IDENTIDADE E MEMÓRIA LOCAL: Narrativas orais sobre os impactos sociais causados pela Hidrelétrica de Furnas no município de Boa Esperança- MG

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1. RESUMO

As fontes energéticas oriundas de empreendimentos hidrelétricos estão entre as fontes mais utilizadas na atualidade. A grande quantidade de recursos e corpos d’água no território brasileiro fez com que as hidrelétricas fossem adotadas como principal recurso para a geração de energia. Em 1957 nascia a Central Elétrica de Furnas S.A, considerada a maior hidrelétrica do mundo no contexto da época. Em 1958, as obras para o represamento do Rio Grande e seus afluentes tiveram início e junto delas a necessidade da desapropriação e realocação das populações que moravam nas áreas que deveriam ser alagadas. Várias cidades e zonas rurais foram submersas no estado mineiro, obrigando a retirada de inúmeras famílias. Os discursos propagados pela política nacional de energia de matriz hidrelétrica no Brasil foram e são voltados para o progresso do país e para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, ocultando seus impactos negativos e excludentes. Ao longo das últimas décadas esses empreendimentos expulsaram de suas terras um número expressivo de pessoas, fazendo com que grupos abandonassem lugares de suma importância para a construção de suas identidades e atividades simbólicas e materiais A barragem de Furnas chegou ao município de Boa Esperança em 1958, fazendo com que grupos perdessem paisagens, espaços e lugares importantes para o patrimônio cultural e econômico e para a constituição de suas histórias e identidades. O trabalho teve como objetivo buscar, por meio da história oral, as memórias dos atingidos a respeito dos impactos sociais causadas pela chegada da barragem de Furnas no município.

Palavras-chave: Barragens, atingidos, identidade, memória, história oral

O presente trabalho tem como intuito analisar as narrativas orais a respeito dos impactos sociais provocados pelo represamento das águas do Rio Grande e seus afluentes, executado pela hidrelétrica de Furnas, entre 1958, por meio do estudo de caso no município de Boa Esperança- MG.  O interesse pela temática surgiu através de uma conversa informal na cidade de Boa Esperança, em que foi questionado se a geração atual sabia a respeito da história da construção do lago, o que nos despertou a curiosidade de ouvir mais a respeito por meio de conversas com pessoas mais velhas que se recordavam do ocorrido.

O que começou como curiosidade tomou proporções maiores quando sentimos a necessidade de compartilhar essa importante parte constituinte da história e da memória da cidade, já que o Lago dos Encantos hoje é um dos principais responsáveis pelas atividades turísticas e econômicas no município. Para a geração atual que sempre conviveu com a presença do lago em seu cotidiano a paisagem toma forma de “natural”, desconhecendo a história, a memória e as consequências de sua criação para a população mais velha que ali residiu antes da chegada da represa. Ao tomarmos contato com essas “memórias subterrâneas, nos dizeres de Michael Pollak (1989), ou melhor, com essas memórias submersas, sentimos a necessidade de analisá-las de acordo com as teorias e metodologias estudadas durante a graduação no curso de História da Faculdade Federal de Alfenas e, mais do que isso, procurar um meio de compartilhá-las e socializá-las com os membros da sociedade dorense, buscando a preservação da memória e da história local. 

A pesquisa visou apresentar a construção da memória dos atingidos a respeito do evento, as relações de afetividade entre o grupo e a terra, o significado da represa para os antigos moradores da área, o impacto que o represamento apresentou em suas vidas e a visão atual a respeito do espaço. Para tanto, procurou-se, por meio da pesquisa de História Oral, recolher entrevistas com antigos moradores atingidos e desapropriados de suas terras, explorando questões como a memória, identidade e comunidade, o que nos revelou aspectos tais como o valor afetivo e comercial da terra, o patrimônio de atingidos, as perdas econômicas e simbólicas, a ineficiência das indenizações e assistências em contrapartida aos discursos governistas de progresso e de melhoria de vida propagados pelos empreendimentos hidrelétricos e os mecanismos de apropriação e incorporação da área inundada à vida cotidiana da comunidade de Boa Esperança. As entrevistas ocorreram individualmente, no local e data marcados pelos colaboradores; em alguns casos os narradores foram acompanhados por algum familiar durante a narrativa.

Ao total foram entrevistadas seis pessoas atingidas diretamente pelo empreendimento na época e que tiveram que abandonar suas residências. O grupo entrevistado foi formado por pessoas de diferentes classes e posições sociais. Desta maneira, como será evidenciado no decorrer da pesquisa, o que une os entrevistados deste trabalho não é o grupo afetivo atual, mas as memórias e experiências do deslocamento. As narrativas foram gravadas por meio de aparelhos eletrônicos (câmera digital e gravador de telemóvel) e utilizamos o gênero de história oral híbrida, pois nas narrativas foram mescladas histórias orais de vida, temáticas e testemunhais.

Para analisarmos os impactos sociais causados pelo empreendimento de Furnas no município foi solicitado aos colaboradores narrarem as experiências antes, durante e depois da chegada da água. As entrevistas tiveram um caráter mais aberto e livre, isentas de perguntas muito fechadas, dando liberdade aos narradores para estruturarem a memória de acordo com que achavam mais pertinente recordar. A partir das gravações foi  elaborada a documentação textual por meio da transcriação dos testemunhos gravados. Trabalhamos as fontes orais como método de investigação fazendo ponte entre teoria e prática e recorremos à historiografia, à teorias, conceitos e bibliografias pertinentes da teoria histórica e geográfica para sua análise. As narrativas nos mostrou um paradoxo entre as construções de hidrelétricas como fator de desenvolvimento econômico e industrial em contraste com a população afetada pelo empreendimento que sofreu com perdas materiais e simbólicas.

O filósofo Walter Benjamim (1994) expunha a necessidade de “escovar a história a contrapelo”, isto é, observá-la a partir de outra perspectiva, concebendo a história a partir do ponto de vista dos “debaixo” em contrapartida a uma história oficial voltada para os discursos de progresso. A história oral mostrou-se como possibilidade de analisarmos os empreendimentos hidrelétricos a contrapelo a partir da memória dos atingidos, em contraste com a memória oficial  que expõe o empreendimento como fator elementar de desenvolvimento do país (como a memória dos engenheiros citados na pesquisa, Lucas Lopes e John Cotrim, envolvidos na formação da empresa). Temos, portanto, duas memórias distintas a respeito de um mesmo evento, uma oficial que exalta a grandeza e a importância do empreendimento e outra subterrânea que diz respeito aos impactos do deslocamento na vida de atingidos e é essa última que pretendemos analisar.

Consideramos a pesquisa de importância para o trabalho historiográfico ao levantarmos novas fontes para análises do processo de construção da memória e das identidades, uma vez que a história oral pode fornecer uma grande contribuição para a preservação, conservação e valorização das memórias locais e das experiências humanas.

A memória nos possibilita adentrar no espaço das representações de fatos coletivos vivenciados por um grupo, trazendo novas perspectivas à historiografia e ao fazer histórico, pois o historiador passa a trabalhar com diferentes fontes e áreas do conhecimento.  Um trabalho de História Oral também nos faz refletir sobre a relação da história e da memória, conceitos distintos que se dialogam e se complementam.

No primeiro capítulo, Empreendimentos hidrelétricos contados a contrapelo,  apresentamos  o histórico da construção da hidrelétrica de Furnas e os impactos denunciados por diversos estudos referentes à construção de projetos hídricos; em seguida, no segundo tópico, dissertamos sobre a história oral como possibilidade de escuta para o estudo dos impactos sociais dos atingidos, por meio de teorias que nos fornecem contribuições para as análises dos relatos. No terceiro tópico  apresentamos um breve histórico da cidade de Boa Esperança e da chegada de Furnas no município. No quarto tópico discorreremos sobre memória e identidade, apresentando a contribuição de teóricos como Maurice Halbwachs e Michael Pollak.

No segundo capítulo, Paisagem e Patrimônio: a relação de afetividade dos atingidos com a área inundada, exploramos a relação de afetividade dos atingidos  com o local, voltando-nos aos estudos oriundos da geografia para analisarmos conceitos como paisagem, espaço e lugar, para compreendermos como esses elementos influenciam na construção da identidade e da memória dos entrevistados. Em seguida  discorremos sobre patrimônio e a posição das paisagens culturais como uma maneira inovadora de compreendermos a questão da proteção e gestão do patrimônio cultural, atentando para o patrimônio dos atingidos que são negligenciados nesses empreendimentos.

No terceiro capítulo, As memórias de atingidos no município de Boa Esperança-MG, apresentamos as narrativas dos entrevistados, começando pela vivência e experiência com o local antes da chegada do empreendimento e desembocando na visão atual do espaço pela comunidade hoje. Neste capítulo procuramos explorar as narrativas a partir das teorias apresentadas nos capítulos anteriores, atentando para a subjetividade, experiência e representações na memória coletiva do grupo a respeito da vivência com o espaço e lugar antes e após a chegada da água, demonstrando que os impactos extrapolam a dimensões estritamente monetárias e acentuando como o presente colore o passado no que tange a construção das memórias, a ressignificação da paisagem e a concepção do valor do patrimônio.

2. Capítulo 1 – Empreendimentos hidrelétricos contados a contrapelo

2.1. O projeto da hidrelétrica de Furnas e os atingidos

As usinas hidrelétricas estão entre as fontes energéticas mais exploradas na atualidade. Segundo o Portal Brasil, no país os empreendimentos hidrelétricos são responsáveis por mais de 70% da fonte energética, seguida pelas termoelétricas consideradas caras e altamente poluentes. De acordo com o Banco de Informações de Geração (BIG) da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Brasil conta hoje com mais de 1.200 empreendimentos em operação na área de geração de energia hidráulica, além da previsão da adição de 39 empreendimentos em construção e de 299 empreendimentos de construção não iniciada. A grande quantidade de recursos e corpos d’água no território brasileiro fez com que as hidrelétricas fossem adotadas como principal recurso para a geração de energia. O Brasil dispõe de 18% dos recursos hídricos presentes na superfície do planeta, o que o torna o país com a maior capacidade hídrica em relação com os outros países. (LEMOS JUNIOR, 2010). Flávio Miguez de Mello (2011) relata que desde o início da produção de energia elétrica no Brasil, até um pouco depois da II Guerra Mundial, o setor elétrico do país era predominado por empresas privadas; entre elas destacavam-se as empresas de capital estrangeiro, a canadense Light e a estadunidense American Foreign Power (AMFORP). No início da década de 1950 ocorreu uma mudança nesse quadro por meio de um progressivo crescimento da capacidade de produção de energia elétrica no país com o ingresso de empresas reguladas pelos governos estaduais e federal, contrabalanceando a preminência das empresas estrangeiras no setor. (PAULA; CORRÊA, 2014, p. 2). A geração de energia elétrica era apontada como parte fundamental para o projeto industrializante que visava a superação do “atraso” do país.

Na década de 1950, o ideário da industrialização via planejamento ganhava corpo em todas as instâncias estatais, não somente em nível federal, mas também nos estados e municípios, articulando interesses políticos e econômicos pela via de novas propostas de desenvolvimento. (CORRÊA; PAULA, 2014, p.5)

Nesse contexto, em 1957, teve início a construção da hidrelétrica Furnas, localizada na divisa dos estados de Minas Gerais e São Paulo, em consonância com a implantação dos investimentos industriais previstos no Programa de Metas do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). Furnas nasceu a partir da necessidade de suprir a demanda brasileira por energia elétrica.

Em 31 de Janeiro de 1956, Juscelino Kubitschek assumiu a presidência do Brasil defendendo seu slogan de campanha “50 anos em 5”. O Brasil, neste período, era um país predominantemente agrário, com uma grande parcela da população residindo no campo; sua economia dependia essencialmente da comercialização de alguns produtos agrícolas como algodão, café e cacau. O presidente Kubitschek pretendia transformar essa economia a partir de práticas consideradas modernizadoras do país, como a industrialização. Para realizar seu ideal desenvolvimentista, foi desenvolvido um Plano de Metas, no qual traçava objetivos que deveriam ser alcançados dentro dos setores econômicos. A baixa oferta de energia era um dos principais empecilhos para a expansão econômica, questão que ficou mais evidente quando o setor industrial começou a corresponder de forma positiva ao Plano de Metas formulado pelo governo federal. Com o intuito de suprir esta demanda por energia, Juscelino Kubitschek buscou apoio no setor público.

Neste contexto, a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) realizava um levantamento do potencial hidrelétrico do Rio Grande que constatou que o rio possuía a potencialidade adequada pra a construção de uma hidrelétrica de grande porte. O local foi apontado por Francisco Noronha e Anton Rydland por meio de uma viagem exploratória indicada pelo engenheiro John Cotrim, que na época era o diretor técnico da Cemig. (MELLO, 2011, p. 190). O Plano de Metas elaborado por meio da orientação do economista Roberto Campos e do engenheiro Lucas Lopes que determinou a estratégia desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek, objetivava o aumento da potência instalada no país em torno de 5.000 MW em um prazo de dez anos. Para isso, um quarto dos investimentos do Plano deveria ser  atribuído ao setor de energia elétrica. (CACHAPUZ, 2006, p.30). No que tange o aproveitamento de Furnas dentro do cumprimento da meta de energia, Paulo Brandi de Barros Cachapuz (2006) ressalta que  

O aproveitamento de Furnas, dimensionado em 1.200 MW, foi considerado fundamental para o cumprimento da meta de energia elétrica. Tratava-se de um empreendimento gigantesco para os padrões da época, mas essencial para o suprimento de energia aos principais mercados consumidores da região Sudeste, em especial São Paulo. A execução da obra ficou a cargo da Central Elétrica de Furnas, fundada em fevereiro de 1957 sob a presidência do engenheiro John Cotrim. (CACHAPUZ, 2006, p. 30)

O projeto para a utilização da bacia do Rio Grande, concebido na esfera da política e da engenharia do estado de Minas era apontado como primordial para todo o país com destaque para o desenvolvimento da região Centro-Sul, “definida, sob ponto de vista energético, pelos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, São Paulo e pelo Norte do Paraná.” (CORRÊA; PAULA, 2012, p.1):   

 A indústria de geração de energia elétrica era fundamental às iniciativas industrializantes e à superação do “atraso” do país. Para isso, fortalecia-se o entendimento acerca da necessidade de promover o planejamento de sua expansão, não somente em nível federal, mas também nos estados. (CORRÊA; PAULA, 2012, p.2)

Em fevereiro de 1957, Kubitscheck assinou a escritura pública para o estabelecimento da Central Elétrica de Furnas S.A e o Decreto 41.066 que licenciava Furnas a funcionar como uma empresa de energia elétrica. As obras que seriam necessárias para a construção de uma das maiores hidrelétricas do mundo no contexto da época superavam a capacidade das empresas estaduais, o que fez com que a empresa construída fosse de nível federal. (MELLO, 2011. pp. 190-191):  

A empresa foi organizada como uma sociedade de economia mista, controlada pelo BNDE, com a participação acionária do governo de Minas, representado pela Cemig, e também do governo de São Paulo e dos grupos privados estrangeiros Light e Amforp.  (CACHAPUZ, 2006, p.30)

Dilma Andrade de Paula e Maria Letícia Corrêa (2012, p. 12), relatam que a decisão pelo estabelecimento de uma nova entidade federal que assumiu o formato de uma empresa de economia mista, que encarregaria no lugar da Cemig a condução da Central Hidrelétrica de Furnas, era explanada por razão de se tratar de um projeto que possuía um interesse regional, que agregava vários estados em seu entorno, em um momento em que no país predominavam os interesses dos estados e das companhias isoladamente. A obra monumental ultrapassava a capacidade financeira de qualquer estado isolado  e a única possibilidade para que o empreendimento fosse realizado seria volta-lo para o nível federal, além de ser um projeto que envolvia o interesse de vários estados e companhias em conjunto.   

Em 1958, as obras para o represamento do rio tiveram seu início e junto delas a necessidade da desapropriação e realocação das populações que moravam nas áreas que deveriam ser alagadas. O fechamento do reservatório ocorreu em Janeiro de 1961 e a primeira unidade de Furnas só entrou em operação em 1963, com a inauguração oficializada apenas em 1965, durante o regime militar, tendo como presidente o marechal Castelo Branco. (CARVALHO, 2012). Várias cidades e zonas rurais foram alagadas em cerca de 34 municípios dos 117 munícipios então existentes no estado mineiro, obrigando a retirada de inúmeras  famílias. O empreendimento afetou cerca de 35.000 pessoas e cerca de 8.000 propriedades em zonas rurais. Nas áreas rurais afetadas um quarto de sua população (cerca de 9.000 pessoas) teve que se retirar de suas terras. (CABRAL, 2007, p. 49 Apud CORRÊA; PAULA, 2012, p. 14).

Os discursos propagados pela política nacional de energia de matriz hidrelétrica no Brasil foram e são voltados para o progresso do país e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, ocultando seus impactos negativos e excludentes. No que cerne aos discursos propagados a respeito de Furnas, Maria Letícia Corrêa e Dilma Andrade de Paula (2012) em sua pesquisa, apresentam as narrativas de agentes idealizadores e construtores envolvidos no processo de expansão da matriz hidrelétrica e da infraestrutura do país no contexto, reunindo entrevistas realizadas em 1980 com engenheiros de especializações diversas que se destacaram no processo da construção de Furnas, entre eles Lucas Lopes e John Cotrim. As autoras atentam para a importância de observarmos nos relatos desses agentes envolvidos no processo em questão a maneira como o ideário de industrialização e planejamento é articulado dentro do estado de Minas Gerais, incorporando a ideologia desenvolvimentista nacional da época. Para conceituar “desenvolvimentismo” as autoras utilizam o conceito proposto pelo economista Ricardo Bielschowsky que o define como a “ideologia de superação do subdesenvolvimento através de uma industrialização capitalista, planejada e apoiada pelo Estado”. (BIELSCHOWSKY, 1996, p. 431 Apud CORRÊA; PAULA, 2012, p. 4).

Lucas Lopes, engenheiro e economista mineiro, construiu uma memória a respeito da importância dos empreendimentos elétricos pautada na concepção de que o estado de Minas Gerais era um estado essencialmente pobre no quesito da economia devido ao fato de que gestores de diferentes áreas sustentavam interesses particulares e específicos de suas sub-regiões. Lopes atribuía especialmente ao esforço da industrialização a integração dessas sub-regiões em uma visão mais global, destacando nesse processo a criação da Cemig e posteriormente a criação da Central Elétrica de Furnas. Os empreendimentos elétricos mostravam-se essenciais pra o crescimento econômico do estado e para a formulação de uma visão de unidade dentro do planejamento estadual. (CORRÊA, PAULA, 2012, p. 7). Para além da importância da empresa de Furnas para o estado de Minas Gerais, Lopes destacava a sua importância para e região Centro-Sul, área que apresentava grande vocação industrial e também sua primordial importância no âmbito nacional, enfatizando que se tratava de um empreendimento que extrapolava o âmbito local e regional. De acordo com o depoimento do engenheiro Lucas Lopes:

(...) O projeto de Furnas, quando se examinar com bastante cuidado, vai se verificar que ele foi da maior importância e da maior ousadia, porque nós não tínhamos nenhuma experiência de uma barragem de 110 metros de altura, com um milhão de quilowatts de capacidade, para gerar energia para distâncias como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, num sistema elétrico complexo. (...) Furnas foi a usina que veio exatamente na hora em que o Brasil precisou de um milhão de quilowatts, para dar um salto enorme na sua expansão. E, naturalmente, criou logo toda uma experiência de construir usinas grandes.  (LOPES, 1988, pp. 135-140 Apud CORRÊA, PAULA, 2012, p.11)

O engenheiro John Cotrim ao dissertar sobre a gênese do empreendimento de Furnas em consonância com o programa de governo de Juscelino Kubitscheck, enfatiza a emergencial prioridade do programa de energia elétrica devido ao esgotamento dos sistemas elétricos brasileiros na época, o que se mostrava alarmante nas áreas que possuíam maior vocação industrial. (COTRIM, 1988, p.167). Furnas mostrava-se como um avanço colossal para a produção de energia e desenvolvimento econômico e industrial do país:  

Porque o Juscelino foi eleito dentro de uma filosofia política inédita no Brasil até então. Essa filosofia já tinha sido posta em prática no governo dele em Minas Gerais e dado um brilhante resultado. Era assim como se diz hoje: “Tudo pelo social.” (riso) Naquele tempo era: “Tudo pelo desenvolvimento”. O Juscelino tem um lugar marcado na história do Brasil, porque foi ele que iniciou a mística do desenvolvimento do Brasil. (...) Bom, quando veio para o governo federal, ele resolveu dar grande ênfase aos problemas de desenvolvimento econômico. (...) Entre as muitas metas, havia a meta de energia, que era meta extremamente importante, porque, para que o país pudesse se largar num programa de desenvolvimento ambicioso, como ele pretendia fazer, o programa da energia elétrica tinha que ser resolvido com absoluta prioridade, porque estávamos com nossos sistemas elétricos quase todos esgotados, principalmente nas áreas de maior vocação industrial. (...) Por felicidade, nós tínhamos esse prato feito, que era o projeto de Furnas. (COTRIM, 1988, pp. 165-167)

Os engenheiros citados envolvidos na criação de Furnas ressaltavam a necessidade da construção de uma hidrelétrica de grande porte no país, com destaque para o progresso e desenvolvimento. Porém, essas memórias construídas sob essa ótica ocultam um outro aspecto desses projetos, que são os impactos negativos desses empreendimentos para a população afetada. Raquel de Mattos Viana afirma que

Apesar da justificativa desses projetos girar em torno da necessidade de progresso e de desenvolvimento, o que se verifica é uma contradição entre os grupos sociais que obtêm os benefícios e aqueles que arcam com os prejuízos. (VIANA, 2003, p.12)

De acordo com Gilmar Fialho de Freitas (2014), as discussões a respeito dos empreendimentos hidrelétricos são pautadas na dualidade entre as partes envolvidas, os empreendedores que se apoiam em um discurso desenvolvimentista voltado para a industrialização e a população atingida. Os argumentos expressos pelos empreendedores desses investimentos são voltados para a melhoria de vida dos habitantes da região, novas oportunidades de emprego, melhoria na infraestrutura, dinamização da economia local, entre outros argumentos que poderiam ser apontados como impactos positivos das barragens. Entretanto, estes discursos ocultam os impactos excludentes e negativos desses empreendimentos.

A política energética de construção de barragens produziu e produz efeitos diretos não somente ao meio ambiente, mas também nas estruturas econômicas, socioculturais e políticas da população estabelecida no local onde esses empreendimentos foram implantados. (LEMOS JUNIOR, 2010). A construção de hidrelétricas sobre o discurso do desenvolvimento econômico muitas vezes foram implementadas sem dar maior importância à população da área atingida, à cultura local, às práticas de sociabilidade ali estabelecidas, à memória e à história local, submetendo a população a migrações compulsórias que, de acordo com Lemos Júnior (2010, p.3) “podem ser conceituadas como sendo os deslocamentos populacionais de caráter obrigatório feitos a partir de desapropriações de terras realizadas na sua grande maioria pelo Estado”, modificando, reestruturando a vida dos atingidos e resultando em medidas compensatórias ineficientes. Segundo Vianna (2003):  

Ao longo das últimas seis décadas, os responsáveis pela construção de barragens expulsaram de suas casas e terras dezenas de milhões de pessoas, sendo quase todas pobres, politicamente marginalizados e boa parte de tribos indígenas e outras minorias étnicas. De acordo com a Comissão Mundial de Barragens (2000) estima-se que o número de pessoas deslocadas em função destes empreendimentos gira em torno de 40 a 80 milhões em todo mundo. De acordo com a própria Comissão Mundial de Barragens, esses números representam apenas uma estimativa grosseira das pessoas deslocadas fisicamente pelas barragens e provavelmente, não incluem as pessoas deslocadas em função de outros aspectos do projeto, tais como linhas de transmissão, casa de máquinas, reservas biológicas, etc. (VIANA, 2003, pp. 33-34)

Viana ainda expõe que um dos principais problemas relacionados às estatísticas está no conceito de atingido. O conceito de atingido é hoje alvo de disputas sociais e políticas. Utilizado para referir-se àqueles que foram impactados pelas barragens, seu uso muitas vezes é restritivo, partindo da compreensão do Estado e das empresas do setor hidrelétrico de que atingido é somente o proprietário desalojado que possuiu o título de sua terra e passível de indenização por ela, excluindo outros agentes impactados direta e indiretamente por esse processo. (BORGES; SILVA, 2011; SANTOS, 2014). Ao reduzir o conceito de atingido a essa concepção, as empresas diminuem a quantidade de pessoas a serem indenizadas e consequentemente os gastos com indenizações, desqualificando diversos grupos sociais, famílias e indivíduos a receber as reparações, entre eles aqueles que não possuem títulos de suas terras, pessoas afetadas por outras partes do empreendimento como depósitos e casas de máquinas, comerciantes, pessoas afetadas pelo fechamento de linhas e estradas, crise social e econômica causada pelo êxodo para outras cidades ou comunidades, pessoas que perdem apenas parte de suas terras de plantio e continuam residindo no local, etc. (VIANA, 2003). As consequências dos desalojamentos para a realização de empreendimentos elétricos não se restringe apenas a área atingida, mas impactam diretamente as relações sociais, econômicas, afetivas e culturais no entorno da obra e em outras áreas. Segundo Reinaldo Sebastião Borges e Vicente de Paulo Silva (2011):                     

Os impactos sociais, econômicos e culturais decorrentes da construção de barragens não se limita a área inundada. Isso significa que também são afetadas populações, que vivem a jusante da barragem e que de alguma maneira utilizam dos recursos existentes – tais como águas, florestas, pastos, estradas – destruídos pelo projeto. Em alguns casos aqueles que vivem a jusante podem ser os maiores prejudicados. Existem também populações que ficam no entorno dos reservatórios, depois das barragens construídas, e que sofrem prejuízos incalculáveis. É o caso de comunidades que ficaram muito reduzidas porque muita gente foi embora. O problema se agrava ainda mais porque, tanto para os que estão a jusante quanto para os do entorno, alguns dos principais impactos somente são sentidos depois de concluída a obra e decorridos alguns anos. Além disso, a dispersão dessas comunidades dificulta a organização e luta desses atingidos, o que faz com que muitas vezes não recebam nenhum tipo de compensação durante toda sua vida. (BORGES; SILVA, 2011, p. 224)

Portanto, as barragens produzem impactos complexos e multidimensionais, que afetam não somente o ambiente, mas também o social, econômico e o cultural. Seus impactos não são iniciados apenas no momento da construção, não se limitam apenas à área alagada e não terminam com a finalização do projeto. (VIDAL, 2013, p.7). Segundo Fernanda Blanco Vidal (2013), mesmo antes da construção da barragem iniciar as pessoas começam a sentir seus efeitos, por meio da ansiedade e do medo do futuro e da chegada de novas pessoas para estudarem o local. Durante a construção o impacto é sentido por meio dos deslocamentos compulsórios, que é sempre forçado, fazendo com que grupos e coletividades abandonem lugares de suma importância para a construção de suas identidades e atividades simbólicas e materiais. Após o realocamento os atingidos ainda sofrem com a dispersão da comunidade de origem, a perda de laços e referências, a perda da terra, muitas pessoas empobrecem ao perderem seus meios de subsistência e renda e iniciam um processo de ressignificação do novo local.            

No que tange a construção da usina de Furnas, Lemos Junior (2010) exprime o paradoxo entre a construção da usina como fator de desenvolvimento econômico em contraste com a população atingida que se vê empobrecida pelo empreendimento;

Paradoxalmente, se a construção da usina foi realizada para promover o desenvolvimento econômico do país, de imediato, ela trouxe o empobrecimento das populações atingidas, seja pelo término das atividades agrícolas, que utilizam como subsistências as áreas de várzea, seja pelo baixo valor pago, na forma de indenizações, pelas terras inundadas. (LEMOS JUNIOR, 2010, p. 5)

Apesar dos discursos de progresso e desenvolvimento propagados por esses projetos, no início da década de 1980, quando o governo militar se mostrava enfraquecido, movimentos e ações populares começaram a questionar e denunciar os impactos prejudiciais dos empreendimentos. Nesse contexto, o movimento sindical, juntamente com alguns setores da Igreja Católica e da Igreja Luterana, elaborou o Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens, em 1989, fundando mais tarde o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) como resistência e denúncia a esses projetos. (VIANA, 2003). Destarte, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), surgido em 1991, passou a ser o sujeito político a reivindicar o conceito de atingido visando a ampliação do termo. Sobre o conceito de atingido, Flávia Vieira e Carlos Vainer (2005) afirmam que:

As empresas do setor elétrico sempre tentam mascarar o conceito de atingido, para não ter que arcar com indenizações e reparações a todos que sofrem os efeitos das obras. O Iº Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens (abril de 1989), definiu como atingidos todos aqueles que sofrem modificações nas suas condições de vida como conseqüência da implantação das barragens, independentemente do local em que vivem ou trabalham. E assim, todo mundo que tenha sua vida afetada de alguma forma pela construção da barragem é um atingido. (VIEIRA; VAINER, 2005, p. 55)

Nesse sentido é que o presente trabalho tem como intuito analisar as narrativas sobre os impactos sociais dos atingidos pelo represamento das águas do Rio Grande, executado pela hidrelétrica de Furnas no município de Boa Esperança- MG, parte deste projeto que, em 1958, alterou a vida de comunidades inteiras em nome da modernidade e do progresso, ignorando suas experiências e afetividades. O filosofo Walter Benjamim (1994) em suas Teses sobre o conceito de História expunha a necessidade de “escovar a história a contrapelo”, isto é, concebê-la do ponto de vista dos vencidos, dos “debaixo”, em oposição à história oficial do progresso. Para a construção deste trabalho, a história oral mostrou-se como possibilidade de analisarmos o empreendimento hidrelétrico de Furnas no município de Boa Esperança- MG a contrapelo, por meio de uma perspectiva distinta dos discursos propagados por esses empreendimentos, explorando a construção da memória e da identidade dos atingidos.

2.2. A história oral como possibilidade de escuta

Para a composição do trabalho foi utilizado o procedimento de entrevistas orientadas pelos preceitos da História Oral, esta que abrange diferentes abordagens e usos. José Carlos Sebe Bom Meihy (1996) atenta, primeiramente, para importância de explicitar nos trabalhos que utilizem a história oral a maneira como se pretende trabalhar as fontes orais,  podendo ser utilizadas como técnica, método ou disciplina. Para Janaína Amado e Marieta de Morais Ferreira (2012), ao utilizarmos as fontes orais como técnica atribuímos a atenção central às práticas relacionadas às experiências com gravações, transcrições e arquivamento das entrevistas. Essa vertente preza a constituição e conservação de acervos orais por meio de técnicas de aparelhagens, produção e arquivamento. Os defensores dessa posição utilizam as entrevistas de maneira casual e complementar a outros tipos de fontes, tendo seu peso relativizado em posição a documentação central. Ao trabalharmos a história oral como disciplina independente, reconhecemos na história oral uma área de estudos próprios

e capacidade (como o fazem todas as disciplinas) de gerar no seu interior soluções teóricas para as questões surgidas na prática – no caso específico, questões como as imbricações entre história e memória, entre sujeito e objeto de estudo, entre história de vida, biografia e autobiografia, entre diversas apropriações sociais do discurso. (AMADO, FERREIRA, 2012, pp. 9-10)

Por último, ao trabalharmos as fontes orais como método de investigação, que é o caso específico deste trabalho, tomamos como postulado que a história oral estabelece e ordena procedimentos de trabalho, funcionando como um elo entre teoria e prática.

Em nosso entender, a história oral, como todas as metodologias, apenas estabelecem e ordenam procedimentos de trabalho – tais como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho -, funcionando como ponte entre teoria e prática. Esse é o terreno da história oral – o que, a nosso ver, não permite classificá-la unicamente como prática. Mas, na área teórica, a história oral é capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar, questões; formula as perguntas, porém não pode oferecer as respostas. As soluções e explicações devem ser buscadas onde sempre estiveram: na boa e antiga teoria da história. Aí se agrupam conceitos capazes de pensar abstratamente os problemas metodológicos gerados pelo fazer histórico. (...) Apenas a teoria da história é capaz de fazê-lo, pois se dedica, entre outros assuntos, a pensar os conceitos de história e memória, assim como as complexas relações entre ambos. (AMADO, FERREIRA, 2012, p.10)

Segundo Meihy (1996), tomar as fontes orais como método implica em priorizar as narrativas como o cerne do trabalho, dando destaque as narrativas como atenção central dos estudos. Para ele, mais do que um método, a história oral se constitui num projeto amplo que envolve todo o processo, desde o planejamento, as entrevistas, a transcriação e a devolução à comunidade pesquisada, o que embasa os procedimentos deste trabalho. Para Amado e Marieta Ferreira (2012), diferente da visão das fontes orais como mero apoio a outros documentos, ou como disciplina independente, sua análise deve recorrer à historiografia, a teorias, conceitos e bibliografias pertinentes da teoria histórica, o pesquisador também poderá recorrer a contribuições oriundas de outras áreas científicas voltadas para a compreensão de questões a respeito das narrativas, da memória, identidade e subjetividade. A história oral suscita perguntas que podem ser respondidas e analisadas por meio de conceitos e teorias pensados e elaborados pela historiografia e por outras áreas do conhecimento que trabalham questões pertinentes geradas pela pesquisa. É a teoria que proporciona os meios para a reflexão, análise do conhecimento e dos problemas despertados pelas fontes. Os conceitos e teorias por sua vez, devem estar vinculados ao debate central das fontes, pois são as narrativas que constituem o nervo da pesquisa.  Para Meihy, utilizar as fontes orais como método 

Trata-se de focalizar as entrevistas como ponto central das análises. Para valorizá-las metodologicamente, os oralistas centram sua atenção, desde o estabelecimento do projeto, nos critérios de recolhimento das entrevistas, em seu processamento, na passagem do oral para o escrito e nos resultados. Para serem garantidas como método, as entrevistas precisam ser ressaltadas como o nervo da pesquisa. Os resultados devem ser efetivados com base nelas. (MEIHY, 1996, p. 44)

Em consonância, José Eduardo Aceves Lozano (1996), explana que utilizar a história oral como método é considerar as fontes narrativas em si mesmas, como componente medular e não apenas como um apoio ilustrativo qualitativo. A tarefa do historiador está em recolher, ordenar, sistematizar, produzir, criticar, analisar, interpretar e situar historicamente os depoimentos por meio das teorias e bibliografias pertinentes à análise histórica e a abertura e disposição com o contato de outras disciplinas que possam contribuir para a formulação do trabalho. (LOZANO, 1996, p. 49).  O presente trabalho pretende trabalhar as fontes orais como o cerne da pesquisa a respeito dos impactos sociais oriundos da desapropriação de terras pelo empreendimento hidrelétrico de Furnas no município de Boa Esperança-MG, aliadas à teoria e bibliografia relevante para o tema e para a análise das narrativas.

Partindo da concepção de José Carlos Sebe Bom Meihy (2006), a história oral consiste na apreensão de narrativas por meio de aparelhos eletrônicos, visando recolher testemunhos e promover análises sobre processos histórico-sociais do tempo presente, favorecendo estudos a respeito das identidades e memórias culturais, tendo como um de seus objetivos a elaboração de documentos. Destarte, ela se constitui como possibilidade de estudo da sociedade por meio da documentação elaborada mediante testemunhos gravados e transcritos em textos. (MEIHY, 2006, p. 134). Lozano (1996) remete o interesse da história pelas narrativas orais à possibilidade que estas possuem para a obtenção e desenvolvimento de novos conhecimentos e fundamentações de análises históricas, por meio da elaboração de fontes inéditas e novas. (LOZANO, 1996, p.39-40). A respeito da elaboração das fontes, Meihy (1994) expõe que a contribuição fundamental trazida pela história oral reside no sentido do documento e de sua análise, pois ao utilizar entrevistas como fonte o oralista torna-se responsável pela elaboração do documento, por sua interpretação e por seu retorno à comunidade que o originou. De acordo com Meihy (2006)

O projeto prevê: planejamento da condução das gravações; transcrição, conferência da fita com o texto; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos resultados, que devem, em primeiro lugar, voltar-se ao grupo que gerou as entrevistas. (MEIHY, 2006, p. 134)

A história oral inicia-se por meio de uma problemática relacionada a um grupo, inserida num projeto de pesquisa e realiza-se a partir de três elementos, são eles: o colaborador, o pesquisador e o aparelho para gravar. A junção destes três elementos deve gerar o texto escrito, que em um primeiro momento se caracteriza pela transcrição (ou transcriação) do testemunho e posteriormente na sua análise crítica e teórica, formulados por meio de técnicas e métodos.  No processo de construção do documento o oralista assume um novo comprometimento com a investigação, pois ele deixa de ser agente passivo que faz uso de fontes já elaboradas: 

Ao elaborar o documento, o historiador oralista assume novo compromisso com a análise evocada, deixando de ser um agente passivo que se vale de fontes já feitas. Por outro lado, a crítica ao documento não lhe é mais algo abstrato e sim matéria inerente ao seu ofício. (MEIHY, 1994, p. 54)

A respeito desse novo comprometimento, Alessando Portelli (1997) expõe que a história oral modifica a maneira tradicional com que a história é escrita, tirando o historiador da sua suposta imparcialidade e distância do fato estudado. O narrador onisciente, que narra em terceira pessoa, não participa do processo estudado e o vê com um olhar de cima, dando lugar a outro narrador que se insere no cerne do meio analisado, tornando-se parte dele.  O historiador mostra-se paulatinamente protagonista da história ao invés de intermediador, implicando em um envolvimento político e pessoal. A história oral, portanto, conta com a pluralidade de pontos de vista a respeito do fato, tirando a imparcialidade da história tradicional, permutando com a parcialidade do narrador. Deste modo, a opção por narrativas orais não se constituem em uma pretensão neutra do processo social analisado, pois para Portelli (1997) um projeto de história oral supõe uma “tomada de partido” tanto do entrevistado quanto do entrevistador. 

Meihy (1994) atenta para a importância de não confundirmos história oral com oralidade, que pode ser definida como mero registro de informações orais, desprendido de métodos, aparelhos eletrônicos e comprometimento documental. Já a história oral implica em uma grande série de cuidados metodológicos para se trabalhar uma narrativa, ela é mais do que uma simples conversa mediada por um gravador:

História Oral deriva de um método complexo e arrola particularidades que vão desde a organização de um projeto até o compromisso de publicação do texto devolvido à comunidade imediata que o gerou e a seu contexto mais amplo.  (MEIHY, 1994, p. 55)

O trecho exprime a impossibilidade de utilização da história oral sem o compromisso de retorno à comunidade, pois é ela que contextualiza os acontecimentos analisados, o público é sempre o seu destinatário. A história oral é, portanto, um ramo da História Pública, por ser um gênero que se compromete com a comunidade que a gera e a consome. Para o autor, a história oral é sempre social, pois o individuo só se explica socialmente. Neste sentindo, a história oral possui um fundamento político intrínseco.

A respeito da legitimidade científica da história oral, Meihy (1996) expõe a existência de alvos utilizados para a sua deslegitimação. São eles: o caráter de documento feito por meio de narrativas e as derivações procedentes da passagem do oral para a escrita, partindo da concepção de que o que se narra é inexato e permeado por interferências emotivas. Porém, o autor explana que são justamente essas interferências e alterações que interessa a história oral. A subjetividade e as experiências são aspectos de importância para a história oral, atentando que as interferências subjetivas e emotivas permeiam todas as nossas produções, pois são fatores componentes do universo humano, portanto, a objetividade cobrada da história oral deve ser a mesma cobrada a qualquer outro tipo de fonte e documento escrito, pois todos estão permeados por limitações semelhantes, mesmo os documentos tidos como oficiais. As experiências e subjetividades expressas nas entrevistas devem ser legitimadas como fontes, seja pelo valor informativo, seja pelo valor simbólico. Meihy (1996) aponta que um dos aspectos mais polêmicos a respeito da legitimidade científica da história oral está no seu uso como referência objetiva:

Como muitas pessoas pensam ainda que a história oral deve, prioritariamente, ser usada em projetos que não tenham documentos escritos ou outras referências materiais capazes gerar análises, cobra-se das narrativas um teor de informação próximo do que os positivistas acreditavam ser o papel do documento: conter a verdade em si. (MEIHY, 1996, p. 49)

Porém, o autor explana que a coleta de testemunhos não tem como objetivo a busca da “verdade”, mas de diferentes experiências, impressões e interpretações dentro de um evento. Alessandro Portelli (1997) também discorre a respeito das resistências que a história oral tem encontrado nos meios acadêmicos, o que fez com que ela fosse deixada de lado sem antes ser compreendida, sendo vista como uma fonte artificial que pretendia se afirmar como fonte incontestável de um acontecimento. Uma das principais preocupações desses teóricos receosos a respeito das fontes orais, apontada pelo historiador, está o temor de que com a oralidade a escrita seja descartada, não compreendendo, portanto, “que a oralidade é a própria essência da escrita”, sendo as duas, destarte, não excludentes. (PORTELLI, 1997, p. 26).

Desta forma, Portelli (1997) explana que a desqualificação ou a supervalorização das fontes orais inibem suas qualidades singulares, ao tomarmos essas fontes como mero suporte para fontes escritas tradicionais ou imputarmos a elas o papel de redentoras de todos os males. As fontes tanto orais, quanto tradicionais, não devem ser superestimadas ou depreciadas, pois esta dicotomia acaba por invalidar suas qualidades particulares. Michael Pollak (1992), também disserta a respeito das críticas direcionadas a história oral (método apoiado em memórias) na qual se busca representações e não uma “reconstituição do real”, para o autor tanto as fontes orais quanto escritas são construídas socialmente em um determinado contexto, a análise crítica que se faz a uma não deve ser excludente a outra. No entanto, a história oral obriga o historiador a levar mais rigidamente a crítica das fontes:

Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta. (POLLAK, 1992, p. 10)  

Fontes orais são narrativas de uma pessoa ou grupo a respeito de um acontecimento e é por meio da transcrição que o objeto auditivo (narrativas gravadas) transforma-se em objeto visual. As fontes orais são produtos do relacionamento entre entrevistador e entrevistado. Diferente das fontes escritas que são inalteráveis e estáveis, as fontes orais dependem do projeto do entrevistador, das questões propostas por ele, da transmissão, da interação e relação individual entre ambos, entrevistador e entrevistado. (PORTELLI, 1997, p. 35). Neste sentindo, uma entrevista é sempre produto conjunto do entrevistador e do entrevistado. Uma das características da história oral reside no fato que um testemunho nunca será contado da mesma forma duas vezes; mesmo a versão do pesquisador irá manifestar mudanças de acordo com o tempo, cabe ao historiador o controle do discurso histórico, pois será ele que irá selecionar, moldar, organizar e dar forma nas entrevistas e suas análises, sendo responsáveis pelo conjunto final da pesquisa.

Como expressado acima, a pesquisa de história oral procura perceber em sua abordagem a experiência, o significado que um determinado evento propiciou para um indivíduo ou grupo mais do que o próprio evento em si. No entanto, essa abordagem não compromete a validade factual do evento. Segundo Portelli, “entrevistas sempre revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos: elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das classes não hegemônicas” (PORTELLI, 1977, p. 31). Portelli aponta, ainda, como elemento singular que as fontes orais propiciam para o historiador, que a difere de outras fontes tradicionais, a subjetividade do narrador.  “Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez.” (PORTELLI, 1997, p. 31). Ao analisar a construção das memórias a respeito do massacre ocorrido na cidade de Civitella, Itália no ano de 1944, Portelli (1996) atenta para a necessidade de considerarmos os fatos em conjunto com as representações, pois para o autor, representações e fatos não existem em terrenos separados: 

Representações e “fatos” não existem em esferas isoladas. As representações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as representações; tanto fatos quanto representações convergem na subjetividade dos seres humanos e são envoltos em sua linguagem. (PORTELLI, 1996, p. 111)

As narrativas orais fazem referências às representações, à subjetividade, à identidade individual e coletiva, à multiplicidade das experiências e interpretações do indivíduo a respeito de eventos e situações passados pelo grupo e o meio social, não existindo, portanto, falsas fontes orais, pois mesmo as narrativas “equivocadas” possuem relevância e autenticidade para a construção das identidades coletivas, o que as torna tão importante quanto outros registros factuais (PORTELLI, 1997, p. 32). Isso não implica dizer que o testemunho oral, assim como qualquer outra fonte, é a própria história em si, mas uma fonte de estudo para novas interpretações de um evento e, como toda fonte, deve ser submetida à análise crítica e interpretativa. O que torna a história oral importante é a viabilidade que ela proporciona de promover um conhecimento e registro da multiplicidade de possibilidades que nela se manifesta e que atribuem sentido no modo de vida e nas escolhas de grupos sociais distintos em diferentes estratos da sociedade.  No que concerne à memória, Portelli (1997) expõe que, para além de um depósito passivo de acontecimentos, a memória formula, cria, reinterpreta, significa e ressignifica fatos. Os benefícios da história oral para o pesquisador residem não na preservação integral de um fato passado, mas nas transformações que a memória constrói a seu respeito. As transformações da memória produzidas pelos narradores evidencia a preocupação de atribuir sentido ao passado, aos eventos e de contextualiza-los no presente.

É importante, dentro de um trabalho de história oral, além da necessidade de expressar a maneira como as fontes serão tratadas, explicitar a variante de gênero dentro da história oral que será trabalhada, podendo ser um projeto de história oral de vida, história oral temática ou história oral testemunhal. De acordo com José Carlos Sebe B. Meihy e Suzana L. Salgado Ribeiro (2011) a história oral de vida é um gênero narrativo dentro da história oral, caracterizada por entrevistas livres e abertas que possuem uma narrativa de longo curso, abordando aspectos continuados da experiência do narrador. Por não utilizar perguntas fechadas e questionários a memória e as circunstâncias narrativas não procedem de uma sequência lógica de fatos, o que revela uma maior exposição do processo seletivo a respeito do que dizer, mesmo que um seguimento cronológico e sequencial seja frequentemente o mais utilizado, alguns narradores optam por trilhar suas narrativas a partir de outros critérios e pontos marcantes que tomam a lógica explicativa de suas narrativas.

Nesse sentido, a ordem cronológica não se torna primordial, mas sim a valorização subjetiva dos fatos narrados. A história oral de vida não busca verdades, mas uma versão sobre a moral existencial e sobre a experiência do entrevistado. Portanto, a experiência é o motor da história oral de vida, como foi considerado neste trabalho. Mediante essas premissas, a história oral de vida revela territórios de difícil acesso como a vida privada do narrador, as relações e construções de afetos pessoais e coletivos, visões subjetivas e perspectivas pessoais em relação ao coletivo:

A história oral de vida, ao trabalhar com a experiência, sugere entendimento do espaço pessoal, subjetivo, e supõe-se que haja também um roteiro muito menos factual e mais vinculado a outras alternativas que revelam, por exemplo, as narrativas pessoais através de impressões, medos, sentimentos, sonhos. Com isso, quer-se afirmar que não há necessariamente um caminho obediente à continuidade material dos fatos e, assim, se reconhece na história oral de vida a promessa de uma história do subjetivo. (...) A história oral de vida é sempre um “retrato oficial”, uma versão "fabricada", "intencional". Nessa direção, a “verdade” reside na versão oferecida pelo narrador, que é soberano para revelar, ocultar, negar, esquecer ou deformar casos, situações. (MEIHY, RIBEIRO, 2011, p. 84)   

Segundo, Meihy, a história oral testemunhal é caracterizada por narrativas referentes a experiências traumáticas que possuíram consequências graves, destaca-se em culturas que sofreram perseguições, torturas, exclusões e matanças coletivas. Já a história oral temática se compromete com a opinião do entrevistado a respeito de algum evento definido, nesse caso a subjetividade perde parte da consistência. A história oral temática parte de um assunto específico e previamente estabelecido e se compromete com a versão do entrevistado a respeito de algum evento definido, o recorte do tema fica explicito nas perguntas do entrevistador para os entrevistados colaboradores. A história oral temática se caracteriza por ser narrativas de uma variante do fato. Nela, busca-se a versão de quem presenciou o fato e que dele possui alguma variável contestatória e/ou discutível. Essa variante de gênero de história oral admite questionários e roteiros para a construção do trabalho e para a obtenção dos detalhes que estão sendo procurados.   (MEIHY, RIBEIRO, 2011, pp.84-89).

Meihy e Ribeiro (2011) apontam a existência de projetos de história oral temática combinado com a história oral de vida, na qual são mescladas situações  subjetivas e coletivas a respeito de um fato selecionado que se pretende analisar, nesse caso podemos dizer que o projeto trabalhará com uma história oral híbrida. No que cerne o trabalho em questão, podemos denominá-lo de um projeto de história oral híbrida, pois se pretende aqui analisar as narrativas, a experiência e a construção da memória individual e coletiva a respeito de um fato definido: a chegada do empreendimento hidrelétrico de Furnas no município de Boa Esperança-MG, os impactos sociais que o represamento das águas do Rio Grande e a desapropriação de terras ocasionaram para os moradores atingidos. Passa, também, pelo testemunho, pois está relacionada a experiências que, para alguns narradores, são traumáticas. O trabalho, portanto, mescla as três variantes. Para tanto, ao buscarmos narrativas a respeito da experiência de atingidos pela barragem de Furnas por meio da construção da memória, precisamos conceituá-la a partir da bibliografia pertinente e de autores influentes nos debates a respeito da construção da memória como Maurice Halbwachs e Michael Pollak.  

2.3. Um estudo de caso: a barragem de Furnas no município de Boa Esperança- MG

            Boa Esperança é um município localizado no Estado de Minas Gerais, na mesorregião Sul/Sudeste do estado. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a população estimada no ano de 2017 é de 40.530 pessoas. Ainda de acordo com o IBGE, a história da cidade começa juntamente no contexto da busca por ouro pelos bandeirantes no século XVIII. Em 1795, o bandeirante João de Souza Bueno acompanhado de outros saíram de São João Del Rey e se embrenharam na região a procura de jazidas auríferas, João de Souza Bueno separou-se do grupo e explorando a mata chegou as margens do córrego hoje denominado Córrego do Ouro, margens que hoje delimitam o município de Boa Esperança e Campos Gerais, montando ali acampamento para explorar a região.

Dois anos depois, em 1797, os Capitães-Mor de milícias José Alves de Figueiredo e Constantino D`Albuquerque vindos de Baependi e Aiuruoca chegaram ao acampamento de João de Souza Bueno, que lhes abriu caminho floresta adentro até o Ribeirão de São Pedro. José Alves de Figueiredo resolveu não prosseguir a viagem e comprou na região do Córrego do Ouro uma extensão de terras para formar um povoado. O outro chefe bandeirante Constantino D`Albuquerque continuou sua expedição até o local onde hoje esta localizada a cidade do Carmo do Rio Claro. José Alves de Figueiredo logo tomou providencias para que fosse formado o povoado, para tanto contou com a vinda do Padre Joaquim Cleto que chegou juntamente com algumas famílias para residirem na região começando a construção da capela de Nossa Senhora das Dores, erguida no local onde se encontra atualmente a igreja Matriz da cidade, a Basílica Menor Nossa Senhora das Dores.

Com a conclusão da capela, moradores foram se agrupando ao seu redor, o povoado foi se desenvolvendo até ser elevado à freguesia em 1813 sobre o nome Dores do Pântano, Dores devido o nome da padroeira e “pântano” devido ao solo e a várzea onde localizava a região. Em 1866 a freguesia é elevada a vila pela lei provincial nº 1303, de 03-11-1866 com o nome de Dores da Boa Esperança. Em 1869 a vila é elevada a condição de cidade pela lei provincial nº 1611, de 15-10-1869. Anos após ser elevada a condição de cidade, por meio decreto estadual nº 148, de 17-12-1938, o município de Dores da Boa esperança passou a denominar-se apenas Boa Esperança.

Atualmente, a economia do município gira em torno da agropecuária, serviços e turismo. Um dos principais pontos turísticos do município em conjunto com a Serra da Boa Esperança imortalizada na canção de Lamartine Babo é o Lago dos Encantos, lago artificial tombado como patrimônio paisagístico pelo Decreto Municipal nº 574. O lago foi formado após o represamento do rio Marimbondo com os ribeirões Cascavel e Maricota, o represamento mostrou-se necessário após o represamento do Rio Grande e seus afluentes pela hidrelétrica de Furnas. Em 1961 o empreendimento de Furnas iniciado em 1958 fechou suas comportas, provocando a inundação de vastas regiões banhadas por esses rios. A inundação da área urbana de Boa Esperança inicia-se em 1965, a desapropriação das terras que seriam inundadas pela represa inicia-se em 1958. Com a chegada das águas de Furnas no município, ruas, povoados, grandes fazendas e pequenas propriedades que se localizavam na várzea foram inundadas, modificando a vida de seus moradores. De acordo com Rander Maia (2016) a área territorial do munícipio antes da chegada da hidrelétrica de era de 856,8 km² , após o advento o município teve 136,6 km² de sua extensão inundados:

A desapropriação das terras e das casas a serem inundadas pela represa de Furnas foi iniciada em 1958 e causou grande prejuízo aos proprietários. (...) A indenização foi feita a preços irrisórios e a maioria dos desapropriados teve grande prejuízo e muitos não conseguiram adquirir novas propriedades. A economia do município foi muito prejudicada, pois as áreas rurais inundadas eram bastante produtivas, e houve também acentuado êxodo rural. As autoridades municipais da época poderiam ter exigido de Furnas Centrais Elétricas mais recursos para investimentos e melhorias em infraestrutura, para compensar os danos causados à economia do Município. (MAIA, 2016, p.2)

Antes da construção do dique no município que barrou permanentemente a água formando o imenso lago, nos períodos de seca a água escoava formando pequenas lagoas na área inundada pelo empreendimento. Essas pequenas lagoas eram focos de inúmeros insetos e pernilongos que atormentavam a população. Apenas em 1972 é que a construção de uma barragem próxima ao rio Marimbondo e aos ribeirões Maricota e Cascavel com o patrocínio de Furnas foi aprovada para estabilização do nível de água e visando acabar com os problemas relacionados aos insetos que se proliferavam em toda estiagem. As obras para a barragem permanente da água formando o Lago dos Encantos tiveram início em 1975 e em 1976 foram concluídas. Em maio de 1977 a barragem se rompeu, escoando a água represada. A construção de uma nova barragem iniciou em 1981 sendo concluída em 1982, formando definitivamente o Lago dos Encantos. O lago hoje é considerado como um dos principais responsáveis pela vocação turística da cidade, porém, debaixo de toda aquela água repousam memórias de vivências, experiências e afetividades dos antigos moradores desapropriados para com a sua antiga terra. Para explorarmos as narrativas a respeito desse evento no município fomos a campo realizando entrevistas com antigos moradores desapropriados pela hidrelétrica.

As entrevistas ocorreram na casa e/ou local de trabalho dos colaboradores, como escolhido pelos mesmos e seguiram os preceitos elencados por Meihy (1994) a respeito da realização de um trabalho de história oral como projeto, as entrevistas aconteceram a partir dos três elementos: colaborador, pesquisador e o aparelho para gravar, a junção destes três elementos gerou os textos escritos, por meio da técnica de transcriação dos testemunhos.

Nas entrevistas procuramos perceber a construção da memória a respeito do evento, a identidade e comunidade, o que nos revelou aspectos tais como o valor afetivo e comercial da terra, o patrimônio de atingidos, as perdas econômicas e simbólicas, a ineficiência das indenizações e assistências em contrapartida aos discursos governistas de progresso e de melhoria de vida propagados pelos empreendimentos hidrelétricos e os mecanismos de apropriação e incorporação da área inundada à vida cotidiana da comunidade de Boa Esperança. Primeiramente, para trabalharmos com essas memórias, precisamos adentar no campo da teoria.            

2.4. Memória e identidade     

Inicialmente, ao nos referirmos à memória, associamos a um fenômeno estritamente individual, intrínseco à pessoa em particular. A memória nos parece uma construção singular, fruto subjetivo de quem a experiencia e rememora.  Maurice Halbwachs, em sua obra A Memória Coletiva (1990), porém, afirma que a memória é uma construção, sobretudo, coletiva. Nossas lembranças são construídas social e coletivamente, visto que nos são rememoradas por meio de outros, mesmo se a lembrança evoca uma situação que vivenciamos em particular.

 Para Halbwachs (1990), as lembranças são coletivas porque nunca estamos sós, carregamos sempre conosco uma quantidade de pessoas, mesmo que elas não estejam presentes fisicamente. O autor cita o exemplo de um passeio pela primeira vez em Londres, quando caminha aparentemente sozinho; porém, a paisagem cotidiana evoca livros, romances, arquitetos, pintores, historiadores e uma infinidade de pessoas que o ajuda a interpretar o local. Destarte, o autor passeia só apenas na aparência, pois divide a experiência com outros, mesmo não estando materialmente presentes. “Assim, para confirmar ou recordar uma lembrança, as testemunhas, no sentido comum do termo, isto é, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível, não são necessárias” (HALBWACHS, 1990, p. 27).

Portanto, não basta que alguém tenha assistido e vivenciado uma cena na qual certo número de pessoas que eram expectadores e atores do ocorrido lhe recordem depois, pois quando as testemunhas evocarem o fato pode ser que o indivíduo nada lembre do ocorrido enquanto elas ainda o conservam na memória. Mesmo que outros evoquem o fato ocorrido com descrição detalhada para alguns podem ser dados abstratos, dos quais não guardem mais recordações.

Para que seja possível recordar um evento passado não basta que ele seja apenas evocado por outros. Halbwachs (1990) expõe que se faz necessário o indivíduo carregar consigo uma espécie de semente de rememoração, a permanência em nosso espírito de algum traço do acontecimento que ser quer evocar, para que os diversos testemunhos tornem-se uma massa consistente de lembrança. (HALBWACHS, 1990, p. 28). Se o acontecimento passado não permanece em nós, não é de fato uma lembrança e os relatos do grupo não nos farão recordar nada. Um acontecimento nos é rememorado quando as testemunhas que vivenciaram o ocorrido (incluindo nós) fazemos parte de um mesmo grupo e nos identificamos com ele, ao ponto de confundirmos o próprio passado com o do grupo, quando essa semente de rememoração não mais existe significa que rompemos o elo que nos ligava aquele grupo. O esquecimento de um período da vida significa que houve um desvinculo, desapego, perda de contato com os membros do grupo ao qual pertencíamos, com o qual nos identificávamos e vivenciávamos acontecimentos. As lembranças de um determinado grupo ligam-se e apoiam mutuamente umas nas outras.

É necessário que nossas lembranças individuais encontrem-se com as lembranças de outros membros do grupo, passando e intercalando de uma para outra para que as lembranças sejam construídas, reconstruídas, complementadas e reforçadas. Isso só se torna executável para aqueles que fizeram e continuam fazendo parte de uma mesma comunidade:

Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (HALBWACHS, 1990, p. 34)

 Podemos falar em memória coletiva quando evocamos algum acontecimento que fez parte da vida do grupo como um todo. Destarte, as lembranças necessitam daquilo que Halbwachs (1990) denomina de comunidade afetiva, instituída por meio do convívio social. Trata-se do caso de nosso objeto de estudo – os atingidos de Boa Esperança - que, mais do que um objeto, é composto por sujeitos que pensam sobre si e compartilham um destino em comum (o desalojamento e desvínculo com a terra e membros da comunidade devido as desapropriações para a construção da barragem de Furnas), experiências que os fazem constituir uma identidade e uma memória conjunta, apesar de possíveis dissidências e desvios.

Halbwachs questiona a existência de memórias estritamente individuais, não passíveis de serem relacionadas com o grupo, não estando situadas no ponto de vista do grupo, mas em um ponto de vista somente nosso. Para ele a memória coletiva possuiu sua intensidade e duração num conjunto de pessoas, partindo do entendimento que são os indivíduos que lembram e constroem a memória do grupo, cada integrante do grupo compõe e recebe a memória coletiva imprimindo o seu ponto de vista.

A memória individual pode ser compreendida como uma perspectiva própria, um ponto de vista a respeito da memória do grupo, esse ponto de vista está sujeito a alterações de acordo com a nossa posição no grupo, com a nossa relação com outros grupos e nossas preocupações momentâneas. Isso seria o que o autor considera a memória individual.  (HALBWACHS, 1990, p. 36-46). Por isso, considerando o que aponta Halbwachs (1990), cada entrevistado, nesta pesquisa, ou seja, cada morador que lembra as experiências da inundação, não lembra sozinho, mas apresenta um ponto de vista que é, ao mesmo tempo, uma posição individual, mas dialoga com a comunidade afetiva. Os elementos das lembranças pessoais encontram-se em meios sociais definidos, sentimentos e pensamentos particulares possuem sua fonte nos meios e circunstâncias coletivas. Portanto, as memórias individuais sofrem diretamente com influências de natureza social, não sendo elementos fechados:

Um homem, para evocar seu próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo ás lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referencia que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade. Mais ainda, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o individuo não inventou e que emprestou do seu meio.  (HALBWACHS, 1990, p. 54) 

Sendo seres sociais, nossa memória também o é, mesmo uma impressão individual a respeito de um fato busca referências do meio social:

É por isso que, quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado de alguém, sem dúvida durante algum tempo “esteve só”, segundo a linguagem comum. Mas lá não esteve só senão na aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam pela sua natureza de ser social, e que em nenhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade. (HALBWACHS, 1990, pp. 36-37)

Michael Pollak (1992) acentua a compreensão de Halbwachs a respeito da memória como construção, sobretudo, social e coletiva, evidenciando que por ser uma construção social e coletiva ela está sujeita a modificações e flutuações frequentes. A memória é seletiva e parte sempre do presente; ela é resultado do momento em que está sendo articulada e expressa, em que o momento funciona como agente de sua estruturação e significação. Para Pollak (1992), o exercício de construção da memória pode ser tanto consciente como inconsciente. A memória exerce um trabalho de organização, selecionando, excluindo, fixando e relembrando o que julga importante para o momento, destarte a memória ser sempre presente por ser uma construção do mesmo. Essa concepção funciona tanto no que concerne à memória individual quanto à coletiva e oficializada, mesmo que essa última seja mais organizada que a individual: 

Todos sabem que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Esse último elemento da memória - a sua organização em função das preocupações pessoais e políticas do momento mostra que a memória é um fenômeno construído. (POLLAK, 1992, p.4)

Além de evidenciar a memória como fenômeno construído na qual nem tudo se grava e nem tudo se registra, o trecho acima evidencia a memória como objeto de negociações e disputas sociais e políticas, sujeita a reestruturações e modificações de acordo com as preocupações do momento. Ao interpretarmos a memória como um fenômeno sujeito a mudanças e ressignificações no plano individual e coletivo é importante atentarmos que ela também possuiu alguns pontos e marcos permanentes importantes para a narrativa do individuo e grupo. Durante a realização de entrevistas podemos reconhecer nas narrativas dos entrevistados certos marcos e discursos em comum, cristalizados, consolidados pela memória tanto individual quanto coletiva.   

Nas entrevistas realizadas para a construção deste trabalho foram evidenciadas essas características da memória expressas por Pollak (1992) no que concerne à maneira que os atingidos ressignificaram o acontecimento e a paisagem de acordo com os atuais discursos propagados pelo turismo local e pelo discurso modernizante empregado pela hidrelétrica. As narrativas orais também expressam pontos narrativos em comum que se cruzaram nos diferentes depoimentos. Esses marcos “enquadrados”, segundo Pollak, constituem-se em importantes pontos de referência para a memória do indivíduo e do coletivo.

Destarte, a memória é uma construção social, coletiva, individualizada, fruto do presente em que está sendo articulada, sujeita a modificações e alvo de disputas políticas e sociais. Pollak (1989) ressalta a possibilidade e a importância que a história oral trouxe para as “memórias subterrâneas”, que podem ser compreendidas como memórias que se encontram fora da memória oficial, institucionalizada e fortemente constituída. São as memórias reprimidas, ignoradas ou proibidas por um discurso oficializante, nesse caso o discurso oficializante são as ideias propagadoras do progresso e de modernidade construídas pelo Estado e pelas empresas que construíram Furnas e inundaram parte da cidade de Boa Esperança. Michael Pollak, em seu texto “Memória, esquecimento, silêncio” (1989) disserta sobre a separação existente entre a memória oficial e as memórias que o autor denomina de “memórias subterrâneas”. Estas memórias subterrâneas são memórias silenciadas, proibidas, marginalizadas, clandestinas, indizíveis ou vergonhosas. São memórias que se constroem em oposição a memória oficial legitimada, se opondo a mais influente e dominante das memórias coletivas: a memória nacional. A memória dominante e as memórias dominadas, a fronteira entre aquilo que é “dizível” e aquilo que é “indizível”, o “confessável” e o “inconfessável” são os fatores que delimitam a memória coletiva predominante que a sociedade englobante ou o Estado impõe e as memórias de grupos específicos e minoritários dominados pelos discursos da memória oficializada.

As memórias dominadas pelo excesso de discursos tidos como oficiais transformam-se em memórias silenciadas, portanto subterrâneas. Porém, Pollak enfatiza que o silêncio não é sinônimo de esquecimento. Essas memórias trabalham no silêncio, de maneira subversiva, resistente e quase imperceptível, sobrevivendo a longos períodos. Elas permanecem vivas e são transmitidas de geração para geração no seio do grupo, podendo aflorar e tornarem-se audíveis em momentos de crise, invadindo o espaço público, passando do silenciamento à contestação e à reivindicação, fazendo com que a memória entre em disputa. De acordo com Pollak:

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional. (POLLAK, 1989, p. 2)

No entanto, segundo Pollak (1989), por mais que essas memórias não sejam divulgadas ou publicadas, elas permanecem vivas, são transmitidas de geração para geração em redes de sociabilidade familiar, afetiva ou politica dentro do grupo que se identifica com elas, esperando o momento propício para serem expressas. Conseguinte o silêncio a respeito do passado não significa esquecimento:

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. (POLLAK, 1989, p.3)

No contexto da construção de hidrelétricas, o discurso desenvolvimentista propagado pelos empreendimentos sufoca o discurso dos atingidos, que diz respeito aos impactos negativos e excludentes. Estes são ignorados e ocultados dos registros oficiais, porém, continuam vivos na memória do grupo, opondo-se à memória oficializada e esperando o momento para serem expressos e reivindicados.

Dado este entender a respeito das memórias, quais seriam os elementos constitutivos das mesmas? Pollak (1992) elenca como o primeiro elemento formador da memória os acontecimentos vividos no plano individual e como segundo elemento aquilo que o autor denomina de acontecimentos “vividos por tabela”, que são acontecimentos vivenciados coletivamente pelo grupo ao qual a pessoa identifica como pertencente. No que concerne a esses acontecimentos “vividos por tabela” podem ser acontecimentos na qual o indivíduo não presenciou fisicamente, podem estar distante do espaço e tempo individual ou coletivo, mas que no imaginário toma grandes proporções e importância, sendo impossível o indivíduo e o grupo se desassociar do acontecido. Esse processo de formação da memória por tabela pode ocorrer por meio da socialização política e histórica de um acontecimento tido como marco de grande importância no grupo em questão, ocorrendo um processo de projeção e identificação com o acontecimento passado.

No decorrer das entrevistas, essa projeção e identificação com o acontecimento passado foi percebida por meio de laços afetivos e familiares, em que filhos, netos e parentes dos entrevistados que não presenciaram ou participaram diretamente do processo de desapropriação das terras por Furnas, apropriaram-se da memória do narrador, confundindo a própria a memória com a do entrevistado e construindo um sentimento de pertença ao local inundado. Durante pausas no processo das entrevistas e mesmo após a realização delas, parentes dos entrevistados faziam intervenções a respeito do ocorrido, às vezes recordando o narrador de algum episódio que pudesse contribuir para a entrevista, às vezes mostrando pinturas da antiga casa inundada penduradas na sala de visitas com certo orgulho pelo objeto e o que ele representa como parte da história da família. Pollak (1992) expõe que nesse caso, pode-se falar, portanto, que a memória construída de um grupo e individuo é, em parte, herdada. Ao falarmos de uma memória construída e herdada por um grupo específico, tendo no plano individual quanto no coletivo marcos de forte importância para a identificação e sentimento de pertencimento podemos dizer, portanto, que a memória é um elemento formador da identidade.     

Sobre o conceito de identidade, Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva (2005) expõem que o interesse nos estudos a respeito da temática não é algo recente nas ciências humana. Sua gênese remete às áreas da Psicologia e da Filosofia e possuiu uso abundante nos estudos relacionados à Antropologia e Psicologia. Recentemente, os estudos históricos e culturais têm voltado sua atenção para a noção de identidade fazendo com que a mesma ganhasse conceituações, abordagens e métodos de análise múltiplos. Apoiando-se em uma definição que agrega conceituações filosóficas, antropológicas e psicológicas, Kalina Silva e Maciel Silva (2005) apresentam primeiramente a identidade pessoal como uma característica do que conserva e percebe a si próprio como o mesmo, permanece idêntico e semelhante a si, sendo uma característica de continuidade de si, estruturando o “eu” e diferenciando-se do outro:

Tanto para a Antropologia quanto para a Psicologia, a identidade é
um sistema de representações que permite a construção do “eu”, ou seja, que permite que o indivíduo se torne semelhante a si mesmo e diferente dos outros. Tal sistema possui representações do passado, de condutas atuais e de projetos para o futuro. Da identidade pessoal, passamos para a identidade cultural, que seria a partilha de uma mesma essência entre diferentes indivíduos. (SILVA, SILVA, 2005, p. 202)

A identidade social é estruturada a partir da caracterização do indivíduo como pessoa e seu papel social desempenhado, definindo o seu comportamento diante a sociedade e sendo influenciado diretamente por ela:

Nesse sentido, a identidade social é o conjunto de papéis desempenhados pelo sujeito per si. Papéis que, além de atenderem a determinadas funções e relações sociais, têm profunda representação psicológica por se referirem sempre às expectativas da sociedade. (SILVA, SILVA, 2005, p. 203)

Silva e Silva (2005) apontam os estudos voltados para a memória como o principal campo historiográfico a preocupar-se e refletir sobre o conceito de identidade, abordando memória e identidade como construções históricas. O conceito torna-se pertinente à pesquisa para analisarmos como o indivíduo desapropriado se reconhece no processo em questão, como o sentimento de pertença ao ambiente e às práticas cotidianas são incorporadas na construção de sua imagem e como a reestruturação e a perda de suas referências identitárias interferem no plano individual e social.        

É importante frisarmos a relação íntima da identidade com a diferença. A identidade se constrói em um processo de negociações, transformações e referências a partir do Outro, sendo a identidade uma imagem, uma construção de si, para si e para os outros. Só somos a partir do Outro, da negação, da diferenciação ou identificação com o Outro, a auto-imagem não pode ser construída e firmada sem a presença do Outro; sem o processo de distinção ou identificação. Pollak (1992) enfatiza que memória e identidade não podem ser compreendidas como elementos estáticos e naturais de um indivíduo ou grupo; elas constituem um processo dinâmico de negociação e disputa com o Outro, passiveis de ressignificações e restruturações. Como é o caso do senhor Luís, entrevistado para a construção do trabalho, que expõe o tempo todo em sua entrevista sua identidade como fazendeiro, e diz que na roça ele é doutor no que se refere ao conhecimento e aos cuidados que possui com a terra fazendo alusão ao doutor/médico com qual consulta atualmente pra cuidar da saúde.  

Ecléa Bosi (2003) questiona se o atual interesse na memória nas ciências se constitui como apenas uma moda acadêmica ou possuiu uma gênese mais complexa como a necessidade de enraizamento. A autora afirma que “Do vínculo com o passado se extrai a força para formação de identidade” (BOSI, 2003, p.16). Para ela, a memória possuiu papel substancial na formação e legitimação da identidade de um grupo ou classe, alimentando suas ideias, sentimentos e valores. Assim também para Pollak (1989), a memória trabalha como instrumento de estruturação e reforço do sentimento de pertencimento e de fronteiras sociais e territoriais entre grupos e coletividades distintas. (POLLAK, 1989, p.9). É a partir do passado que grupos e instituições buscam referências para manter a coesão e definir o seu lugar histórico, social e político. Segundo Pollak (1992):

Podemos portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (POLLAK, 1992, p. 5)

Portanto, o que se encontra em disputa na memória é o valor da identidade tanto individual quanto coletiva. Pollak (1989) utiliza a expressão “memória enquadrada” como termo mais preciso para se referir à memória coletiva, dado que a memória coletiva pressupõe um trabalho de enquadramento. A construção da memória de um grupo não é feita de modo aleatório, ela é construída dentro de limites, exigências e justificações, explanando o uso do termo. A memória enquadrada pode ser definida como uma memória coletiva instituída, oficializada, homogeneizada, predeterminada e específica. O trabalho de enquadramento da memória utiliza-se de materiais fornecidos pela história associados por múltiplos pontos de referências materiais: monumentos, bibliotecas, museus, vestígios arqueológicos, ele se solidifica “nas pedras”.

Nas lembranças mais próximas e pessoais os pontos de referências que utilizamos são mais sensoriais como os cheiros, as cores, os sons. (POLLAK, 1989, pp.10-11). Pollak (1989) referencia Halbwachs dizendo que este não percebe a memória coletiva como uma imposição, dominação ou forma violência simbólica, mas como uma força de coesão social, que não funciona pela coerção, mas pela associação afetiva com o grupo. (POLLAK, 1989, p.2). Neste ponto, Pollak diverge de Halbwachs, já que para ele a memória coletiva de fato contribui para a coesão do grupo, mas não da maneira como preconiza Halbwachs, por meio de uma adesão afetiva, mas por mecanismos coercitivos.

Podemos identificar o trabalho de enquadramento da memória coletiva expresso por Pollak nas narrativas dos atingidos que se apoderam do discurso oficial de progresso a respeito da construção da barragem, ao mesmo tempo em que é perceptível um contradiscurso, que diz respeito a seus impactos negativos e na relação de afetividade e coesão do grupo, contradiscurso que se revela a partir das “memórias subterrâneas” narradas. Portanto, para este trabalho específico, consideramos a memória a partir de uma coesão das definições de Pollak e Halbwachs, evidenciando a existência de uma memória coletiva enquadrada pautada em discursos oficiais e a existência de uma memória coletiva baseada na afetividade, evidenciada por meio das memórias subterrâneas.

A função substancial da memória coletiva está em preservar a coesão e coerência de um grupo defendendo aquilo que o grupo compartilha entre seus membros, sua visão comum de mundo e suas fronteiras, aqui incluímos o território. (POLLAK, 1989, pp.7-8). Para além dos dois elementos constituintes da memória citados por Pollak (1992) e mencionados acima- acontecimentos vivenciados no plano individual e acontecimentos vividos por tabela- Michael Pollak apresenta as pessoas, os personagens, e por último os lugares como componentes da construção da memória. Os lugares de memória servem de apoio e constituem-se como importantes pontos referências para a memória e identidade de um grupo, reforçando o sentimento de pertencimento.  

Nas entrevistas com as pessoas realocadas por Furnas, o local e a paisagem constituíram-se como elementos de forte influência para a construção da memória, do sentimento de identidade e pertencimento. No caso das “memórias subterrâneas/submersas” dos atingidos de Boa Esperança, o valor econômico, afetivo e simbólico da terra foi constantemente revisitado pelos narradores, sendo, portanto, elementos que possuem importância de serem explorados para a compreensão dos impactos sociais causados pela desapropriação e inundação das terras com a finalidade da construção do reservatório e para a formação da identidade dos atingidos.    

3. Capítulo 2 – Paisagem e patrimônio: a relação de afetividade dos atingidos com a área inundada

Os espaços desapropriados para a construção de empreendimentos hidrelétricos não são espaços destituídos de pessoas e significados, eles são permeados pelas produções materiais e simbólicas de um grupo e evidenciam a maneira como vivem, suas relações sociais, econômicas, políticas, culturais e as relações que ali se estabelecem com a natureza.  No espaço encontramos outras porções que os constituem como os lugares e as paisagens.

De acordo com Otávio Costa (2003) as paisagens são porções do espaço, que revelam uma determinada realidade do espaço, elas são construídas ao longo da vida das pessoas evidenciando nosso modo de vida, as redes de relações existentes e a relação que estabelecemos com a natureza.  O lugar, por meio de sua paisagem, conta a história da população que ali reside, as relações entre sujeito e natureza, como a utilização dos recursos presentes na paisagem moldam o modo de vida e como seus residentes moldam a paisagem de acordo com o seu modo de vida, estabelecendo uma relação dinâmica. No contexto das entrevistas ficou evidente a valorização dos lugares e da paisagem na memória dos atingidos por Furnas. Pretendemos aqui refletir sobre a relação que grupos possuem com o local a partir de uma situação de ruptura com a terra, a desapropriação e o deslocamento para a construção de barragens, que alaga seus patrimônios e lugares afetivos, modificando a paisagem e a vida dessas pessoas.

Entendermos a relação que as pessoas estabelecem com o local torna-se pertinente para compreendermos a importância do lugar e da paisagem para construção da memória e para a formação do processo de constituição da identidade. Halbwachs (1990) elencava como elementos na qual a memória se apoia a coletividade, o tempo e o espaço. A imagem espacial para o autor desempenha protagonismo de suma importância para as memórias coletivas, pois não existe memória coletiva que se desenvolva fora de um quadro espacial. O lugar de um grupo localizado dentro de um quadro espacial é representado e permeado por coisas concretas e simbólicas, afetivas e históricas.

O lugar se apresenta como sinônimo de estabilidade, segurança, continuação e coerência em frente as mudanças rápidas que ocorrem a nossa volta, desempenhando, portanto, papel de destaque na constituição do sentimento de pertença e identidade por remeter ao sentimento de continuidade e permanência. O lugar onde um grupo se insere recebe a marca desse grupo e vice-versa, o grupo transforma o lugar a sua imagem ao mesmo tempo em que é transformado, se sujeitando e adaptando à materialidade que resiste no lugar. Os grupos e os indivíduos possuem ligações com o seu lugar, o lugar é parte da história e da identidade do grupo. (HALBWACHS, 1990 pp.131-143).            

Para Otávio Costa (2003), a relação que a paisagem possuiu com a memória é intercalada por signos que compõe e dão significados a paisagem, esses signos podem ser coletivos ou subjetivos, materiais ou imateriais, naturais ou culturais. No próximo tópico exploraremos os conceitos de espaço, lugar e paisagem para melhor apreensão do tema.

3.1. Paisagem, espaço, lugar e memória

Para compreendermos as paisagens e os lugares como componentes da memória e da formação da identidade necessitamos conceituá-los. Para tanto, voltaremos para estudos oriundos da ciência geográfica, por ser a ciência na qual essas categorias se apresentam como conceitos-chaves.

O geógrafo Milton Santos (2006) adverte que não podemos compreender a paisagem como um sinônimo de espaço. Santos (2006) apresenta a paisagem como um conjunto de formas que revela as heranças e  as relações contínuas entre os indivíduos e a natureza; o espaço é a junção dessas formas mais a vida que as dinamizam. A paisagem é o agrupamento de elementos naturais ou artificiais, antrópicos e culturais, passados e presentes que compõe uma área fisicamente; ela é composta por objetos reais e concretos, enquanto o espaço é resultado da intervenção de uma sociedade ou grupo nesses objetos e é sempre presente. (SANTOS, 2006, pp.66-67). Deste modo, o espaço pode ser compreendido como a junção da paisagem com a sociedade e suas relações politicas, sociais, econômicas, culturais que as movimentam. A paisagem é composta por formas visíveis, aquilo que a vista abarca, naturais e/ou antrópicas que nós experenciamos por meio de nossas percepções e sentidos. Francisco Carlos Teixeira da Silva (1997) atenta para a compreensão das paisagens não apenas como um sistema estático e linear de elementos e formas; elas são porções do espaço e constroem junto a ele uma relação dinâmica e dialética, corroborando com os dizeres de Milton Santos:

Não há, na verdade, paisagem parada, inerme, e se usamos este conceito é apenas como recurso analítico. A paisagem é materialidade, formada por objetos materiais e não-materiais. A vida é sinônimo de relações sociais, e estas não são possíveis sem a materialidade, a qual fixa relações sociais do passado. (...) A paisagem é diferente do espaço. A primeira é a materialização de um instante da sociedade. Seria, numa comparação ousada, a realidade de homens fixos, parados como numa fotografia. O espaço resulta do casamento da sociedade com a paisagem. O espaço contém o movimento. Por isso, paisagem e espaço são um par dialético. Complementam-se e se opõem. (SANTOS, 1988, p. 25)

De maneira simples, a paisagem pode ser compreendida como o ambiente físico observável, podendo ser tanto natural quanto cultural (ou os dois ao mesmo tempo), mas por mais que a paisagem seja representada pelo observável, pelo concreto, pela materialização, o material carrega em si o simbólico, o não-material,  enquanto o espaço é a dinâmica entre a paisagem mais as relações que se estabelecem entre os indivíduos e o ambiente e os indivíduos entre si, o espaço é um conjunto de lugares. Por sua vez, os lugares são pontos específicos dentro do espaço, pontos familiares e afetivos. Essas estruturas não são estáticas e interagem entre si.

Para Yi-Fu Tuan (1983) espaço e lugar “são termos familiares que indicam experiências comuns”. (TUAN, 1983, p.3). O lugar produz em nós sentimento de segurança, enquanto o espaço nos remete à liberdade. Os lugares são os locais a que atribuímos valores e significados e onde realizamos nossas experiências. No caso analisado o espaço se apresenta como a área alagada, os lugares são os lugares afetivos onde as pessoas desapropriadas vivenciaram suas experiências (a casa, o pomar, o campo de futebol) todos se relacionam com a paisagem que é reconstruída e revisitada nas entrevistas. Nos lugares, as experiências podem se dar de duas maneiras: um indivíduo pode conhecer um lugar de modo direto e íntimo ou de modo indireto e conceitual. (TUAN, 1983, pp.6-9). De acordo com Yi-Fu Tuan:

Experiência é um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização. (TUAN, 1983, p. 9)

A experiência dos moradores desapropriados com o seu local são de natureza íntima e afetiva, por meio da constituição de histórias, vivências e vínculos compartilhadas no grupo familiar e social, por meio das práticas relacionadas à terra e dos sentidos, como por exemplo o olfato. Em uma das entrevistas o cheiro das maçãs do antigo pomar alagado foi evocado de maneira intensa e íntima pela narradora. Para Tuan (1983) são os sentimentos, pensamentos e emoções que atribuem intensidade e vivacidade às experiências humanas fazendo com que os indivíduos construam afeições intensas com o local. É a partir dos órgãos sensoriais, tato, olfato, paladar e da cinestesia que experenciamos de maneira acentuada um lugar, criando vínculos afetivos com ele.

Tuan (1983) discorre que dentro da experiência, espaço e lugar se fundem, porém a noção de espaço é mais abstrata do que lugar; o que começa como espaço transforma-se em lugar a partir do momento em que o dotamos de significado, símbolos e valor.  Edna Alencar (2007) expõe que a concepção de espaço está relacionada à noção de localização de lugares de importância para grupos sociais. É no espaço que esses lugares são localizados e sua importância é atribuída não somente por serem locais onde as atividades sociais são praticadas, mas por serem importantes pontos de referência para a história e identidade social e cultural de um grupo e por ser o local onde as necessidades de raízes e segurança são supridas. Segundo a autora, “O espaço torna-se socialmente significativo e se transforma em lugar, quando nele se inscreve a história do grupo, quando é socialmente construído, transformado pelo trabalho das gerações passadas.” (ALENCAR, 2007, p. 98).

As paisagens, e nesse caso específico as paisagens culturais, entendidas como a junção e coexistência entre elementos físicos-naturais e elementos físicos-antrópicos revelam os registros passados e presentes, as marcas, representações e interações de uma sociedade e grupos dentro do espaço, partindo do entendimento que a produção física e material de uma sociedade é intrínseca à produção simbólica, de valores e práticas culturais, produtivas, espirituais, sociais e políticas. As formas físicas visíveis das paisagens estão estreitamente associadas às representações simbólico-culturais de grupos diferentes. Uma materialidade que traz consigo o imaterial. De acordo com Otávio Costa (2003), “Essa relação entre o indivíduo e a paisagem é, portanto, mediatizada por uma rede simbólica cuja materialidade traz também o imaterial, algo visível que mostra o invisível, um gesto que significa um valor.” (COSTA, 2003, p.5.). Portanto a paisagem vai além do tangível, pois suas formas visíveis são dotadas de valores simbólicos.

Os lugares são os locais aos quais atribuímos valores e funções, são onde os símbolos de um grupo são reforçados, praticados e/ou preservados de maneira íntima e afetiva. De acordo com Eduardo da Silva Leitão (2011):

O meio ao qual um determinado grupo social vive, é de suma importância, para a preservação de suas representações, práticas, conhecimentos e técnicas no lugar ao qual interagem no espaço, para a reprodução de sua cultura nos modos de criar, fazer e viver. (LEITÃO, 2011, p. 3)

Yi-Fu Tuan (1980) apresenta o conceito de topofilia para se referir ao apego e sentimentos afetivos construídos pelas pessoas ao seu ambiente e lugar. Segundo Tuan (1980): “Topofilia é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vívido e concreto como experiência pessoal.” (TUAN, 1980, p. 5). Tuan atenta que grupos sociais e culturais diferentes possuem relações e perspectivas diferentes com o ambiente e o local.

Portanto, o sentimento de topofilia varia de grupo para grupo e está relacionado com o tipo de experiência particular que cada sociedade e cultura mantêm com o ambiente. Assim como esse sentimento varia de um grupo para outro, ele também varia de intensidade e de valor dentro de um mesmo grupo de acordo com as mudanças e com o tempo. Um lugar ou ambiente que antes era importante para um grupo pode ser substituído por outro ou dotado de um novo valor, como é o caso dos lugares que foram inundados e da paisagem que foi modificada por Furnas em Boa Esperança, mas nesse caso a substituição do lugar e a modificação da paisagem deram-se de maneira abrupta e obrigatória, fazendo com que os moradores ressignificassem a área alagada e dotassem um novo lugar de valor.

Os lugares estão relacionados ao sentimento de identidade e memória de um grupo por meio dos vínculos afetivos e históricos, das experiências e das práticas forjadas no local, que podem ser a capela, a igreja, a praça, a casa, a fazenda, uma plantação, um jardim, um monumento, um local de encontros e lazer (no caso das entrevistas, a casa de fazenda, o pomar, o rio, as plantações, o campo de futebol),  elementos aos quais atribuíram ao espaço o valor de uma determinada identidade, tornando-o lugar. De acordo com Costa (2003):

As pessoas se socializam e interagem no lugar, quer seja a rua, o bairro ou a cidade. As redes sociais que se formam a partir dessas identidades locais contribuem para a formação do lugar conferindo, portanto uma paisagem que gera um sentimento de pertença. (COSTA, 2003, p. 8)

As paisagens culturais são produtos de diferentes temporalidades históricas, nelas são inscritas marcas produzidas pelo tempo da natureza e pelo tempo da história humana. Segundo Milton Santos (2004),“paisagem é o resultado de uma acumulação de tempos” (SANTOS, 2004, p. 54). As formas encontradas na paisagem são resultados de acumulação de formas passadas e presentes; no entanto, assim como a memória a paisagem é sempre presente, pois é no presente que essas formas são vivenciadas e dotadas de valores. No caso de paisagens que são bruscamente modificadas para a construção de represas, após o choque inicial o local passa por um processo de ressignificação e valorização por meio de mecanismos de convivência do lago ao cotidiano.

Foi percebido durante as entrevistas que a utilização da represa para atividades econômicas, turísticas e de lazer suplantam a visão do local como um local essencialmente de perdas e ressentimentos para os antigos moradores, que ressignificam e valorizam a paisagem a partir dos discursos presentes, porém marcas visíveis ou simbólicas que ali se encontram, que são imperceptíveis para aqueles que desconhecem a história e a memória contida na construção do espaço onde hoje se localiza o lago, remetem seus antigos moradores ao tempo em que ali viveram, ao valor simbólico e econômico das terras que perderam e ao sofrimento que a perda causou.

Para a geração que sempre conviveu com o lago já construído a paisagem toma forma de “natural”, desconhecendo o processo de formação e as memórias contidas naquele espaço. Os empreendimentos hidrelétricos aniquilaram lugares de importância para a população que ali residia, causando verdadeiros topocídios. O geógrafo britânico John Douglas Porteous (apud Amorim,1999, p.142), utiliza o termo topocídio para designar o processo de aniquilação deliberada de lugares, paisagens ou monumentos, motivados por causas econômicas  acarretando no desaparecimento de lugares carregados de sentimentos topofílicos, causando a extinção do significado cultural de uma paisagem por uma determinada sociedade. Ao aniquilarem esses lugares, o próprio processo de aniquilamento infligindo é esquecido, pois não são dados meios para a leitura daquela paisagem, de como, porquê e quando aquela paisagem e espaço foi modificado. A paisagem modificada adquire uma imagem de natural e o processo de aniquilamento de lugares importantes para a história, memória e identidade de um grupo é esquecido.

O que se pretende ao “desenterrarmos” as memórias subterrâneas desses grupos não é demonizarmos o empreendimento, que hoje é consenso para os cidadãos e entrevistados a importância para região. O que pretendemos é promover a valorização da memória e da história local e compreendermos a paisagem cultural da cidade como o resultado de diferentes tempos históricos, fornecendo meios de leitura para essa paisagem. Por mais que estes empreendimentos se mostrem ao longo prazo para a população afetada como de suma importância para região, precisamos também levar em consideração os custos sociais que eles causam, custos que são ocultados das narrativas oficiais.   

Destarte, compreender a paisagem e o lugar como componentes da construção da memória é buscar o sentido identitário dos sujeitos com o seu meio.  Nesse sentido, para Tuan (1980), a consciência do passado é um importante elemento construtivo do amor pelo ambiente e lugar. A história é agente do sentimento de amor a terra; deste modo, a paisagem em si, às vezes não é suficiente para que o sentimento de topofilia seja criado e preservado, é necessário que ali se estabeleça relações humanas dotadas de significados. “A apreciação da paisagem é mais pessoal e duradoura quando está mesclada com lembranças de incidentes humanos.” (TUAN, 1980, p. 110).

Neste sentido, a experiência vinculada a um passado familiar são elementos de forte constituição do sentimento de topofilia, afetividade pelo ambiente, o ambiente quando carregado de lembranças afetivas, familiares, torna-se um ambiente que remete a segurança e estima. O local inundado e a paisagem modificada abruptamente por hidrelétricas, ocupado por um grupo, não é um quadro em branco, o grupo insere sua impressões nele e vice-versa, o ambiente é então carregado de histórias, memórias e sentimento de identificação com a terra. Tuan (1983) ainda expõe a relação íntima entre a experiência e o tempo para a significação de lugares. Para ele, a ideia de lugar é dificilmente conquistado pelo simples fato de alguma vez passarmos rapidamente por um lugar. Para que o senso de lugar chegue a ser criado é necessário que passemos um longo tempo mantendo contato e nos envolvendo com o mesmo, para que nos torne assim, familiar.      

Um forte elemento relacionado ao sentimento de afetividade e pertencimento ao ambiente e lugar apontado por Alencar (2007) são as relações de parentesco e ancestralidade:

Quando o grupo social abandona um lugar, o lugar deixa de existir e se perdem os fios da história do grupo que lhe deu origem. Portanto é o grupo social que constrói e dá significado ao lugar, e cada grupo constrói sua identidade a partir dos vínculos de parentesco que unem as famílias entre si e estas com o lugar aberto pelos ancestrais. O pertencimento ao lugar, e a um grupo de parentesco garante o acesso ao território e aos recursos naturais, e funciona como um mapa cognitivo que orienta as relações entre as pessoas e entre essas e o ambiente. (ALENCAR, 2007, p. 98) 

Nas entrevistas, o lugar que pertenceu à família e que teve diferentes gerações que ali vivenciaram experiências, pode possuir significações afetivas distintas, como foi narrado pelos entrevistados, que por serem crianças na época da chegada de Furnas não entendiam e sentiam muito bem o que estava ocorrendo com as terras de seus familiares, por isso se encantavam com a chegada da água, de pessoas diferentes que chegavam para trabalhar para Furnas e as possibilidades de brincadeiras que aquelas mudanças traziam. Significações afetivas distintas, devido a experiências distintas, que não deixam de ser afetivas, pois mais tarde quando recordam o fato, admitem a ingenuidade de criança diante o ocorrido e o valor econômico e simbólico que a casa onde a família residia, construída por seus pais ou avós possuía, lamentando por fim, a perda de lugares afetivos de importância para a memória da família.     

As mudanças realizadas na paisagem pelos empreendimentos hidrelétricos alteram consequentemente o espaço e os lugares onde os meios de produções materiais, as práticas sociais e simbólicas e a preservação da identidade histórica eram realizados. As perdas para os atingidos por barragens são, portanto, de natureza material e simbólica. De acordo com Silva Leitão:

Os grandes projetos de investimentos parte da lógica do exógeno, se tratando especificamente as construções de barragens, pois, seus investidores e o poder de decisão são a nível nacional e internacional, eles não são nem local nem regional, travando com isso um certo desconhecimento dos impactos gerados sobre esta ou aquela população, tendo em vista os processos de mudança no cotidiano das pessoas e suas práticas sociais. (LEITÃO, 2011, p. 2)

Fialho (2015) atenta para a importância de ressaltar que esse processo de mudança na paisagem realizado por hidrelétricas se da uma maneira brusca, fazendo com que a dinâmica lenta de sucessão de paisagens que remete à segurança e estabilidade seja rompida, as consequências são populações removidas, laços sociais quebrados e os bens materiais e imateriais desmanchados, forçando uma mudança dos meios de vida e uma nova adequação a outro ambiente. Os empreendimentos da área hidrelétrica não discutem as dificuldades das pessoas desapropriadas em ressignificar suas vidas sobre novas formas organizacionais, sociais e simbólicas. As formas de relações sociais, culturais, econômicas, simbólicas e a relação com a paisagem existente nos lugares atingidos não são passíveis de serem reproduzidas em outra realidade, fazendo com que os atingidos percam referências importantes para a sua identidade:

Estas afirmações trazem-nos ao questionamento das ideias de que a geração de energia a partir das hidrelétricas é mais limpa, barata e menos impactante. Isso porque não se leva em conta os custos sociais. Apesar de inúmeras ações, como reassentamento e indenizações, não se mitiga e compensa as especificidades e funções ecológicas da natureza e nem os modos de vida e padrões culturais das comunidades atingidas. (FIALHO, 2014, p. 20)

As indenizações, portanto, não são capazes de sanar os custos sociais e a perda da identidade local desses grupos, sobretudo não são capazes de sanar a perda do valor  simbólico de suas terras. Ao dissertar brevemente sobre situações de deslocamentos, Halbwachs (1990) atenta para o sofrimento que a demolição e a separação das pessoas  com seu lugar afetivo infligem, ao terem esses lugares apagados é como se parte de si mesmos fossem apagadas e morressem. (HALBWACHS, 1990, p. 137).  Ao se referir à memória coletiva de grupos deslocados, Halbwachs (1990) explana:

Mesmo que pudéssemos pensar que é diferente, quando os membros de um grupo estão dispersos e não encontram nada, em seu novo ambiente material, que lhes lembra a casa e os quartos que deixaram, se permanecerem unidos através do espaço, é porque pensam nesta casa e nestes quartos. (HALBWACHS, 1990, p. 133)

Destarte o que une os entrevistados desta pesquisa não é o grupo que eles se inserem agora, mas sim a memória do deslocamento e a memória a respeito de lugares afetivos que foram inundados. O grupo de entrevistados foi composto de pessoas com diferentes profissões e classes sociais, a união desse grupo não se dá pelo motivo de fazerem atualmente parte de uma mesma comunidade, pois muitos não o fazem, mas por compartilharem memórias em comum a respeito do evento analisado.

Muitas vezes a maior parte das populações atingidas é de baixa-renda e/ou não participa ou é consultada para as decisões dos projetos, ficando alheia às informações e desenvolvimento dos mesmos. O relativo desconhecimento dos impactos por parte dos investidores e do poder de decisão para a construção de barragens, apontados por Leitão (2011), faz com que o local a ser inundado, as práticas, a memória e o patrimônio dos atingidos sejam negligenciados.

3.2. Patrimônio de atingidos

Osvaldo Marco Alves (2015) expõe que a emergência do conceito de patrimônio histórico relaciona-se com o início da modernidade, período marcado pelo desenvolvimento do capitalismo e por aceleradas mudanças sociais e tecnológicas. Alves (2015) atenta para o contrassenso do surgimento do conceito em um momento em que tudo que era tradicional e antiquado sofriam com uma drástica ruptura, o conceito surgia, portanto, em consonância com o surgimento dos modernos Estados-Nação com o intuito de proteger os bens históricos, monumentais e artísticos das monarquias absolutistas como símbolos nacionais, servindo como apoio de uma nova identidade nacional. Neste sentido, o patrimônio surge como uma maneira de legitimar e alicerçar o nacionalismo, servindo como símbolos de suporte para a nova identidade nacional que se buscava fundamentar. (ALVES, 2015, p.13). “Deste modo, o Patrimônio surgia qualificado como monumental, histórico, ou histórico e artístico, tendo como definição uma abordagem institucionalizada” (CHOAY, 2010, pp. 103-187 Apud ALVES, 2015, p.13).

De acordo com Silva e Silva (2005) o campo relacionado ao patrimônio histórico despontou no Brasil no início do século XXI. Como expressado anteriormente, a noção primária e tradicional refere-se ao patrimônio histórico como herança relacionada a bens históricos, artísticos e monumentais. Atualmente o termo patrimônio histórico vem sendo substituído pela expressão patrimônio cultural, que possibilitou uma abertura maior que abraça não só as heranças históricas como também as heranças ecológicas de uma determinada região e as heranças culturais referentes às identidades coletivas. Esse processo de mudança conceitual a respeito do patrimônio, imprimindo o adjetivo “cultural” ao termo se consolida a partir dos anos de 1960/ 1970, com a “Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural” da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em Paris 1972. (ALVES, 2015, p. 5).  Segundo Silva e Silva (2005)

Assim, em última instância, podemos definir patrimônio cultural (incluindo nessa ideia a de patrimônio histórico) como o complexo de monumentos, conjuntos arquitetônicos, sítios históricos e parques nacionais de determinado país ou região que possui valor histórico e artístico e compõem um determinado entorno ambiental de valor patrimonial. Em sua origem, todavia, o patrimônio tem sentido jurídico bastante restrito, sendo entendido como um conjunto de bens suscetíveis de apreciação econômica. (SILVA; SILVA, 2005, p. 324)

A ideia acima está muito atrelada à noção de patrimônio como monumento material e rentável economicamente para o setor do turismo, pois são os sítios e monumentos, em via de regra, que se enquadram a essa concepção de patrimônio, sendo esses que usualmente são abraçados pelos tombamentos e preservações previstos por lei. No entanto, os autores atentam para a importância de considerar que o conceito atual de patrimônio cultural não se restringe apenas à produção material e aos bens naturais, mas também incorpora a produção imaterial, emocional e intelectual humana. “Ou seja, tudo o que permite ao homem conhecer a si mesmo e ao mundo que o rodeia pode ser chamado de bem cultural.” (SILVA; SILVA, 2005, p.325).

Somente por meio da nova concepção de patrimônio cultural que foi possível abranger heranças mais abstratas e não tangíveis relacionadas às experiências e memórias. Essas heranças materiais ou não, contribuem com informações importantes a respeito de uma determinada cultura e grupo contribuindo para a construção, preservação e rememoração da história, identidade e memória dos grupos vinculados a elas. Osvaldo Alves (2015) evidencia o patrimônio como uma construção que possuiu como função fornecer símbolos identitários que uma determinada sociedade e grupo decidem preservar. O patrimônio é uma construção social que se elabora, reinventa, transforma e se adapta a partir da noção da identidade, e assim como a memória e a paisagem, está sempre relacionado ao presente, pois o patrimônio precisa fazer sentido no presente para que seja apropriado e vivenciado. 

José Reginaldo Santos Gonçalves (2005) discorre sobre a possibilidade de problematizarmos a categoria patrimônio cultural inserindo-a em uma totalidade cósmica e moral, cuja fronteira é pouco delimitada, explorando suas dimensões sociais e simbólicas. Isto significa analisar a categoria como um “fato social total”, seguindo o conceito elaborado por Marcel Mauss. Os discursos atuais a respeito do patrimônio cultural possuiu sua ênfase no caráter construído e/ou inventado do patrimônio, onde cada grupo, instituição, família, constrói seu patrimônio no presente, tendo como finalidade organizar e exprimir sua memoria e identidade. Porém, ao utilizarmos essa perspectiva analítica deixamos oculto outro fato: “Trata-se daquelas situações em que determinados bens culturais, classificados por uma determinada agência do Estado como patrimônio, não chegam a encontrar respaldo ou reconhecimento junto a setores da população.” (GONÇALVES, 2005, p.19)

Essa rejeição revela que um patrimônio não depende apenas das vontades e seleções políticas e do Estado para ser identificado nessa categoria, nem depende apenas de uma atividade predeterminada e consciente de sua construção por grupos, mas  precisa encontrar aquilo que o autor denomina de “ressonância” junto ao seu coletivo.  Ele precisa fazer sentido, encontrar respaldo no universo amplo do grupo. Além da ressonância, Gonçalves atenta para a compreensão do patrimônio como uma mediação entre as categorias material e imaterial, que são comumente tratadas como oposições, apresentando a importância de tratarmos o patrimônio como uma categoria ambígua que transita entre o material e imaterial, passado e presente, alma e corpo contendo em si essas dimensões. De acordo com Gonçalves, relações simbólicas contém em si materialidade, pois mesmo um patrimônio intangível encontra-se em uma espacialidade, em conjunto com objetos que atribuem concretude ao universo simbólico:

No processo de construção dessas instituições situadas entre a memória e a história (tais como o patrimônio, as coleções, os museus, os monumentos, os arquivos), opera-se um trabalho cuidadoso de eliminação das ambiguidades. Substituem-se categorias sensíveis, ambíguas e precárias (por exemplo, cheiro, paladar, tato, audição) por categorias abstratas e com fronteiras nitidamente delimitadas com a função de representar memórias e identidades. Essa eliminação da ambiguidade e da precariedade dos patrimônios culturais pode colocar em risco o seu poder de ressonância, seu poder de “evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas de onde eles emergiram” (GREENBLATT, 1991, p. 42-56 Apud GONÇALVES, 2005, pp. 19-20)

Esta ambiguidade expressa na categoria do patrimônio, não deveria ser eliminada, pois ela em si é um aspecto definidor da própria natureza do patrimônio, já que este se situa “entre o passado e o presente, entre o cosmos e a sociedade, entre a cultura e os indivíduos, entre a história e a memoria”. (GONÇALVES, 2005, p. 20). Portanto, para o autor:

“patrimônios culturais” seriam entendidos mais adequadamente se situados como elementos mediadores entre diversos domínios social e simbolicamente construídos, estabelecendo pontes e cercas entre categorias cruciais, tais como passado e presente, deuses e homens, mortos e vivos, nacionais e estrangeiros, ricos e pobres, etc. (GOLÇALVES, 2005, pp. 16-17)

Flávia Brito do Nascimento e Simone Scifoni (2010) dissertam sobre a posição das paisagens culturais nos estudos da atualidade como uma maneira inovadora de compreender a questão da proteção e gestão do patrimônio cultural, atentando que para compreender o patrimônio cultural é preciso partir da lógica e atribuição locais, considerando a memória social e os vínculos afetivos da população ao seu ambiente, introduzindo para além das heranças monumentais as heranças intangíveis como formadoras do todo, categorias que devem ser reconhecidas e protegidas. A importância dos estudos voltados para as paisagens culturais em relação ao patrimônio nos permite afirmar, de acordo com Nascimento e Scifoni (2010), que:

superar a dicotomia até hoje presente na atuação dos órgãos públicos de preservação, no que diz respeito ao tratamento entre o patrimônio material e imaterial, entre o natural e o cultural, entendendo-os como um conjunto no qual os seus diferentes significados se articulam num todo vivo e dinâmico. Por outro lado, a forma como têm sido desenvolvidas as primeiras experiências na esfera pública patrimonial em território nacional mostra outra faceta igualmente interessante na atuação em paisagem cultural: a compreensão de que a proteção e a gestão deste patrimônio devem ser feitas com a participação das populações moradoras, por meio do envolvimento e da valorização dos saberes locais. (NASCIMENTO, SCIFONI, 2010, p. 29)

No que concerne à desapropriação de comunidades e grupos para a construção de barragens os impactos sobre o patrimônio dos atingidos são de natureza negativa, pois acarretam a perda de locais sacralizados como igrejas e cemitérios, locais onde as práticas econômicas eram realizadas como as plantações e locais de comércio, laços afetivos com o ambiente e com os membros da comunidade por meio do deslocamento dos habitantes para outras regiões, de referências de identidade. Em suma, as produções materiais/simbólicas e as práticas cotidianas são bruscamente rompidas e o patrimônio dos atingidos destruído é negligenciado, sendo as medidas reparativas insuficientes e insatisfatórias, pois as perdas extrapolam o valor puramente econômico.

4. Capítulo 3- As memórias de atingidos no município de Boa Esperança- MG.

4.1. Memória, paisagem e experiência: a vida antes e durante a chegada da água

Dadas as compreensões teóricas a respeito da memória, identidade, topofilia e patrimônio pretendemos nesse capítulo expor trechos das narrativas dos entrevistados a respeito de Furnas, começando pela vivência e experiência com o local antes da chegada do empreendimento e desembocando na visão atual do espaço pela comunidade hoje. As entrevistas completas estarão no final do trabalho como apêndices para a contribuição da conservação da memória e de fontes para possíveis trabalhos. É importante atentarmos novamente que, a memória, como apontada por Pollak e Halbwachs, é uma construção do presente e sobretudo, social e coletiva, evidenciando que por ser presente e coletiva esta sempre sujeita a modificações e flutuações, deste modo, a memória não um depósito passivo de recordações.

A memória exerce um trabalho de organização: ela seleciona, exclui, fixa e relembra o que considera importante para o momento, portanto a memória é sempre presente por ser uma construção do mesmo. Também é importante retomarmos que a subjetividade, representações e a experiência são aspectos de importância para um trabalho de história oral. As fontes orais que serão expostas agora são narrativas de uma pessoa ou grupo a respeito de um evento, as fontes não pretendem se firmar como a verdade absoluta, mas procuram perceber o significado que um determinado acontecimento pode ter para o indivíduo e o grupo, revelando "aspectos desconhecidos de eventos conhecidos"  (PORTELLI, 1977, p.31) sendo portanto, a verdade do grupo.         

As entrevistas ocorreram individualmente, no local e data marcados pelos entrevistados. Em alguns casos os narradores foram acompanhados por algum familiar durante a entrevista; no primeiro momento foi solicitado que o narrador se apresentasse e narrasse as recordações a respeito da vida, vivência e experiência com o espaço e o local antes da notícia da chegada de Furnas e das desapropriações de suas terras. No total foram entrevistadas seis pessoas com ocupações e classes sociais distintas: o médico radiologista Achilles Naves Diniz Pinto; o professor, mestre, cronista e membro da academia dorense de letras Rander Maia; o fazendeiro Luís Flausino Neves; o sapateiro José Oswaldo de Oliveira e as aposentadas e primas Maria Terêza de Morais e Maria Isabel de Ávila. Como dito anteriormente, o que une os entrevistados dessa pesquisa não é o grupo atual do qual fazem parte, pois cada um faz parte de uma comunidade social distinta, o que une o grupo é a memória e a experiência em comum a respeito do deslocamento e dos lugares afetivos que foram inundados pelo empreendimento. Como exposto por Halbwachs (1990) o que une um grupo disperso e alojado em um novo ambiente em situações de deslocamento é o pensar/recordar sobre esses lugares que foram queridos e que não mais existem.

Para Halbwachs (1990) o nosso entorno material carrega consigo nossa marca e a marca de outras pessoas com quem dividimos o lugar. Em nossas casas, por exemplo, a disposição dos móveis, a composição dos cômodos nos faz recordar experiências com a nossa família e amigos que presenciamos nesses cômodos. Se esses lugares inundados ainda sobrevivem na memória dos entrevistados é porque eles ainda pensam no entorno material que ali existiu e a vivencias que ali foram experienciadas, esses lugares constituem parte importante na formação da identidade dessas pessoas e por eles o grupo possui apreço e afeição. Esse apreço e afeição pelo local que não mais existe no espaço físico (mas existe na memória afetiva e coletiva dos entrevistados) muitas vezes está materializado e exposto em suas atuais residências, metade dos entrevistados possuía pinturas da antiga residência inundada expostas em suas salas. Como demonstrado na narrativa do colaborador Rander Maia:

Morei lá onde hoje é o lago, na Rua Capitão Neves com a minha família até 1970. Era uma boa rua de se morar, entendeu? Eu tenho até uma foto da rua que eu pedi pra pintar num quadro depois. Eu era menino, entre quinze e dezesseis anos, eu nasci e morei lá até os meus 25 anos. Tinha um campo de aviação e a gente menino ia jogar futebol dentro desse campo de aviação, era tudo uma várzea, um gramado sabe? E em 1965 a água inundou aquilo tudo ali. (Rander Maia, 2016)

A pintura exposta em sua sala não traz somente a lembrança do lar que viveu, ela traz consigo reminiscências da paisagem, dos jogos de futebol da infância e das experiências com o local antes da chegada do empreendimento.

Como mencionado anteriormente, os espaços desalojados para que as barragens possam ser construídas não são espaços isentos de pessoas e significados; eles são carregados de produções materiais e simbólicas de um grupo, evidenciando a maneira como seus membros vivem, suas relações sociais, econômicas, culturais e as relações que o grupo estabelece com a natureza. As narrativas evidenciaram o sentimento de afetividade e familiaridade com o ambiente revelando o sentimento de topofilia, que de acordo com Yi-Fu Tuan (1980) pode ser conceituado como o apego e os sentimentos íntimos e afetivos que as pessoas constroem com o seu ambiente e lugar. Como exposto na narrativa do entrevistado Achilles Naves, que disse que as terras que foram alagadas era a vida de sua família: 

Na minha infância minha família residiu onde hoje é o lago de furnas e a paisagem da época era a seguinte, era uma várzea grande né? Beeem grande. E era um sítio, tipo uma fazenda, tinha a várzea né? Grande. E tinha pasto e tinha vaca, tinha o campinho de futebol da meninada. Aí tinha coisa assim, de 20 á 22 alqueires de terra, que ia da onde é o cais hoje, conhecido como ‘T,’ sabe? Até onde hoje é o dique. Aquela região ali era tudo nossa. A gente chamava lá de casa debaixo, era dentro da cidade mesmo, a cidade era aquilo. Tinha bastante plantação, a gente plantava bastante coisa lá, plantava milho, plantava arroz, e era mais gado né? Era uma várzea, tinha muita vaca lá, mas era cidade mesmo.  Lá íamos sempre em família, muita criança e tinha o campinho de futebol onde a gente sempre jogava bola. Eu morei lá pouco tempo, depois sai, meu tio que ficou morando lá, irmão do meu pai, chamava Paulo Diniz. Foi ele que morou lá a vida inteira, até ter que desmanchar a casa. A relação que a gente tinha com o local? Aquilo era a vida da gente né?!  A gente vivia lá! A gente ficava o tempo todo lá no pomar que era muito grande, com todo o tipo de fruta, a gente pescava no rio que passava no fundo. Quer dizer, era um sítio dentro da cidade. Meu tio mesmo vivia mais de lá, das coisas que plantava e dos gados. (Achilles Naves Diniz Pinto, 2016)

O sentimento de topofilia é criado a partir do tipo de relação tanto com as pessoas quanto com a terra que construímos no ambiente, um lugar se torna querido quando nele realizamos experiências agradáveis, familiares e íntimas, como no caso do entrevistado Achilles Naves, para além do local onde viviam e estavam sempre em família o espaço que foi alagado era permeado de lugares afetivos onde plantavam, pescavam, jogavam futebol, criavam o gado, passavam o tempo no pomar.          

Um dos elementos que possui forte influência na constituição do sentimento de topofilia é a experiência vinculada a um passado familiar, a afetividade pelo ambiente é mais intensa se carregada de lembranças familiares, como expressado na narrativa da Maria Isabel Ávila que ressaltava com orgulho e afeto o símbolo de sua identidade: o sobrenome familiar. 

Então, meu nome é Isabel, Maria Isabel, família dos Liseu, muito conhecido por todos na cidade... quando falava dos Liseu todo mundo sabia quem era a família dos Liseu.! Então, o nome Liseu tem inclusive lá na ‘beira-lago’ uma rua que chama Eliseu Pereira, que no caso era o meu vô. A gente foi nascido e criado, num bairro assim... muito popular, que na época não era conhecido como bairro, mas um povoado familiar. (...) A gente nasceu, criou lá, passamos tooooda infância... eu no caso, que hoje tô com 63 anos, sai de lá com 23 anos, justamente por causa da chegada da água.(...) Onde a gente morava era uma área assim, muito, muito, muito familiar, não era bairro, era um povoado, “O Povoado dos Liseu”! Era um pedaço muito grande de terra, o pedaço do papai Liseu, que dividia entre onze irmãos, a gente falava alqueires ou quarta, era tantas quartas de terra, um pedaço muuito grande. Tem muuita terra dos meus tios debaixo dessa água toda que você vê ali hoje. O povoado dos Liseu era só família! Família grande! Não tinha cerca, não tinha nada, uma parte pra cada tio! Tudo coisa que hoje assim... a gente sente muita saudade... ... a gente era feliz... e não sabia... porque... ... era aquele tipo de coisa que quando caia a tarde a gente saia pra conversar... de noite a gente ia pra casa de um e de outro pra bater papo. (Maria Isabel de Ávila, 2016)

Alencar (2007) aponta como um poderoso elemento relacionado ao sentimento de afetividade e pertencimento ao ambiente e lugar as relações de parentesco e ancestralidade. O nome familiar, que compunha o nome da comunidade “Povoado dos Liseu” apresenta-se como um expressivo elemento da constituição da identidade da narradora e do sentimento de afetividade ao local inundado. A ancestralidade também aparece com força nas entrevistas e no sentimento de identidade e afetividade ao ambiente: a terra dos pais, tios, avós que ali trabalharam e construíram o local, como tratado na entrevista do senhor Luís, que durante toda a sua narrativa se intitulava fazendeiro com orgulho: 

Eu nunca morei na cidade não, eu fui nascido e criado na fazenda, minha avó era fazendeira, minha avó materna, a paterna era do Rio, meu avô era de São Paulo. Meu pai era do povoado Santa Bárbara das Canoas, que hoje é conhecido como Guaranésia. Então se eu sou daqui, é porque meu pai saiu de lá com 22 anos e casou com gente daqui, da família Neves. Então na minha infância eu morei na fazenda do meu pai, meu pai tinha uma fazenda de 50 alqueires lá no município de Campo do Meio, ele comprou do tio da minha esposa, então eu já cresci com aquele jogo de fazendeirinho desde criança. Minha avó era uma grande fazendeira! Agora, as minhas terras que foram tomada por furnas, na época, eu comprei uma parte e outra parte foi herança da minha esposa, quando a gente casa a gente casa com a família também né? Meu sogro também era fazendeiro, na fazenda dele a água pegou 170 alqueires de terra, ele era da família Rodrigues. (Luís Flausino Neves, 2016)  

De acordo com Alencar (2007), o grupo compõe a sua identidade e o sentimento de pertencimento ao ambiente a partir dos vínculos de parentescos. São esses vínculos que unem famílias entre si e com o lugar trabalhado e fixado pelos ancestrais. Os lugares são importantes pontos de referência para a história e identidade social e cultural de um grupo por serem os locais onde as necessidades de raízes e segurança são supridas. Os espaços só se transformam em lugares significativos quando possuímos com ele relações íntimas, quando inscrevemos nele pedaços de nossas histórias e quando ele é construído e transformado pelo trabalho de nossas gerações anteriores. (ALENCAR, 2007, p. 98).

A experiência e trabalho com a terra, o local e paisagem das plantações e pomares também foram elementos bastante revisitados nas recordações, juntamente com os locais de lazer e onde as brincadeiras infantis aconteciam. Até a bica d`água utilizada para lavar roupas foi recordada de maneira afetiva. Nesse sentido, o Senhor Luís frisou o trabalho na terra, mas também os momentos de lazer que o espaço lhe proporcionava

Nessa minha profissão de fazendeiro, então eu fiquei com um pouco de mágoa, toda vida trabalhando na terra, trabalhei muito, minha mão cheia de calo, de tanto trabalhar na terra. Mas também eu jogava truco, jogava bola, nadava muito, pescava. (Luís Flausino Neves, 2016)  

Maria Isabel recordou o pomar e as árvores frutíferas que compunham a paisagem, lamentando sua perda:

Laranjeira! Tinha laranjeira de tudo quanto é jeito! Bananeira! A gente cortava aquele muuundo de cacho de banana, vendia aquilo tudo! E acabo que isso não aconteceu mais... (Maria Isabel de Ávila, 2016)

A narradora também recordou as bicas d`água onde lavavam as roupas:

Lá nos Liseu tinha uma bica d’água, tinha o rego que ia por ali tudo afora, e as bicas d’água ficavam todas onde era a casa velha do meu avô, papai Liseu. Aí o povo da cidade não tinha água nas casa, aí eles iam pra lá buscar a água pra trazer pra cá. Roupa? A cidade interinha ia pra lá lavar roupa, faziam aquelas malas de roupas colocavam na cabeça e iam tudo lavar roupa lá! Aí tinha a bica-do povo-de-dentro e a bica-do-povo-de-fora, a bica-do-povo-de-fora era pro povo que vinha da cidade pra lavar roupa ali, e a bica-do-povo-de-dentro era a nossa, que a gente usava. (Maria Isabel de Ávila, 2016)

Podemos perceber nas narrativas que a experiência dos moradores desapropriados com o seu local antes da chegada do empreendimento foram de natureza íntima, familiar, por meio das relações estabelecidas com as pessoas e com o ambiente. A relação com a terra dos parentes se relaciona ainda com o sentimento de pertença, como narrado por Maria Isabel a respeito da “bica-do-povo de fora” e a “bica-do-povo-de-dentro” que era o lugar pertencente a sua comunidade afetiva, onde as mulheres de sua família utilizava para lavar as roupas, delimitando o espaço de seu grupo com o espaço de outros grupos. Para Tuan (1980) o lugar produz em nós sentimento de proteção, enquanto o espaço nos remete à liberdade.

Os lugares são os locais que atribuímos valores e significados e onde realizamos nossas experiências, suprimos nossas necessidades afetivas e onde sentimos proteção e estabilidade. No caso analisado o espaço se apresenta como a área que foi alagada, esse espaço era permeado de lugares afetivos e íntimos onde as pessoas desapropriadas vivenciaram suas experiências (a casa, o pomar, o campo de futebol) todos se relacionam com a paisagem, pois, as formas visíveis encontradas na paisagem servem de ponto de apoio para a construção de suas reminiscências. O espaço era sinônimo de liberdade por apresentar inúmeras possibilidades de brincadeiras e vivências em diversos lugares. Como narrado pelo entrevistado Achilles:

Lá a gente brincava de tudo, brincava de pique, de futebol, de subir em árvore pra pegar manga e pegar fruta, e mesmo depois que a água veio a gente também brincava né? Aí era canoa... (Achilles Naves Diniz Pinto, 2016)

De acordo com Tuan (1983) os indivíduos constroem sentimentos intensos com o local por meio das experiências, sentidos e emoções e é a partir dos nossos órgãos sensoriais como o tato, olfato, paladar e da cinestesia que experenciamos de maneira acentuada um lugar, criando vínculos afetivos com ele. Na narrativa da senhora Maria Isabel, o pomar do tio e o cheiro das maçãs ilustram a afirmação de Tuan:

A gente plantava muito lá! A onde tinha uma terra de um dos meus tios fazia até exportação de maçã! O tio Chico Liseu! Ele tinha uma plantação de maçã muito grande e foi a primeira casa dos meus tios que foi atingida! Tinha banana, laranja, jabuticaba, tinha de tudo! E no meio disso muuuita maçã! Aí, quando era dia dele colhê vinha até gente de fora pra ver! E isso tudo foi por água abaixo! Tudo tampado por água! Tudo prejuízo! O tio Chico teve um prejuízo assim... ele cuidava das maçãs sabe? Com todo o carinho! Apanhava as maçãs sem amassar, sem machucar elas, enrolava todas no jornal e colocava nos caixotes. Quando elas amadureciam a gente abria os caixotes cheios de maçã, aquele cheiro sabe? Eu lembro muito do cheiro das maçãs! Enchia o lugar todo o cheiro! Aí tinha o dia em que as pessoas vinha de fora pra buscar as maçãs. (Maria Isabel de Ávila, 2016)

Mais do que a recordação do cheiro das maçãs a narrativa também expõe o trauma da perda de um lugar importante para ela e para o tio. Pollak (1989), ao analisar recordações mais pessoais a respeito de um evento de caráter traumático, expressa que nesses casos, os pontos de referencia da memória muitas vezes são de ordem sensorial, como os cheiros, barulhos e cores, mas do que datas oficiais. O prejuízo narrado pela colaboradora vai além do prejuízo monetário, abrange o prejuízo e a dor de ver um lugar que produzia sentimentos bons e familiares ao observar o cuidado do tio com as maçãs, em sentir felicidade com o cheiro que elas exalavam nos caixotes e a dor de seu tio em perder a terra onde trabalhava e cuidava. O pomar de seu tio Chico, para além das memórias mais pessoais da narradora a respeito do aroma das maçãs, também foi recordado nas narrativas de outros entrevistados demonstrando ser um ponto de referência na memória coletiva e subterrânea/submersa do grupo.  

Tinha o Chico que mexia com maçã, tinha um pomar grande assim, aquilo dele (a água) pegou tudinho. (José Oswaldo, 2016)

Até nosso tio memo tinha formado uma chácara de ponkan, tinha macieira, essas maçã que a gente compra hoje é tudo macia né? Mas a dele era pequena e mais dura, dessas a gente não vê muito mais não. Ah! Pegou a chácara dele tudo! Os fruto tudo formado, precisa de ver! Tampou tudo! (...) Quem foi prejudicado mesmo, que acabo com tudo mesmo, foi o Tio Chico, porque a parte dele, a chácara dele, eu não tô te contando que era ponkan que ele trouxe não sei quantas muda de fora?!  A chácara que ele formou era coisa assim, de primeiro mundo, naquela época ninguém sabia o que era ponkan! Acho que foi em 46 ou 50 que água chegou... alguma coisa assim... e o que foi mais prejudicado mesmo foi o Tio Chico. (Maria Terêza, 2016)

De acordo com Halbwachs (1990), as lembranças de um grupo se unem e apoiam-se um nas outras; as lembranças individuais encontram-se com as lembranças de outros membros do grupo trançando uma nas outras para que a memória seja construída, reconstruída, complementada e reforçada. Para o autor isso só se torna possível pra aqueles que continuam fazendo parte do mesmo grupo. Como veremos, o entrevistado José Oswaldo possuiu uma visão dissidente do grupo no que tange o valor do patrimônio e da terra, sua visão se mostrou distinta e distante da visão de todos os outros entrevistados, porém, entre os três que recordaram o pomar do Chico ainda se encontra certa proximidade. Maria Terêza e Maria Isabel são primas, as lembranças para elas são transmitidas por meio da rede familiar da experiência em comum, o sapateiro José Oswaldo reside próximo a casa de Maria Terêza, o que indica certo contato (mesmo que visual) frequente. Por mais que atualmente possam não pertencer ao mesmo grupo, a memória a respeito do evento os unem mesmo que entre elas se encontrem dissidências.

As narrativas a respeito da notícia da chegada do empreendimento que iria desalojar os moradores de suas terras chegou aos entrevistados em um primeiro momento com incredulidade. Primeiramente, chegavam notícias e rumores a respeito do empreendimento, para depois os rumores tornarem-se efetivos devido à presença dos topógrafos e técnicos que vinham estudar as áreas. A recepção da notícia gerava sentimentos intensos de descrença, surpresa, raiva e desespero por terem que abruptamente abandonar suas casas e locais queridos. Maria Isabel narrou a surpresa inicial, a inconformidade e incredulidade de sua família de que o empreendimento fosse realmente executado: 

Cada um dos irmãos, era uma família de onze irmãos, cada um tinha o seu pedacinho de terra... quando... a surpresa...da chegada da água de Furnas. Ninguém, dos onze, conformava com a ideia, ninguém queria perder aquilo que tinha. Quando foi chegando o doutor... ... não me lembro agora... o nome do doutor era... ... não me lembro... ele era advogado que mexia com Furnas, ele foi conscientizando as pessoa que aquilo tava acontecendo, mas que um dia tinha uma indenização. (...) Quando a gente recebeu a notícia foi muuito surpresa, muuito surpresa mesmo! É o que eu já disse, ninguém queria perder tudo, a gente achava que não ia ser nada, que logo eles ia acabar com a aquela conversa... mas a água... a água chegou. (Maria Isabel de Ávila,  2016)

José Oswaldo e Rander Maia em suas narrativas relataram a chegada dos engenheiros e topógrafos na área:

Antes de chegar a água veio os engenheiro né? Que fizeram a.... topografia? É isso que fala né? Mediram todinho, demarcaram onde a furna ia pegar, aí tinha a parte além daquilo, que era a faixa de segurança que eles falavam né? Aí a turma já ficou sabendo já né? Que invinha. (...)Então chegou o pessoal dos engenheiro, topografia, demarcô tudo e depois veio o aviso da indenização falando quanto ia pagar, foi avisado. (José Oswaldo de Oliveira, 2016)

A gente recebeu a notícia da chega de Furnas com muito aborrecimento, a gente estava acostumado com o local e também Furnas pagou muito pouco pelas indenizações, muitas pessoas nem receberam direito, sabe? (...) Aí por volta de 1960 nós ficamos sabendo que Furnas pretendia desapropriar, veio os topógrafos, mediram as casas, os terrenos, né? (Rander Maia, 2016)

Fernanda Blanco Vidal (2013) expôs que mesmo antes da construção da barragem iniciar as pessoas começam a sentir antecipadamente os seus efeitos, por meio da surpresa da notícia que causa inconformidade, ansiedade, raiva e medo do futuro. Achilles Naves expos o sentimento de raiva que a notícia provocou em sua família:

Quando minha família recebeu a notícia que furnas iria chegar eu me lembro que eles ficaram muito bravos porque tomou as terras deles e pagaram muito mal! (Achilles Naves Diniz Pinto, 2016)

Os efeitos também são sentidos por meio da chegada de novas pessoas para estudarem o local que modificam a sensação de tranquilidade e familiaridade que os lugares proporcionam as pessoas que ali residem que veem suas propriedades invadidas por estranhos, pessoas que não pertencem ao grupo e a família.

Maria Terêza ao expor a vinda da água e do empreendimento demonstrou uma memória traumática a respeito do evento por meio do sentimento de tristeza e revolta que a ruptura com o lugar de segurança, sua própria casa, causou. 

Acho que foi em 46 ou 50 que água chegou... alguma coisa assim (...) Cobriu tudo, cobriu de um jeito que não salvava nada. Imagina, ce ta quietinho lá na sua casa quando vem esse negócio docê ter que sair de uma hora pra outra?! (...)Na época todo mundo ficou triste e revoltado né? Porque, perdê uma coisa que você tem tudo arrumadinha? É semelhante do que foi em Guapé né? Lá eles tiveram que fundar outra cidade né? Mas lá não sobrou nada. (...) Agora aqui em Boa Esperança também foi um caos quando chegou né? (Maria Terêza de Morais, 2016)

A tristeza e a revolta vem acompanhada do sentimento de indignação de ver invadido algo que lhe pertencia. Nosso lar esta ligado ao sentimento de privacidade, segurança, abrigo, são os membros da família que escolhem quem pode frequentar os lugares da propriedade, quem é bem vindo no local ou não. A chegada repentina de um empreendimento invadindo esses lugares, ocupando esses espaços tidos como invioláveis por pessoas de fora do convívio do grupo causa distúrbios no sentimento de segurança e propriedade.       

Podemos considerar o relativo desconhecimento inicial das comunidades atingidas, que vem acompanhados pelos choques narrados pelos colaboradores, como uma estratégia das empresas relacionadas a esse setor, pois como relata Fernanda Blanco Vidal (2012) em seu trabalho, esse modo de realizar o contato com a população tem sido comum em muitos projetos com as primeiras notícias chegando apenas como rumores distantes, sem que a empresa se faça presente, quando os técnicos começam a chegar nas áreas o que antes era apenas uma notícia incerta já vem com a sentença dada, é sair ou ficar debaixo d`água. A notícia dada no momento em que o empreendimento já estava articulado e pronto inibiu a formação de uma resistência planejada com antecedência, também inibiu a participação e o diálogo da população, resultando em uma margem nula de diálogo entre as duas partes, como evidenciado nas narrativas:

A gente não teve nem direito de fazer alguma coisa quando Furnas chegou... de ter uma resistência. O advogado de Furnas que eu esqueci o nome, passou até ser uma pessoa da família... ... Dr. Garcias! Era Dr. Garcias! Ele foi muito amigo explicando pra gente as coisas, coisas que Furnas não explicava, ele sabia conversar e entender o nosso lado. Acabou que ele soube conversar tanto com a gente que o nosso sentimento de revolta até passou, a gente até entendeu. Mas não teve assim uma revolta, uma tentativa de impedir porque nem tinha como a gente impedir. Eles chegaram com tudo, a água chegou e foi atingindo mesmo! (Maria Isabel de Ávila, 2016)

Não houve nada, nada de resistência, o prefeito na época foi omisso, Furnas chegou e fez o que quis, desmanchou o que quis, pagou o que quis e pronto. Os moradores na época não tinham esse sentido de cidadania, nem existia pra fazer um movimento contra, nada disso, foi tudo pacífico. (Rander Maia, 2016)

Como exposto na narrativa de Maria Isabel, coube ao advogado Garcia (figura que foi revisitada por todos os entrevistados, sendo também um ponto de referência  em comum nas memórias dos atingidos), advogado que cuidou das causas na época,  explicar e dialogar com os atingidos sobre questões que Furnas não expunha aos moradores. 

Foi consenso na construção da memória dos atingidos que a notícia sobre as desapropriações, assim como as próprias desapropriações em si, foram feitas de maneira brusca fazendo com que muitos moradores entrassem em desespero na tentativa de salvar o possível de suas propriedades e patrimônios. Esses discursos dos atingidos contradiz o discurso oficial dos envolvidos na construção do empreendimento, revelando a memória subterrânea/submersa em detrimento de uma memória oficializada. Em entrevista realizada em 1988 com o engenheiro e primeiro presidente da Furnas Centrais Elétricas S.A. que a presidiu até o ano 1974, John Reginald Cotrim, ao manifestar-se a respeito das desapropriações disse:  

Foi um tema dominante da administração da companhia, durante anos e anos e anos, porque era um fato inédito: um lago daquele tamanho, com um número de proprietários... Isso, naturalmente, movimentou uma massa enorme de reivindicações, etc. Tivemos um grande departamento da companhia, durante anos e anos e anos, composto de engenheiros, advogados, etc., só cuidando disso, só cuidando disso. Isso é um grande problema numa grande usina. Em Itaipu tivemos o mesmo problema. Uma grande usina com um grande lago, gera problemas. Veja o que esta acontecendo agora em Itaparica, no Nordeste, o deslocamento de populações. É inevitável. Ou se faz a usina e desloca o pessoal, ou não se faz a usina. Não se pode fazer a usina deixando o pessoal lá. Eles não podem viver debaixo d`água. (riso) De modo que são problemas decorrentes desses grandes projetos. Não há como evitar. Agora, nós, em Furnas, adotamos uma politica de desapropriação que foi extremamente vantajosa para o pessoal todo e mais ou menos inédita até a época. Porque, como a obra levaria muito tempo para construir, nós começamos a desapropriar logo no início. E aqueles que concordassem em negociar conosco logo de saída, logo cedo, além de receberem o dinheiro pela sua propriedade, ficariam com o direito de ficar morando e cultivando a terra até a barragem ficar pronta. Então, tem gente que ficou quatro, cincos anos ali, cultivando a terra de graça, já tendo recebido o dinheiro. Alguns ainda criaram dificuldade na hora de sair, mas muitos se beneficiaram. (COTRIM, 1988, p. 176)

O discurso do engenheiro Cotrim apontava a questão dos atingidos como um problema para o desenvolvimento do projeto, além do deslocamento ser algo inevitável para que obras desse tipo iniciassem. Seu discurso apontava a impossibilidade do projeto e das desapropriações não acontecerem, como na sua fala “Não se pode fazer a usina deixando o pessoal lá. Eles não podem viver debaixo d`água. (riso)” (COTRIM, 1988, p.176). Para o engenheiro era necessário que o projeto fosse realizado. Os atingidos eram entraves para realizar a marcha do progresso, além do mais, o projeto era vantajoso para todos os desalojados e principalmente era de caráter essencial para o desenvolvimento do país. No contexto da construção de Furnas e em consonância com o ideal desenvolvimentista do presidente Kubistchek o aumento na oferta de energia elétrica era apontado como essencial para modernizar a economia do país, superando o “atraso”, o subdesenvolvimento em que se encontrava por meio da industrialização. Em contraste com o discurso do engenheiro Cotrim, que expõe uma política de desapropriação vantajosa, que foi avisada com tempo e antecedência, temos as narrativas a respeito da surpresa, do desespero e do prejuízo que as desapropriações causaram aos moradores, revelando a representação do fato na memória coletiva dos desalojados.

 Temos portanto duas memórias distintas a respeito do mesmo fato. Uma memória oficial dominante, criada pelos responsáveis pelo projeto e uma memória subterrânea denunciando as perdas e prejuízos construída pelos atingidos pela obra. Como apresentado por Pollak (1989), as memórias subterrâneas são memórias tidas como clandestinas que fazem contraponto a memória oficial, essas memórias subterrâneas são silenciadas pelo excesso de discursos oficializantes, porém continuam vivas e são transmitidas no núcleo familiar e no seio do grupo esperando uma oportunidade de serem expressas. Elas são zelosamente guardadas por meios informais e passam despercebidas pela sociedade englobante, até o momento em que se torna favorável quebrar o silêncio para que elas se tornem audíveis. Como é o caso das narrativas a respeito dos impactos negativos na vida dos desapropriados pelo empreendimento de Furnas no município de Boa Esperança, essas narrativas ficam por fora da memória tida como oficial a respeito da construção da barragem de Furnas nos municípios mineiros e nas comemorações local a respeito do lago que hoje banha a cidade.

Essas comemorações e memória oficial enaltecem o empreendimento, a paisagem e o espaço alagado atualmente, fazendo com que a sociedade englobante desconheça as memórias submersas na construção da atual paisagem, que diz respeito a perdas e impactos sociais e tomem para si as memórias oficiais enquadradas, enquadradas no sentido de legitimadas e fortemente constituídas. É importante lembrarmos mais uma vez que a memória é sempre uma construção e uma reconstrução, consciente ou não, sendo assim, a memória oficial também oculta, modifica e modela as memórias de acordo com o momento e com a “mensagem” que quer passar para a sociedade englobante, nesse caso, a imagem do progresso oculta a imagem das perdas locais, já que se faz necessários “pequenos sacrifícios” em nome da modernização, como evidenciado na narrativa do engenheiro John Cotrim.          

4.2. Após a chegada: narrativas sobre prejuízo, empobrecimento e problemas de saúde

Após o choque inicial da notícia foram narradas situações de desespero e prejuízo causados pela inundação da área. A entrevistada Maria Terêza relatou o desespero para salvar partes das plantações da família com a chegada da água:

Antes da água chegar nois plantava, na parte que nois morava memo nois não plantava não, nois plantava mais pra cima, até na época mesmo que água foi chegando nois tava plantando milho e pegamo canoa e fomo quebrando o milho pra ver se salvava, aproveitava, se alguém comprava... e a água chegando e chegando e foi muuita perda. Umas espiga de milho deeesse tamanho, arroz, feijão que já tava tudo plantado, quase dando a época de colhê, perdeu tudo... ce tinha que ver o desperdício que foi! A gente ia de canoa, ninguém sabia nadar, arrumamo uma canoa com um pescador que ia pescar lá no rio Grande pra baixo. Foi muito desperdício! Muito desespero! (Maria Terêza de Morais, 2016)

O colaborador da pesquisa Achilles Naves Diniz também narrou a respeito do prejuízo que sua família teve ao ter que abandonar suas propriedades, entre elas uma usina de açúcar.

O meu pai tinha até uma usina de açúcar, aquela chaminé que enxerga no lago onde hoje é minha roça era a usina dele, da família dele e tiveram que derrubar a usina, perderam a usina. Ela foi indenizada, mas muito pouco, o prejuízo foi muito grande. Ainda da pra ver a chaminé na água, do outro lado e ali era a usina. (Achilles Naves Diniz Pinto, 2016)

O senhor Luís em sua narrativa ressaltou a diferença do estilo de vida que levava em sua fazenda desapropriada e o que levou no sítio que comprou após a desapropriação, enfatizando o endividamento no banco por ter efetuado um empréstimo para comprar o sítio atual onde reside.

Depois que a água chegou eu mudei lá pra Campos Gerais, comprei terra lá por 250 o alqueire, mas as coisas que ficou aqui nas terra que furnas pegou, madeira, arame, tijolo, uma coisarada, o povo carregou tudo, foi carregando, porque não tinha quem tomasse conta né? Virou terra de ninguém. Foi outro prejuízo muito grande. Aí então, comprei esse sítio em Campos Gerais com essa lavoura de café, entrei no banco, ai vem o prejuízo de furnas porque tem os juros de banco, juros enorme né? Então em vista do que eu fui e depois de furnas... nossa senhora! Não tem nem comparação! (...) O que eu era antes de furnas e dessa ocasião pra cá a diferença foi muita, foi muita. (...) Eu cheguei a possuir 25 alqueires de lavoura de café, mas devendo o banco, fiquei devendo o banco. Agora, antes de furnas... antes de 1960, por ai, eu tinha renda, eu tinha gado, eu vendia vaca de corte, teve um ano que eu colhi não sei quantos alqueire de arroz, teve ano que eu cheguei a ter 200 mil em dinheiro só de arroz que colhi, tudo nesse terreno, que hoje ta debaixo d’agua. (...) Então deu essa diferença muito grande.  Eu tenho essa fazenda que comprei até hoje, mas renda, porque antes de furnas eu tive muita renda, não tive mais não. (Luís Flausino Neves, 2016)

As narrativas expressam o prejuízo financeiro causado pela obra. Lemos Junior (2010) dissertou sobre o paradoxo das construções de barragens como fatores de desenvolvimento econômico em contraposição aos atingidos pelo projeto que acabam empobrecendo após a construção. Se o discurso propagado pelo empreendimento é voltado para o desenvolvimento econômico e industrial do país, no primeiro momento o que se vê é o empobrecimento da população atingida que se encontra impactada pelo fim de suas atividades agrícolas de suas terras inundadas e pelo baixo valor pago pelas indenizações. Nos relatos apresentados durante a realização das entrevistas ficou exposto que muito mais do que prejuízos financeiros e materiais os prejuízos são sentimentais, espirituais no sentido de pertencerem à essência formadora dos entrevistados.

O que era produzido num sentido de subsistência era também aquilo que nutria a própria formação da identidade, pois a materialidade traz consigo o imaterial e o último não se situa desassociado da primeira. O trabalho material, a materialidade da terra nutria também a formação da identidade, do sentimento de pertença, de topofilia e vice versa.  Um exemplo é as espigas de milho que aparecem na narrativa da colaboradora Maria Terêza, elas simbolizam mais do que o meio de alimentação e fonte de renda pra família, elas simbolizam o trabalho, os sacrifícios, as técnicas corporais para que o milho fosse plantado, simbolizam também o cuidado, o carinho para com a terra, ao mesmo tempo em que esse carinho, esse vínculo espiritual com a terra remete novamente às técnicas materiais para que o milho fosse cultivado, sendo portanto uma relação que constrói uma ponte  entre material e espiritual e vice versa.       

Após o desespero e a tristeza de ver o trabalho, o sustento da família e patrimônio sendo entregues à situação imposta, ocorreu a ruptura com a terra, com as raízes, com as heranças históricas e culturais, com sentimento de segurança e de lar. O momento de ruptura e da migração para outro local é marcado por estranhamentos e dificuldades de reestruturar novamente suas vidas em outro meio, já que a ruptura com o espaço e lugar em que residiam causam impactos em suas relações sociais, econômicas, afetivas e culturais predominando o sentimento de abandono. Junto a essas dificuldades foram narrados quadros de empobrecimento após as desapropriações:

Eu me lembro de várias histórias de pessoas que o dinheiro não deu pra comprar e foi morar de favor, muitos proprietários rurais perderam tudo e houve um êxodo rural muito grande pra dentro da cidade. (Rander Maia, 2016)

A gente vinha pra cidade e ficava desamparado, porque nem todo mundo conseguiu construir um lugarzinho, a minha casa mesmo ficou muitos anos só no barro e no tijolo, ficou muito tempo sem ter jeito de acabar, a gente amarrava uns bambus, umas coisas assim pra cercar, porque não deu. (...) As pessoas que viviam da terra acabaram que vieram pra cidade e não fizeram nada porque já tavam tudo velho, tudo de idade e a única coisa que sabia fazer era trabalhar na terra. Cê me entende?! Cada um comprou um quinhãozinho na cidade com ajuda dos filhos. O prejuízo foi de duas maneira, foi da água atingir as casas e as coisa que a gente plantava... (Maria Izabel de Ávila, 2016)

(...) Aí quem veio pra cidade foi pra casa de aluguel né? Com o pouquinho do dinheiro que foram indenizando alguns davam pra comprar um lotezinho né? E foram construindo aos pouco né? Os que tinha possibilidade, agora outros foram viver de favor em alguma outra roça, trabalhar na roça em troca de lugar pra ficar sabe? (Maria Terêza de Morais, 2016)

As indenizações oferecidas pelo empreendimento na maioria das vezes não são o suficiente para que os atingidos possam adquirir em um novo local novas terras com a mesma qualidade e proporção da terra alagada, o que acaba gerando descapitalização e consequentemente um grande êxodo rural. A população atingida acaba se encontrando sem capital suficiente para reconstruir suas terras, plantações e patrimônios alagados em um novo ambiente, essa descapitalização acaba transformando os meios tradicionais de vida do grupo, o que faz com que muitos membros dessas comunidades tenham que migrar para outra localidade e tentar viver de outra maneira do que a anterior, ocorrendo assim, perca da cultura e da identidade do povo migrante. (REBOUÇAS, 2000, p. 28).  Muitas pessoas não tendo capital suficiente para comprar novas terras acabam migrando para os centros urbanos, como narrado passam a residir em casas de aluguel ou de favor. Nas cidades os impactos do êxodo rural continuam, não só para os atingidos diretamente pela água que se encontram empobrecidos e sem meios de subsistência, pois como exposto nas narrativas, muitos só sabiam trabalhar na terra ficando sem fonte de trabalho ao chegar na cidade o que acarretou em desempregos e subempregos. A cidade também é impactada com a chegada de novas pessoas com o aumento populacional, aumento da demanda de empregos, aumento de subempregos, aumento de bairros de baixa-renda.  

Após o realojamento os atingidos ainda sofreram com a dispersão da comunidade de origem, a perda de laços afetivos com os membros do grupo dispersos. A perda da comunidade também foi recordada durante as narrativas:

Do nosso meio lá, nossa família, tudo teve sair, teve a minha tia Ana que foi embora pra Campinas com os filhos dela... foi indo tudo. Na época que a gente teve que ir embora todo mundo achou ruim né? Porque era uma colônia todo mundo lá, aí foi saindo um... foi saindo outro né? Mas eu nem alembro muito bem de ter morado lá embaixo, nem faço questão! (Maria Terêza de Morais, 2016)

A senhora Maria Terêza, após compartilhar conosco sua narrativa, concluiu enfatizando que não mais fazia questão de recordar sobre isso. A entrevista com ela foi realizada juntamente com sua mãe, Guiomar, que a acompanhou durante toda a narrativa, foi uma narrativa longa, energética, divertida e cheia de emoções demonstradas em suas expressões faciais, entre pausas, silêncios, sorrisos e risadas. A cada história narrada ela fazia uma pausa e voltava-se para a sua mãe, buscando credibilidade para suas narrativas com um: “Não foi mãe?” Dona Guiomar, já de idade avançada, concordava com todas as afirmações da filha. As memórias narradas, antes de mais nada, eram familiares, herdadas, era a história de membros de sua família e a própria história. Essa memória herdada esta relacionada com aquilo que Pollak (1992) denominou de “acontecimentos vividos por tabela”, que são acontecimentos vividos pelo grupo que a pessoa se identifica como pertencente e que podem ser acontecimentos que a pessoa não participou de maneira física, mas que ao atingir membros do grupo é como se o acontecimento tivesse ocorrido com a própria pessoa que recorda.

A entrevistada se apropria da memória da própria mãe e de outros membros do grupo que aparecem em suas narrativas, transformando a história familiar em sua própria história, ocorrendo uma projeção e identificação. Não que a narradora não tenha presenciado fisicamente parte dos ocorridos relatados, mas mesmo que não tenha presenciado, em suas narrativas era como se estivesse presente e sentido o que o membro do grupo afetado sentiu. O “esquecimento” apontado pela narradora que dizia “fazer questão” de esquecer pode ser compreendido como uma resistência e preservação em oposição a perdas passadas, uma maneira de seguir em frente, “abandonando” o passado, reestruturando e resignificando a vida. Como expressado por Pollak (1989), é a maneira de encontrar um modus vivendi. Pollak (1989), demonstrou como acontecimentos dolorosos passam por um processo de digestão individual e coletiva, sendo necessário um esforço por parte do grupo e do indivíduo para lidar com esses conteúdos, muitas vezes a maneira de lidar com eles é silenciá-los, deixa-los para lá. No entanto, a fronteira entre esse silêncios e não-ditos não são fixas, elas estão em constante deslocamento e o que a narradora diz fazer “questão de não recordar” acaba sendo recordado de forma afetiva e enérgica ao encontrar uma escuta disposta a ouvir aquelas lembranças consideradas “ultrapassadas”, “chatas” de serem escutadas. 

O senhor Luís Neves também recordou de maneira afetuosa seus vizinhos antes da chegada do empreendimento, sua narrativa também demonstrou a mudança que essas obras causam na identidade dos desalojados ao relatar brevemente a história de um de seus vizinhos que teve que abandonar sua vida de fazendeiro para residir na cidade.     

Então o negócio é o seguinte, foi muito fracasso né? A água foi pegando tudo, a fazenda dos Rodrigues, a água pegou tudo. Agora eu fui muito prejudicado também. Eu tinha muitos vizinhos bão, tinha o Marcu Rosa que era vizinho bão, tinha o Zé Marica que também era fazendeiro bão, tinha o meu concunhado Geraldo Soares Oliveira, então tinha muito vizinho bão, alguns desses ficaram no enxuto, porque a água não pegou, ou pegou só umas partes, mas o que não ficou nada foi só eu. Tinha o Joaquim Rosa, tinha o João Cassiano também que tinha uma fazenda muito boa, ele recebeu a indenização mas não empregou em nada, aí acabou que ele teve que ir embora pra cidade e lá comprou uma casinha, ele tinha um filho professor, aí cada um comprou uma casinha na cidade, mas o dinheiro que ele tinha da fazenda mesmo desapareceu, então de fazendeiro passou a morar na cidade. (...) Então a gente tinha o jogo completo antes, lavava café, lavava arroz, moía o milho, tinha galinha, mas ai a vizinhança mudou tudo, porque desmancharam o grupo. Na minha fazenda lá não existe meu grupo mais não.  (Luís Flausino Neves, 2016)

Juniele Martins Silva e Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol (2016) apontam que autores clássicos que trabalharam o conceito de comunidade consideravam sua definição a partir das características de coesão social, partilha de condições de vida em comum, relações de caráter mútuo estabelecidas por laços de parentesco, amizade e vizinhança. As autoras apresentam a concepção do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies (1947-1973) que diferenciava sociedade de comunidade, a sociedade para ele poderia ser compreendida como a coexistência de indivíduos independentes entre si por meio de uma estrutura mecânica e imaginária. Já a comunidade, para o sociólogo se caracterizava a partir de três instâncias baseadas primeiramente nas relações de parentescos, em segundo nas relações de vizinhança e em terceiro na amizade, ou seja, a comunidade fundamenta-se no sangue, na aproximação espacial e por ultimo no espiritual.

O parentesco relaciona-se aos laços de sangue e à vida comum em uma mesma casa. A vizinhança caracteriza-se pela vida em comum, em que a proximidade contribui para um sentimento mútuo de confiança e solidariedade. A amizade está ligada aos vínculos criados nas condições de trabalho ou no modo de pensar. (SILVA, HESPANHOL, 2016, p. 363)  

A comunidade é pensada por meio da coesão social, não no individuo isolado, considerando os laços sanguíneos e os sentimentos de solidariedade e união, além de considerar juntamente, a localidade e a base territorial. Atualmente, nos estudos contemporâneos das comunidades modernas a localidade como fator de agrupamento passa não ser considerada como uma característica essencial, já que com a expansão dos meios de comunicação as pessoas podem se sentir pertencentes a comunidades não relacionadas a uma localidade, como é o caso de comunidades cibernéticas, fazendo com que o indivíduo mesmo a distância se sinta pertencente a determinado espaço.  Silva e Hespanhol (2016), porém, afirmam que no meio rural, o conceito de comunidade ainda esta muito atrelado ao sentimento de localidade, parentesco e práticas em comum. Nesse meio, os indivíduos se identificam mediante o sentimento de pertencimento em comum, de partilha de valores e tradições passados de geração para geração. Nos estudos do meio rural o sentimento de pertencimento a uma localidade, parentesco e partilha de tradições e costumes se apresentam como principais características da ideia de comunidade, pois no mundo rural as tradições e hábitos  parecem se perpetuar por mais tempo, ligadas por uma relação intensa com a terra e com o lugar. No meio urbano essa concepção é menos aplicável já que ele esta inserido em uma dinâmica de mutação mais acelerada. (SILVA, HESPANHOL, 2016, p. 365).       

A comunidade remete à segurança em meio à hostilidade do “mundo de fora”. As relações de amizade no entorno onde se vive é de importância para a construção do sentimento de pertença e de preservação, por compartilharem as mesmas práticas e/ou modo de vida e visão de mundo, a perda do meio cultural e do grupo se caracteriza como importantes perdas de referencia da identidade.    

As indenizações não cobrem o valor do patrimônio dessas pessoas, pois o valor da terra e da casa extrapola o econômico, elas não são suficientes para cobrir os custos sociais da perda da comunidade e da identidade local. Portanto, esse processo extrapola a dimensões estritamente monetárias, sendo assim um processo de mudanças sociais.   

Junto aos impactos causados ao patrimônio e a dispersão dos atingidos para um novo lugar, foram relatados durante as entrevistas os impactos que a barragem causou na saúde física e psicológica dos moradores. O primeiro se caracterizava pela mudança no meio ambiente, que acarretou em um surto de insetos que se proliferavam nas lagoas em períodos de seca antes da construção do dique na cidade, causando doenças e mal estar na população geral que residia no município. 

Teve uma época que teve um surto aqui de pernilongos que juntavam nessas lagoas que apareciam na época de seca antes de represarem, era impossível dormir sem cortinado de filó, era terrível, muito pernilongo e inseto proliferando naquelas águas que ficavam ali, então antes de fazerem a barragem, quando a água escoava e formava essas lagoas era um caos. (Rander Maia, 2016)

Para além da mudança no meio ambiente que acarretou em um desequilíbrio do controle de insetos, o desequilíbrio ambiental veio acompanhado por consequências desagradáveis a população. Nesse caso, não foi apenas o proprietário desalojado da área para a construção da barragem que foi impactado, mas todos os moradores da cidade, demonstrando que os impactos causados não se limitam apenas à área inundada e os atingidos pelo projeto não são apenas as pessoas que abandonam suas propriedades. Embora certo número de pessoas não venha a ser deslocadas, elas são afetadas pelos impactos causados pelo empreendimento.

O segundo impacto na saúde dos atingidos narrados pelos colaboradores fazia referência a quadros de depressão e alcoolismo, evidenciando como o rompimento do lugar identitário e a reestruturação forçada do meio de vida causaram impactos multidimensionais, que vão desde questões ambientais, sociais e de saúde.

Todos que saíram de lá tiveram que procurar outro lugar pra morar, a rua Oswaldo Cruz, a parte debaixo dela afundou, tinha algumas casas ali, sítio, e pegou tudo. Quando a gente saiu, saímos sem nada, só que eles demoliram a casa muito tempo depois, a casa meu tio continuou morando nela, porque antes não tinha o dique pra segurar a água né? A água vinha e voltava, e a água, parece que chegou em 65 e foram demolir a casa lá pra 75 por aí. A água vinha, enchia o porão d’água, entrava um metro de água dentro dela, mas meu tio ainda continuou morando lá.(...) Na época da chegada, por exemplo, o meu tio que era o mais velho ficou muito triste, porque lá era a vida dele. Foi muito triste. Ele era solteiro, vivia lá e aquilo pra ele era toda a vida dele. Eu lembro que na época da chegada ele ficava xingando o tempo todo. Ele?! Nossa Senhora! Ele morreu disso! Virou alcoólatra depois que saiu de lá! Ele veio morar na casa da irmã dele e morou com ela ate morrer. Mas ele virou alcoólatra, começou a beber, porque tiraram a maior parte da vida dele né? Ele vivia lá cheio de crianças, tinha as vacas dele, tinha tudo, porco, galinha... aí... tiraram tudo. Com o dinheiro que foi pago não deu pra reparar muita coisa não, pelo tamanho que era... só a casa que tinha lá era enorme, bem grande mesmo, estilo aquelas casas antigas de roça. Lá na minha roça hoje tem uma foto dela, uma pintura e era o meu tio que cuidava de lá. (Achilles Naves Diniz Pinto, 2016)

A narrativa do entrevistado Achilles Naves Diniz ainda evidencia a resistência de alguns moradores em deixar suas casas, como o caso de seu tio que ainda insistiu em morar no local, mesmo com a água atingindo um metro de sua propriedade nos períodos de cheia. Maria Terêza também narrou quadros de depressão e ressentimentos envolvendo membros de sua família após a perda de suas terras e a dispersão da comunidade pra outros locais:

Quando veio todo mundo ficou muito triste né? Até o irmão da minha mãe, meu tio, ficou tão desgostoso que ele ficou meio esgotado. Eles mudaram pra cidade, mas ele só chorava e chorava, sumia... ficou esgotadinho né? Porque viu tudo que era dele debaixo d’água. Ele tinha trazido as mudas dos pé dele láá de Limeira sabe? Lááá de São Paulo. Aí ele encontrou umas muda de ponkan lá e já trouxe pra cá e formou o pomar dele, já tava tudo carregadinho, os galho já tava tudo até virado com o peso das fruta... mas era só água de furnas que invinha, aí ele entrou em desespero né? Quando ele sumia e nois ia atrás dele, nois encontrava ele lá no barranco que tinha lá, ele subia e sentava lá nesse barranco e ficava olhando tudo debaixo d’água, tudo coberto e chorava e chorava. (...) Não foi só o tio Chico não! Teve várias outras pessoa que a gente ficou sabendo que ficou doente! Foi ele e não tô te falando que teve a minha tia que teve que ir embora pra Campinas? Passou muitos anos sem vir aqui. Ela ficou também muito desgostosa quando teve que ir embora né? Mas ela teve que vender e ir morar com a filha em Campinas. (Maria Terêza de Morais, 2016)

Halbwachs (1990) ponderou a respeito do sofrimento causado pela demolição e pelo deslocamento das pessoas de seu lugar afetivo, perder esses lugares é como perder partes constituintes do próprio “eu”. Gonçalves (2005) apontou como o patrimônio se constitui em uma categoria de extrema importância para vida tanto social quanto mental das coletividades humanas. Para ele, não são todas as sociedades que constroem e acumulam seus patrimônios com uma finalidade essencialmente mercantil. O autor aponta para bens denominados “bens inalienáveis”, caracterizados pela impossibilidade simbólica e social de serem trocados e/ou vendidos como mercadorias. Gonçalves (2005) utiliza a literatura etnográfica para apresentar exemplos que demonstram culturas nas quais os bens materiais não se separam de seus proprietários, por mais que eles possuem propósitos práticos ao mesmo tempo eles carregam significados sociais, afetivos, mágicos-religiosos.

Deste modo, os objetos não representam meros objetos, eles funcionam como uma extensão de seus proprietários estabelecendo uma mediação entre o universo cósmico, o natural e o social.  (GONÇALVES, 2005, pp.18-20). Neste sentido, propriedade e espírito se fundem, sendo ao mesmo tempo objetos e sujeitos, materiais e imateriais, culturais e naturais. É impossível falarmos sobre patrimônio sem tocarmos em sua dimensão material, mas como já explicitado, o patrimônio aqui entendido trata-se de uma categoria ambígua que transita entre a dimensão material e imaterial e contem em si essas duas dimensões. Falamos, portanto, da dimensão material do simbólico e dimensão simbólica do material, como um todo integrado, esses objetos não suprem apenas necessidades simbólicas, mas também materiais e vice versa. O intenso sofrimento emocional e mental relatado nas narrativas são relacionados a perda do patrimônio que mais do que bens de valor acumulado eram partes, membros, extensões de seus proprietários. Eram lugares dotados de personalidade e de alma, a perda é como se parte de seus proprietários morresse afogada junto de suas propriedades, causando um processo de luto e de profunda tristeza. 

4.3. As indenizações e a visão atual: Revolta não, saudade!

            Como já evidenciado nas narrativas o baixo valor recebido acarretou no empobrecimento imediato dos atingidos que da terra tiravam seu sustento e/ou moradia. Para além do valor irrisório que não cobria o valor real de suas propriedades num sentido econômico e muito menos o valor simbólico de suas propriedades, existe o sentimento de abandono, desamparo e tristeza da perda do local identitário que desencadeiam outros impactos como quadros de depressão. Nas entrevistas os atingidos narraram a demora para receberem as indenizações; alguns relataram que muitas pessoas nunca chegaram a receber: 

O dinheiro da indenização foi muito pouco, não dava pra comprar uma fazenda igual a que eu tinha de jeito nenhum! Então a terra que eu tinha, eles me deram 20 mil por alqueire, depois eu fui comprar por 250 mil o alqueire em Campos Gerais, então foi um prejuízo muito grande! (Luís Flausino Neves, 2016)

Furnas pagou muito pouco pelas indenizações, muitas pessoas nem receberam direito, sabe? Demoraram muito pra pagar, então muitos mudaram e não puderam comprar outra casa, ta escrito no meu livro.(...) E, a maioria recebeu dez anos depois a indenização, sempre num valor abaixo do que valia o imóvel, irrisórias. (...) Depois que todo mundo foi notificado, Furnas ofereceu um valor, aí o pessoal resolveu procurar um advogado e fazer uma ação judicial, demorou mais de 15 anos, muitos receberam, mas um valor sempre abaixo, e muitos nunca chegaram a receber e mudaram pra casa de favor ou de aluguel porque não deu pra comprar outra casa. (Rander Maia, 2016)

Outro ponto que foi ressaltado faz referência à especulação imobiliária após a construção da represa, certos locais desapropriados (alguns que nunca foram indenizados devido a ausência de escritura por parte de seus antigos proprietários) que ficaram na faixa de segurança são hoje locais super-valorizados. A orla do lago no município atualmente abriga casas e condomínios grandes e luxuosos onde residem as classes mais abastadas da cidade, havendo, portanto, uma elitização do espaço. O sentimento para os desalojados é de lesão em seus patrimônios.  

Isso (as indenizações) demorou muuuuito, mais muuuito muuuito tempo, mas um dia aconteceu, aconteceu e foi assim... muuuuito pouco dinheiro, mas na época pra gente que tava perdendo tudo que tinha, tudo que era nosso, até pareceu que foi bom a chegada do dinheiro! (...) Muitos dos meus tios perderam terra, o tio Chico... o tio Naio... o tio João Liseu... a minha própria mãe Geralda Pereira. A onde era a casa da minha mãe, ficou na margem de segurança onde hoje é o lago e hoje é casa de doutora, aquilo ali era a parte de terra que era da minha mãe que Furnas vendeu depois pra doutor (...) A indenização não foi suficiente não, mas a gente ainda deu graças a Deus! Porque a gente acabou recebendo algo que a gente já achava que tinha perdido, que nunca mais ia receber. (...) não valia tudo que a gente perdeu (...)  Presta atenção!!! Quem tinha um pedaço de terra que ficou na margem de segurança do lago, hoje virou tudo casa de doutor!!!  Um pedaço de terreno hoje lá na beira do lago ta valendo quanto?! Agora imagina! A troco daquilo tudo a gente conseguiu esse terreninho aqui! (...) Cê entendeu?!(...) Entendeu? O tanto que a gente tava sem saber do valor que a gente tinha perdido? Isso tudo sem receber nada, foi depois de muuuuitos anos, muitos anos depois que veio essa indenização, teve tio meu que morreu sem receber! (Maria Isabel de Ávila, 2016)

Maria Terêza também frisou a questão da especulação imobiliária da área que hoje se encontra elitizada.

Justas as indenização não foram nada! Porque hoje vai lá perto do lago procê vê! Olha o jeito que nois saiu de lá e olha agora quem comprô os terreno onde era nossas terra! A valorização que tem lá hoje! A onde nois morava mesmo, que era as terra da mãe que ficou naquele faixa de segurança e foi vendida depois sem nosso conhecimento por furna, pegaram nossos lote tudo e construíram aquelas mansão pra doutor lá! Só mansão que tem praqueles meio! Eu não sei se a indenização foi de acordo com a terra que a gente tinha, na época nem sei quanto meu pai e minha mãe recebeu, mas não é o que eu to te falando?! Quanto vale uma casa daquelas que eles construíram na beira do lago hoje?! Agora cê vê, o que era a parte da minha mãe lá, quando nois mudo de lá, tinha ficado dois lote, um era do irmão da mãe que tinha morrido e de um outro tio meu que tinha desparecido, mas ai furna consto que ninguém podia ficar com os lote porque não tinha escritura dos dono né? É onde eles pegaram e fizeram aquelas mansão lá. Falaram que não tinha dono, agora você vai reivindica como?! Nois não sabe pra onde foi a escritura. (Maria Terêza de Morais, 2016)

Em contraposição à afirmação dos entrevistados acima, o senhor José Oswaldo se diferenciou do grupo ao narrar a sua versão do ocorrido, dizendo que para ele as indenizações tinham sido justas, pois na época aquele espaço não possuía valor algum e só foi valorizado atualmente por meio do lago represado:

Foram indenizados, pagaram, mas só pagaram depois que entraram na justiça, tiveram que entrar na justiça pra conseguir. Lembro que fizeram uma oferta abaixo do valor das terra, aí todo mundo entrou na justiça e depois conseguiram. Na minha casa por exemplo, nois não fizemo muita questão não porque o terreno que pegou não era bem onde a gente morava, a casa mesmo não pegou água não, era um terreninho pequeno que tampô,  na minha família foi assim. (...) Cada um tinha uma faixinha de terra num lugar, um num, outro noutro, certo? Um mais perto, outro mais longe, aí uns pegou muito, outros poucos, mas todos receberam, mas tiveram que entrar duas vezes na justiça. Inclusive o advogado da época era o Dr. Garcias, foi ele que pegou as causas. A indenização demorou um pouquinho, mas veio (...)  na época era aquilo que valia, não valia mais. Agora aqueles que ficaram na faixa do terreno, no que eles chamavam de faixa de segurança, certo?  Que furnas indenizou e ficou com aquela parte, hoje é aqueles casão bonito na beira do lago, certo? Valorizou... mas valorizou hoje né? Naquela época não tinha valor nenhum, não tinha rua, não tinha nada era tudo várzea quase. A indenização foi justa... porque não tinha como aquilo valer mais... era aquilo mesmo, pelo menos na minha família (...) Na minha família nosso sustento não era da terra, e a parte que furnas pegou eles pagaram, aí nois compro um terreno e depois fizemo a casa aqui na cidade e mudamo. (José Oswaldo de Oliveira, 2016)           

A visão dissidente do entrevistado a respeito do valor da terra pode ser compreendida pelo tipo de experiência que o narrador teve no espaço e local, o entrevistado diz que o local onde moravam não era o local onde Furnas atingiu e que o sustento da família não provinha da terra. Para Tuan (1980) o sentimento de topofilia esta relacionada com o tipo de experiência que se tem com o ambiente, assim como esse sentimento varia de um grupo para outro, ele também varia de intensidade e de valor dentro de um mesmo grupo de acordo com as experiências, mudanças e com o tempo. José Oswaldo não possuía uma experiência de caráter mais intima e familiar com o lugar nem com a terra, portanto seu contato com o ambiente não foi o suficiente para criar o sentimento de afetividade e topofilia.

Além disso, a visão do entrevistado revela a sua memória individual, que de acordo com Halbwachs (1990) pode ser compreendida como uma perspectiva própria, um ponto de vista pessoal a respeito da memória do grupo. Essa memória individual também está sujeita a flutuações e mudanças de acordo com a nossa relação com o grupo e com as nossas preocupações momentâneas. A memória individual não é desassociada do meio social, ela não é um elemento fechado, mesmo uma impressão individual busca referências no coletivo. O ponto de vista dissidente do narrador a respeito do valor da terra também revela o trabalho de enquadramento da memória que é reproduzido pela sociedade englobante.

A memória enquadrada, como já apresentada, é para Pollak (1989) a memória coletiva fortemente instituída e oficializada, por ser oficializada essa memória é reproduzida pela sociedade em sua totalidade que acaba tomando essa memória como “legítima”. Nesse caso, o narrador se apropriou da memória enquadrada pelos discursos modernizantes, que apontavam o empreendimento como responsável por tirar a região do atraso econômico e social que se encontrava, como foi demonstrado nas falas dos engenheiros Lucas Lopes e John Cotrim no início do trabalho. Para José Oswaldo o valor do espaço hoje esta relacionado a modernização que o empreendimento trouxe ao espaço que antes possuía apenas “casinhas e pequenas plantações arcaicas”.           

Após o sentimento inicial de dano e perda e a reestruturação forçada dos meios de vida, lentamente o lago passou a ser incorporado no cotidiano dos atingidos, por meio da apropriação da orla como espaço de sociabilidade, lazer e renda. O uso da represa como um local de lazer e fonte de renda por meio da pesca e da piscicultura gerou novas formas de significação desse local. Ao serem questionados sobre a visão atual do empreendimento na cidade todos os entrevistados concordaram com a importância da vinda de Furnas, em consonância com os discursos atuais propagados pelo turismo e pelos poderes públicos que apresentam o lago como importante fonte turística e de renda. O lago hoje já incorporado e enraizado no cotidiano dos habitantes da cidade é palco de grandes campeonatos de motos aquáticas, festivais, eventos, é o palco dos luais dos jovens nos finais de semana, namoros, inspirações artísticas, atividades físicas e motivo de orgulho para os moradores da cidade, tornando-o espaço privilegiado de lazer e embelezamento do município.

Na narrativa de Maria Izabel a colaboradora lamenta a perda econômica e simbólica de seus patrimônios, mas frisa que atualmente a visão que sua família possuiu com o local inundado não é de raiva e ressentimentos, mas de puramente saudade. No fim expõe que a beleza do lago para a cidade compensa as memórias de perda:  

Então...  a gente hoje tem o conhecimento que tem, mas a gente vê a beleza que o lago traz pra cidade, a gente vê a realidade, nois não tem revolta quando olha pro lago não... ninguém, não vejo ninguém do meu povo com raiva não, a gente tem é saudade. Às vezes quando a gente passa em frente ao lago a gente comenta, nessas idas e vindas nossa, da nossa ignorância de não saber o valor que a nossa terra tinha, porque hoje a gente vê. Se nois tivesse aquilo tudo lá hoje, quanto de dinheiro nois não tinha?! Hoje a gente sabe que trocamos tudo o que a gente tinha, não só terra, mas a vida que a gente tinha, por pouca coisa e na época a gente ainda deu graças a Deus por receber aquilo! Porque a gente achava que a gente nem ia receber nada! Na época a gente não teve revolta porque a gente não imaginava, nem tinha noção. Se fosse hoje, com o conhecimento que nois tem, talvez a gente ia ter outra reação, eu era pequena, não entendia o que tava acontecendo. (...)Aconteceu... mas nem por isso a gente tem raiva... hoje... o lago, sem falar da natureza é uma coisa muuuito bonita! A nossa cidade ficou do jeito que é hoje por causa dele, uma cidade turista! Vale a pena a beleza da nossa cidade, você não acha que vale? (Maria Izabel de Ávila, 2016)

José Oswaldo, como exposto, discorda do resto dos entrevistados sobre o valor da terra, dizendo que o local não possuía “grande coisa” antes da chegada do lago, para ele o lago é responsável por atribuir requinte a cidade, a deixando mais “chique”:

Hoje eu acho esse lago muito chique, muito bonito, acho mesmo. Porque antigamente o que que tinha ali? Nada, só uma várzea e uns terreninho, alguns plantavam algumas coisinhas só.  O pessoal pode até querer falar que tinha grande coisa lá, mas não tinha, a gente tinha pouca coisa, isso na minha família foi justo, era aquele valor que a terra valia na época mesmo. Hoje valorizou. Hoje tem aqueles casão lá né? Eu acho o lago muito chique! (José Oswaldo de Oliveira, 2016)

Pollak (1989) observou que dentro de uma sociedade as memórias coletivas são tão diversas quanto as unidades que constituem a sociedade. Essas memórias coletivas não são um problema para a memória oficializada, enquadrada, desde que se integrem bem a essa memória. Não obstante, entre essas memórias coletivas encontram-se as memórias subterrâneas que contradizem os discursos oficiais. Essas memórias subterrâneas são difíceis de localizar e para isso faz-se necessário que recorramos aos instrumentos da historial oral. As memórias subterrâneas desempenham um papel de subversão ao guardarem mesmo que silenciosamente aquilo que a memória enquadrada oficializada tentou eliminar ou minimizar.       

Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais. (POLLAK, 1989, p. 12)

A narrativa de Maria Isabel expressa essa contradição entre a imagem oficial que coloca o empreendimento como algo benéfico e suas lembranças pessoais de perdas dolorosas.  Esse trabalho de controle das feridas e tensões faz com que a resignifaçao do espaço não o coloque como um local de revoltas, mas de saudade. As narrativas também revelam como o presente colore o passado, pois o valor atribuído ao patrimônio perdido é um valor que se constrói no presente. A respeito do sentimento atual da colaboradora Maria Isabel de ter sido lesionada devido ao alto valor que as terras ao redor da orla do lago possuem hoje em detrimento do baixo valor pago em suas terras, Osvaldo Marco Alves (2015) ressalta que o valor simbólico do patrimônio está sempre ligado ao presente e não somente ao passado, pois é no presente que ele precisa fazer sentido para as coletividades. Portanto, o valor atribuído pelos entrevistados aos seus antigos patrimônios é uma visão atual que se constrói a partir das memórias das experiências afetivas relacionadas com a terra, com o atual valor econômico que a área possuiu e com os discursos a respeito do espaço.

Para Maria Isabel o patrimônio perdido era dotado de valor, para José Oswaldo o valor do espaço esta em sua composição atual. As duas construções da memória, mesmo dissidentes, não deixam de ser, contudo, presentes. Destarte, a visão enquadrada do empreendimento como algo atualmente benéfico à cidade e de suma importância para o seu desenvolvimento é incorporado a memória coletiva desse grupo, mesmo que nas memórias subterrâneas/submersas de alguns membros do grupo entrevistado permaneçam o sentimento passado de perda e dor, revelando os mecanismos complexos de ressignificação e reconstrução das memórias.

Como analisada por Halbwachs (1990) a memória é uma presentificação, ela nunca é resgatada, mas construída a partir das experiências e visões do presente, nos próprios dizeres do autor: “a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente.” (HALBWACHS, 1990, p 71.).  A memória é reconstrução e não resgate porque é impossível registramos perfeitamente tudo o que nos ocorreu em uma determinada circunstância, nossas recordações são parciais, selecionadas e incompletas. Destarte, nossas visões a respeito do passado indicam mais sobre o momento em que a estamos articulando a memória de acordo com nossos anseios e visões de mundo presentes. Juntamente com a memória construída a respeito do evento, a visão a respeito do valor do patrimônio, e a visão atual da represa como algo benéfico, a paisagem também é sempre presente, pois é no presente que as suas formas são vivenciadas e dotadas de valores. Por isso a beleza da paisagem que hoje integra o espelho d`água criado pela construção da barragem suplanta a visão do local como um local essencialmente de perdas e ressentimentos para os antigos moradores, que ressignificam e valorizam a paisagem atual a partir das novas experiências e atividades ali realizadas, novas relações estabelecidas com o local e a partir dos discursos voltados para o turismo e fonte de renda. As memórias aqui expressas demonstram que por mais que o empreendimento seja visto como parte benéfica para o desenvolvimento da cidade, nas memórias subterrâneas dos atingidos os impactos negativos e os sentimentos de perda ainda resistem, não de maneira revoltosa, mas vestidos pelo sentimento de saudade.    

Em contraste com a imagem atual da represa como essencial para a vocação turística da cidade e seu embelezamento as narrativas também denunciaram o poder público pelo desleixo em que o lago se encontra atualmente, como expressado nas narrativas abaixo:

Hoje eu acho ruim porque a gente tinha uma casa enorme, tinha o campo de futebol, tinha água também porque tinha o rio que passava no fundo da casa, hoje eu lembro assim, com saudade, saudade da minha casa. Hoje é um lago até bonito, mas com muito lixo e mal cuidado. A prefeitura nunca olhou direito pra esse lago, poluído, sem tratar o esgoto, muito esgoto que cai diretamente no lago, mas é uma coisa bonita que a gente tem, até gosto muito do lago hoje, tem o lado positivo que a cidade virou uma cidade turística né? Mas falta política, o pessoal não cuida dele direito. Se tivesse um pessoal que olhasse diferente pro lago, mas os políticos só pensam neles, falta política. (Achilles Naves Diniz Pinto, 2016)

Então o lago hoje, tem esse lado negativo, pelo prejuízo que causou aos moradores tanto dentro da cidade quanto na zona rural, e por outro lado, a cidade, a sociedade, ganhou o lago, que além da água em qualidade e abundância instigou a vocação turística da cidade, entendeu? Então tem esses dois aspectos. Então eu acho que agora cabe aos nossos prefeitos aí investirem mais no turismo né? Mas a gente não tem visto uma mobilização nesse sentido, a gente vê é o lago sujo... lixo... eu sugiro até que o lago deveria ser fiscalizado, limpo, não só o lago mas os cursos d’água que formam o lago, monitorar e fiscalizar, replantar as matas ciliares. É isso. (Rander Maia, 2016)

O artificial Lago dos Encantos hoje é tombado como patrimônio paisagístico pelo Decreto Municipal nº 574. Todo ano, no segundo domingo do mês de Março é comemorado na cidade o Dia do Lago, instituído pela Lei Municipal n º 2.024, de 28/01/97. Nesse dia, adultos, idosos e crianças fazem uma caminhada na orla e as escolas apresentam poesias, cartazes e músicas a respeito da preservação e da importância do lago para cidade.                                                                                                           As entrevistas nos levou a refletir que para além de um patrimônio paisagístico como foi tombado, o lago é um patrimônio cultural, que abrange heranças históricas, ecológicas e heranças mais abstratas referentes as experiências, memória, identidades culturais e coletivas num todo integrado. Essas heranças situadas entre o material e o imaterial, o corpo e o espírito, o natural e o social, contribuem com informações importantes a respeito de uma determinada cultura e grupo contribuindo para a construção, preservação e rememoração da história, identidade e memória dos grupos vinculados a elas.

Gonçalves (2005) já expunha a necessidade que o patrimônio possui de ter “ressonância” junto ao seu coletivo, já que ele precisa fazer sentido, encontrar respaldo no universo amplo do grupo. Sendo patrimônio uma mediação entre as categorias materiais e imateriais, passado e presente, o lago vai além do paisagísmo, pois como já expresso a materialidade da paisagem traz consigo a imaterialidade das culturas que ali compartilham o espaço. Nascimento e Scifoni (2010) ressaltaram a necessidade da compreensão de que a proteção e a gestão das paisagens culturais devem ser realizadas com a participação da população residente, respeitando e valorizando os saberes e memórias locais, como evidenciado nas entrevistas acima a preservação do lago se apresenta negligenciada e sem ressonância para o grupo analisado o que aponta a necessidade de maior participação da população nos projetos voltados para a preservação e utilização desse patrimônio.

Osvaldo Alves (2015) expôs que o patrimônio é uma construção que visa fornecer símbolos que uma determinada sociedade e grupo decidem preservar. No caso, as memórias dos colaboradores dessa pesquisa continuam submersas, pois o que se decidiu preservar nas comemorações a respeito do lago é sempre a visão que o atribui a uma paisagem natural de valor estético e econômico, ocultando as memórias a respeito da sua construção. A preservação do local deveria contar com a participação da sociedade dorense e para além de projetos que visem a preservação da natureza deveria ser realizados projetos que visem a preservação da memória local de diferentes grupos e identidades que compartilham com o mesmo espaço diferentes vivencias e experiências.      

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção de empreendimentos hidrelétricos é apontada como a solução de problemas para uma grande parcela da sociedade, com o abastecimento de energia elétrica para regiões e para o desenvolvimento industrial. A barragem de Furnas que inundou cerca de 34 municípios no estado mineiro, entre eles a pequena cidade de Boa Esperança, se apresentava de importância vital para os seus idealizadores para o desenvolvimento do país devido à crise e os racionamentos no setor elétrico que o Brasil enfrentava na época.

Sua consolidação representava para o governo de Kubistchek um grande salto para suprir a demanda de energia que o Plano de Metas exigia, simbolizando um acentuado avanço para a infraestrutura energética do país, beneficiando centros urbanos e industriais além de integrar a região centro-sul e modificar a centralização do capital privado na área de produção de energia elétrica para o setor público. Porém, esses empreendimentos produziram e ainda produz impactos nas regiões em que são implantados, impactos multidimensionais que vão além do ambiental e econômico, como a pesquisa visou demonstrar por meio do estudo de caso.           

Por mais que o evento de Furnas tenha acontecido a 59 anos, os impactos continuam sendo atuais, podemos observar a mesma negligência dos empreendedores à terra, à memória e ao patrimônio de pessoas atingidas em empreendimentos recentes como Belo Monte que vem sendo construída na bacia do rio Xingu, no norte do país, afetando diretamente comunidades indígenas e ribeirinhas. Grandes empreendimentos pautados em discursos modernizantes ocultam impactos sociais para as populações que vivem no entorno dessas obras. Esses empreendimentos são feitos de “cima pra baixo” evidenciando a falta de diálogo com a população residente.

A pesquisa não teve como intuito demonizar esses empreendimentos ou “julgar” seus idealizadores, apenas mostrar o trabalho da construção da memória dos atingidos e outros aspectos da obra que ficam ocultos dos discursos oficiais, porém vivo nas memórias subterrâneas da comunidade. Procuramos, portanto, “escovar a história a contrapelo” nos preceitos do filósofo Walter Benjamim (1994). Neste sentindo, a pesquisa de história oral mostrou-se como uma possibilidade de realizarmos esse movimento ao levantarmos narrativas “debaixo para cima” para compreendermos a construção das memórias subterrâneas em contraponto à memória oficializada. Consideramos a pesquisa de importância para o trabalho historiográfico ao levantarmos novas fontes para análises do processo de construção da memória e das identidades, uma vez que a história oral pode fornecer uma grande contribuição para a preservação, conservação e valorização das memórias locais e das experiências humanas.   

Para além de demonstrar outro aspecto do empreendimento, a pesquisa visou apresentar como a memória trabalha de acordo com os autores citados, como uma construção, sobretudo, coletiva e presente, sujeita a flutuações e ressignificações constantes.  

A pesquisa também visou explorar a importância das paisagens e dos lugares para a constituição da memória e da identidade do grupo analisado, o que nos levou a atentar sobre a importância de fornecermos meios para que a paisagem onde hoje se insere o lago seja interpretada, visando a valorização da memória desses grupos e fazendo com que o nosso patrimônio encontre ressonância com a sua população. 

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8. APÊNDICES:

Entrevista N°1

Então, meu nome é Isabel, Maria Isabel, família dos Liseu, muito conhecido por todos na cidade... quando falava dos Liseu todo mundo sabia quem era a família dos Liseu.! Então, o nome Liseu tem inclusive lá na ‘beira’lago’ uma rua que chama Eliseu Pereira, que no caso era o meu vô. A gente foi nascido e criado, num bairro assim... muito popular, que na época não era conhecido como bairro, mas um povoado familiar. Cada um dos irmãos, era uma família de onze irmãos, cada um tinha o seu pedacinho de terra... quando... a surpresa... da chegada da água de Furnas. Ninguém, dos onze, conformava com a ideia, ninguém queria perder aquilo que tinha. Quando foi chegando o doutor... ... não me lembro agora... o nome do doutor era... ... não me lembro... ele era advogado que mexia com Furnas, ele foi conscientizando as pessoa que aquilo tava acontecendo, mas que um dia tinha uma indenização. Isso demorou muuuuito, mais muuuito, muuuito tempo, mas um dia aconteceu, aconteceu e foi assim... muuuuito pouco dinheiro, mas na época pra gente que tava perdendo tudo que tinha, tudo que era nosso, até pareceu que foi bom a chegada do dinheiro! No meu caso mesmo, eu lembro que o meu pai e a minha mãe que eram um dos que recebeu a indenização de Furnas... foi duzentos... não sei nem duzentos não sei o que, se era cruzeiro, não lembro, mas foi duzentos e alguma coisa. E... isso tudo aconteceu com a gente. A gente nasceu, criou lá, passamo tooooda infância... eu no caso, que hoje tô com 63 anos, sai de lá com 23 anos, justamente por causa da chegada da água. Quando a gente recebeu a notícia foi muuito surpresa, muuito surpresa mesmo! É o que eu já disse, ninguém queria perder tudo, a gente achava que não ia ser nada, que logo eles iam acabar com a aquela conversa... mas a água... a água chegou.

Onde a gente morava era uma área assim, muito, muito, muito familiar, não era bairro, era um povoado, “O Povoado dos Liseu”! Muitos dos meus tios perderam terra, o tio Chico... o tio Naio... o tio João Liseu... a minha própria mãe Geralda Pereira. A onde era a casa da minha mãe, ficou na margem de segurança onde hoje é o lago e hoje é casa de doutora, aquilo ali era a parte de terra que era da minha mãe que Furnas vendeu depois pra doutor. Mas a onde era dos meus tios, as terra do tio Chico, por exemplo, é onde hoje tá tudo encoberto de água. E a indenização?! Aaaah!!! Não foi justa não! Sem contar que na época a terra não tinha o valor que a gente vê hoje em dia. Mas foi a quantia que falei, duzentos alguma coisa e com esses duzentos foi que a gente juntô pra comprar o terreno aqui hoje, deu pra comprar esse terreno aqui, mas aqui onde hoje é a minha casa na época não tinha valor nenhum, era isolado de tudo, o valor foi muuuita pouca coisa. A indenização não foi suficiente não, mas a gente ainda deu graças a Deus! Porque a gente acabou recebendo algo que a gente já achava que tinha perdido, que nunca mais ia receber. A gente não teve nem direito de fazer alguma coisa quando Furnas chegou... de ter uma resistência. O advogado de Furnas que eu esqueci o nome, passou até ser uma pessoa da família... ... Dr. Garcias! Era Dr. Garcias! Ele foi muito amigo explicando pra gente as coisas, coisas que Furnas não explicava, ele sabia conversar e entender o nosso lado. Acabou que ele soube conversar tanto com a gente que o nosso sentimento de revolta até passou, a gente até entendeu. Mas não teve assim uma revolta, uma tentativa de impedi porque nem tinha como a gente impedi, eles chegaram com tudo, a água chegou e foi atingindo mesmo.

Era um pedaço muito grande de terra, o pedaço do papai Liseu, que dividia entre onze irmãos, a gente falava alqueires ou quarta, era tantas quartas de terra, um pedaço muuito grande. Tem muuita terra dos meus tios debaixo dessa água toda que você vê ali hoje.

O povoado dos Liseu era só família! Família grande! Não tinha cerca, não tinha nada, uma parte pra cada tio! Tudo coisa que hoje assim... a gente sente muita saudade... ... a gente era feliz... e não sabia... porque... ... era aquele tipo de coisa que quando caia a tarde a gente saia pra conversar... de noite a gente ia pra casa de um e de outro pra bater papo. Não tinha energia elétrica na época, era luz de querosene, era luz de lamparina... o rádio... uma das pessoas que tinha rádio era a tia Júlia, ela morava numa distancia assim de uns cem metros, vamos dizer, aí a mãe não tinha rádio, e tia Júlia tinha, era um rádio de pilhas, aí a tia Júlia gritava assim pra minha mãe ó: “ - Ôh Lada, óia que música mais bonita!” Aí ela colocava o rádio na janela pra que a mãe ouvisse lááá de casa. A amizade lá era uma coisa assim... ... ... ... sem explicação... era amigo meeesmo, sabe? ... ... ... Da porta da cozinha a gente já saia pra porta de um tio... da porta da sala já saia prum outro, de maneira assim... que a gente conversava dentro das própria casa gritando um com o outro sabe?

Tinha uma estrada que hoje é uma rua registrada na prefeitura, a gente chamava de estrada funda, essa estrada, no nosso tempo de criança era o único meio de comunicação com outros sítios e povoados, comunicação era só por essa estrada funda. Na época, não sei se isso vai te interessar, mas... era a nossa realidade. Na época quem morria lá na roça invinha num banguê, o que que é um banguê? É um pau, duas pessoas colocavam o pau no ombro, amarrava a pessoa que tinha morrido num lençol, e aí a gente falava banguê:  “-Fulano morreu e invem num banguê.”  Aí o banguê vinha lá da roça pra cá né e pra vir passava por essa estrada funda. A gente não tinha carro na época, só carro de boi e carroça, mas quando morria a gente levava era no banguê. Mas essa estrada funda era o único meio da gente do Liseu ter contato com os outros lugares.

Lá nos Liseu tinha uma bica d’água, tinha o rego que ia por ali tudo afora, e as bicas d’água ficavam todas onde era a casa velha do meu avô, papai Liseu. Aí o povo da cidade não tinha água nas casa, aí eles iam pra lá buscar a água pra trazer pra cá. Roupa? A cidade interinha ia pra lá lavar roupa, faziam aquelas malas de roupas colocavam na cabeça e iam tudo lavar roupa lá! Aí tinha a bica-do povo-de-dentro e a bica-do-povo-de-fora, a bica-do-povo-de-fora era pro povo que vinha da cidade pra lavar roupa ali, e a bica-do-povo-de-dentro era a nossa, que a gente usava. Na época, o colégio das freiras, tinha muitas moças que vinham estudar e ficavam internas e faltava muita água, as irmãs levava as moças pra tomar banho de bica!!! Aí você vai falar, que absurdo! Levar as moças do colégio de freira pra tomar banho lá! Mas não! Era tudo certinho, as irmãs levavam uma cortina e tampava tudo! As moças dessa cidade interinha lavavam os cabelo tudo lá! Essa bica era a nascente de um córrego que acabava caindo lááá no Rio Grande, que foi represado também, ele começa lááá longe e ia fazendo o trajeto pelas hortas do povo do papai Liseu que foi tudo tomado por Furnas.

A gente plantava muito lá! A onde tinha uma terra de um dos meus tios fazia até exportação de maçã! O tio Chico Liseu! Ele tinha uma plantação de maçã muito grande e foi a primeira casa dos meus tios que foi atingida! Tinha banana, laranja, jabuticaba, tinha de tudo! E no meio disso muuuita maçã! Aí, quando era dia dele colhê vinha até gente de fora pra ver! E isso tudo foi por água abaixo! Tudo tampado por água! Tudo prejuízo! O tio Chico teve um prejuízo assim... ele cuidava das maçãs sabe? Com todo o carinho! Apanhava as maçãs sem amassar, sem machucar elas, enrolava todas no jornal e colocava nos caixotes. Quando elas amadureciam a gente abria os caixotes cheios de maçã, aquele cheiro sabe? Eu lembro muito do cheiro das maçãs! Enchia o lugar todo o cheiro! Aí tinha o dia em que as pessoas vinha de fora pra buscar as maçãs. E isso tudo foi prejuízo! Isso falando só do tio Chico, mas foi a tia Adelina, a tia Homerina, o tio Naio, o tio João, a minha própria mãe... .... dos onze filhos, foram só dois ou três que não foi atingido! Além de tomar conta da terra e prejudicar quem vivia da terra... Voltando a falar do valor... o que a gente recebeu na época não sei nem se valia tudo que a gente perdeu, na época a gente não tinha o conhecimento que tem hoje né? A gente nem fazia ideia do valor em dinheiro que a terra tinha. Se fosse uma época dessas hoje, que eles tivessem atacando a gente, talvez a gente tinha ficado até rico!  Presta atenção!!! Quem tinha um pedaço de terra que ficou na margem de segurança do lago, hoje virou tudo casa de doutor!!!  Um pedaço de terreno hoje lá na beira do lago ta valendo quanto?! Agora imagina! A troco daquilo tudo a gente conseguiu esse terreninho aqui! Que foi duzentos não sei lá o que, que era o valor da moeda na época! Cê entendeu?! E as pessoas que viviam da terra acabaram que vieram pra cidade e não fizeram nada porque já tavam tudo velho, tudo de idade e a única coisa que sabia fazer era trabalhar na terra. Cê me entende?! Cada um comprou um quinhãozinho na cidade com ajuda dos filhos. O prejuízo foi de duas maneira, foi da água atingir as casas e as coisa que a gente plantava...

Laranjeira! Tinha laranjeira de tudo quanto é jeito! Bananeira! A gente cortava aquele muuundo de cacho de banana, vendida aquilo tudo! E acabo que isso não aconteceu mais... ...             Então...  a gente hoje tem o conhecimento que tem, mas a gente vê a beleza que o lago traz pra cidade, a gente vê a realidade, nois não tem revolta quando olha pro lago não... ninguém, não vejo ninguém do meu povo com raiva não, a gente tem é saudade. Às vezes quando a gente passa em frente ao lago a gente comenta, nessas idas e vindas nossa, da nossa ignorância de não saber o valor que a nossa terra tinha, porque hoje a gente vê. Se nois tivesse aquilo tudo lá hoje, quanto de dinheiro nois não tinha?! Hoje a gente sabe que trocamos tudo o que a gente tinha, não só terra, mas a vida que a gente tinha, por pouca coisa e na época a gente ainda deu graças a Deus por receber aquilo! Porque a gente achava que a gente nem ia receber nada! Na época a gente não teve revolta porque a gente não imaginava, nem tinha noção. Se fosse hoje, com o conhecimento que nois tem, talvez a gente ia ter outra reação, eu era pequena, não entendia o que tava acontecendo. Acabava que pra meninada virava festa, aquele tanto de gente chegando, a água subindo aos poucos! A gente fazia jangada, eu não sei se você sabe o que é jangada, a gente fazia amarrando pedaços de bananeira e bamboo, era quatro ou seis bamboo, dependendo do tipo de jangada que queria fazer, e usava mais um bamboo de remo. Mas a gente fazia e ficava brincando na água! Tipo indiozinho! Virou uma brincadeira pra gente que era mais moço, a gente nem imagina o perigo, a profundidade de água que tinha em alguns lugar, a gente conhecia o lugar antes que era só terra né? A gente nem imaginava que era perigoso garrar em alguma coisa que foi afundada na água. Ai a gente ia com a jangada por ai afora, quando a gente escutava nossas mãe gritando:  “-Fulaaanooo, ceis não tão imaginando o perigo que ceis ta nele”! E a gente nem imaginava mesmo. Aí logo, logo a gente começou a fazer canoa, as árvores que secaram e apodreceram com a água...a gente era muito pobre... onde a gente ia buscar lenha tinha cobrido tudo de água, mas tinha umas arvores que ficava do outro lado, aí o que que a gente fazia? Entrava nessas canoas e ia buscar lenha. Aí nessa época todo mundo já tinha canoa, porque todo mundo alvoraçou com a água, aí a gente entrava e cortava os galhos das árvores que tavam secando de baixo d’água e enchia as canoas de lenha e trazia pro nosso sustento. Entendeu? O tanto que a gente tava sem saber do valor que a gente tinha perdido? Isso tudo sem receber nada, foi depois de muuuuitos anos, muitos anos depois que veio essa indenização, teve tio meu que morreu sem receber! A gente vinha pra cidade e ficava desamparado, porque nem todo mundo conseguiu construir um lugarzinho, a minha casa mesmo ficou muitos anos só no barro e no tijolo, ficou muito tempo sem ter jeito de acabar, a gente amarrava uns bambus, umas coisas assim pra cercar, porque não deu. Aconteceu... mas nem por isso a gente tem raiva... hoje... o lago, sem falar da natureza é uma coisa muuuito bonita! A nossa cidade ficou do jeito que é hoje por causa dele, uma cidade turista! Vale a pena a beleza da nossa cidade, você não acha que vale?

Entrevista N°2

Meu nome é Rander Maia, sou mineiro de Boa Esperança, Minas Gerais, membro da academia dorense de letras, fui professor de Ciências, Química e Bioquímica em escolas secundárias e em faculdades. Sou Farmacêutico Bioquímico pela UNIFAL, também graduado em Ciências Biológicas pela UNIFENAS, licenciado em Química e Bioquímica pela UTRAMIG, especialista em saúde pública, mestre em Ciências de alimentos pela UFMG e cronista. Agora estou permeando pela História, fazendo documentários sobre a história de Boa Esperança. Morei lá onde hoje é o lago, na Rua Capitão Neves com a minha família até 1970. Era uma boa rua de se morar, entendeu? Eu tenho até uma foto da rua que eu pedi pra pintar num quadro depois. Eu era menino, entre quinze e dezesseis anos, eu nasci e morei lá até os meus 25 anos. Tinha um campo de aviação e a gente menino ia jogar futebol dentro desse campo de aviação, era tudo uma várzea, um gramado sabe? E em 1965 a água inundou aquilo tudo ali. Na época de seca essa água ia embora e formava várias lagoas ali. Ta tudo explicado no meu livro, tudo, esses dados mais técnicos. A gente recebeu a notícia da chega de Furnas com muito aborrecimento, a gente estava acostumado com o local e também Furnas pagou muito pouco pelas indenizações, muitas pessoas nem receberam direito, sabe? Demoraram muito pra pagar, então muitos mudaram e não puderam comprar outra casa, ta escrito no meu livro. Não houve nada, nada de resistência, o prefeito na época foi omisso, Furnas chegou e fez o que quis, desmanchou o que quis, pagou o que quis e pronto. Os moradores na época não tinham esse sentido de cidadania, nem existia pra fazer um movimento contra, nada disso, foi tudo pacífico. Aí por volta de 1960 nós ficamos sabendo que Furnas pretendia desapropriar, veio os topógrafos, mediram as casas, os terrenos, né? E, a maioria recebeu dez anos depois a indenização, sempre num valor abaixo do que valia o imóvel, irrisórias. Eu me lembro de várias histórias de pessoas que o dinheiro não deu pra comprar e foi morar de favor, muitos proprietários rurais perderam tudo e houve um êxodo rural muito grande pra dentro da cidade. Boa Esperança tinha 850 km quadrados de território e perdeu 136. Depois que todo mundo foi notificado, Furnas ofereceu um valor, aí o pessoal resolveu procurar um advogado e fazer uma ação judicial, demorou mais de 15 anos, muitos receberam, mas um valor sempre abaixo e muitos nunca chegaram a receber e mudaram pra casa de favor ou de aluguel porque não deu pra comprar outra casa ... E outra, teve uma época que teve um surto aqui de pernilongos que juntavam nessas lagoas que apareciam na época de seca antes de represarem, era impossível dormir sem cortinado de filó, era terrível, muito pernilongo e inseto proliferando naquelas águas que ficavam ali, então antes de fazerem a barragem, quando a água escoava e formava essas lagoas era um caos. O pessoal que foi desapropriado, atingido, ficaram mal, porque atrapalhou a vida deles, tiveram que deixar suas casas, mudaram pra outros lugares, tinha moradores mais pobres, moradores mais folgados, aqueles que tinham um melhor poder aquisitivo compraram outra casa, os que não tinham foram morar de favor ou de aluguel, mas o lago trouxe com ele a possibilidade da cidade ter a vocação turística, trazendo novos emprego no que se refere a essa parte. Então por esse lado foi interessante, mas prejudicou muuuito os moradores, que moravam nessas ruas e na zona rural. Então o lago hoje, tem esse lado negativo, pelo prejuízo que causou aos moradores tanto dentro da cidade quanto na zona rural, e por outro lado, a cidade, a sociedade, ganhou o lago, que além da água em qualidade e abundância instigou a vocação turística da cidade, entendeu? Então tem esses dois aspectos. Então eu acho que agora cabe aos nossos prefeitos aí investirem mais no turismo né? Mas a gente não tem visto uma mobilização nesse sentido, a gente vê é o lago sujo... lixo... eu sugiro até que o lago deveria ser fiscalizado, limpo, não só o lago mas os cursos d’água que formam o lago, monitorar e fiscalizar, replantar as matas ciliares. É isso.

Entrevista N°3

 

Meu nome é Achiles Naves Diniz Pinto, sou médico radiologista, sou natural de Boa Esperança, mas morei em Belo Horizonte 13 anos, entre 19973 e 1986,  onde me formei. Na minha infância minha família residiu onde hoje é o lago de furnas e a paisagem da época era a seguinte, era uma várzea grande né? Beeem grande. E era um sítio, tipo uma fazenda, tinha a várzea né? Grande. E tinha pasto e tinha vaca, tinha o campinho de futebol da meninada. Aí tinha coisa assim, de 20 á 22 alqueires de terra, que ia da onde é o cais hoje, conhecido como ‘T,’ sabe? Até onde hoje é dique. Aquela região ali era tudo nossa. A gente chamava lá de casa debaixo, era dentro da cidade mesmo, a cidade era aquilo. Tinha bastante plantação, a gente plantava bastante coisa lá, plantava milho, plantava arroz e era mais gado né? Era uma várzea, tinha muita vaca lá, mas era cidade mesmo.  Lá íamos sempre em família, muita criança e tinha o campinho de futebol onde a gente sempre jogava bola. Eu morei lá pouco tempo, depois sai, meu tio que ficou morando lá, irmão do meu pai, chamava Paulo Diniz. Foi ele que morou lá a vida inteira, até ter que desmanchar a casa. A relação que a gente tinha com o local? Aquilo era a vida da gente né?!  A gente vivia lá! A gente ficava o tempo todo lá no pomar que era muito grande, com todo o tipo de fruta, a gente pescava no rio que passava no fundo. Quer dizer, era um sítio dentro da cidade. Meu tio mesmo vivia mais de lá, das coisas que plantava e dos gados. Quando minha família recebeu a notícia que furnas iria chegar eu me lembro que eles ficaram muito bravos porque tomou as terras deles e pagaram muito mal! Pra nós que éramos meninos e não entendíamos tudo aquilo foi ótimo, foi muito bom, porque a água vinha e a quando ela tava alta, na casa tinha um porão, a água entrava dentro dele e ai a gente pescava dentro da casa mesmo, então era brincadeira, mas pra eles, pro pessoal mais velho, foi péssimo e o preço que eles pagaram, foi pouco, irrisório e demoraram muito pra pagar. Sobre ter alguma resistência eu não lembro bem, eu era muito criança, acho que teve, mas não adiantou nada não. Todos que saíram de lá tiveram que procurar outro lugar pra morar, a rua Oswaldo Cruz, a parte debaixo dela afundou, tinha algumas casas ali, sítio e pegou tudo. Quando a gente saiu, saímos sem nada, só que eles demoliram a casa muito tempo depois, a casa meu tio continuou morando nela, porque antes não tinha o dique pra segurar a água né? A água vinha e voltava e a água, parece que chegou em 65 e foram demolir a casa lá pra 75 por aí. A água vinha, enchia o porão d’água, entrava um metro de água dentro dela, mas meu tio ainda continuou morando lá. Quando veio a água nós fomos ver ela chegar, a gente ia de bote, tinha muito peixe então a gente ia pescar, era a maior farra pra minha turma, pra geração nossa! Então era isso, a água vinha , tinha muito peixe, a gente pegava até com a mão! Não é tipo hoje que nem tem peixe mais não. A história é essa, nós divertimos muito, a gente tinha barco, tinha canoa, aí tinha o campinho também, que quando a água vinha ele inundava e quando a água voltava nascia a grama de novo e a gente ia tudo pra lá jogar bola de novo. Inundava geralmente de Janeiro até Junho, depois ela ia embora, depois voltava de novo e era esse ciclo.

 

Hoje eu acho ruim porque a gente tinha uma casa enorme, tinha o campo de futebol, tinha água também porque tinha o rio que passava no fundo da casa, hoje eu lembro assim, com saudade, saudade da minha casa. Hoje é um lago até bonito, mas com muito lixo e mal cuidado. A prefeitura nunca olhou direito pra esse lago, poluído, sem tratar o esgoto, muito esgoto que cai diretamente no lago, mas é uma coisa bonita que a gente tem, até gosto muito do lago hoje, tem o lado positivo que a cidade virou uma cidade turística né? Mas falta política, o pessoal não cuida dele direito. Se tivesse um pessoal que olhasse diferente pro lago, mas os políticos só pensam neles, falta política. Na época da chegada, por exemplo, o meu tio que era o mais velho ficou muito triste, porque lá era a vida dele. Foi muito triste. Ele era solteiro, vivia lá e aquilo pra ele era toda a vida dele. Eu lembro que na época da chegada ele ficava xingando o tempo todo. Ele?! Nossa Senhora! Ele morreu disso! Virou alcoólatra depois que saiu de lá! Ele veio morar na casa da irmã dele e morou com ela ate morrer. Mas ele virou alcoólatra, começou a beber, porque tiraram a maior parte da vida dele né? Ele vivia lá cheio de crianças, tinha as vacas dele, tinha tudo, porco, galinha... aí... tiraram tudo. Com o dinheiro que foi pago não deu pra reparar muita coisa não, pelo tamanho que era... só a casa que tinha lá era enorme, bem grande mesmo, estilo aquelas casas antigas de roça. Lá na minha roça hoje tem uma foto dela, uma pintura e era o meu tio que cuidava de lá. E lá a gente brincava de tudo, brincava de pique, de futebol, de subir em árvore pra pegar manga e pegar fruta, e mesmo depois que a água veio a gente também brincava né? Aí era canoa...

O meu pai tinha até uma usina de açúcar, aquela chaminé que enxerga no lago onde hoje é minha roça era a usina dele, da família dele e tiveram que derrubar a usina, perderam a usina. Ela foi indenizada, mas muito pouco, o prejuízo foi muito grande. Ainda da pra ver a chaminé na água, do outro lado e ali era a usina. É... eu era criança né? O que eu lembro é isso mesmo... que foi bom e foi ruim. Pra nós, moleque, foi muito bom a água vinha, a gente brincava, pescava e quando a água voltava a gente jogava bola de novo no campinho, era assim até fazerem o dique. Teve dois diques, o primeiro caiu, ai depois eles fizeram esse outro, pra daí a água ficar constante, aí não tinha como a casa ficar lá mais, porque ia inundar tudo, ai não teve jeito, meu tio teve que sair, veio pra cidade e virou alcoólatra. O básico que eu lembro é isso mesmo... eu era muito novo, não sei se isso vai te ajudar, mas se deu pra dar uma ajuda, foi bom. É basicamente isso aí... o pouco que sei.

Entrevista N° 4

. Meu nome é José Oswaldo e sou conhecido em Boa Esperança como Zé Oswaldo sapateiro. O que eu lembro da chegada de furna? Eu lembro é que antes tudo lá era uma várzea e tinha o ribeirão Maricota que passava ali que depois foi tampado, tinha o rio Marimbondo que também foi tampado pela água. E com a água de furna né? Tinha o pessoal que morava lá e furna pegou us terreno tudo. Foram indenizados, pagaram, mas só pagaram depois que entraram na justiça, tiveram que entrar na justiça pra conseguir. Lembro que fizeram uma oferta abaixo do valor das terra, aí todo mundo entrou na justiça e depois conseguiram. Eu morei lá. Nois plantava lá, meus tios tinha arroz na várzea né? Numa parte...  tinha coisa de verdura, era mais ou menos isso. Eu era criança, a gente brincava de andá de cavalo, pescava muito no rio, no rio a gente pescava muito, nas lagoa...

Antes de chegar a água veio os engenheiro né? Que fizeram a... topografia? É isso que fala né? Mediram todinho, demarcaram onde a furna ia pegar, aí tinha a parte além daquilo, que era a faixa de segurança que eles falavam né? Aí a turma já ficou sabendo já né? Que invinha. Na minha família não foi desapropriado a casa não, não teve que sair do local, mas eu tive dois tios que teve que mudar. Eu por exemplo, na minha casa, a água não pegou na minha casa, dentro dela, mas teve um terreninho pra cima que era da minha mãe e ali pegou. Então chegou o pessoal dos engenheiro, topografia, demarcô tudo e depois veio o aviso da indenização falando quanto ia pagar, foi avisado. Na minha casa por exemplo, nois não fizemo muita questão não porque o terreno que pegou não era bem onde a gente morava, a casa mesmo não pegou água não, era um terreninho pequeno que tampô,  na minha família foi assim. Depois nois viemo pra cidade, compramo uma casa na cidade, foi isso... Onde a gente morava por exemplo, era só da família, era seis irmão, mas não pegou quase nada não, agora da mãe da Isabel, esse pegou tudo, levou tudo, mas da minha mãe pegou menos. Cada um tinha uma faixinha de terra num lugar, um num, outro noutro, certo? Um mais perto, outro mais longe, aí uns pegou muito, outros pouco, mas todos receberam, mas tiveram que entrar duas vezes na justiça. Inclusive o advogado da época era o Dr. Garcias, foi ele que pegou as causas. A indenização demorou um pouquinho, mas veio. Na época eles ia pagar muito pouquinho certo? Aí entraram na justiça, todo mundo que entrou da família recebeu, na época era aquilo que valia, não valia mais. Agora aqueles que ficaram na faixa do terreno, no que eles chamavam de faixa de segurança, certo?  Que furnas indenizou e ficou com aquela parte, hoje é aqueles casão bonito na beira do lago, certo? Valorizou... mas valorizou hoje né? Naquela época não tinha valor nenhum, não tinha rua, não tinha nada era tudo várzea quase. A indenização foi justa... porque não tinha como aquilo valer mais... era aquilo mesmo, pelo menos na minha família... mas com o advogado que ganhou a causa né? O Dr. Garcias. Porque antes eles queriam pagar muito pouco, a oferta de furnas era muito pouquinho. O Dr. era novo, queria causa né? As causas que ele pegou ele ganhou todas. Porque pra furnas era interessante né? Na época em que a barragem começou a gerar energia vinha dinheiro né? Na minha família nosso sustento não era da terra e a parte que furnas pegou eles pagaram, aí nois compro um terreno e depois fizemo a casa aqui na cidade e mudamo, minha irmã ainda continuou morando lá, mesmo com a água beirando um pouco do terreno. Mas isso foi na minha família, agora pegou uns outros que tiveram que sair rápido sabe? As pressas  porque a água já pegou tudo deles. Tinha o Chico que mexia com maçã, tinha um pomar grande assim, aquilo dele pegou tudinho.

Hoje eu acho esse lago muito chique, muito bonito, acho mesmo. Porque antigamente o que que tinha ali? Nada, só uma várzea e uns terreninho, alguns plantavam algumas coisinhas só.  O pessoal pode até querer falar que tinha grande coisa lá, mas não tinha, a gente tinha pouca coisa, isso na minha família foi justo, era aquele valor que a terra valia na época mesmo. Hoje valorizou. Hoje tem aqueles casão lá né? Eu acho o lago muito chique!

Entrevista N° 5

Meu nome é Maria Thereza, minha mãe chama Guiomar e a gente morou onde hoje é o lago. Era tudo povoado, lá em baixo tinha a parte da cidade que era tudo cheio de casa, lá onde a gente morava nois teve que avoar tudo de lá, mas nois ainda aguento um tempo, a água de furna entrava dentro da porta da casa da gente né? Mais nois ainda aguentamo um tempo! Antes da água chegar nois plantava, na parte que nois morava memo nois não plantava não, nois plantava mais pra cima, até na época mesmo que água foi chegando nois tava plantando milho e pegamo canoa e fomo quebrando o milho pra ver se salvava, aproveitava, se alguém comprava... e a água chegando e chegando e foi muuita perda. Umas espiga de milho deeesse tamanho, arroz, feijão que já tava tudo plantado, quase dando a época de colhê, perdeu tudo... ce tinha que ver o desperdício que foi! A gente ia de canoa, ninguém sabia nadar, arrumamo uma canoa com um pescador que ia pescar lá no rio Grande pra baixo. Foi muito desperdício! Muito desespero! Até nosso tio memo tinha formado uma chácara de ponkan, tinha macieira, essas maçã que a gente compra hoje é tudo macia né? Mas a dele era pequena e mais dura, dessas a gente não vê muito mais não. Ah! Pegou a chácara dele tudo! Os fruto tudo formado, precisa de ver! Tampou tudo! Lá onde é Fórum hoje sabe? Foi só depois do dique que eles construíram o Fórum lá e fizeram a avenida. Aquilo lá antes tampo tudo de água. A dona Conceição que morreu a poucos dias morou lá, aqueles casarão bonito, precisa de ver! Pegou tudo! Onde nois chamava de Bairro das Chapadas, pra baixo de onde hoje é o hospital pegou também. Era tudo povoado! Aquele monte de gente! Nois tudo morava lá e teve que todo mundo sai né? Na época quando a água veio nois era tudo menino, tudo pequeno, dos mais velho só resta a mãe. Quando veio todo mundo ficou muito triste né? Até o irmão da minha mãe, meu tio, ficou tão desgostoso que ele ficou meio esgotado. Eles mudaram pra cidade, mas ele só chorava e chorava, sumia... ficou esgotadinho né? Porque viu tudo que era dele debaixo d’água. Ele tinha trazido as mudas dos pé dele láá de Limeira sabe? Lááá de São Paulo. Aí ele encontrou umas muda de ponkan lá e já trouxe pra cá e formou o pomar dele, já tava tudo carregadinho, os galho já tava tudo até virado com o peso das fruta... mas era só água de furnas que envinha, aí ele entrou em desespero né? Quando ele sumia e nois ia atrás dele, nois encontrava ele lá no barranco que tinha lá, ele subia e sentava lá nesse barranco e ficava olhando tudo debaixo d’água, tudo coberto e chorava e chorava.

Aí quem veio pra cidade foi pra casa de aluguel né? Com o pouquinho do dinheiro que foram indenizando alguns davam pra comprar um lotezinho né? E foram construindo aos pouco né? Os que tinha possibilidade, agora outros foram viver de favor em alguma outra roça, trabalhá na roça em troca de lugar pra ficar sabe? E foi assim... o pouco que a gente lembra... o pouco que a gente sabe.                                          Justas as indenização não foram nada! Porque hoje vai lá perto do lago procê vê! Olha o jeito que nois saiu de lá e olha agora quem compro os terreno onde era nossas terra! A valorização que tem lá hoje! A onde nois morava mesmo, que era as terra da mãe que ficou naquele faixa de segurança e foi vendida depois sem nosso conhecimento por furna, pegaram nossos lote tudo e construíram aquelas mansão pra doutor lá! Só mansão que tem praqueles meio! Eu não sei se a indenização foi de acordo com a terra que a gente tinha, na época nem sei quanto meu pai e minha mãe recebeu, mas não é o que eu to te falando?! Quanto vale uma casa daqueles que eles construíram na beira do lago hoje?! Agora ce vê, o que era a parte da minha mãe lá, quando nois mudo de lá, tinha ficado dois lote, um era do irmão da mãe que tinha morrido e de um outro tio meu que tinha desparecido, mas ai furna constô que ninguém podia ficar com os lote porque não tinha escritura dos dono né? É onde eles pegaram e fizeram aquelas mansão lá. Falaram que não tinha dono, agora você vai reivindica como?! Nois não sabe pra onde foi a escritura.         Quando a gente saiu de lá pra vir pra cidade meu pai mexia com carro de boi, ele pegou e vendeu os boi dele tudo aí ele trocou com o sô... sô Chico... era um senhor que morava ali... aí ele trocou pela casa. Do nosso meio lá, nossa família, tudo teve sair, teve a minha tia Ana que foi embora pra campinas com os filhos dela... foi indo tudo. Mó de dizer, essa foi a parte da minha família, agora foi muita gente, eu não sei explicar quem, mas que era muita gente foi. E perderam tudo, uai, não tô te falando que pegava lá daquela rua Oswaldo Cruz e vinha até o Bicamo? Tudo aquilo ali era povoado, tinha aqueles casarão antigo tudo ali cê precisa de ver! Tinha muita gente que tirava sustento da terra e a água chegou, igual lá no Tio Chico, todo mundo lá plantava arroz, plantava feijão nas várzea, na parte de baixo lá das casas, mas quem foi prejudicado mesmo, que acabo com tudo mesmo, foi o Tio Chico, porque a parte dele, a chácara dele,  eu não to te contando que era ponkan que ele trouxe não sei quantas muda de fora?!  A chácara que ele formou era coisa assim, de primeiro mundo, naquela época ninguém sabia o que era ponkan! Acho que foi em 46 ou 50 que água chegou... alguma coisa assim... e o que foi mais prejudicado mesmo foi o Tio Chico. Cobriu tudo, cobriu de um jeito que não salvava nada. Imagina, ce ta quietinho lá na sua casa quando vem esse negócio docê ter que sair de uma hora pra outra?! Mas revolta eu não lembro não, a gente ficou muito é triste né?

Hoje em dia o lago é bonito né? Muito bonito, mas mal administrado né? A gente vê falá que se esse lago tivesse uma melhor administração ele podia ser um belo de um lugar de turismo. Não no modo de explorá ele igual aquela bagunça que deixa aquelas narquia de sujeira dessas festas aí. Colocar uns pedalinho sabe? Igual em São Lourenço né? Já era uma coisa pro turismo. Ele é muito bonito, muito chamativo, todo mundo que vem aqui acha uma maravilha né? Mas não tem grande administração pra torna mesmo uma coisa mais turística né?          Na época que a gente teve que ir embora todo mundo achou ruim né? Porque era uma colônia todo mundo lá, aí foi saindo um... foi saindo outro né? Mas eu nem alembro muito bem de ter morado lá embaixo, nem faço questão! Depois na época da água tinha um povo que desrespeitava a gente muito, porque atravessava a porta da nossa sala, saiam pela porta da cozinha, ai meu pai ia falar eles retrucavam assim: “-Você não manda aqui, aqui é de furnas”. O povo não tinha respeito com as nossas terra mais! Os casais iam namorar lá debaixo da nossa goiabeira, dentro da nossa horta! Tinha uma baita de uma cerca de arame! Mas ia falar com eles pra eles respeitá a casa da gente eles falavam que aquilo ali era de furnas que a gente não mandava não. Uma vez tinha um casal transando embaixo da nossa goiabeira lá, naquela pouca vergonha e se não fosse o senhor Antônio Chaves ter chegado lá, na época o pai tinha um revolver, o pai pegou o revolver até pra matar o cara! É o que eu tô te falando, virou aquela narquia, todo mundo queria ver a água chegando, todo mundo queria nadar, se olhasse tinha até gente pelada, tirava a roupa e pulava n’água pra nadar, se tivesse a porta da casa aberta eles entravam mesmo! Ai ia falar, mas não podia falar nada porque eles falavam que aquilo não era nosso, era de furnas e era furnas que mandava lá, né? Ah mais hoje também nem alembro, nem faço questão! Morar perto daquela narquia lá? Mas da parte que a gente tem mesmo o que eu alembro é isso, da nossa família memo, mas teve muuita gente né? Lá da parte de baixo que teve que sair. Era muuitas família que morava lá pra baixo de onde hoje é a Vila. Tudo lá era povoado, casarão, ce tinha que ver como é que era! Mas na época ninguém entendia nada né? Eles ainda aproveitô desse povo mais velho que era os dono de lá né? Iiiih! Não foi só o tio Chico não! Teve várias outras pessoa que a gente ficou sabendo que ficou doente! Foi ele e não to te falando que teve a minha tia que teve que ir embora pra Campinas? Passou muitos anos sem vir aqui. Ela ficou também muito desgostosa quando teve que ir embora né? Mas ela teve que vender e ir morar com a filha em Campinas.  Na época todo mundo ficou triste e revoltado né? Porque, perdê uma coisa que você tem tudo arrumadinha? É semelhante do que foi em Guapé né? Lá eles tiveram que fundar outra cidade né? Mas lá não sobrou nada. Até foi no ano passado ou atrasado que a água tinha baixado e apareceu a torre da antiga igreja, cemitério né? Foi aparecendo lá de tanto que a água abaixou né? Agora aqui em Boa Esperança também foi um caos quando chegou né? Ali na onde é o Fórum lá tinha uma fábrica de queijo, que fabricava queijo, manteiga, igual uma cooperativa, era lá. Os fazendeiros tudo era coperado lá, também teve que mudar tudo né? Pegou tudo na época. Aí ficou muito tempo desativado o local, que eles falava faixa de segurança, aí depois eles falaram que podia volta a construir as coisas lá. Porque a primeira vez que eles mediram ali eles falaram que a água ia alcançar ali, né? Ai ficou essa bendita faixa de segurança da água de furnas. Mas os ano tudo passou e a água nunca chegou até lá em cima, né? Aí voltaram a construir as casa tudo nessa faixa né? Construíram o Fórum mais aquelas tantas casona bonita que tem lá baixo, aqueles loteamento tudo lá, né? É isso o pouco que a gente lembra.

Entrevista N° 6

Meu nome é Luís Flausino Neves, tenho 98 anos, tive minhas terras inundadas por Furnas. Foi mais ou menos em 1960 que recebi a notícia que a água ia vir e nós seriamos desapropriados. Até nessa ocasião, quando eu ia no banco a minha profissão era profissão de fazendeiro, eu só tinha fazenda né? Então a água veio e furnas pegou tudo minhas terras, tinha terra lá com pasto muito bão. Ai, eu na minha profissão de fazendeiro, que eu tinha nos bancos, né? Onde eu ia tava delcarado lá: “Profissão- Fazendeiro”, aqui ou em Campos Gerais... aí eu tive que começar como principiante de novo, com a indenização que veio.... a indenização foi 20 mil por alqueire, e nesse ponto eu sai procurando terra pra comprar, comprei lá em Campos Gerais a 250 por alqueire! Agora pensa pra ver a diferença né? Então nessa ocasião furnas me deixou assim... muito prejudicado né? Minhas terras... umas partes era compra, outras partes era herança... mas era uma propriedade assim... muito boa! Tinha o terreno pro gado, tinha uma propriedade muito boa, casa de colônia, tinha o jogo completo ali na minha profissão de fazendinha né? Muita madeira, muita lenha, muito pasto pro gado, então a diferença foi muito grande, me prejudicou demais. Eu estudando meus filhos na cidade, eles não foram criados na roça não, tudo na cidade, mas eu ficava na roça com a minha esposa, cuidando das vacas, dos porcos, das galinhas e os filhos tudo na cidade. Então a diferença foi muita, demais. Furnas... se não me engano... foi em 1960 por ai... mais ou menos... mas aí, tem essa parte que a gente foi muito prejudicado demais, mas em compensação, veio a força elétrica, que ajudou muito né? Ai veio a força elétrica e essas coisas todas... máquina de lavar roupa, essa coisarada toda que hoje é tudo na força elétrica. Então, lá na barragem grande eu fui duas vezes, lá nas furnas, então em compensação, furnas fez uma parte também muito boa pra nós. Mas eu que estive vivendo da minha profissão de fazendeiro, deu pra comprar um sítio em Campos Gerais, um sítio muito bão, tenho esse sítio até hoje! Mas a minha despesa, era muuuita, ainda mais estudando os filhos. Então passei a minha vida no prejuízo, fui prejudicado demais, mas em comparação com muitos parceiros meu eu ainda fui feliz. Porque teve muito parceiro, companheiro meu, que teve a fazendinha pegada por furnas ficou pior que eu, porque eles não empregaram o dinheiro, e eu, o pouco que recebi eu empreguei mas foi preciso vender o gado, uma parte da terra que eu tinha em passos, que tive que vender muito barato. Então eu tive uma atrapalhada muito grande nesse ponto, mas de modo que eu ainda fui feliz porque o pouco dinheiro que recebi eu ainda continuei a minha profissão de fazendeiro. Eu fui em Alfenas 9 vezes, eu chegava lá e falava assim pro Dr. Geraldo Andrade : “Mas é muuuito barato essa indenização, não da conta de tudo que nois tem.” E ai eles respondiam: “Nós não somos compradores de terra, nós não tamo comprando o terreno de vocês, apenas estamos indenizando.” E então ficou desse jeito... tive uma atrapalhada muito grande, empobreci muito em vista do que eu era né? Mas ainda fui feliz. Mas tem esse prejuízo que tive na vida, que ta lá até hoje, porque quando a água seca né? Da pra ver onde foi meu, mas não posso desfrutar de um nada, porque é de furnas mesmo. Então ali a gente vê que o fracasso foi muito né?  Então da turma de vizinhos lá, o mais prejudicado foi eu, porque o deles era terra grande também mas boa parte ficou no enxuto, mas as minhas que era na baixada a água pegou tudo. Depois que a água chegou eu mudei lá pra Campos Gerais, comprei terra lá por 250 o alqueire, mas as coisas que ficou aqui nas terra que furnas pegou, madeira, arame, tijolo, uma coisarada, o povo carregou tudo, foi carregando, porque não tinha quem tomasse conta né? Virou terra de ninguém. Foi outro prejuízo muito grande. Aí então, comprei esse sítio em Campos Gerais com essa lavoura de café, entrei no banco, ai vem o prejuízo de furnas porque tem os juros de banco, juros enorme né? Então em vista do que eu fui e depois de furnas... nossa senhora! Não tem nem comparação!  Eu tenho 98 anos, faltam só 2 pra 100! Já vivi muita coisa! Já fui retireiro, carreiro, já tive na escola de um padre 2 anos, já fui barbeiro, carpinteiro, tanta coisa, tanta, mas hoje eu não posso ficar lembrando muito da minha passagem de vida não, porque pesa né? O que eu era antes de furnas e dessa ocasião pra cá a diferença foi muita, foi muita. E a gente não teve como, não tinha pra quem reclamar nada, porque a gente já tinha que vender né e eu já tinha recebido meu dinheiro de furnas. Então ficou lá, a casa que era casa boa, terreiro de ladrilhado, tinha paiol, tinha a tuia, o barracão, a casa de colônia, tinha uns dois alqueire de capoeira, vendia lenha pra um cara lá de Bom Sucesso que sempre vinha buscar, que no final de contas a água não deu prazo pra ele vir pegar a lenha, ai tive que dar a lenha dada pros vizinhos, se não ia perder. Aí eu fui em Alfenas 9 vez, pedi pra que a indenização fosse mais, porque era muito pouco né? Mas não teve jeito. Mas aí o pouco, que foi muito pouco, comprei em Campos Gerais. E eu não moro aqui na cidade não! Tô com 98 anos, já operei umas 5 vez, 98 anos não é brincadeira, mas eu já até falei pro médico, aqui na cidade ele é o doutor, mas lá na roça, o doutor sou eu, na minha profissão de fazendeiro. Lá na zona onde eu moro, passa pela fazenda Santo Antônio, passa mais duas fazenda e chega lá na fazenda dos Óhlios, porque lá tinha muita arvore de óhlio, ai a gente tem essa propriedade lá. Então a gente tinha o jogo completo antes, lavava café, lavava arroz, moía o milho, tinha galinha, mas ai a vizinhança mudou tudo, porque desmancharam o grupo. Na minha fazenda lá não existe meu grupo mais não. Então, a minha vida, se eu for contar o que eu passei de furnas pra cá... né? Mas agora tem essa parte boa também, da força elétrica, da energia. Então melhorou muito nesse ponto né? Hoje tem esse tanto de coisa que eu nunca tinha visto na vida, essas máquinas né? Melhorou uns 40% nesse ponto né? Então o negócio é o seguinte, foi muito fracasso né? A água foi pegando tudo, a fazenda dos Rodrigues, a água pegou tudo. Agora eu fui muito prejudicado também. Eu tinha muitos vizinhos bão, tinha o Marcu Rosa que era vizinho bão, tinha o Zé Marica que também era fazendeiro bão, tinha o meu concunhado Geraldo Soares Oliveira, então tinha muito vizinho bão, alguns desses ficaram no enxuto, porque a água não pegou, ou pegou só umas partes, mas o que não ficou nada foi só eu. Tinha o Joaquim Rosa, tinha o João Cassiano também que tinha uma fazenda muito boa, ele recebeu a indenização mas não empregou em nada, aí acabou que ele teve que ir embora pra cidade e lá comprou uma casinha, ele tinha um filho professor, aí cada um comprou uma casinha na cidade, mas o dinheiro que ele tinha da fazenda mesmo desapareceu, então de fazendeiro passou a morar na cidade. Então, eu chegava no banco a profissão minha era profissão de fazendeiro, eu tinha 9 escrituras de terra, porque eu recebi herança e fui comprando terra em Guapé... em várias lugares e então me transformei. Eu tinha 180 réis, dois carros de boi, tinha a casa na cidade, então eu não era um fazendeirãao, mas eu era um fazendeirinho bem reforçado. Então, essas coisas que aconteceu comigo, depois de furnas, se eu for falar tudo direitinho, causa até mesmo... ... ... porque foi muito custoso né? Mas o mundo tem isso né? Acontece muita coisa com a gente, coisa que a gente nunca esperava. Eu cheguei a possuir 25 alqueires de lavoura de café, mas devendo o banco, fiquei devendo o banco. Agora, antes de furnas... antes de 1960, por ai, eu tinha renda, eu tinha gado, eu vendia vaca de corte, teve um ano que eu colhi não sei quantos alqueire de arroz, teve ano que eu cheguei a ter 200 mil em dinheiro só arroz que colhi, tudo nesse terreno, que hoje ta debaixo d’agua. Meus filhos ficavam na cidade, mas nas férias eles iam pra lá, eu com a minha esposa a gente combinava muito, trabalhava demais, fazia tudo quanto era serviço de roça, então aqui na cidade eu sou caipira, mas lá na roça eu sou doutor né? Falei assim pro meu doutor esses dias. Então deu essa diferença muito grande. Eu de um fazendeirinho bem reforçado, hoje eu e meus filhos temos muitas coisas mas é que meus filhos sempre trabalharam muito, mas falar da minha parte, a furnas atrapalhou muito pra mim e pra minha família. Eu tenho essa fazenda que comprei até hoje, mas renda, porque antes de furnas eu tive muita renda, não tive mais não. O dinheiro da indenização foi muito pouca, não dava pra comprar uma fazenda igual a que eu tinha de jeito nenhum. Então a terra que eu tinha, eles me deram 20 mil por alqueire, depois eu fui comprar por 250 mil o alqueire em Campos Gerais, então foi um prejuízo muito grande! Então, quando eu requeri a aposentadoria e apresentei a minha renda, eu não tinha renda mais, então eu fui aposentado como empregador e minha esposa nunca aposentou. Eu já tava quebrado por causa do negócio de furnas, então eu fui prejudicado até nesse ponto, todo dia 6 eu recebo um salário, apenas um salário mínimo. Meu cunhado, por causa de renda de café aposentou com quase dois salários, outro cunhado que tenho também aposentou com mais de um salário mínimo, e eu aposentei com um só por causa que não apresentei renda mais né? Se a gente for pensar, as coisas são de um jeito que é muito custoso. Eu quando tinha essas terras que agora é de furnas... Iiiiiih!!!! Eu tinha uma outra vida! Se você chegasse e falasse: “Luís, você tem 100 mil pra me emprestar?” Eu ia dizer: “Tenho!” Eu tinha dinheiro né? Depois, nunca mais tive dinheiro pra emprestar. Quer dizer, eu socorria os vizinhos né? Eu tinha uns poucos cobrinhos. Vizinho sempre se ajuda, é pra essas coisas né? Mas comparado com antes, o dinheiro tava sobrando, não sobrou mais. Eu nunca morei na cidade não, eu fui nascido e criado na fazenda, minha avó era fazendeira, minha avó materna, a paterna era do Rio, meu avô era de São Paulo. Meu pai era do povoado Santa Bárbara das Canoas, que hoje é conhecido como Guaranésia. Então se eu sou daqui é porque meu pai saiu de lá com 22 anos e casou com gente daqui, da família Neves. Então na minha infância eu morei na fazenda do meu pai, meu pai tinha uma fazenda de 50 alqueires lá no município de Campo do Meio, ele comprou do tio da minha esposa, então eu já cresci com aquele jogo de fazendeirinho desde criança. Minha avó era uma grande fazendeira! Agora, as minhas terra que foram tomada por furnas, na época, eu comprei uma parte e outra parte foi herança da minha esposa, quando a gente casa a gente casa com a família também né? Meu sogro também era fazendeiro, na fazenda dele a água pegou 170 alqueires de terra, ele era da família Rodrigues. Então, eu era bem de vida né? Nessa minha profissão de fazendeiro, então eu fiquei com um pouco de mágoa, toda vida trabalhando na terra, trabalhei muito, minha mão cheia de calo, de tanto trabalhar na terra. Mas também eu jogava truco, jogava bola, nadava muito, pescava. Mas eu tô com 98 anos e não tenho nenhum inimigo! Isso não! Mas lidei com muita coisa e gente custosa demais, custosa demais. Mas se a gente não entra pela porta da sala, a gente entra pela porta da cozinha, a gente da um jeito. Então, com 98 anos a gente evita o descontentamento. Aí quando sai daqui fui pra Campos Gerais, na mata Santa Catarina, comprei um pedacinho e fiz um financiamento e comecei a plantar o café, lá tive que começar a vida de novo com a minha esposa. Minha esposa era muito trabalhadera, faz 5 anos que ela faleceu. Então eu já passei por muita coisa sabe? ...


Publicado por: Luana de Faria Trevisan

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