreo/Loureiro, que é fixo, e em outro móvel, o Caminho do Espírito Benevolente (MONTAGNER, 1996, p. 42).

O Caminho do Loureiro28 se encontra entre o Caminho do Perigo e o Caminho da Água. Provavelmente, exista algum simbolismo entre esses caminhos, sendo representantes da morte, enquanto o Caminho do Loureiro é o representante da vida ou o estado entre a vida e a morte (como o caso do transe dos romeyas/xamãs). A camada Claro dos Paus é onde encontra-se a dualidade da alma, entre a vida e a morte. É nela que se define o destino na alma.

Decerto, fica evidenciado que o Caminho do Perigo para os Marúbo tem uma função muito mais do que apenas mitológica, mas também de organização social. É através dos perigos e obstáculos que desenvolvem (ou reafirmam) suas regras sociais e morais. Cada Espírito tem uma função determinada, seja a de atrapalhar a alma impedindo-a de chegar ao seu destino ou fazendo com que ela pereça por cometer algum equívoco. São evidentes os fatos dos Marúbo espelharem sua estrutura social e cultural em um mecanismo mitológico a fim de conservar determinadas regras ou condutas morais aceitas por eles. Caso o indivíduo tenha uma conduta correta de acordo com as crenças morais Marúbo e um conhecimento aprofundado de sua cultura em si, não terá problemas para atravessar o Caminho dos Perigos e chegará em segurança. Os perigos são representações de uma regra ou um valor cultural e moral. Os espíritos não podem ser enganados ou mentidos, uma vez que eles reconhecem as almas que quebraram as regras através do cheiro do sangue. Isso significa que a vida deve ser seguida conforme as regras, ao quebrá-las terão penitências, mesmo que não seja imediatamente, no pós-morte serão cobradas e consequentemente deixará de conquistar a imortalidade de um espírito yobe (benevolente) para ser um espírito yochi (malevolente). Sobre isso Montagner argumenta:

O Caminho do Perigo revela uma relação entre a causa da doença, espontânea ou intencional, que provoca a morte do corpo e a forma pela qual a alma perece no Caminho. Assim, para cada tipo de doença que mata o corpo, também há uma maneira específica da sua alma ser atraída, atacada e morta. (MONTAGNER, 1996, p. 72)

O conceito de “caminho cósmico” se enquadra perfeitamente no conceito teórico de Marcel Mauss (1974), no qual ele engloba diferentes pontos da organização cultural Marúbo, compreendendo a noção de uma continuidade no que se referem aos fenômenos políticos, religiosos, morais e sociais. (MONTAGNER, 1996). Delvair Montagner diz:

O mundo dos espíritos e dos vivos são considerados como o prolongamento um do outro, formando um conjunto de subsistemas simbólicos, cujos aspectos são os mais ou menos salientados ou valorizados pelo grupo, conforme as situações sociais se apresentem. Cada um ocupa uma posição e um espaço dentro do sistema, mas continuam dependentes entre si. Assim, persiste o elo de ligação, que é o entrelaçamento ou interrelacionamento do mundo mítico, do mundo cosmológico, do mundo terrestre, da sociedade e da pessoa Marúbo. Deste modo, uns existem em função dos outros e a ação de cada um se reflete nos demais. (MONTAGNER, 1996, p. 43)

Dois outros caminhos merecem ser abordados: o Yobé Bai e o próprio Sroco Nai. No caminho Yobé Bai existem diversas frutas (goiaba, mamão, banana, etc) e nele não existe a presença do fogo, que como citado anteriormente tem um forte teor simbólico. Este Caminho se inicia na superfície da terra e segue até um pau (Tama), seguindo subindo. Esse Caminho é trilhado pelos Espíritos das Crianças Falecidas que são guiados por um espírito yobé (benevolente). Por aqui também passam a alma do indivíduo que toma oni (ayahuasca), sendo descrito como se “caminhasse acima dele como um avião” (MELATTI & MONTAGNER, 1975). Este é o caminho no qual o romeya (pajé) viaja quando está em transe dentro da maloca após ingerir ayahuasca.

O Sroco Nai (Camada de Trocar de Peles) é descrita por Melatti e Montagner como:

Quando o espírito do morto chega ao Sroco Nai, o herói Roca lhe retira a pele; o espírito, então, se aquece no fogo e fica maior. Há uma duplicação do herói, um ser a que se da o nome de Nawa Roca, para junto de quem vão os espíritos dos brasileiros civilizados e até os de alguns Marubo.

Junto de Roca vivem certos animais: porcos-queixadas, quatis, caititus, veados. Antigamente esses animais eram gente. Mas, como comeram ovo do pássaro Yawachai, virara.m bichos; saíram rio abaixo e caminharam até chegarem ao céu. Roca se alimenta da carne desses animais. Quanto aos animais que vivem aqui na terra, no Bei Mai, eles não são antigos seres humanos. Os veados do Sroco Nai são denominados Nawa Pato; os caititus, Ranenáwabo; os quatis, Barináwabo; os porcos-queixadas, Barináwabo, Cananáwabo e Sranenáwabo. Eles continuam com os mesmos nomes dos subgrupos matrilineais a que pertenciam quando eram gente aqui na terra; mas não sabemos de nenhum grupo que se chame ou se tenha chamado de Nawa Pato. Os porcos e bois que existem em Manaus e Brasília também são gente que comeu ovo de pássaro Yawachai, que, ao que parece, é uma ave mítica. (MELATTI & MONTAGNER, 1975, pp. 61-62)

Outro dado a ser citado é a relação entre o Vei Vai (Caminho da Névoa) e o mito de Wenía. Melatti descreve:

Mais do que isso, alguns episódios em particular, e o mito do Wenía como um todo, apresentam semelhanças com a caminhada das almas dos mortos pelo Vei Vai, o Caminho da Névoa. As almas dos mortos que sucumbem perante os obstáculos desse caminho quase sempre se transformam em cupinzeiros, tal como os velhos, no episódio referente ao desconhecimento dos ritos funerários, viravam tapiba. Alguns dos obstáculos que as almas dos mortos encontram têm a forma de pontes móveis, que lembram os episódios das pontes que davam choques elétricos e da ponte-jacaré. Os seres ilusórios, e sobretudo as mulheres-vegetal do Wenía, que prendiam e transformavam os homens que se aventuravam a ter relações sexuais com elas, também lembram o aspecto enganoso e sedutor dos obstáculos do Vei Vai.

Mas o Wenía como um todo se assemelha ao Vei Vai e com ele também contrasta.

No primeiro temos uma longa caminhada coletiva, enquanto no segundo a alma do morto caminha solitária. No primeiro os Marúbo aprenderam os elementos de sua cultura, enquanto no segundo os muitos obstáculos só poupam a alma de quem viveu corretamente segundo as regras e valores sociais. O primeiro se inicia com a saída das seções de diferentes buracos da terra, enquanto o segundo termina no local onde se abre um leque de caminhos, um para cada seção, em direção aos lugares onde as almas viverão na camada Shoko Nai, em companhia de seus companheiros de seção. Por conseguinte, na cosmologia Marúbo, diferentes grupos de irmãos reais e classificatórios, que são as seções, partem de lugares diferentes, no passado mítico, convergem para um mesmo ponto através das relações matrimoniais desta vida presente, para voltarem a se separar após a morte. Parte-se do múltiplo para se voltar ao múltiplo. O percurso das seções pelo cosmos Marúbo poderia ser representado por um esquema que lembraria a estrutura formada pelas vigas de concreto da Catedral de Brasília, que partem do chão, isoladamente, convergem e voltam a separar-se (Figura C) (MELATTI, 1986, p. 61).

A Figura 9 a qual Melatti se refere ao apresentar sua analogia.

Figura 9 - Reconstituição de Julio Cezar Melatti acerca do percurso das seções.

Fonte: MELATTI, 1986.

5.2.1. Espíritos e Almas

De acordo com a crença Marúbo existem três categorias de espíritos: yobé29 (espírito benevolente); bacá (espírito neutro) e yochi (espírito malevolente).

5.2.2. Bacá (Espírito Neutro)

Os Marúbo acreditam que o que rege a vida são os espíritos, uma vez que são imortais, dessa forma, todo espírito recebe uma nomenclatura, seja de acordo com a espécie animal ou vegetal, de algum astro celeste, de um mineral ou de algum ser mítico, mas sempre acompanhado da nomenclatura yobé; bacá ou yochi.

O espírito bacá é um espírito neutro ou benevolente, sendo muitas vezes designado como um curador de doenças, e em outras sendo associado aos espíritos malevolentes, em virtude de serem associados como causadores de doenças. Esses espíritos se encontram no Céu Nebuloso e na Terra Nebulosa.

Delvair Montagner (1996), diz:

Após a morte do indivíduo, o Espírito Neutro transforma-se em espírito malevolente. Ou seja: as almas que desde o início são yobé ou yochi permanecem como tais. Mas, os chamados bacá não perduram desse modo para sempre: transformam-se em espíritos benevolente ou malevolente (MONTAGNER, 1996, p. 46).

5.2.3. Yochi (Espírito Malevolente)

Os espíritos yochi surgem do sangue de figuras míticas ou de certos animais. Isso pode ser identificado através de certos cânticos30. Eles se localizam na camada onde nos encontramos (Bei Mai), além de poderem ser encontrados em uma camada acima e uma abaixo da nossa. Delvair Montagner (1996) os descreve como um “indivíduo que tem a pele preta e suja. Podendo ter o aspecto de macaco-preto, com os cabelos feios, olhos como fogo de lanterna e cheiro forte”.

A maioria dos espíritos malevolentes aparece à noite (ou surgem das sombras, em especial das bananeiras) e não dispõe do fogo, em razão de serem espíritos frios e preferirem ambientes sombrios, escuros, feios e em maioria escondidos para residirem.

De acordo com os Marúbo são esses espíritos que causam a doença nos Marúbo, sendo expulsos somente através do cântico de um curador (MONTAGNER, 1996).

5.2.4. Yobé (Espírito Benevolente)

Provavelmente os espíritos yobé tem a maior representação entre os Marúbo, sendo eles encontrados em todas as camadas terrestres e celestes. Cada espírito yobé possui uma particularidade, eles se diferem e se criam autonomamente. Delvair Montagner os descreve:

Eles se diferem entre si, criando-se sem a participação de ninguém. Suas origens diferem das de outros espíritos. Cada espécie de espírito benevolente se forma, normalmente com “coisa de yobé”, como por exemplo, do pólen de certas plantas. Quase sempre existe relação entre a formação do espírito benevolente e os ingredientes usados nos ritos de cura e xamanístico. Assim, ocorre uma justaposição de elementos sobrenaturais da mesma espécie para originarem um novo ser, também transcendental que se acha em outra dimensão espacial (MONTAGNER, 1996, p. 47).

Os espíritos yobé possuem a aparência dos Marúbo e são considerados “puros e cheios de saúde, porque nasceu de outra qualidade (elementos de espíritos benevolentes)” (MONTAGNER, 1996).

Quando a alma cruza o Caminho do Perigo e chega ao Céu de Trocar de Pele não se torna um completo yobé, mas um “quase-yobé”. A atuação se dá da mesma maneira, sobretudo as almas dos curadores e pajés. Essa ambiguidade se encontra também com os espíritos yochi (MONTAGNER, 1996).

São os espíritos benevolentes que ensinam os romeyas (pajés) quando os mesmos se encontram em transe depois de aspirarem rapé e ingerirem ayahuasca. Os espíritos ensinam sobre as doenças e como curá-las, mostra presságios de morte, remédios, cânticos, etc.

Os espíritos yobé estão relacionados também com os grupos de descendência das seções, sendo que foi gerada através do sangue de sua respectiva seção matrilinear, como o sol, o japu, a onça, entre outros (MONTAGNER, 1996).

5.2.5. Almas

Os Marúbo acreditam que toda pessoa possui em si duas almas primariamente: uma neutra e outra malevolente que preenchem diferentes áreas do corpo. Conforme o indivíduo cresce, ele recebe outras almas. As crianças, por exemplo, já nascem com as Almas dos Olhos (direito e esquerdo). Quando cresce ela recebe a Alma do Coração, e assim sucessivamente até a vida adulta. De acordo com um informante de Delvair Montagner, as almas são passadas biologicamente através dos pais.

Cada indivíduo, de acordo com os Marúbo possui oito31 tipos de almas sendo que seis delas se encontram em duplas32: Alma do lado Direito e Alma do Lado Esquerdo; Alma Malevolente da Sombra e Alma Neutra da Sombra; Alma do Olho Direito e Alma do Olho Esquerdo. Além dessas existe também a Alma Malevolente da urina e a Alma Malevolente das Fezes.

As almas relacionadas ao lado direito geralmente possuem uma conotação benevolente, enquanto que as almas relacionadas ao lado esquerdo possuem uma conotação malevolente.

Na Figura 10 é possível visualizar melhor a disposição das almas, de acordo com Alberto, um informante de Delvair Montagner, feito em 1982.

Figura 10 - Desenho de um informante de Delvair Montagner, onde ele ilustra quatro almas representadas no corpo: Almas dos Olhos; Alma do Lado Direito e Esquerdo e a Alma do Coração.

Fonte: MONTAGNER, 1996.

O item 1 ilustra as Almas dos Olhos (direito/esquerda). O informante desenhou um busto em cada olho, talvez para sinalizar que ambos os sexos possuem essa alma. Já no item 2 vem a representação da Alma do Lado Esquerdo no antebraço esquerdo. No item 3 a representação da Alma do Lado Direito no antebraço direito com a representação de um coração ao centro do peito e nas mãos segurando um diadema33 das penas da cauda de japu e na outra uma lança. Por fim, o item 4 representa a Alma do Coração. Dentro do coração existe a representação, mas devido à pintura fica difícil observar (MONTAGNER, 1996).

Com base nas pesquisas, relatos e informações que obteve, Delvair Montagner fez uma representação própria do esquema das almas no corpo humano. Pode ser visto na Figura 11:

Figura 11 - Esquema da disposição das almas no corpo humano feito por Delvair Montagner.

Fonte: MONTAGNER, 1996.

6. Romeyas e Cantadores

O universo xamânico dos Marúbo é composto essencialmente por dois tipos de “xamãs”, os romeya e o kechitxo ou shõikiya.

O romeya ou o pajé é definido por Cesarino como:

aquele cujos duplos se deslocam pelo cosmos, enquanto seu corpo-maloca34 recebe outros tantos espíritos (como visitantes) para cantar seus iniki aos viventes dessa terra. Através do corpo do romeya, os espíritos não apenas cantam, mas passam ensinamentos, coordenam festivais, extraem objetos patogênicos da carne das pessoas, participam, enfim, da vida ritual e do parentesco das aldeias (CESARINO, 2013b, p. 23).

Já os kechitxo ou curadores são explicador por Cesarino:

Eles lançam mão de complexos cantos agenciadores (empregados para a cura, para a feitiçaria e outros fins), bem como de espíritos auxiliares, por eles enviados para realizar determinados fins nas diversas regiões do cosmos espantar espectros de mortos, resgatar duplos perdidos de pessoas, atrair caça, entre outras tarefas possíveis (CESARINO, 2013b, p. 23).

O romeya antes de realizar sua viagem cósmica ou de receber os espíritos, aspira rapé e ingere a ayahuasca, depois disso dirige-se até a rede e mantém-se sentado nela, uma vez que quando o espírito sai de seu corpo, caí como se estivesse morto. De acordo com o relatório de Melatti e Montagner (1975) o ritual só tem início após as 22 horas. Durante todo o período da noite o romeya senta-se, deita, dança ou canta tudo conforme o espírito yobé que receber.

Durante a sessão o romeya recebe a visita de inúmeros espíritos sendo alguns deles de animais, seres sobrenaturais ou míticos e de pessoas que já faleceram. Os espíritos só se manifestam a noite, porque segundo acreditam durante o dia estão dormindo.

Os pesquisadores descrevem a sessão:

Os cânticos que o xamã entoa estão relacionados aos diferentes grupos matrilineares. Às vezes o xamã recebe espíritos brincalhões, fazendo com que os homens riam. O xamã executa as brincadeiras que o espírito faz dentro dele. Há um pequeno intervalo entre o recebimento de um espírito e o outro. Nota-se que o espírito penetrou no xamã porque sua voz fica grossa e canta bonito. Essa voz é a do Yobé. Dizem que o espírito Rewepei coloca o mõti (tubo de guardar tabaco) na garganta do xamã e ele canta grosso e bonito. Ao colocá-lo, destampa-o para que possa cantar ou falar alto. Quem tem voz fina ou fanha e língua pesada ao falar é porque o mõti está tampado (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 67).

Os xamãs também curam as doenças, eles assopram, cantam e sugam no local dolorido até que o rome35 saia, após sair ele mostra aos demais presentes. O romeya tem um pressentimento da chegada da doença e pede aos presentes para que entoem cânticos a fim de curar o enfermo, caso contrário ele virá a óbito. Caso esteja doente, ele não pode curar visto que seu espírito não abandona seu corpo e assim, não pode chamar o espírito yobé para entrar em seu corpo. Caso a doença se agrave o Yobé deixa de vez o romeya por considerá-lo ruim, e retorna somente quando a doença cessa e o xamã passa a ingerir ayahuasca e inalar rapé em muita quantidade (MELATTI & MONTAGNER, 1975).

Os pesquisadores relatam acerca do tema:

Quando o xamã está em transe, cantando, o seu espírito percorre o Yobé bai. Aí encontra o espírito Rewepei, Yobé e outros. Yobé é espírito bom, ensina o xamã. Diz-lhe que doença tem o doente, quando vai chegar a morte, que doença está para vir e ensina-lhe remédios do mato. Quando o xamã canta, é o Yobe que está lhe contando essas coisas. Depois que o Yobé e Rewepei entrarem no xamã, não saem mais, porque ele tem sangue bonito (fraco). Se saírem, o xamã morre. A casa do Yobé é o peito do xamã. Quando o xamã está em transe, seu espírito sai, fica por aí andando e o espírito de Yobé entra. Ao acabar o transe, o seu espírito retorna para o peito e fica junto com o do Yobé.

O espírito do xamã não vai ao encontro do espírito do mutum e da anta porque não gosta deles. O Rome Srãco (espírito do tabaco) aparece ao xamã quando está cantando, tomando aiuasca e aspirando tabaco. O espírito do xamã tem o poder de localizar objetos perdidos e roubados, quando está em transe e cita o nome do ladrão. Seu espírito também sabe quando alguém está gostando de outrem e que homem é valente. Também diz quem é o assassino, porque o espírito do morto entra no seu coração (wĩti) (MELATTI & MONTAGNER, 1975, P. 68).

No caso dos curadores, eles invocam os espíritos Sroma36 e Onisrãco37 e juntos realizam uma espécie de monólogo tentando convencer ao enfermo a aceitar a cura. Geralmente os cânticos tem um teor altamente descritivo, sendo cantado parte por parte detalhadamente, isso faz com que se tornem bem extensos — principal motivo de ter optado por não expor nenhum aqui.

Tanto Sroma quanto Onisrãco possuem a habilidade de transformarem-se em vento e fogo. Sroma se transforma em fogo e dessa forma, queima o espírito yochi expulsando-o do corpo. O espírito malevolente segue assustado, fugindo do calor do fogo que passa a se espalhar sobre o corpo do enfermo — talvez seja uma referência à febre, porém não tenho dados suficientes para confirmar isso. O vento então é invocado a fim de resfriar o corpo quente e realizar a limpeza.

Existe similaridade linguística entre Sroma e Shoma Wetsa, do mito de Wenía, e não é uma coincidência. Julio Cezar Melatti (1985) explica esta relação:

Bastante sugestivo é o nome da própria Shoma Wetsa. Se shoma quer dizer “seio” e wetsa, “outro”, este nome poderia ser traduzido por “Outro Seio”, o que não faz muito sentido, mesmo se considerarmos que a mulher assim nomeada tinha apenas um seio.« O termo wetsa, por outro lado, é componente da expressão que designa “parente” (wetsa ma, literalmente, “não outro”) e “não parente” (wetsa ma marivi ou yora wetsa revi), o que caracterizaria a heroína como o “outro” por excelência, a ponto de dar origem aos civilizados. Trazendo a interpretação para este rumo, faz sentido considerar que Shoma também é o nome que os Marúbo dão a certas mulheres sobrenaturais, cujas ações são descritas nos cânticos de cura, durante os quais elas entram no corpo do doente, expulsando a doença e limpando-o (MELATTI, 1985, p. 122).

A Figura 12 é uma ilustração feita por um dos informantes de Delvair Montagner, detalhando um indivíduo enfermo deitado na rede e sendo curado.

Figura 12 - Ilustração de um informante de Delvair Montagner feita em 1982, demonstrando um enfermo sendo curado.

Fonte: MONTAGNER, 1996.

O item número 1 corresponde a um indivíduo enfermo deitado na rede. O item 2 é a representação de Sroma lavando a doença do enfermo através de seus pés e braços (item 3). O item 3 mostra também a representação do Espírito Malevolente da Minhoca. O item 4 mostra Rewepei auxiliando na cura. No item 5 Sroma assusta o Espírito Malevolente da Sucuriju utilizando fogo. Ao fundo a representação de duas sumaúmas que fazem vento a fimd e resfriar o corpo enfermo e ao mesmo tempo afugentando o Espírito Malevolente (item 3) (MONTAGNER, 1996).

Delvair Montagner sobre os dois espíritos afirma:

Às vezes tem-se a impressão de que Sroma transforma-se nos próprios elementos purificadores, Doce, Azedo, e outros, invocados por ela para curar o paciente. Apesar de ser um espírito mutante, não ultrapassa certas fronteiras, trabalhando em conjunto com outros espíritos benevolentes restauram a harmonia fisiológica do paciente, naquilo que não tem poder de dominar: fazer o doente falar, andar, comer, etc (MONTAGNER, 1996, p. 99).

Ela continua:

Na briga entre o espírito malevolente, Sroma ou Onisrãco, estes empregam elementos destruidores e combativos, como por exemplo, a fumaça gigantesca para fazer medo ao espírito malevolente e às vezes toma formatos variados; gritos; correrias; fechamento do caminho para o espírito malevolente não achá-lo após sair do corpo do paciente; e outros. Por sua vez, Sroma defende-se do espírito malevolente, com um escudo ou fazendo-se acompanhar de uma onça (MONTAGNER, 1996, p. 99).

De acordo com Delvair Montagner, os Marúbo tem lucidez no que se refere às doenças, mas ainda sim têm a necessidade de buscar a cura através de um curador. Sobre isso, ela diz:

Os Marúbo têm consciência da ação da doença sobre o organismo, mas há uma necessidade psicológica de que o espírito benevolente através das palavras do curador edifique uma figura análoga a ela por meio do cântico e, ao mesmo tempo, cure simbolicamente o enfermo. Desta forma, a doença e a cura se materializam verbalmente na mente do paciente, mediante o que lhe é conhecido e captado pelos sentidos. Daí a importância da atuação do curador, pois através do canto ele “faz”, constrói o Bicho da Doença (espírito malevolente), ao emendar as partes que o compões. São as suas palavras (texto do cântico) que também destroem o “Bicho”, ao empregar as qualidades dos espíritos purificadores e restauradores, que simbolizam os remédios, a Saúde, curando o corpo. (MONTAGNER, 1996, pp. 71-72)

Novamente, assim como nas camadas, existe a simbologia referente aos elementos (água, fogo, vento), porém, diferente do simbolismo nas camadas cósmicas, no caso dos xamãs, eles personificam a batalha entre Sroma e Onisrãco contra os diversos espíritos malevolentes que causam as doenças. Literalmente, os curandeiros invocam esses espíritos a fim de expurgar a doença, travando uma batalha dentro do próprio corpo enfermo. Cabe dizer ainda que os cânticos podem (e são) alterados conforme a vontade dos cantadores. Alguns criam partes aleatórias e englobam em meio aos cânticos. Outro fator importante a ser levantado é a importância social (e estrutural) dos xamãs, sobretudo dos romeya. Ele tem a função de líder político e espiritual, fazendo o elo entre os espíritos (yobé) e o mundo terreno. Através dele é que se delimitam diversos assuntos, como o planejamento de festivais, advertências a quem quebra alguma regra social e também é ele quem intervém em assuntos de cunho social como roubos ou outras coisas do gênero. A figura do xamã está entre a figura política de chefe/líder da maloca com a figura do sobrenatural e do conhecimento dos espíritos, denotando uma importância simbólica congruente.

7. Estrutura social e organização espacial

Os Marúbo não se encontram em aldeias, mas sim em malocas38 geralmente construídas em lugares elevados (como colinas) e nela abrigam-se sempre em um núcleo de famílias elementares.

Sobre as famílias elementares, Melatti diz:

Seus membros geralmente têm suas redes num mesmo chanã, isto é, uma certa porção do espaço da maloca. Está é construída de tal modo que dispensa pilares no centro, onde fica um pátio interno, coberto, retangular. Al longo de cada lado maior desse quadrilátero há duas filas de pilares que sustentam a maloca. Cada espaço quadrado marcado por quatro desses pilares é um chanã. No limite entre o chanã e o pátio interno (chanã naqui) cada mulher casada tem o seu fogo de cozinha. Além de dispor de um espaço privativo na maloca, cada família elementar se utiliza de um segmento da roça; ainda que os habitantes da maloca ou de malocas vizinhas se ajudem mutuamente na derrubada, no plantio, na colheita (daqueles produtos que são colhidos de uma só vez, como o milho); as sementes pertencem a cada mulher, e cada uma delas usa alimentos colhidos no seu pedaço de roça. Assim, marido e filhos dependem primariamente das sementes e da seção de roça da esposa e mãe. Apesar da falta de dados exaustivos sobre as expectativas de comportamento de cada membro da família elementar com relação a cada um dos demais, os aspectos apresentados parecem permitir considerar a família elementar como um grupo (MELATTI, 1977, pp. 85-86).

Melatti ainda explica a relação dentro das malocas:

Mas os habitantes de uma mesma maloca parecem formar um grupo bem definido. Cada maloca tem um ou dois cacáya (ou tuxauas, termo que usam os Marubo quando falam português). Os cacáya coordenam as atividades da maloca, fazem a divisão da roça em lotes para as mulheres e ainda são responsáveis pela etiqueta para com os moradores de outras malocas: são eles que os convidam para as festas, são eles que os recebem, são eles que espantam os cachorros que ficam em volta dos visitantes durante a refeição, são eles que servem a caissoma (bebida fermentada) de pupunha, são eles que vão à frente quando entram em visita em outra maloca. Em ocasiões solenes, fazem discursos com uma entoação ritual. Não parece haver uma autoridade superior à dos cacáya e que ultrapasse o âmbito da maloca. Normalmente os homens de uma mesma maloca fazem suas refeições em comum sentados em dois bancos compridos (quenã) e paralelos, no interior da maloca, junto a sua entrada principal. A esposa ou esposas de cada um trazem os ali­mentos em tijelas de cerâmica e cada homem se serve dos recipientes que lhe foram diretamente oferecidos como dos demais. As mulheres também fazem sua refeição em comum, no pátio interno. Já dissemos que os moradores da mesma maloca trabalham juntos nas fainas agrícolas. O mesmo acontece nas pescarias com entorpecente. Cada maloca também parece se constituir numa unidade ritual: cada uma realiza os ritos tradicionais e convida as demais. Essa unidade ritual parece estar representada de modo visível pelo pátio interno (chanã naqui), onde se realizam danças e cânticos nos ritos, pelos dois bancos (quenã) paralelos, onde os homens fazem as refeições diárias, recebem as visitas e participam das sessões xamânicas, pela presença do trocano (aco), que se faz soar sobretudo nos ritos (MELATTI, 1977, pp. 86-87).

Sob essa premissa é possível fazer algumas considerações. A maloca tem um uso coletivo e vai além do uso como moradia, sobretudo porque tem também possui uma utilidade ritual. As malocas39, como dito ao decorrer deste trabalho, são consideradas as representações do corpo40. A inauguração da maloca é precedida por um rito e transforma-se em um evento coletivo, como a maior parte do cotidiano Marúbo, que segundo os pesquisadores Julio Cezar Melatti e Delvair Montagner em seu relatório de campo (1975), praticamente tudo acaba sendo pretexto para se visitar parentes.

As imagens a seguir, ilustram o esquema estrutural de uma maloca:

Figura 13- Estrutura da maloca Marúbo.

Fonte: MELATTI & MONTAGNER, 1986.

Figura 14 - Esquema do interior de uma maloca.

Fonte: MELATTI & MONTAGNER, 1986.

Figura 15 - Entrada masculina de uma maloca Marúbo. Grafite, 420x297mm, 2004.

Fonte: CESARINO, 2011.

Neste último desenho, realizado por Cesarino (2011), representa a entrada masculina de uma maloca Marúbo. Os bancos (kenã) paralelos sentam-se exclusivamente os homens para as refeições e rituais xamânicos. Sobre ele, o romeya estende a rede presa a uma das pilastras que sustenta o trocano41 e uma das pilastras principais da soleira42 da porta. Ao lado esquerdo da porta, encontram-se as garrafas com ayahuasca (oni chomo); ao lado direito, por entre a palha da parede, encontra-se o inalador de rapé (rewe). Os homens acompanham as sessões xamânicas sentados no banco e as mulheres deitadas nas redes distribuídas pelas seções familiares laterais (shanã naki, repã) ou sentadas no chão, no lado externo das extremidades inferiores dos bancos (CESARINO, 2011).

Os Marúbo se dispõem em unidades matrilineares43, ou seja, em seções cuja descendência é relativa de avó para neta alternadamente. Por exemplo: A avó é da seção “Arara Vermelha”, seus filhos pertencerão à seção “Gente da Saracura” que por sua vez darão à luz filhos da seção “Arara Vermelha” novamente. Embora os Marúbo considerem cada seção unitariamente é possível agrupa-las duas a duas, considerando assim cada par como um clã matrilinear alternado.

Acerca disso, Julio Cezar Melatti e Delvair Montagner em seu Relatório de campo (1975), relatam uma conversa com um Pastor que os informou a respeito das seções matrilineares Marúbo:

Logo nos primeiros dias de pesquisa, disse-nos o Pastor John Jansma que os Marubo, embora não tivessem um nome para se autodesignarem, estavam divididos em subgrupos que tinham nomes; e enumerou vários desses nomes. Repetindo as ideias correntes entre os Marubo, o Pastor parecia considerar esses subgrupos como grupos tribais do passado que acabaram se unindo num só grupo, os Marubo. Mas chamou a atenção também para um fato curioso: acontecia de um pai pertencer a um subgrupo, a mãe a outro e os filhos a um terceiro. O levantamento de genealogias e o recenseamento vieram nos mostrar que tais subgrupos eram constituintes de grupos matrilineares... (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 40).

No mesmo Relatório, os pesquisadores notam que a partir de sua regra de descendência, não se tratam de grupos tribais, como o Pastor havia lhes informado, mas sim de componentes de uma mesma sociedade, estruturado com base em elementos de parentesco. Os pesquisadores dispõem de um quadro ilustrando melhor acerca disto. Elena Welper também faz uso do mesmo esquema acrescentado dos nomes das seções, entretanto alguns nomes aparecem sob outra grafia, o que acredito ser apenas uma mudança na escrita por opção da autora, não influenciando no resultado final. Na tabela abaixo utilizo das informações apresentadas no Relatório de campo (1975) e por Elena Welper (2009) para demonstrar as unidades matrilineares juntamente com cada seção respectiva.

Tabela 4 - Unidades Matrilineares e Seções

UNIDADE

SEÇÕES

A

A1. Sranenáwabo (Shanenáwabo)

POVO AZUL (OU VERDE)

A2. Isconáwabo

POVO JAPÓ

B

B1. Varináwabo (Barináwabo)

POVO SOL

B2. Isconáwabo ou Tamawábo

POVO JAPÓ OU POVO FLOR DA ÁRVORE

C

C1. Txonabo

POVO MACACO BARRIGUDO

C2. Isconawábo ou Shono

POVO JAPÓ OU POVO SAMAÚMA

D

D1. Srãwábo (shawãbo)

POVO ARARA VERMELHA

D2. Isconawábo, txaskõnawabo ou metxanawabo

POVO JAPÓ, POVO SARACURA OU POVO POÇA

E

E1. Satanáwabo

POVO ARIRANHA

E2. Isconawábo ou Robonáwabo

POVO JAPÓ

F

F1. Nináwabo

POVO FLORESTA

F2. Ranenáwabo

POVO ENFEITE

G

G1. Nináwabo

POVO FLORESTA

G2. Inonáwabo ou Namanawabo

POVO ONÇA OU POVO JURITI

H

H1. Wanibo

POVO PUPUNHA

H2. Camãnáwabo, Coronáwabo ou Inonáwabo

POVO ONÇA PEQUENA OU POVO ONÇA PARDA

I

I1. Cananáwabo

POVO ARARA AMARELA

I2. Inonáwabo

POVO ONÇA GRANDE

J

J1. Chaináwabo

-

J2. Yenenáwabo

-

K

K1. Nináwabo

-

K2. Nomanáwabo

-

Melatti (1977) ao cruzar os dados obtidos através de um novo censo demográfico percebeu que cada unidade é exogâmica, ou seja, nelas encontra-se o cruzamento de indivíduos que não são aparentados ou possuem um grau distante de parentesco. Além disso, percebeu alguns problemas a respeito desta questão da exogâmia, como o fato de uma mesma nomenclatura aparecer em mais de uma unidade matrilinear, como é o caso dos Isconáwabo que aparece nas unidades A, B, C, D e E. A seção Nináwabo também aparece em mais de uma unidade: F, G e H. Sobre isso, Melatti diz:

Mas, a julgar pelo caso de Isconáwabo, estamos lidando com categorias diversas designadas por uma só denominação. De fato, um informante mais de uma vez fez a distinção entre: os vários Isconáwabo. Assim, citou certo indivíduo como pertencente a uma classe de Isconáwabo também chamada Tamawábo (B2); numa segunda ocasião chEmou-a de Tamaíscobo, uma combinação das duas denominações. Citou o irmão de sua esposa como pertencente a outra classe de Isconáwabo, também chamada Robonáwabo (E2), ou, como disse numa outra vez, Roboíscobo. Indicou mais outro, como incluído numa terceira classe de Isconáwabo, também chamada Txascõnáwabo (D2) ou Metxaiscobo . Apontou ainda outro, como uma quarta classe de Isconáwabo, também chamada Sronoíscobo (C2). Citou a própria mãe como pertencente a uma quinta classe de Isconáwabo, que não dispõe de outra denominação (A2). Essas informações confirmam plenamente nossos dados obtidos no recenseamento e nas genealogias, pois cada classe de Isconáwabo apontada por elas alterna, em linha feminina, com uma denominação diferente correspondente às gerações contíguas. Por conseguinte, Isconáwabo seria uma denominação única para categorias diferentes. Fica apenas uma dúvida: se Txascõnáwabo equivale a uma categoria Isconáwabo (D2), como quer um informante, ou se corresponde à categoria Srãwábo (D l), como quer outro. De qualquer modo, é significativo que a discordância fique dentro da unidade matrilinear D, por nós construída. Fica assim, parece, resolvida a dúvida com relação à presença de uma mesma denominação nas unidades matrilineares A, B, C, D e E. (MELATTI, 1977, pp. 94-95).

As nomenclaturas são acompanhadas de nawabo que tem o significado de “gente de”, enquanto o sufixo bo indica o plural. Quando se trata de se referir à mulher, o sufixo passa a ser srabobo. Vale salientar que muitas vezes as palavras aparecem com a grafia wavo que ao que tudo indica tem o mesmo significado.

Melatti (1977) ilustra a disposição das categorias nas unidades matrilineares:

Figura 16 - Esquemas sobre a disposição das categorias nas unidades matrilineares. Da esquerda para a direita, as unidades correspondentes B, E e H.

Fonte: MELATTI, 1997.

Outra dificuldade percebida sobre o agrupamento das categorias por pares foi a dúvida sobre o reconhecimento dos Marúbo acerca da existência ou não dessas unidades matrilineares. Os Marúbo, ao que tudo indica, aparentemente não nomeiam cada combinação unitariamente, mas juntam as nomenclaturas por par, de acordo com as relações de parentesco.

Através da imagem da tabela a seguir, é possível observar as categorias indicadas por local/maloca e o número de habitantes, sendo “m” para representar indivíduos do sexo masculino e “f” para representar indivíduo do sexo feminino. A tabela se divide entre os chefes de cada maloca. As letras representam cada qual sua seção matrilinear. “Nascidos fora” representam os indivíduos que são filhos de pais Marúbo, mas que nasceram e moram fora das terras Marúbo. “Emigrados” representam os indivíduos que passaram a viver com os civilizados. “Ausentes” são os indivíduos que se encontravam entre os civilizados momentaneamente, mas que retornariam. “Raptados” representam os indivíduos (mulheres) Marúbo que foram raptados por membros de outra etnia. “Sem residência fixa” representa as malocas sem um local fixo ainda definido. “Civilizados” representam os indivíduos não índios que se casaram com um (a) Marúbo e passou a viver entre eles (MELATTI, 1975).

Com base no quadro do anexo b é possível fazer algumas considerações. A primeira dela é o fato dos grupos não possuírem o mesmo número de indivíduos, por exemplo, o grupo matrilinear “A” possui o maior número de indivíduos. A seção “I” em 1977 (ano referente ao quadro e as informações utilizadas) corria risco de extinção, uma vez que só possuía oito indivíduos, sendo apenas duas mulheres — lembrando que os Marúbo são grupos matrilineares. Infelizmente não disponho de dados atuais para saber se houve a extinção desta seção ou não.

O levantamento desses dados foi realizado no ano de 1975 e atualizado em 1977. A única diferença entre o levantamento realizado foi um indivíduo a mais em 1977 somando 402 membros, sendo 197 homens e 205 mulheres contra 401 indivíduos, sendo 196 homens e 205 mulheres, em 1975.

Através desses dados é possível traçar um comparativo com a Tabela 1 e notar o crescimento demográfico dos Marúbo ao longo da segunda metade do século XX. Vale lembrar que os dados da Tabela 1 foram construídos com base em diversos etnógrafos, enquanto os dados do anexo b foram coletados primariamente por Julio Cezar Melatti e Delvair Montagner, em 1975 e posteriormente atualizados em 1977. As diferenças entre os dados talvez se dê por esse motivo.

É possível analisar a disposição geográfica de cada grupo. De acordo com Melatti (1975), os grupos “H” e “I” se concentravam em malocas próximas a Missão Novas Tribos do Brasil, em Vida Nova, no Rio Ituí. Já o grupo “A” se encontrava nas malocas do Rio Ituí e o grupo composto pelas malocas de João Grande, João Pequeno e Miguel que se localizavam em um dos braços do Igarapé Maronal44, enquanto o grupo “F” se encontrava na adjacência do rio Curuçá. Já o grupo “B”, se encontrava no Maronal e no Curuçá, além de duas malocas vizinhas no Rio Ituí. Vale lembrar que essa distribuição é de meados do século XX, e como abordado no decorrer deste trabalho, só após os atritos com os Mayorúna é que houve o deslocamento de boa parte dos Marúbo para o Rio Ituí.

Sobre a disposição geográfica dos grupos, Melatti salienta:

Essa disposição geográfica dos grupos matrilineares é recente, pois sabemos que há quinze anos os Marubo estavam todos concentrados no Maronal. Entretanto, a memória dos Marubo ainda vislumbra uma distribuição mais antiga desses grupos, talvez anterior ou contemporânea à primeira ocupação da área pelos civilizados. Assim, mais de um deles admite que outrora os Sranenáwabo (A1), os Barináwabo (B2) e os Isconáwabo habitavam o Ituí. Não tivemos o cuidado de saber a qual dos subgrupos Isconáwabo se referiam, mas provavelmente deveriam ser o A2 e o B2, que formam grupos matrilineares com A1 e B1. Admitem também que os Cananáwabo (I1) e Inonáwabo (I2) habitavam o Javari. Havia dois subgrupos, hoje desaparecidos, os Chaináwabo e os Yenenáwabo, que moravam no Curuçá ou num de seus afluentes. Além disso, mais de um Marubo nos afirmou que havia combates entre esses grupos no passado (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 43).

Melatti (1977) trata ainda dessa questão, que segundo ele, remonta tempos mais antigos, anterior até mesmo do contato com os civilizados. Ele diz:

Mas os Marubo falam de um passado mais remoto, talvez do tempo anterior ao primeiro contato com civilizados, em que as categorias tinham uma localização mais bem definida. Há um consenso, entre os poucos indivíduos que nos informaram sobre isso, que os Sranenáwabo (Al), os Barináwabo (B1) e os Isconáwabo habitavam outrora o Ituí. Mas a que categoria denominada Isconáwabo estariam se referindo os informantes? Segundo uma informação, a denominação Isconáwabo aqui se refere à categoria que indicamos como B2. Se as categorias Al. Bl e B2 viviam no Ituí, é provável que os membros da categoria A2 ai também estivessem, se admitirmos que os casamentos não implicavam em deslocamentos para áreas muito remotas. Por outro lado, informantes dignos de confiança nos asseguraram que os Wanibo (H1), os Camanáwabo (H2), os Inonáwabo (I2), os Cananáwabo (I1), são originários do Javari. Os Nináwabo (G1) e as desaparecidas categorias Chaináwabo (J1) e Yenenáwabo (J2) teriam vindo do Igarapé Santa Clara, um afluente do Curuçá, ao norte do Amburus. Boa parte das outras categorias provavelmente seria da região intermediária do Arrojo e Maronal, afluentes do Curuçá (MELATTI, 1977, p. 106).

Ao que tudo indica a junção entre as seções Sranenáwabo, Barináwabo e Isconáwabo por um lado, e das seções Inonáwabo, Cananáwabo e Wanibo, por outro, se dá a tempos mais remotos, além da antiga localização espacial. Isso pode ser observado em uma das versões de Wenía, que relata que as seções Barináwabo, Sranenáwabo e Isconáwabo saíram ao mesmo tempo do seio da terra, enquanto os Inonáwabo, os Cananáwabo e os Wanibo surgiram em outro local, também ao mesmo tempo. Os Ranenáwabo e os Satanaáwabo surgiram juntos, em outro agrupamento (MELATTI, 1977).

Sobre isso, Melatti coloca:

A versão apresentada, ou seus comentários, indicam as seções a que pertencem alguns de seus personagens. Shoma Wetsa, por exemplo, era da seção dos Nináwavo, e seu filho, Rane Topáne, era contado entre os Ranenáwabo (no trabalho citado indicadas, respectivamente, como seções 1 e 2 da unidade matrilateral F). Por sua vez, Shetã Veká era da seção dos Varináwavo (B l), sendo de esperar, portanto, que seus filhos fossem todos Tamaoávo, também ditos Iskonáwavo (B2). Entretanto, os esclarecimentos de Firmino dizem que Nete Wãni (Estrela d’AIva) e Yaméwa (Vésper) são Shanenáwavo (A l), enquanto os animais gerados por Shetã Veká não pertencem a nenhuma seção, por não serem gente. Quanto aos filhos dela com Rane Topáne, sua seção não é explicitada. Por sua vez, os noivos de Shetã Veká — Nirõ Vimi e Nirõ Washmén — eram Iskonáwavo, uma informação insuficiente, pois há várias seções com esse nome (A2, B2, C2, D2, ou E2; como Shetã Veká era Bl, a regra de exogamia eliminaria a possibilidade de os noivos serem B2) (MELATTI, 1985, p. 121)

É possível notar que, como já dito anteriormente, que os nomes pessoais dos Marúbo às vezes recebem o prefixo nominal referente á seção a qual pertence. Analisando os personagens míticos de Wenía, pode-se entender melhor, por exemplo: Rane Topáne que pertence à seção dos Ranenáwabo. Entretanto, outro fato que pode ser observado no mito é a quebra das regras de seções Marúbo. Melatti explica:

Com base nisso, podemos supor que o amante de Shetã Veká, a cobra Shane Rono* pertença à seção dos Shanenáwavo, o que nos reconduz ao fato de os personagens Estrela d’AIva e Vésper estarem afiliados a essra mesma seção, portanto, à de seu pai, ao invés, como seria de se esperar, da seção alternativa da mesma unidade em que está incluída a seção da mãe. Também é digno de nota que um dos filhos de Rane Topáne se chama Noín Koa, em que Noin significa “lombriga”, animal cuja forma também tomava o amante de Shetã Veká. Neste caso, o filho nem mesmo se afilia à seção do pai, mas se relaciona de algum modo ao ex-amante da mãe. Em ambos os casos, o mito rompe a transmissão matrilinear através de gerações alternadas, ainda que Noin não seja nome de uma seção Marúbo. Quanto aos nomes dos noivos desprezados por Shetã Veká — Nirõ Vimi e Nirõ Washmén —, ambos se iniciam com o vocábulo Nirõ, que pode ser uma flexão de Niro, que significa “macaco-da-noite”, animal, segundo o mito, parente de Shoma Wetsa. Os noivos poderiam estar, por conseguinte, relacionados, de algum modo, com esta última. Esses dois homens poderiam ser, portanto, da mesma unidade matrilinear de Shoma Wetsa; porém, se nos ativermos ao rompimento acima notado que o mito faz com as regras Marúbo no que tange a nomes, poderemos supor que o pai desses homens (que não figura no mito) é que poderia pertencer à dita unidade matrilinear (MELATTI, 1985, pp. 121-122).

Com base em todas as observações apresentadas — sobretudo de Julio Cezar Melatti — é viável considerar que as seções existiam unitariamente e se agruparam a fim de formarem um único grupo social, os Marúbo. Entretanto, seria difícil que as seções existissem como agrupamento — povos distintos —, uma vez que todas são exogâmica, tendo como regra de descendência a associação de duas a duas. Porém, não é impossível que algumas tivessem se constituído como agrupamentos, como é o caso das seções Barináwabo, Sranenáwabo e duas outras classificadas como Isconáwabo, formassem uma tribo no Rio Ituí. Os Cananáwabo, os Inonáwabo, os Wanibo e os Camãnáwabo, também podem ter constituído outro conglomerado no Javari. Já os Nináwabo, os Chaináwabo, e os Yenenáwabo e provavelmente alguma outra seção, poderiam ter composto outro mais ao norte, enquanto as categorias restantes constituiriam outro no Arrojo e no Maronal. Se isso ocorreu, houve então, um sistema de casamento através de primos cruzados bilaterais, termos de parentesco separado por gerações alternadas (MELATTI, 1977).

Essa ideia é comprovada através da oralidade histórica dos Marúbo, uma vez que se referem aos pares das seções alternadas como exôgamicas. Afirmam, ainda que, “antigamente esses povos não viviam todos misturados, pois os casamentos eram feitos entre as ‘pessoas certas’” (WELPER, 2009).

Elena Welper (2009) esquematiza acerca disso:

Tabela 5 - Esquema de Welper que demonstra a relação matrimonial entre as seções matrilineares Marúbo.

os shanenawavo casavam com os varinawavo”:

A

B

A1 shanenanawavo

B2 tamaoavo, iskonawavo

A2 iskonawavo

B1 varinawavo

 

os kananawavo casavam com os waninvo”:

I

H

I1 kananawavo

H2 kamanawavo, inonawavo

I2 inonawavo

H2 waninvo

 

 

ninawavo com os chainawavo”:

G

J

G1 ninawavo

J1 yenenawavo

G2 inonawavo

J2 chainawavo

Fonte: WELPER, 2009.

A associação entre as seções matrilineares, acrescida do retrospecto histórico dos ancestrais, enfatiza a ideia de que primariamente se dispunham em grupos dialetais45 e endogâmicos, diferentemente das seções mais recentes que se dispõem em grupos exogâmicos, o que leva a acreditar que os Marúbo se resultam de uma junção de diversos povos. Essa ideia será melhor tratada no próximo capítulo.

8. Cisões e reogarnização social

8.1. Exploração do Javari

A exploração e ocupação do Vale do Javari ocorreram em ordem cronológica, sendo primariamente ocupado pela instalação de aldeias jesuítas, depois pela exploração de pesca e coleta de drogas do sertão e por fim, a exploração do caucho e da seringa a partir do meio do século XIX (MELATTI, 1981). A exploração derivada do caucho e da seringa foi a maior responsável pela efetiva ocupação do Javari, uma vez que, de acordo com Melatti (1975), só existe informação de uma cabana entre a foz do Javari e a confluência junto ao Itacoai, pertencente ao filho de um oficial brasileiro, antes de 1850.

À medida que o preço da borracha foi disparando internacionalmente, a região começou a receber migrantes e tão logo, estava ocupada por barracões e patrões. Segundo o Relatório de campo (1975) de Melatti e Montagner, em 1874 já existe a notícia de que o Javari recebia migração sob o propósito da exploração da seringa.

Em 1899 o Javari já estava bem povoado até a conf1uência com o Itacoaí; a navegação era efetuada com regularidade até essa confluência, onde estava o povoado Remate de Males; no tempo das cheias os vapores subiam até o Curuçá; daí para cima o Javari só era navegado por lanchas até a confluência com o Galvez (afluente da margem peruana). No mesmo ano se calculava que a população do Javari acima da confluência do Galvez (quando passa a ter o nome de Jaquirana), do Batã e de grande parte do Ipixuna (afluente do Juruá)e seus afluentes era superior a cinco mil pessoas, todas de origem peruana, sendo que os patrões e os agentes das casas fornecedoras de Iquitos falavam o espanhol e os trabalhadores, indígenas, falavam o quíchua. O Itacoaí era então habitado por cerca de 1.500 cearenses e peruanos, que extraíam o caucho e a seringa. Esses dados se baseiam no bom resumo de Branco (1950, pp. 204-207) (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 6)

Houve também, a migração de negros caribenhos para a região, como demonstra Elena Welper (2009), em uma de suas notas de rodapé:

Entre o final do século XIX e começo do século XX, houve um significativo movimento migratório de negros originários do Caribe, e mais especificamente da colônia inglesa de Barbados, para Belém e outras cidades da Amazônia. O termo “barbadiano” foi empregado como uma categoria englobadora, atribuída a estes negros que portavam nomes anglo-saxônicos, falavam inglês, eram protestantes e que aqui não foram introduzidos como escravos. Referências a presença “barbadiana” na Amazônia também aparecem nos escritos

sobre a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (Pinto Lima, 2006:14). Dico, que hoje vive em Atalaia do Norte, disse não saber a nacionalidade de seu pai José Armando Waldik, “que falava muitas línguas, inclusive a “lingua geral”. Sabe apenas que viera por terra da Colômbia, onde teria ficado um primo seu, até Iquitos (via rio Branco) e daí entrado no Brasil, alcançando diretamente as cabeceiras do Curuçá e se instalando pouco acima da boca do Amburus. Sua mãe, Maria Andréa, seria uma “cabocla kampa”, muito forte e valente, que seu pai conheceu no curso desta viagem. O casamento deles foi feito no rio Curuçá por frei Felipe (WELPER, 2009, p. 83).

Curiosamente, no Relatório de campo, descrevem um negro natural da Ilha de Barbados, cujo apelido era “Inglês” e era patrão no alto Curuçá. Os pesquisadores tomam o relato de seu filho Federico Waldick, tratado apenas por seu apelido, “Dico”.

Isso nos leva a examinar as informações sobre o rio Curuçá. Dico, quando menino, morava com sua família. no Curuçá, acima da foz do igarapé Amburus. Do barracão de seu pai, "Inglês", podia-se ir às malocas dos Marubo, localizadas no igarapé Maronal, mais acima. Havia uma maloca antes do Maronal. Havia pelo menos oito malocas Marubo. Os Mayo moravam para as bandas do Amburus. Os Mayo e os Marubo muitas vezes queriam brigar entre si junto mesmo do barracão de seu pai. Em 1933, os Marubo mataram os Mayo que trabalhavam com "Inglês" (ele lidava com caucho) e carregaram suas mulheres. Aí não foram mais ao barracão de seu pai, com medo dele. Junto dos Marubo, no Maronal, morava Antônio Rosa, um preto velho maranhense que fora "patrão" de seu pai logo depois que ele chegou de Iquitos; depois quebrou-se. Na foz do Cravo, um afluente do Arrojo (que desemboca no Curuçá abaixo do Amburus) vivia Chapiama, pai do futuro sogro do informante. Esse homem incitou os Marubo a matarem "Inglês", mas eles não o fizeram; porém levaram três rapazes Marubo que seu pai criava. Na foz do Arrojo morava o "patrão" de "Inglês" e de Chapiama: era Zé Costa. Este por sua vez era aviado por um regatão que era empregado de Afonso Alvim, um português que então era o "dono” do Curuçá. Foi o único "patrão" que não se quebrou na crise da borracha; mas morreu em 1938 e aí tudo fracassou. Havia um peruano, chamado Vargas, que era "tuxaua" entre os Marubo; alguns destes o mataram e foram depois morar no Javari; eram os Marubo que já citamos ao falarmos no seringal da foz do Batã. (MELATTI & MONTAGNER, 1975, p. 12)

Elena Welper conversou com Dico em Setembro de 2008, e segundo ela o mesmo relato foi feito a ela, porém, ela destaca alguns detalhes da conversa. De acordo com Welper (2009), Dico relatou que Inglês havia chego ao Curuçá três anos de seu nascimento, em 1920. Neste período, o caucho era explorado por alguns peruanos que não foram embora e alguns civilizados, como Antônio Rosa e Chapiama, entretanto, não existiam Marúbo trabalhando neste período. De acordo com o relato de Dico à Welper, foi seu Pai, Inglês quem os “amansou” e os levou para trabalharem no Igarapé Bonfim, onde ensinou os Marúbo a tirar o caucho e a atirar com espingardas. Welper descreve que de acordo com Dico, Inglês teria sido não somente o primeiro patrão dos Marúbo, mas o único. Welper relata:

A casa de seu pai era bastante visitada pelos “índios marubo”, mas também por alguns índios “mayo” que “toda vida trabalharam com peruanos”. Os “índios marubo”, porém, sempre foram mais “direitos” que os Mayo: “Eles foram ensinados a não mexer. Parece que colocaram isso na cabeça”. Eram cerca de 60-70 indivíduos, “tinham a cara redonda” e eram “veteranos” do Maronal, do Curuçá. Por temerem os Mayo, não andavam pelo Javari (território destes índios), embora por vezes frequentassem o Ituí. No alto Curuçá, os Mayo (cerca de 30 pessoas) tinham a “cara comprida” (WELPER, 2009, p. 84).

Com a derrocada do preço da borracha, houve um êxodo dos não índios na bacia do Javari, levando ao despovoamento quase completo. Esse esvaziamento populacional não significou o fim da exploração na região, uma vez que a exploração da borracha foi sucedida pela exploração da madeira. Sobre isso Coutinho diz:

Após um breve refluxo da economia regional nos anos 20 e 30, interregno durante o qual houve um rearranjo social, demográfico e territorial das parcialidades indígenas sobreviventes, toma grande impulso na região, em meados da década de 40, a atividade extrativa da madeira. A exploração madeireira, ao longo dos principais tributários da bacia do Javari, assim como Jandiatuba e Jutai, afetou desde então todos os povos indígenas dessa região, que novamente tiveram seus territórios invadidos e suas malocas assaltadas.

Como defesa ou retaliação, os índios passaram a atacar turmas isoladas de madeireiros, provocando a fuga parcial do alto curso dos rios entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60. Os ataques indígenas — e os interesses econômicos que eles afetavam — provocaram a ação punitiva de grupamentos do Exército brasileiro, acompanhados por madeireiros, que arrasaram algumas malocas em afluentes do Javari e do Curuçá. (COUTINHO, 1980, p.2096 apub WELPER, 2009, p. 85).

Neste período os Marúbo se encontravam nas cabeceiras do Rio Arrojo, o que fez com que tivessem contato mais tardiamente com as empresas madeireira, sendo somente na década de 60 que esta prática se tornou rentável a eles (WELPER, 2009).

Em 1971, com a construção da Rodovia Perimetral Norte e em apoio as pesquisas de prospecção de gás natural e petróleo realizadas pela Petrobrás, a FUNAI foi implantada na região do Vale do Javari, instalando os Postos Indígenas de Atração (PIA) próximo as aldeias mais isoladas. Na década de 80, a FUNAI envia três equipes para estudar a situação das terras e viabilizar a criação de um Parque de proteção. Em meados da década de 80, já sob-resultado da Proposta de criação do Parque, a FUNAI limitou a entrada de regatões, que não poderiam ultrapassar os PIAs instalados no Médio Curuçá e Ituí. Somente em 1998 é que a área foi finalmente reconhecida como “Área de Proteção Etnoambiental” sob a portaria 818/1998. Com a homologação da área, foi proibida à extração de madeira e a venda de carnes e couros de animais, inclusive os próprios indígenas. (WELPER, 2009).

Welper coloca que os próprios indígenas se mostram contraditórios a respeito disso:

por esta razão, os Marubo — que já estavam engajados na economia local — por vezes demonstram sentimentos contraditórios a respeito do “fechamento” do Vale. Alegam que, naquele tempo, todos tinham trabalho e não precisavam viajar para adquirir as mercadorias, já que estas eram trazidas pelos regatões. Se hoje estão mais conformados, isto deve-se em grande medida às aposentadorias e benefícios do Governo que, de uma certa maneira, compensaram a falta dos rendimentos obtidos com a venda da seringa, madeira ou animais (WELPER, 2009, p. 86).

8.2. Oralidade histórica Marúbo

A história oral Marúbo demonstra que em um período anterior à exploração da seringa e do caucho, as diversas seções Marúbo viviam isoladas em grupos locais endogâmicos, como visto no capítulo anterior. É descrito por Welper:

Como gostam de destacar, era muita gente (yora ãtsaka) e gente variada (yora õsiõsipa). Cada povo tinha sua língua, seus nomes pessoais, mas todos teriam a mesma tatuagem sobre a boca e usariam os mesmos adornos corporais, diferenciando-se de outros índios mokanawavo por manterem o cabelo comprido e “não andarem nus”: os homens usavam tangas (shampati) e as mulheres, saias (vatxi). (WELPER, 2009, p. 87)

De acordo com o levantamento etnográfico desta região realizado por Welper, a região contava com diversas etnias habitando, como os mayorunas, os remo, kanamari, yawanawa, arara, kaxinawa, sharanawabo, roenawa (povo Machado), entre outros. Ela descreve algumas relações entre as diferentes etnias com base nesses dados:

No rio Ituí, os shanenawavo e varinawavo foram atacados pelos oshonawa (povo branco/ garça), que desciam este rio para pegar mulheres e crianças. Os oshonawa só pegavam aquelas de “dentes bons”, as de “dente estragado” eram mortas. As meninas que, ao longo do percurso, não conseguissem fazer fogo com madeira molhada também eram mortas, e muitas crianças pequenas, carregadas em paneiros, afogavam-se nas travessias dos igarapés.

Os valentes “chihikavo”, eram “Marubo com os nomes diferentes”. Neste grupo, as mulheres também tomavam ayahuasca e faziam rezas (shõiki). Eram numerosos, mas fizeram muitas guerras “por causa de mulher” e acabaram sendo mortos por Sai Sheni, um antepassado marubo, líder de um grupo conhecido como “noinkoavo”.

Os “Noinkoavo”, por sua vez, aparecem como um coletivo comercial, composto por diversos “povos” (varinawavo, shanenawavo, inonawavo, waninawavo etc.) que teria sido liderado por chefes das “descendências” ranenawavo, satanawavo e txonavo. Sua localização original — ou poderíamos dizer de formação — foi a cabeceira do rio Bata, mas dada a sua belicosidade e atividade comercial, este coletivo se impôs a outras aldeias do alto Curuça, tendo sido responsável pelos massacres dos ninawavo e kananawavo nos igarapés Kaintekaya e Karya (Setiacha), respectivamente. (WELPER, 2009, pp. 88-89)

Welper reproduz a história oral Marúbo, que leva então a considerar que as antigas seções sofriam constantemente com conflitos intertribais, no caso dos Shanenawavo e Varinawavo descritos, ela coloca que “parte desta população migrou para a cabeceira dos Igarapés deste rio, onde se juntou as remanescentes de outros ‘povos’ nawavo, que hoje configuram a sociedade Marúbo” (WELPER, 2009).

Acerca dos relatos orais interpretados por Welper, cabe situar os waninvo, no qual são descritos como um:

tipo de waninvo, atualmente extinto, que remete a João Tuxaua, personagem principal desta tese e seu irmão, Aurélio-Topãpa, ambos filhos de uma inoshavo e Ni Tama (G1). Eles são referidos como wanin kayapavo (“os pupunha mais poderosos”) e manteriam com os demais waninvo (H1) uma relação de parentesco expressa pela categoria epa (FB). Conforme a explicação de Joaninha Raoewa (wanishavo): “nós somos chomivo, nosso epa [João Tuxaua] era wanin kayapavo, um wanin novo. Nossas tias (FZ) passaram seus nomes (shoko aka) para nós. Meus epavo (FB) eram mais poderosos. Nós somos chomivo”. Mario Kaninpapa, um homem ninawavo (G1) diz que João Tuxaua era kananawavo, o que, dada as relações de parentesco entre estas seções, subsidiaria a terminologia empregada pelos waninvo (WELPER, 2009, p. 60)

Com base nesses exemplos46, assim como no decorrer deste e do capítulo anterior, nota-se que os Marúbo designam as seções matrilineares uma identidade cultural, fazendo com que sua organização social ocorresse com base das cisões e reagrupamento das diferentes seções que embora em alguns casos possuam (ou possuíam) uma diferenciação linguística e territorialmente falando, tinham êxito com base nos sistemas de parentesco das seções matrilineares. Welper ainda conclui:

Os Marubo explicam a formação de sua sociedade e organização social como consequência de uma série de conflitos e fissões intertribais intensificados pela exploração caucheira, reconhecendo-a como resultado da união centenária de seus remanescentes: “todos nós ficamos órfãos” (noke katsese na maõchta setesho).

Neste sentido, a história oral marubo apresenta-se como uma miscelânea de relatos que remetem à experiência particular dos “sobreviventes”, algo que meus interlocutores mais velhos procuravam dizer, ao explicar que “cada avô”, “cada avó”, a despeito de sua “descendência” e trajetória, tinha uma história (yoã) diferente — são as “histórias dos outros velhos” (sheniwetsa yoã).

Afirmam, contudo, de modo consensual, que a língua falada hoje em dia era a língua dos “Chainawavo”, um coletivo que, num tempo anterior à exploração gomeira, desfrutou de uma relativa hegemonia política, atraindo pessoas de diferentes povos para sua aldeia na cabeceira do rio Tashaya (Arrojo). A designação atribuída a este grupo refere-se a seu chefe mais eminente, cujo nome era Chai (“pássaro”). De acordo com Mario Kaninpapa, foi este chefe “forte” que atraiu as pessoas para perto de si. (WELPER, 2009, pp. 100-101).

8.3. Reagrupamento e formação dos Marúbo: A liderança de João Tuxaua

Welper faz uma síntese sobre o reagrupamento que formou o que hoje são os Marúbo, a partir de acontecimentos narrados pelos próprios Marúbo. Considerando ainda que os eventos aconteceram a partir da década de 1920, quando a maior concentração da população Marúbo se encontrava no rio Arrojo.

No primeiro episódio, retrata o conflito entre os shawenwa-shaneivo47 e dois irmãos pertencentes à seção satanawavo (E1) e também, descreve a ascensão política de Aurélio-Topãpa, irmão de João Tuxaua48 (WELPER, 2009). Os shawenwa-shaneivo tinham como líder Paka Mayãpa e se constituía principalmente pela seção shanenawavo (A1) e varikayõvo. Já o grupo local dos dois irmãos (Mene e Ako), pertencia à seção satanawavo (E1) e habitavam acima do Igarapé Amburus, próximo ao barracão de Inglês49.

O conflito ocorreu quando um dos dois irmãos, mais precisamente Ako (Chico) que possuía duas esposas e quis se relacionar com a irmã mais nova de sua esposa mais velha. A esposa enciumada atacou Ako com uma tesoura e fugiu para perto de seus irmãos no Maronal. Para eles, a esposa disse que Ako queria matá-los. Esse episódio foi o estopim do conflito. Welper conta:

Os irmãos Ako (Chico) e Mene (José), prósperos chefes da descendência satanawavo, viviam próximo ao barracão de Inglês, que os tinha como empregados. Naquele tempo, moravam numa maloca de jarina (pishin), semelhante a que os Matis fazem hoje em dia. Ali eles coletavam o caucho, mas também faziam farinha e rapadura, produtos trocados por espingardas e cartuchos. Ako, o irmão mais novo, tinha duas esposas, mas quis “namorar” com a “irmã mais nova” da mais velha, identificada como Memi Tamashavo. Essa esposa ficou com ciúmes e atacou-o com uma tesoura, correndo em seguida para junto de seus parentes, os “Shawenwa-shaneivo” (shanenawavo, iskonawavo), que viviam no Maronal, mais pro lado do rio Ituí, e trabalhavam com os patrões Guilherme e Antonio Rosa. Lá chegando, Memi Tamashavo, esposa de Ako, mentiu para seus irmãos (shanenawavo), contando que seu marido queria matá-los. Os “Shawenwa-shaneivo” acreditaram e resolveram adiantar-se a ele.

Num dia em que Ako, desacompanhado de seu irmão, estava comendo em sua maloca, chegaram os “Shawenwa-shaneivo”, contando que havia gente de outra tribo querendo matá-los e que precisavam de sua ajuda e de armas. Ako vestiu roupa e chapéu verdes, pegou capa de cartucho (mara shaká) e pólvora (shopoto) para enchê-los, carregou as armas e seguiu com eles com eles, levando consigo seu sobrinho chamado Noya.

Quando alcançaram a “ponte do barrigudo pardo” os “Shawenwa-shaneivo” que estavam de tocaia os flecharam. Noya morreu. Ako caiu e continuou falando, segurando o seu rifle na mão: “O que houve cunhado? O que há contigo, cunhado? Os “Shawenwa-shaneivo” pegaram então o rifle e atiraram no peito de Ako. Em seguida, os enterraram e retornaram para pegar o irmão Mene que, àquela altura, já estranhava a ausência de Ako.

Quando os “Shawenwa-shaneivo” chegaram na maloca, Mene que estava sentado junto a porta cumprimentou-os:

- “Você chegou, cunhado”?

- “Cheguei. Pegamos uma anta gorda e queremos comer”, explicou o líder Paka

Mayãpa que, em seguida, acertou um tiro no peito de Mene. Mas como o irmão Ako, este também não morreu de imediato, pronunciando ainda algumas palavras: “O que houve cunhado? Porque faz isso?” E, seguida, golpearam-no com o bastão de bater o trocano, mas ele continuava vivo e falando: “O que houve cunhado? Você está agindo por si mesmo?”

Enforcaram-no com o cipó que prendia as bananas na maloca e jogaram seu corpo no rio.

Pegaram as mulheres e crianças para levarem embora, mas decidiram entregar as crianças a Inglês. Quando chegaram na casa deste último, ele reconheceu as crianças e perguntou, deduzindo que algo acontecerá com os pais delas: “O que vocês fizeram com José [Mene], vocês mataram José ?” Em seguida, tiros foram ouvidos.

Inglês, que se irritou ao saber que havia perdido o seu melhor empregado (“mataram um chefe bom. Um chefe que trabalhava pra gente. Como vou achar outro chefe?”), resolveu patrocinar uma retaliação contra os assassinos de Ako e Mene: “Amanhã, vamos lá no lugar dos parentes dessas crianças, chamá-los para matar os responsáveis”.

Inglês mandou chamar Aurélio-Topãpa e Domingos e, lhes fornecendo armas e munição, pediu que se vingassem dos culpados. Aurélio juntou seu pessoal e organizou o ataque: iriam atrás dos assassinos levando mudas e alimentos, de forma a mascarar as reais intenções da visita. Assim preparados, partiram seguindo os rastros dos “Shawenwashaneivo” que, tendo sido avisados sobre os planos de Inglês, correram do Arrojo em direção ao Juruá. Aurélio-Topãpa queria matá-los e pegar Memi Tamashavo — que, devido a seu ciúme, provocara o conflito entre os grupos — para entregá-la a seu “dono” que, neste caso, seria Inglês (WELPER, 2009, pp. 102-103).

O decorrer do relato descreve que Aurélio-Topãpa carregado de alimentos encontrou os shawenwa-shaneivo próximos às matas do Rio Ituí. Os alimentos eram pretexto para enganá-los, o que ao que tudo indica deu certo. Aurélio-Topãpa os atraiu até a mata, porém, um deles desconfiou das intenções dele e derrubou uma árvore em cima dos rifles, conseguindo assim fugir. Com isso, o pai do jovem foi pego e morto. Depois, o grupo seguiu para matar os demais Shawenwa-shaneivo que estavam no Igarapé Washmãya. Sob a mesma tática anterior de chegar como visita a fim de enganá-los, o grupo matou a todos. Aurélio-Topãpa avisou a Inglês que a mulher mentirosa que iniciou o conflito estava por ali, então, Inglês mandou buscá-la a fim de puni-la exemplarmente. A punição é descrita:

Cortaram sua pele e passaram sal sobre os cortes, em seguida, enfiaram espinhos em suas unhas e a amarraram numa pupunheira, para morrer sob o sol, de fome e sede. Enquanto resistiu, Memi Tamashavo chamava por seus parentes, pedia água, mas ninguém podia ajudá-la. Antes de morrer, porém, seus parentes puderam ouvi-la “cantar bonito, que nem yove”. (WELPER, 2009, p. 105).

O segundo episódio trata do conflito de Aurélio-Topãpa e os irmãos da seção shawãvo, culminando na morte de Topãpa e levando a sucessão de seu irmão, João Tuxaua.

Inicia-se quando Aurélio Topãpa entra em conflito com seus cunhados pertencentes à seção dos shawãvo, entre os anos de 1938-1944.

O episódio relata o envenenamento de um indivíduo, irmão de Shawanawava, parente dos dois irmãos mortos do primeiro episódio. O relato deixa a entender que a culpa recaí sobre Aurélio-Topãpa, que temendo vingança, ordenou que matassem Shawanawava. Os indivíduos não concretizam a ação, então Topãpa ordena a outros quatro que a realizem, sendo dois para assassinar Shawanawava e seu grupo e dois para vigiar.

Shawanawava sobrevive e se organiza e passa a fugir, sendo seguido por Topãpa. Com o passar do tempo, Aurélio-Topãpa continua a encontrar indícios de Shawanawava, desde cinzas de fogueira e coxo de Paraíba utilizado para fazer canoa, até papel e lata, sinal de que Shawanawava havia estabelecido contato com os brancos. Episódio descrito:

Quando chegou a época do milho e da pupunha, Francisco-Mispa estava com sua família pelos lados do Txomitavapakaya. Lá encontraram indícios de Shawanawa, que havia feito um coxo de paxiúba para descer pelo Kontaya até o Ituí. Encontraram também cinza de uma fogueira apagada (sinal de que recebera fogo de algum parente) e, mais abaixo, na boca do Igarapé Tantxoi, o pessoal encontrou lixo (lata, papel) — evidências de que Shawanawa havia encontrado brancos. Fizeram reza (shõka) sobre os dejetos para que os brancos morressem e voltaram para o Vai_a (igarapé Maronal).

Shawanawa, que havia encontrado os brancos no rio Ituí, pouco acima de onde está localizada, atualmente, a aldeia Vida Nova, não sabia falar português, mas mostrou o braço ferido por flecha e, dando a entender que era um índio manso atacado por índios brabos, foi levado para a cidade onde ficou conhecido como Ramon. (WELPER, 2009, p. 110)

Tempos depois, homens enviados por Aurélio-Topãpa para caçar, avistaram os brancos e partiram para informar Aurélio. Lá, se reuniram a fim de saber o que deveriam fazer. É descrito:

Na maloca, os homens reuniram-se para decidir o que fariam. Dionísio (Tae sheni) e Ernesto (Ino Pei) queriam ir atrás deles para “conversar”: “vamos falar com eles, vamos saber quem são, se são caucheiros, madeireiros, vamos pedir material para trabalhar com eles”.

Aurélio-Topãpa afirmou, no entanto, que eles eram perigosos e que iriam matá-los. Reuniu Quando alcançaram o Curuçá, espiaram pela margem do rio e viram que os nawa subiam remando em duas canoas. Eles vinham cantando e conversando. Na frente, estavam os caçadores, atrás, numa canoa menor, vinham três pessoas: dois nawa, sendo um deles o chefe e, no meio deles, Ramon (Shawanawa), que com eles conversava em português. Ernesto (Ino Pei) escutou a conversa e percebeu que Shawanawa estava dizendo o nome dos rios. Aurélio-Topãpa irritou-se e mandou matá-los na mesma hora. Tae sheni correu na frente para tentar conversar, mas quando os chamou, os outros lançaram suas flechas. Os nawa caíram na água: um deles morreu com uma flecha no peito, mas os outros nadaram até a beira do rio e escaparam por terra. O pessoal de Aurélio-Topãpa tentou atirar com o rifle dos nawa, mas não souberam manejá-lo. Tae sheni os ensinou. Aurélio-Topãpa ficou dando “carão” (tsainki) no nawa morto (que ele pensava ser Shawanawa) e não viu que estava sendo cercado pelos homens da segunda canoa, que haviam visto o chapéu flechado de seus companheiros descendo pelo rio e resolveram encostar-se à margem do rio.

Os nawa que ali aportaram saíram gritando, e a turma de Aurélio-Topãpa escondeu-se. Domingos gritou para avisar que os nawa estavam ali, mas Aurélio-Topãpa, que fazia tsainki, não escutou e foi atingido por dois tiros que lhe vararam o peito. Aurélio-Topãpa caiu estrebuchando, “mexendo as pernas”, e sua turma fugiu. Quando os nawa foram embora, voltaram para enterrar o corpo que já estava cheio de bicho. Um dos nawa flechados morreu no meio da viagem. Shawanawa foi embora para a cidade e nunca mais voltou. Lá “casou-se” com Vari Tome, irmã de Julio Caolho, que morava com seus parentes no Contrabando (comunidade próxima a Atalaia do Norte), mas depois a deixou para ficar com uma brasileira. (WELPER, 2009, p. 111).

A história pode ser confirmada por Melatti (1977):

Mas a escolha de residência após o casamento e as possíveis regras de sucessão dos líderes não são suficientes para explicar as atuais constelações de parentes em cada maloca. Conflitos e cisões também são responsáveis por elas. Por exemplo, um cacáya, acusado de ter envenenado« dois irmãos de uma de suas esposas, que na verdade morreram de meningite, viu se afastarem de sua maloca os demais irmãos dela, que foram morar junto ao marido de outra de suas irmãs. Por outro lado, as cisões das malocas Marubo parecem ter-se intensificado a partir mais ou menos do rateamento das relações com os civilizados. Por volta de 1950 existiriam, segundo algumas informações, apenas quatro malocas. Para essa intensificação deve ter contribuído o choque que os Marubo tiveram com os Mayoruna em 1960. O receio de um novo choque fez com que parte dos Marubo se deslocasse da região do Curuçá para o Ituí, então temporariamente abandonado por eles; mas há uma informação segundo a qual esse deslocamento se fez devido a acusações de envenenamento entre os próprios Marubo. (MELATTI, 1977, pp. 90-92)

Com a morte de Aurélio-Topãpa, ocorreu o exôdo por medo de retaliação dos brancos, migrando sob a liderança de João Tuxaua para a cabeceira do Igarapé Maronal. Essa realocação espacial levou a criação de kapi Vana wai (Roça da plantação de mato pasto), residência de João Tuxaua e aonde viria a exercer toda sua influência. Esta maloca é simbolicamente não apenas a origem da criação dos Marúbo, mas tem uma representação espiritual e mítica, uma vez que após a morte, os duplos dos Marúbo vão até lá. Acerca disso, Welper relata:

Nas palavras de João Tuxaua, a criação da sua morada simbolizava o abandono do “lugar morte(vei shava) e o rompimento com o ethos guerreiro, caracterizado pela “falamorte”, a “fala ruim” dos chefes que aí viveram. Inaugurava um novo tempo-lugar, onde e quando os Marubo, instruídos por sua “fala boa”, juntaram-se e viveram à semelhança dos yove. (WELPER, 2009, pp. 177-178).

Com a morte de Aurélio-Topãpa, encerrou-se os conflitos intertribais e passou-se a associar esses lideres a “fala ruim” (Vana ichnaka), uma vez que operavam contra a estabilidade populacional e a existência social do grupo. . João Tuxaua é considerado um chefe de “boa fala” (Vana roaka), sendo referenciado como “nosso governo” pelos Marúbo, uma vez que ele exercia a liderança que trouxe paz e prosperidade, aumento populacional e uma nova ordem institucional e cosmológica, além de reagrupar as diferentes seções, transformando-as nos Marúbo como pensam e agem hoje. (WELPER, 2009).

A figura de João Tuxaua tem certo teor mítico, se considerar que é considerado um yobe vake (filho de espírito), nome atribuído àqueles que “já nasceram pajé” em consequência de seus duplos benevolentes. Acreditam que ele é filho de vechã vake (sucuri - espírito da água) e de Kana Mishon (espírito da floresta). De acordo com os informantes de Welper, João Tuxaua além de ter nascido de pais místicos, em sua infância teve contato com diversos espíritos benevolentes, e isso foi essencial para que se desenvolvesse espiritualmente. Os Marúbo concedem a ele, habilidades como engravidar mulheres que não podem ter filhos, através do olhar matar uma pessoa e previsão do futuro. Paradoxalmente, todas essas atribuições não se remetem à sua pajelança, uma vez que ele abriu mão de ser um romeya. Sobre isso, Welper analisa os dados obtidos de Delvair Montagner:

Não obstante sua força, os Marubo lhe conferem pouco destaque como romeya, atividade que exerceu enquanto jovem e solteiro. Depois de casado, ele deixou de ser romeya e dedicou-se à formação de pajé cantador (kechintxo) e herbalista (raoya), tendo sido, neste último ponto, especialmente orientado — e mesmo ensinado — por sua sogra, viúva de Rane Romeya.

Tendo em vista os poucos comentários acerca da atuação de João Tuxaua como romeya, Montagner entende que esta tenha sido “pouco brilhante ou muito fugaz”. A autora registra, porém que, segundo lhe contaram, foi seu irmão, Aurélio-Topãpa, que “fez com que desistisse da profissão”. Diz essa autora que “os poderes dos yove saíram de seu corpo” e, naquele momento, ele se limitava a ser um pajé curador. Montagner sugere que isso tenha decorrido de uma disputa entre pajés, visto que o próprio Aurélio também desejava essa posição, da qual fora destituído por orientação do duplo do “primeiro pajé marubo” (MONTAGNER, 1985, p. 411 apud WELPER, 2009, p. 173-174).

Os romeyas são tidos como “frágeis” no que apetece à saúde, principalmente por conta das restrições impostas a eles para exercer a função. De modo contrário, os curadores são considerados fortes, de fala boa, de modo que “eles falam por si próprios, enquanto os romeyas falam através dos duplos yobé” (WELPER, 2009).

João Tuxaua ao deixar de ser romeya para se tornar um curador, deu inicio as mudanças sociais que viriam a ser criadas, de fato, anos depois, quando se tornou oficialmente um líder (kakaya). O caráter de sua atuação é descrito como “guiada por uma missão ‘salvacionista’, comprometida com a sobrevivência da população que se via ameaçada por conflitos internos, atribuídos ao comportamento fofoqueiro das mulheres e agressivo dos homens” (WELPER, 2009). Passou então a ter a oratória como principal meio de articulação de liderança, que em muitos casos servia como repressor de condutas que prejudicavam o bem-estar coletivo como em casos de roubos, brigas e traições. A essa fala dá se o nome de esey Vana (fala de respeito) Elena Welper expõe um depoimento do próprio João Tuxaua a respeito disso:

Todos só ouviam a minha fala [vana] e, depois, eu dizia: “não usem mais aquela fala de acabar, peguem a minha fala. As pessoas valentes [onikavo], aqueles que matavam gente, não se pode ver mais um chefe de pé. Pensem! Assim acabaram as pessoas. Não falem a fala de antigamente. Falem a minha fala. Agora falem a minha fala jovem [kani]. Não usem a fala dos antigos.” O meu irmão248 ... eu fiquei sozinho e assim falava. Assim foi chegando gente. Uma só mulher que tinha aumentava. Uma só mulher que tinha aumentava. Nossos parentes, juntos ao pai, fizemos crianças, nossos parentes. Ali as pessoas que vieram se misturar, deixaram de mexer com as mulheres. Ali mesmo as pessoas foram ficando boas (JOÃO TUXAUA, 1992, tradução da autora, WELPER, 2009, p. 175-176).

Outro aspecto importante de João Tuxaua que deve ser salientado é a relação que teve com os civilizados (nawas). Com o reagrupamento espacial, houve a necessidade de se buscar as ferramentas e novamente estabelecer o contato com os civilizados. É descrito por Welper:

Foi nesse momento de reacomodação espacial do grupo, quando a aquisição de ferramentas se apresentou como necessidade imediata e coletiva — visto que o grupo mantinha um projeto de reestruturação social e crescimento demográfico diretamente atrelado à manutenção de grandes roçados — que teve fim o período de isolamento econômico desta população. Tão logo os machados e terçados que o grupo preservava “perderam o fio”, os Marubo tomaram a decisão de procurar novamente os “brancos”. (WELPER, 2009, p. 116).

Elena Welper ainda diz:

Um último exemplo do exercício da autoridade de João Tuxaua sobre as relações entre os Marubo e os estrangeiros aparece no episódio em que Carlos Vargas levou um grupo de Kulina arawak para um lugar próximo ao antigo acampamento de Faustino, conhecido como Komã voroya. Eram mokanawa, falavam uma língua diferente (que eles não entendiam), mas não tinham qualquer adorno e se vestiam como civilizados. Eles “trabalhavam bem”, “gostavam de festas” e “sabiam cantar músicas”, mas quando quiseram se misturar (casar com mulheres marubo) e permancer entre eles, João Tuxaua ordenou que Carlos Vargas os levasse embora. Não queria que se misturassem, pois a mistura de sangues impediria o processo de espiritização.

Além de controlar a miscigenação com os mokanawa, João Tuxaua também controlava o trânsito para as cidades e o contato com os não índios...

Em suma, se por um lado, a fala de João Tuxaua os instruía a manter relações estritamente comerciais, limitando assim as condições de interferência na subsistência e na reprodução social do grupo, por outro, criava bons trabalhadores, gente sábia e respeitosa que aprenderia a língua e a matemática dos brancos. Em outras palavras, João Tuxaua promoveu as qualidades “étnicas” que permitiram aos Marubo ocupar posições privilegiadas no contexto das relações de contato com a sociedade envolvente, principalmente a partir da década de 1970, quando então a população indígena do Vale começou a ser “assistida” pela FUNAI (WELPER, 2009, pp. 186-187).

João Tuxaua apresenta-se com um caráter messiânico50 como o salvador, sendo assim visto entre os Marúbo. Ele quebra as antigas falas dos líderes guerreiros (como Aurélio-Topãpa, seu irmão) que se preocupavam mais com conflitos e feitiços do que com o bem-estar social dos grupos. Ao se tornar líder, Tuxaua passou a utilizar sua “fala boa” (ou “fala jovem” como aparece algumas vezes) para lidar com questões de cunho social. Com isso, foi estabelecendo certa dominância e reagrupando as seções sob sua influência. A “fala boa” é descrita por Tuxaua e relatada por Welper:

“Não falem palavras ruins. Não mintam. Não cobicem mulheres. Não briguem entre si. Não roubem. Assim vocês vão acabar. A mulher, a língua dela é perigosa. A sua vagina serve para trazer o perigo. Fruta letal. Não mexam com mulheres alheias, não queiram muitas mulheres. Se a mulher trazida for morta, pode pegar outra que está certo”. Fazendo assim, eu dava minha fala, fala sábia e jovem. Lá no alto, Deus, vocês dizem, ele me mandou pra baixo para olhar todos os costumes das pessoas: “Não façam, assim, não briguem entre si, não façam caras antipáticas entre si, não falem com pessoas que chegam e vocês não conhecem” (JOÃO TUXAUA, 1992, tradução da autora apub WELPER, 2009, p. 175).

A “fruta letal” não se tem referência, Welper acredita que tenha sido influência posterior dos missionários da Missão Novas Tribos do Brasil, da qual compartilho a mesma opinião. João Tuxaua utiliza o caráter messiânico quando diz que Deus o enviou, assim como Jesus, e dessa forma, através desta relação, legitima perante os civilizados seu status de líder dos Marúbo. Fato que pode ser observado em outra de suas falas:

Assim, mandava em todas as pessoas. Naquele tempo em que fiquei só, eu criei as pessoas todas, como dono. Eu criei as pessoas. O que se vê são pessoas criadas por mim. O pessoal do Ituí é gente criada, crianças criadas no meu lugar. As crianças crescidas depois são minhas. Os seus primeiros velhos formados são meus. “Não falem qualquer fala ruim. Não as falem. A fala dos velhos é para ser deixada. Falem a minha fala”. Assim foi dito. “Usem a minha fala, que eu uso para ensinar. Minha fala foi criada por outra pessoa. Peguem o meu falar. Não façam mal. As mulheres, desde sua criação, falam para fazer o mal. Se um outro cuidar bem da mulher trazida, não a pegue, ela não serve para ser roubada, vai fazer briga/ coisa ruim, lá”. Assim, eu falei. Assim que eu pensei e os ensinei. Os que estão na cabeceira, o pessoal da cabeceira, o seu conhecimento é desse aqui. O que juntou e criou as pessoas, o dono [ivo] deste rio [Curuçá], o chefe dos Marubo, é esse aqui. Não é chefe pequeno, foi mandado por Deus aqui para a Terra. Você [refere-se ao tradutor, Cezar] diz isso pra eles [equipe de filmagem] (João Tuxaua, 1992, tradução da autora, WELPER, 2009, p.176-777).

Com isso, nota-se que João Tuxaua se reconhece como o criador de todas as pessoas (Marúbo), evidenciando sua atuação política que, apesar de ter abdicado de ser um romeya, foi legitimada através desse sistema de xamanismo e pelo universo mítico cosmológico dos Marúbo. Welper conclui acerca disso:

Em linhas gerais, os Marubo destacam que as ações promovidas por João Tuxaua garantiram a sobrevivência e a prosperidade social do grupo, mas isto seria um resultado de sua intervenção pessoal de caráter xamânico. Foi por ser como um espírito benfazejo (yove), por “falar” como um deles, que João Tuxaua atraiu “as pessoas” que “pegaram” a sua “fala” e seu “pensamento” (chinã), tornando-se boas e também “parecidas” com os yove: mais sábias, mais trabalhadoras, mais belas e sobretudo pacíficas. Neste sentido, a história de formação do povo marubo não se resume a um simples processo de reorganização sociopolítica, encerrado na propaganda de aproximação espacial e na farta produção de alimentos e festas. Consistiu, antes, uma transformação das pessoas e da vida social, que tinha como referência e mecanismo de atuação o “viver” e o “pensar” dos espíritos benfazejos (yove), protótipo das pessoas melhores (roapa). Foi dessa forma, preenchidos pela sabedoria dos yove, que os “Marubo” se criaram como um coletivo de pessoas boas, trabalhadoras, generosas e tolerantes.

A atuação sociopolítica de João Tuxaua foi, portanto, articulada dentro do sistema cosmológico e xamânico do grupo, motivo pelo qual sua reputação oscila a todo instante entre a figura do líder político (kakaya, “governo”, “prefeito”, “capitão”) e a do “guia” espiritual xamânico (yove, “Papa”, “Jesus”, “Deus”) (WELPER, 2009, p. 162).

Cesarino (2008) resume todos os acontecimentos desse capítulo:

O que chamamos de “sociedade marubo” formou-se em meados do século XIX na região das cabeceiras dos rios Curuçá e Ituí, a partir de remanescentes de povos falantes de línguas pano. Estes remanescentes, dizimados por conflitos internos e, progressivamente, pela pressão das explorações econômicas na região, aglutinaram-se sob a influência de um poderoso xamã (romeya) e chefe (kakaya) chamado João Tuxáua. No final do século XIX e começo do XX, João Tuxáua passa a reunir os povos dispersos sob a perspectiva do parentesco e do xamanismo: faz com que as pessoas deixem de guerrear entre si e as estimula a adotar um modus vivendi baseado no trabalho em grandes roçados, na elaboração de grandes festivais (saiki) e no aprendizado de um vasto conhecimento mitológico e xamanístico4. Os nomes provenientes de antigos grupos tribais transformam-se então em segmentos de uma nova morfologia social5, tais como Povo-Azulão (Shanenawavo), PovoSol (Varinawavo), Povo-Jaguar (Inonawavo), Povo-Japó (Rovonawavo), Povo-Arara (Shawãnawavo), entre outros. É assim que o sistema social acaba guardando de maneira particular os vestígios da diversidade anterior (CESARINO, 2008, p. 135).

João Tuxaua é descrito por diversos autores. Citarei alguns:

Delvair Montagner o descreve como:

Por ser um dos Marubo mais velhos e ter sido um dos líderes que reagrupou os Marubo dispersos, tornou-se personagem quase lendário, quando os índios fazem referência a ele e à antiga história do grupo (...). Ele é detentor de muitos conhecimentos e os ensina aos Marubo. Antigamente, os Marubo eram maus e, por meio de sua fala boa (shõka), os fez bons e os organizou novamente (MONTAGNER, 1985, p. 410-411).

Para Ruedas:

Um homem acreditado com a preservação da existência dos Marúbo, reunindo em uma única área os grupos “Marubo” através da bacia do Javari. (RUEDAS, 2001, p.722, tradução minha).

Cesarino o descreve como:

um chefe-xamã congregador de parentes, ponto de confluência do parentesco sociocósmico e, nessa mesma medida, detentor do enciclopédico ou propriamente interminável conhecimento “sobre tudo” (a formulação é dos próprios Marubo) que ele se esforçava por transmitir a seus descendentes. Ordenou aos homens que parassem de bater em suas mulheres, passou a ensinar cantos e falas a todos. Reconfigurou e reordenou muitas das versões dos cantos narrativos saiti; trouxe das moradas dos espíritos festas que não eram realizadas por aqui; sedimentou, por assim dizer, o substrato da cultura, da cosmologia e da paideia marubo, que a ele devem a sua ainda viva riqueza e coesão (CESARINO, 2008, P. 56).

Em vista dos relatos dos diferentes pesquisadores, nota-se a importância da figura de João Tuxaua não só para os Marúbo, mas também para toda a região do Javari. Um personagem histórico que figura ao mesmo tempo entre o mítico, o religioso e o político que caracteriza a personificação de toda a reestruturação social que ocorreu pós-período da borracha, levando a configuração do povo que perdura até os dias atuais.

9. Conclusão

A sociedade Marúbo é complexa, desde sua estrutura social até seus mitos e ritos. As atribuições de nomes de seções baseadas em nomes de personagens míticos como vêm no decorrer deste trabalho, demonstra um coletivo análogo entre elas. No mito de Wenía é possível observar a explicação para o surgimento da cultura, desde os nomes das seções, até mesmo a origem dos próprios Marúbo, com as seções saindo de buracos no chão. O mito de Sroma Wetsa demonstra o contato com o Inca, mostrando a similaridade em diversos aspectos, o que valida à ideia de que ao diferenciarem “o outro”, se viam como iguais.

A cosmologia Marúbo demonstra que o imaginário comum é utilizado cotidianamente. O indivíduo deve conhecer a fundo a cultura, deve seguir uma vida correta e não quebrar regras moralmente aceitas pelos Marúbo, caso contrário sofrerá punição na morte. No entanto, caso o indivíduo leve uma vida correta, seguindo as regras de casamento, as regras sexuais e as regras sociais, levando em consideração que ao longo de sua vida, aprendeu sobre os perigos do pós-morte, esse indivíduo terá enormes chances de alcançar o Céu de Trocar de Pele (Sroco Nai) e atingir à imortalidade. As regras neste caso se mostram como forma de controle social.

As seções constantemente mudavam de lugar, assim como eram frequentes os conflitos entre elas. Com a morte de Aurélio-Topãpa e a liderança de João Tuxaua, esses conflitos cessaram, tal como as cisões. Tuxaua reorganizou e as reagrupou com novos paradigmas sociais, estabelecendo novas regras sociais e morais, através de sua “fala boa” e da ideia mitificada de seu ser. Cabe dizer ainda, que as relações extrativistas do Javari também contribuíram para isso. Com o contato com os civilizados, os Marúbo aprenderam novas técnicas e a utilização de novos materiais, como rifles e armas de fogo, por exemplo. Com o contato interétnico, ocorreram mudanças na região: surtos de doenças, transições demográficas, alianças com não indígenas, guerras, migrações, etc. Com a derrocada do preço da borracha, os indígenas da região, já adaptados ao esquema da exploração do látex e aos produtos industrializados, foram obrigados a novamente migrar e obrigatoriamente, a se reorganizarem.

Vale lembrar que as malocas são a representação do corpo para os Marúbo, então, quando João tuxaua inaugurou sua kapi Vana wai (Roça da plantação de mato pasto), esta passou a ser vista como local místico aonde as almas dos mortos iriam para encontrarem paz. A representação mítica-espacial no contexto Marúbo, provavelmente auxiliou ainda mais a aceitação da reforma política instaurada por João Tuxaua.

Conclui-se aqui então, com base no decorrer deste trabalho que o período da exploração da borracha foi de suma importância para a alteração da região, sobretudo ao que diz respeito aos Marúbo, considerando que foi exatamente neste período que entraram em contato com os civilizados, com produtos industriais e adquiriram doenças. Essa conjuntura de fatores os obrigou a migrarem para outros rios. Posteriormente, com a “boa fala” de João Tuxaua, se reagruparam, deixando de lado os conflitos entre as seções e passando a integrarem um grupo único, o que conhecemos hoje como Marúbo. A visão mitificada de João Tuxaua, as regras morais implícitas nos mitos, também contribuiu para que fosse possível realizarem esse reagrupamento.

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11. anexo A

Mito resumido de Wenía, versão de Julio Cezar Melatti (2001)

  • As seções saem do chão: Os Marúbos estão divididos em unidades exogâmicas matrilineares. Cada uma dessas unidades se divide em duas seções, as quais são compostas pelas gerações alternadas da unidade. Apesar disso, os Marúbos tratam as seções como autônomas, como exemplifica o próprio episódio de sua origem, em que cada qual sai sozinha de um buraco. O afloramento de cada uma segue o padrão das demais: as flores de um vegetal, pedacinhos de seus troncos picados ou roídos por um animal, penas ou fezes de uma ave, ou outros fragmentos, se espalham pelo chão, às vezes movidos pelo vento: não raro o solo é embebido pelo “sangue” de um vegetal. Dentro do chão, por debaixo desses fragmentos espalhados, os membros da seção começam a gemer. E saem por um buraco, subindo por uma escada feita de osso de anta. Homens e mulheres saem enfeitados com contas e diademas de penas que como que iluminam tudo. Acompanha-os um líder e às vezes sua irmã. Dirigem-se para um campo e aí dançam. A movimentação de cada seção estimula outra a sair.
  • Início da caminhada: É um episódio obscuro. Conta como as seções vão encontrando certos seres — vegetais, animais, lagos — que falam ou cantam. Mas, quando os caminhantes chegam perto deles, ou ordenam as mulheres que conversem com eles, tais seres se deslocam, indo para o norte, o leste, o oeste, ou então mostram que não passam de um simples vegetal, sem capacidade de fala ou cântico.
  • Descoberta da pupunha comestível: Ordena-se a uma velha que experimente cada um de vários vegetais que vão sendo encontrados. Em cada experiência ela padece de algum dano: inflama a garganta, a fruta se prende na goela, parte o lábio. Até que encontra a verdadeira pupunha comestível.
  • Aprendizado dos termos de parentesco: As seções vão encontrando sapopemas, sapos cururus, montes de terra, açaizeiros, pupunheiras, a que chamam por termos de parentesco, conversam com eles, reconhecem se são membros ou não da mesma seção, oferecem-lhes ornamentos.
  • Disposição dos cadáveres: episódio se resume numa série de casos semelhantes em que um velho ou velha se cansa e não pode mais andar, o que significa dizer que morreu. Seu corpo é então colocado entre as sapopemas, isto é, raízes tabulares de uma árvore, transformando-se numa casa de tapiba, uma espécie de cupim; ou num buraco raso, virando embaúba.
  • Dizimação por ferroadas ou choques elétricos: Membros das diferentes seções são ferroados por tocandeiras, formigas de fogo, ou levam choques em pontes de tronco de palmeira, e viram macacos pregos, balseiros. Muitos foram os que saíram do chão, mas foram aí dizimados.
  • Aprendizado dos cânticos de cura e feitiço: Os cânticos de cura e de “maltratar” são ensinados a cada seção por sucurijus, chamadas Ĩpe ou por camaleões (Kẽchĩ). Enquanto cada um deles ensina, outro ser chamado Osa Rono Yochĩ (rono é termo genérico para cobra; yochĩ é nome dado a espíritos geralmente malévolos), coloca-se atrás, dizendo besteiras e manipulando o próprio pênis, provocando o riso dos aprendizes.
  • Descoberta da injeção de sapo: Os Marúbos, como vários outros grupos indígenas da sua região, usam a secreção da perereca Phyllomedusa bicolor como remédio contra a preguiça e o panema51. Ela é aplicada sobre um par de pequenas queimaduras feitas com as pontas em brasa de cipó titica, provocando vômitos imediatamente, que somente cessam com um banho. Diz uma versão do mito o que segue.

Encontraram Noa irí (irí = sapo parecido com o cururu). Aí tiraram leite do sapo e a velha experimentou para tomar injeção de sapo. Aí ela caiu. Estava morta. Até que ela acordou de novo. Quando ela se levantou: «Esse remédio não é bom, meu filho, quase vou para o céu. Não faz mais isso, não é bom. » Continuaram para a frente.

Experimentaram também o sapo Noa Kãpo. Aí a velha experimentou de novo. Tomou injeção de sapo e caiu no chão. «Agora esse kãpo pode usar, esse é bom. Eu estou velha, mas fiquei leve; deu mais saúde». Era assim que falava a velha. (Melatti, 2001, p. 8)

  • Origem dos nomes pessoais: As seções encontram um homem chamado Wa Mãni e sua esposa, Wa Maya. Cada seção sentou-se num tronco caído e recebeu os nomes pessoais para seus membros. Os homens receberam-nos de Wa Mãni; as mulheres, de Wa Maya.
  • Remédio para a menstruação: Os homens pensavam que a menstruação era o resultado de um ferimento. Por isso, tiravam raspas de uma árvore chamada shai mashó para fazerem curativos nas mulheres.
  • Aprendizado do ato sexual: Os membros de uma seção encontraram Tama Kãke, que era um macaco-prego (chino). Perceberam que estava brincando, achando graça. Foram observá-lo devagarinho. Viram que estava copulando com sua companheira. Tendo assim aprendido o que não sabiam fazer, voltaram correndo. Uma mulher estava varrendo o terreiro e um deles logo pegou-a de teve relações sexuais com ela. Mas passaram a copular indiscriminadamente, pois não sabiam que certas parentas deviam ser evitadas. Os chefes Võko Kama, Vari Rare e Shane Rare observavam; eles sabiam como devia ser feito.
  • Relações sexuais com seres estranhos: Algumas mulheres-vegetal foram encontradas. Elas estavam nuas e tinham abundantes pelos no que corresponderia à púbis. Para serem penetradas fazia-se necessário manter suas vulvas abertas com auxílio de uma cunha ou estaca. Mesmo assim, elas quase sempre se fechavam, prendendo os homens pelo pênis. Os assim apanhados eram transformados em vegetais e eram abandonados pelos demais. Alguns se casaram com corujas, como no trecho a seguir de uma das versões.

Continuaram abeirando o rio. Continuaram para frente. Chegaram lá a Vari Chĩchĩ (coruja). Casaram com ela. Chĩchĩ Shavo chorava na boca da noite. Chorava quando gente ia morrer. Ela sabia que gente morreu. Assim que todo dia ela fazia.

Shanevakenáwavo também casou com Shane Chĩchĩ Shavo, que também chorava. Aí passaram e continuaram para a frente.

Tribo de Varivakenáwavo casou com Shao Txori Shavo (coruja). Chorava de noite também. Aí deixaram e continuaram para a frente.

A tribo de Inovakenáwavo também. Casaram com Vari Popo Shavo (coruja). Casaram com ela e aí ficaram lá. Ela tirava o couro da cabeça, botava no joelho e aí comia piolho. Aí ela falou para ele, ensinou para ele: «Quando você vier chegando perto, chega aí e bate sapopema para mim.» Para ela saber e colocar o couro na cabeça. Todo o dia ela fazia isso. Aí quando ele chegava na sapopema, batia na sapopema. Aí ela colocava o couro na cabeça. Assim que ela fazia. Aí o marido pensou: «O que que ela tem?» Quando ele foi para o mato, quando voltou, não bateu, veio devagar para saber como ela fazia. Viu-a tirar o couro da cabeça, botar no joelho e comer piolho. Aí chegou lá, vindo devagar, chegou até ela. Ela se espantou, pegou o couro e "calçou" ao contrário (a orelha ficou ao contrário). Por isso é que coruja tem orelha assim, ao contrário. Aí continuaram para frente, e a coruja ficou. Continuaram a andar, abeirando o rio. (Melatti, 2001, pp. 8-9)

  • A ponte- jacaré e a eliminação dos incestuosos: Sobre a dramática travessia vou transcrever uma das versões do mito.

Continuaram de novo para frente. Rovovakenáwavo aprenderam o que Tama Kãke fazia e aí fizeram em todo o mundo. Aí foram namorando com irmã, irmão. Quando fizeram isso, Varĩ Rare viu. Varĩ Rare falou para eles: «Não façam isso, vocês estão fazendo errado.» Aí, quando falou isso, não ouviram nada. Varĩ Rare pensou, falou com outro chefe irmão (Varĩ Võkó): «Esse povo que está fazendo errado, e agora, o que nós fazemos?» E Waka Veka também falou com a mulherada, mas não ouviram suas palavras. Vari Veka e Mema Nia também falaram com a mulherada. Falaram também, mas não as ouviram. Pensaram: «Nós falamos, mas elas não ouviram nada. Võkó Kama e Waka Võkó pegaram e deram (bateram) neles, naqueles que não ouviam a palavra. Fugiram, andando na beira do rio.

Aqueles que estavam andando na beira do rio ouviram aquela zoada de água. Viram uma ponte atravessada no rio. Viram aquela ponte e voltaram para trás. Voltaram, correndo, atrás do chefe. Chegaram lá com ele e contaram: «O que nós fazemos? É uma ponte atravessada no rio.» O chefe falou para eles: «Aquele que falava é ponte de jacaré (Kapé Tapã).» O chefe foi olhar. O chefe falou para eles: «Bem, vamos limpar essa ponte, nós vamos atravessar para o outro lado do rio.»

Acharam outro tapã também: Rovo Sheke Tapã, encontrado por Rovovakenáwavo. Esta ponte não aguentava peso e arriava quando a gente subia.

Só acharam Rovo Kapé Tapã (a primeira a que se referiu). O chefe falou: «Esse é Kapé Tapã.» Tem também uma embaúba (tsãtse võkó) na bunda de Kapé Tapã. No meio também pimenta (kapé itsa yotxi = pimenta catinga do jacaré; antigamente se chamava võkó toá). Tem outra pimenta, chamada toro yotxi (toro = redondo). No ouvido de Kapé Tapã tem uma abelha (ino teva). Viram ino teva. No nariz de Kapé Tapã também tinha caba; chamava-se sheta vina.

Shanevakenáwavo, Varivakenáwavo, Rovovakenáwavo, o chefe os mandou, todas as tribos, limpar o Kapé Tapã. Aí os parentes deles capinando por cima do jacaré (Kapé Tapã), e Waka Veka e Varĩ Veka atrás dos homens, varrendo. Shane Veka também (todas três, mulheres). Varrendo em cima do Kapé Tapã.

Assim, trabalhando, e mulheres também, todas doidas, namorando todo o mundo na frente do Kapé Tapã. Namoravam com tia e sobrinha, e mulherada namorando tio, irmão, tudo isso na frente do Kapé Tapã. Quando fizeram isso, fazendo errado, o chefe não olhou para eles não, só olhando para a frente. Ele não disse nada. Ele pensou: «Fica guardando aí, depois o que que eu faço?»

Terminaram o trabalho de limpar Kapé Tapã. Aí, quando quer atravessar para o outro lado, o chefe procurou tribo de Varináwavo, aquele que era mais sabido passava. O chefe é que estava ajuntando gente boa, que não estava fazendo errado. Tribo de Shanenáwavo, Varináwavo, também o chefe procurava qual que errado. Aquele errado fica lá, aí na beira. Rovovakenáwavo está aí também fazendo errado, aí na frente de Kapé Tapã. Inovakenáwavo, Satavakenáwavo, Txonavakenáwavo, Wanĩvakenáwavo, dessas tribos também procurou qual gente boa.

Queria atravessar, pegaram arame (mane sheo). Pegaram jacaré (Kapé Tapã) e amarraram a boca, para não morder. Kapé Tapã falou para eles: «Vocês querem atravessar em cima de mim; eu estou sentindo fome.» Pegaram um [daqueles que faziam coisa errada] da tribo Varináwavo e jogaram para Kapé Tapã comer. Kapé Tapã falou: «Eu não enchi nada.» Mataram txasho também e deram para Kapé Tapã comer. Aí ele comeu e depois falou: «Eu não enchi. Eu quero comer irmão de vocês mesmo.» Aí pensaram: «O que nós fazemos?» Quando Kapé Tapã falou isso, pegaram Awá Nawa Mavi e deram para o jacaré comer. Pegaram-no, fazendo força mesmo, arrastando-o. Até que abriu a boca do jacaré. Quando abriu, jogaram lá dentro da boca do jacaré. Quando abriu a boca do jacaré, viram que lá dentro tinha fogo. Chamava-se txi rãta. O jacaré falou de novo: «Eu não enchi nada.» Pegaram também Tsitsa Nawa Mavi, pegaram arrastando, fazendo força, até que jogaram lá dentro do jacaré. «Agora eu já enchi», o jacaré falou.

Quando acabou de comer, aquele Kapé Tapã falou: «Podem atravessar por cima de mim.» Mama Nia (chefe de mulheres) animou a mulherada. Dançaram na frente de Kapé Tapã. Varivakenáwavo, Txonavakenáwavo, Satavakenáwavo, continuaram para atravessar. Mulherada também, foi saindo dançando em cima de Kapé Tapã. Atravessou muita gente. Atravessaram para o outro lado, dançando.

Aí o chefe falou para aqueles errados: «Vocês ficam aqui, depois vocês atravessam; agora nós vamos na frente.» Quando atravessaram, aqueles Varináwavo, Wanĩ; aí Rovovakenáwavo, aqueles errados, vinham atrás. Quando os errados estavam no meio, Waka Võkó e Waka Panã pegaram o machado e deram com o machado no Kapé Tapã. Rolaram Kapé Tapã e este virou. Quando virou, a gente caiu toda na água. Acabaram-se aqueles errados.

Quando caíram na água, as piranhas comeram-nos todinhos; ene kewã (piraíra?) também. Quando rolaram, o Kapé Tapã foi na água e misturou com sangue dos Rovonáwavo. [Não havia apenas Rovonáwavo errados; de outros grupos também]. Rovõvakeshávovo tiraram aquele sangue da água. Tiraram o sangue da água, tocaram na boca, sopraram e falaram: «A nossa tribo acabou, e por isso que pegamos aquela água.» Sopraram para o oeste. Quando aquelas sopraram, o sangue foi embora para o lugar que chama Veno Pei (veno = coruja). Caiu aí; não gostou do lugar, levantou de novo e foi embora para o lugar do Roe ĩka (tribo de branco, americano, por aí assim, no oeste, onde é fábrica do machado) (são os incas). Virou Roe Isko (virou branco).

Pegaram o sangue e sopraram para o fundo da água. Foi para uma árvore que chama ene voá potache (árvore dentro da água; ene = água). Virou ene isko. Assim que fizeram.

Tiraram sangue e sopraram. O sangue foi para Noa Mató Wetsa. Virou Rovo isko (é branco).

Os espíritos dos mortos também saíram e foram para Noa Mató Wetsa. Viraram chino (não é chino não, é civilizado, porque pintaram com vepache, apagado, passando na testa). Os espíritos dos mortos foram embora para o Noa Mató Wetsa e viraram outro Rovo chino.

Acabaram de fazer isso, dançaram. (Melatti, 2001, pp. 9-11)

  • Aprendizado do parto: Se foi o macaco-prego que ensinou aos primeiros homens o ato sexual, foi a mulher do macaco-prego (Tama Kãke aĩvo) que ensinou a fazer o parto. Quando a mulher estava a ponto de dar à luz, seus parentes choravam. Depois cotavam-lhe o ventre, tiraram a criança e a mulher morria. Tama Kãke aĩvo então se apresentou com uma criança em cada braço e lhes ensinou como fazer o parto, fazendo a mulher apoiar-se num pau e, colocando-se atrás dela, segurou-a por debaixo dos braços e mandou que fizesse força.

Como é comum que cada um desses episódios seja repetido para cada seção, aparecem também outros personagens que ensinam o parto: Shane Makõ Aĩvo, Nane Makõ Aĩvo, Ino Makõ.

  • Aprendizado dos remédios para as crianças: É um casal de velhos que ensina os remédios para curar os males que afetam as crianças. Procuram-nos no mato e os ensinam. Esses remédios servem para curar disenteria, côr amarela e doenças provocadas pelo sereno, por visagens e pelo consumo de animais como porco-queixada, tatu, jacu, mutum, inhambu, cujubim, jacamim.
  • Aprendizado do choro e cremação dos cadáveres: Cada seção aprendeu a chorar de maneira correta com um ser diferente: os Varináwavo, com a mãe-da-lua; os Rovonáwavo, com o grilo; os Inonáwavo, com o cujubim; os Txonavo, com o mutum. Um ser chamado Koá Koá Sheni (koá é queimar, sheni é velho) ensinou a cremar os mortos e também como se chora.

  • Os homens não sabiam qual era caça boa, só comiam passarinho. Cozinhavam embira para tirar banha. E queimavam casca do vegetal agarra-pé para comer com anta. Um homem que foi procurar agarra-pé escutou um mutum e resolveu flechá-lo. O mutum lhe disse que ele não podia fazer isso e perguntou-lhe o que fazia. Quando soube que ele procurava agarra-pé para comer, o mutum levou-o para a casa dele e lá lhe deu milho, macaxeira, maniva, banana, muda de banana e lhe recomendou a fazer roça e plantá-los.O mutum dá a conhecer as plantas cultivadas:
  • A versão desse episódio incorre em contradições, pois começa dizendo que os homens só comiam passarinho e em seguida diz que tiravam agarra-pé para comer com anta e mostra o homem a tomar o mutum como caça.
  • Oni Weshti cria as plantas cultivadas: Os caminhantes continuaram para frente. Chegaram lá onde estava Oni Weshti, sentado em cima de um toco de kapi. Oni Weshti recusou-se a conversar com os membros das seções à quais ele não pertencia. Recebeu bem os Varináwavo e os Shanenáwavo, dizendo-se parente deles. Oni Weshti era casado com quatro esposas: uma mulher-cururu, uma mulher-caranguejo (era Shoma Wetsa), uma mulher-inhambu e uma mulher sapo (achá). Todas elas preparam bebida para os recém-chegados. Depois, respondendo às perguntas dos visitantes, Oni Weshti contou como criou os vegetais cultivados, como está no trecho de uma das versões, a seguir.

(Os Varivakenáwavo) Perguntaram: «O que é a plantação de você? Oni Weshti disse que matou um tiçu-açu (shoa sheke, um calango). Matou-o, plantou o tronco. Virou mamão (shõpa). Quando carregando fruta, a gente que quiser, cozinha, faz caiçuma. Outro que quiser come cru, quando maduro. Assim que ensinou.

Plantou chona awá (anta). Matou anta, plantou tronco, nasceu banana (awá mani). Quando carrega cacho, quando madura, a gente que quiser come crua; tira verde, come assada. Quando tem muito madura, a gente faz caiçuma. «Essas plantas, banana, vocês podem criar com seus filhos, é alimento bom.»

Perguntaram: «Como você plantou essas plantas?» Aí Oni Weshti falou que que matou chona yawa (queixada), plantou, nasceu macaxeira (yawa mato atsa). Quando tira batata, gente que quiser faz, cozinha aquela batata, faz caiçuma também.

Perguntaram os Varináwavo e os Shanenáwavo: «Como você plantou isso, nosso velho?» Ele falou: «Matei chona iso, plantei o tronco, virou macaxeira (iso ina atsa). Todas as plantações contou para eles, para saberem.

Perguntaram sobre outra macaxeira: «Como você plantou isso? » «Tirei um galho de pai komã (uma árvore), plantei aquele galho. Virou koma atsa. »

Matou vata nawa (tribo), plantou osso do vata nawa e virou macaxeira (vata atsa).

Matou queixada (chona yawa), tirou osso de queixada, plantou e virou macaxeira (vochni atsa; vochni = o cabelo da nuca da queixada). Assim que ensinou.

Falou Oni Weshti: «Essa planta é veroch atsa (veroch = olho, parece). Quando tem batata, a gente come cozida. » Ensinou todas as plantas que a gente precisa comer.

Perguntaram de novo: «Oh nosso velho, como você plantou isso aí. » «Matei chona pano, tirei tronco, plantei, nasceu banana (pano shavá mani) [bananeira baixinha, de folha graúda]. Quando madura, come-se crua. » Ensinou a plantação. Assim que ele fazia.

Matou poraquê (chona koní), plantou o tronco, nasceu banana (chĩko mani).

Matou anta magra (txo awá), plantou, nasceu banana (txo mani). Ensinou plantação.

Matou macaco careca (mãko chino), plantou, virou koro yovĩ. Ensinou plantação.

Matou chona kaĩ. Plantou tronco, nasceu banana (kaĩ mani = banana roxa, banana-guariba). Ensinou planta. «Quando tem madura, a gente come crua. » Ensinou planta.

Matou chona mapi. Tirou a criança que tinha dentro do mapi (camarão), plantou, nasceu mapi kari. Aí lhes ensinou.

Matou traíra (Noa tismã), tirou criança da traíra, plantou, nasceu tismã poa. Ensinou planta.

Matou chona awá. Tirou pá, ombro, plantou, virou poa (awá pesho poa; pesho = pá ou ombro). (Melatti, 2001, pp. 12-13)

Cabe salientar novamente que os comentários acima apresentados são de Julio Cezar Melatti (2001) e a grafia foi mantida conforme o mito apresenta.

12. anexo b

População Marúbo por sexo, Maloca e categorias.

Fonte: MELATTI, 1977.

13. ANEXO C

Figura 17 - Interior de uma Maloca.

Fonte: Acervo pessoal Renato Soares. Disponivel em http://conexaoplaneta.com.br/blog/a-viagem/

14. ANEXO D

Figura 18 - Maloca marubo, aldeia rio novo, medio itui setembro de 2008.

Fonte: WELPER, 2008. Disponível em: www.larme-ufrj.org/elena-welper.html

15. ANEXO E

Figura 19 - Representação de Shoma Wetsa feito pelo Marúbo Sebastião (Yoshimpa) sob a supervisão do xamã Miguel, às margens do Rio Ituí, em 1978. A figura ocupa uma folha inteira, sugerindo o tamanho elevado da personagem. Nos cotovelos, duas laminas saem, uma de cada lado. O coração ganha destaque, em detrimento de uma das caracteristicas de Shoma Wetsa, ela tem apenas um seio.

Fonte: MELATTI, 1989

16. ANEXO F

Figura 20 - Patamares celestes [Antonio Brasil, caneta hidrográfica, 210x297mm, 2005]

Fonte: CESARINO, 2011.

1 Instituição de missionários, cujo objetivo é a evangelização.

2Espécie de carvão fóssil mineral.

3 Planta amazônica pertencente à Mata de Terra Firme e, como a Seringueira, também é produtora de goma elástica, mas seu látex não apresenta as mesmas qualidades do produzido pelo gênero Hevea (seringueira) e precisa ser misturado ao desta.

4 Refere-se ao Rio Javari que recebe esse nome inicialmente até a confluência com o rio Batã.

5 Canal natural estreito e navegável por pequenas embarcações, que se forma entre duas ilhas fluviais ou entre uma ilha fluvial e a terra firme.

6 Cabe dizer que o termo “civilizado” será utilizado neste trabalho como referência aos não indígenas. Estou ciente de todas as implicações negativas acerca do termo, entretanto é utilizado pela maioria dos antropólogos ao qual estarei debatendo, e por esse motivo, preferi estar a utilizar este termo, a fim de manter o mesmo padrão.

7 Para aprofundamento acerca do povoamento da região, ver: CARDOSO; MULLER (2008).

8 Para maior aprofundamento acerca dos regatões, recomendo o texto de Julio Cezar Melatti “Viagem com um Regatão” (2006), no qual é descrito com ricos detalhes o sistema de comércio dessa região através dos rios, e nesse caso especifico sob a ótica de um Marúbo que veio a se tornar um regatão, até então exclusividade dos civilizados.

9 No relatório de campo (1985), Julio Cezar Melatti descreve os ”patrões Marúbo”, indicando que alguns Marúbo também se colocavam na posição tanto de regatão quanto de patrão. Dentro da pesquisa ele descreve com ricos detalhes, inclusive com dados de mercadorias ofertadas. Para um aprofundamento acerca dos patrões, sobretudo em como os Marúbo se inseriam nesse esquema, recomendo a leitura.

10 Espécie de “bola” de borracha (látex) utilizada para exportação.

11 O Tártaro ficaria nas profundezas, sendo descrito como “prisão subterrânea tão abaixo do Hades quanto a terra é do céu”. É diferente do submundo de Hades.

12 Não aprofundarei muito no que diz respeito a esse mito, uma vez que embora seja importante, é um mito extenso que se difere nas versões apresentadas e demandaria tempo, o que acabaria sendo muito extensivo. Entretanto, aqueles que quiserem apronfudar-se, Julio Cezar Melatti trata especificamente dele no artigo “Wenía: A Origem Mitológica da Cultura Marúbo” (1975 e redigitado em 2005).

13 Sentido da correnteza num curso de água. De um ponto mais alto para um ponto mais baixo.

14 Sentido da correnteza num curso de água. De um ponto mais baixo para um ponto mais alto.

15 Os Marúbo creem que o universo foi concebido através de parte de outros seres.

16 Os “brasileiros bravos” não correspondem a agente da FUNAI, missionários, pesquisadores ou agentes de saúde, mas aos policiais, soldados ou outras figuras de cunho agressivo das cidades mais próximas.

17 Coisa ruim, falta de ânimo, azar, má pontaria, cansaço, preguiça.

18 Lança curta e delgada utilizada como arma de arremesso.

19 Não irei aprofundar nesse mito, uma vez que considero importante somente à representação sobre a cultura Marúbo e não especificamente o mito. Caso queiram conhecer mais profundamente, pode ser lido na integra, em linguagem original e traduzida em: (CESARINO, 2013, pp. 283-293)

20 Sobre isso ver: “Babel da Floresta, cidade dos brancos? Os Marúbo no transito entre dois mundos”, CESARINO, 2008. Cesarino demonstra neste artigo como os Marúbo veem os que vão morar na cidade. Para eles, Marúbo que vai para a cidade acaba virando civilizado e passa a ser tratado como civilizado.

21 Para simplificar utilizarei o termo “alma” para me referir no que tange a respeito do corpo humano e “espíritos” para outros seres sobrenaturais.

22 Em anexos estarei dispondo de alguns desenhos que representam as camadas, os caminhos, as Terras e afins.

23 Espécie de ave.

24 Antigamente, para evitar sentimentos de saudade, os Marúbo cremam seus entes e ingeriam suas cinzas com mingau. A explicação que davam é de que se enterrassem como os civilizados fazem, iam ficar pensando nos entes de decompondo e que ao ingeri-los, eles simplesmente esqueciam-se deles. O sentimento de tristeza diminuía. Curiosamente, ao que tudo indica, esse rito teve fim porque as gerações novas não aprenderam e as antigas esqueceram. Para maior aprofundamento consultar: “A Origem dos Brancos no mito de Shoma Wetsa”, MELATTI, 1986, pp.123- 131.

25 Os Marúbo possuem divisão de trabalho por sexo.

26 Este episódio assemelha-se ao caso da “Ponte-Jacaré”, no mito de Wenía, onde os incestuosos caiam nas águas. Não sei dizer se são a mesma ponte ou pontes diferentes, mas com certeza possuem o mesmo simbolismo.

27 Espécie de Ave.

28 Para mais aprofundamento, conferir: “A Grande Árvore”, MELATTI, 2001.

29 Também aparece sob a grafia “yobê”.

30 Para detalhes, ver: “Oniska: poética do xamanismo na Amazônia”, Cesarino, 2001, pp. 183-203.

31 Não aprofundarei no que se refere às almas, uma vez que considero pouco interessante para a proposta aqui apresentada por mim, entretanto caso seja de interesse do leitor, sugiro a leitura em “A Morada das Almas”, MONTAGNER, 1996, pp.49-67.

32 É também chamado de “duplos”. Para aprofundamento acerca disso, consultar: “Oniska: poética do xamanismo na Amazônia”, CESARINO, 2001, pp. 33-51 e “Donos e duplos: Relações de conhecimento, propriedade e autoria entre Marúbo”, CESARINO, 2006, pp.148-159.

33 Coroa; guirlanda.

34 A maloca é vista como uma representação do corpo.

35 No relatório aparece como significado de “bicho”.

36 Pode aparecer também com a grafia Shoma.

37 Sroma é esposa de Onisrãco.

38 Nome dado pelos civilizados, os Marúbo chamam de Shovo.

39

40 Ver: “A maloca marubo: organização do espaço”, Melatti; Montagner, 1986, pp.49-50.

41 Espécie de tambor de guerra indígena feito com tronco de madeira.

42 Parte de baixo de um vão de porta interna, situada ao nível do chão, como um prolongamento do piso interior; limiar.

43 Cabe elucidar que o termo “unidade matrilinear”, é utilizado por Julio Cezar Melatti e Delvair Montagner — outros autores também seguem a utilização deste termo como é o caso de Elena Welper e Pedro Cesarino.

44 Afluente do alto Curuçá.

45 Relacionado a dialeto; Variedade regional de uma língua.

46 Apenas algumas seções foram abordadas por questão de tempo, caso exista interesse em maior aprofundamento, ver: “O mundo de João Tuxaua: a (Trans)Formação do Povo Marubo”, WELPER, p.58-63, 2009.

47 De acordo com o relato de Dico, colhido por Welper, os shawenwa-shaneivo como sendo os Mayoruna que teriam se revoltado contra Inglês, por conta dele ter tirado suas armas.

48 Tuxaua possui o significado de “chefe temporal”; individuo influente onde mora.

49 Existem informações de que trabalhavam para ele.

50 Pertencente ou relativo à Messias. Ver: ”O Messianismo Krahó, MELATTI, 1972”.

51 Cansaço, preguiça, falta de sorte. Diz-se que uma pessoa está panema quando ela não tem vontade alguma. No caso dos caçadores, é atribuído à falta de sorte na caçada. Pode significar que a pessoa ficou panema devido à um feitiço também.


Publicado por: Gustavo Baron Sertório

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