DISCURSOS DA IDENTIDADE CULTURAL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: uma leitura dos contos Judas-Asvero de Euclides da Cunha, O Tapará de Alberto Rangel e Um oriental na vastidão de Milton Hatoum

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1. RESUMO

Este trabalho procura discutir questões que envolvem a cultura e a identidade da Amazônia brasileira. A partir da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, estamos propondo analisar três contos da Literatura Brasileira, que são Judas-Asvero de Euclides da Cunha, O Tapará de Alberto Rangel e Um oriental na vastidão de Milton Hatoum, para que a partir deles possamos problematizar discurso s constituidores de identidade cultural da Amazônia, com o objetivo de compreender internamente o funcionamento desses discursos que historicamente tem servido para excluir diferenças culturais importantes.

Palavras-chave: cultura, identidade, tradução cultural.

ABSTRACT

This paper discusses issues involving culture and identity of the Brazilian Amazon. From the Comparative Literature and Cultural Studies, we are proposing to analyze three tales of Brasilian literature, which are Judas-Asvero Euclides da Cunha, The Tapará Alberto Rangel An oriental and the vastness of Milton Hatoum, so that from them we can discuss discourses of cultural identity are constituted of the Amazon, with aim of understanding the intemal functioning of these discourses that have historically served to exclude important cultural differences.

Keywords: culture, identity, cultural translation.

2. INTRODUÇÃO

O presente trabalho constitui-se como uma pesquisa bibliográfica e aborda o tema Discursos da identidade cultural na Amazônia brasileira: uma leitura dos contos Judas-Asvero de Euclides da Cunha, O Tapará de Alberto Rangel e Um oriental na vastidão de Milton Hatoum, com o objetivo de discutir questões que envolvem a identidade cultural da Amazônia brasileira.

Além dos textos literários que compõem o corpus dessa pesquisa, trabalhamos com autores que apresentam teorias importantes que subsidiam a leitura desses textos. Procurando dar unidade ao nosso trabalho que se apresenta na perspectiva dos Estudos Culturais e da Literatura Comparada, lemos autores que abordam teorias que discutem a diversidade e a diferença cultural, o hibridismo, crioulização e transculturação, para que pudéssemos discutir os discursos que produzem a identidade cultural da Amazônia.

Contextualizando tais teorias autores como, Márcio Souza, Bertha Becker, Neide Gondim, Amarílis Tupiassú, Ana Pizarro, Euclides da Cunha, que tratam da Amazônia em seu processo histórico, geográfico e político, literário e cultural; Roque de Barros Laraia, Maria Elisa Cevasco, Stuart Hall, Paul Zumthor, Antonio Cornejo Polar, Zilar Bernd, Reinaldo Martiniano Marques, Silviano Santiago, Homi K. Bhabha, entre outros que fazem abordagens acerca da cultura e identidade e Alberto Rangel e Milton Hatoum, por apresentarem discussões até certo ponto diferentes sobre a construção da identidade cultural na Amazônia brasileira.

O interesse pela pesquisa surgiu da necessidade de demonstrar a concepção de Amazônia e os discursos de sua identidade cultural, a fim de propor uma releitura dessa construção que se fará a partir de recortes dos contos acima citados, nos quais discutimos a construção da identidade cultural na Amazônia brasileira, fazendo referência às abordagens teóricas discutidas no decorrer de todo o trabalho, com o intuito de se fazer perceber as concepções de cultura nessa região geográfica e os discursos de sua identidade cultural, possibilitando a compreensão da Amazônia, como plural, híbrida e heterogênea.

No primeiro capítulo discutimos a formação geográfica da Amazônia, hipóteses e especulações acerca de sua ocupação, o modo de vida das sociedades existentes antes da chegada dos europeus e os modelos de colonização, dos quais a Amazônia brasileira não foge à regra da colonização de outros territórios dominados culturalmente, mas que soube reelaborar sua identidade cultural em meio aos grandes conflitos de uma experiência colonial.

No segundo capítulo fazemos uma breve biografia dos autores Euclides da Cunha, Alberto Rangel e Milton Hatoum, assim como elaboramos de forma sucinta, a síntese do enredo dos contos. No terceiro capítulo apresentamos abordagens teóricas e conceituais sobre cultura e identidade com o intuito de explicitar a diversidade de uma existência cultural, na qual se deve considerar a alteridade e combinar elementos constitutivos de uma identidade híbrida construída a partir da diferença cultural.

No quarto e último capítulo propomos uma análise dos contos Judas-Asvero de Euclides da Cunha, O Tapará de Alberto Rangel e Um oriental na vastidão de Milton Hatoum, comparando seus discursos que se filiam a uma tradição literária da Amazônia brasileira, e que produzem pontos de vista, intenções, valores, que contribuem para nossa identificação cultural.

Durante a realização desse trabalho alguns questionamentos surgiram e se colocaram como importantes na pesquisa, a possibilidade de se discutir a identidade cultural na era da globalização, tendo em vista que as identidades perdem nesse momento o seu caráter de estabilidade, universalidade e homogeneidade, adquirindo características de transitoriedade, de efemeridade, instabilidade, além de diálogos constantes com a diferença.

O processo de formação cultural brasileira tem como ponto de partida as suas periferias, apontando para necessidade de também considerarmos a formação da identidade cultural na Amazônia brasileira centrada numa sociedade heterogênea que pode não nos colocar apenas uma Amazônia indígena, mas uma Amazônia de fronteira geográfica, cultural e política permeada por elementos constitutivos de uma elaboração cultural instável, visto que, lendo e repensando a nossa construção de identidade a partir da literatura na perspectiva dos Estudos Culturais percebemos que os processos de construção de identidade cultural deram significação à produção de signos construídos e reelaborados a partir do contato com a diferença.

Na perspectiva dos Estudos Culturais, o hibridismo está ligado aos movimentos demográficos que permitem o contato entre diferentes identidades e esses movimentos podem ser literais ou simplesmente metafóricos. Isto quer dizer que cruzar as fronteiras na atualidade pode significar simplesmente mover-se livremente entre os territórios simbólicos de diferentes identidades ou não respeitar os sinais que demarcam “artificialmente” os limites entre os territórios dessas diferentes identidades, pois se são esses movimentos que tendem a desestabilizar e subverter a tendência da identidade fixa colocando em contato diferentes culturas, podem também favorecer os processos de hibridização confundindo a suposta pureza dos grupos que se reúnem sob as diferentes identidades que não são mais integralmente originais embora guardem traços delas.

Pensando na Amazônia como fronteiras em transformação sem a fixidez do determinismo e da mesmice, vemos que essa região se mostra como uma dinâmica de possibilidades e de alteridades, uma vez que estas fronteiras podem ser o lugar das enunciações a partir do qual algo novo começa a surgir, pois viver nas fronteiras pode ampliar todos os limites e desafios da liberdade de escolha, e se são nelas que tudo se revela variável num sentido mais denso, estas se tornam lugares de travessia e de passagem colocando em evidência a instabilidade das identidades e nesses interstícios sua precariedade pode se tornar mais visível.

Nesse sentido, ao contrário do que se pensava antes a verdade nem sempre está ao alcance dos historiadores, pois no momento atual a partir de teorias dos Estudos Culturais e da Literatura Comparada, pode ser impossível produzir qualquer conhecimento de forma objetiva. Da mesma forma podemos dizer de um conceito de identidade cultural homogêneo, pois se vivemos numa sociedade marcada pela diferença, especialmente quando falamos de Amazônia brasileira com tantos protagonistas diferentes não podemos interpretar o conceito de cultura e identidade de uma única forma.

3. A AMAZÔNIA E OS DISCURSOS DE SUA IDENTIDADE CULTURAL

A oeste do oceano Atlântico, a leste dos Andes, ao sul do escudo guianense e ao norte do planalto central brasileiro está a maior floresta tropical do mundo, conhecida pelo nome de Hiléia Amazônica. Como um útero prolífico esta região guarda mais biomassa que qualquer outro habitat da terra. É de longe o mais rico meio ambiente terrestre.

O nome Amazonas foi dado inicialmente ao poderoso rio que corta a planície, o maior e mais caudaloso do planeta, senhor de uma fantástica bacia hidrográfica que de certa forma dita o destino de todo o subcontinente. Porém, tantas são as peculiaridades, diferenças e semelhanças entre as diversas conformações regionais, que o vale banhado pelo rio-mar recebeu o nome de Amazônia, território multinacional e pluricultural formado por bilhões de anos de mutações geológicas que abriga milhares de espécimes vegetais, animais e muitos povos.

Localizada ao norte da América do Sul, a Amazônia compreende toda a bacia amazônica, formada pelos seguintes países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Peru, Suriname, Equador, República da Guiana e a possessão francesa denominada Guiana Francesa. Segundo Amarílis Tupiassú (2005),

depois de finda a primeira colonização, a Amazônia continuou seu trajeto de região açulada pela antiqüíssima ganância, agora sob novas impostações retóricas, outro domínio, exímio em manipular não mais “La pólvora y arcabuces e ballestas” de Orellana de Carvajal, Acunã e outros, e sim armas sorrateiras, silenciosas, mas muito mais letais potencializadas por agentes civilizatórios que nem precisam de corporificação para gerar e multiplicar as novas facetas da antiga dizimação, agora por via da morte devagar sob o desalento da miséria imposta sobre uma população errante, sem peso, sem prumo, sem voz. Tantas foram e continuam sendo as intervenções, que não diminuem as estatísticas sobre a miséria, de sempre na Amazônia real.1

Segundo Amarilis Tupiassú (2005), depois da reviravolta do batismo para salvaguardar a posse, em 13 de junho de 1621 a política colonial portuguesa dividiu-a em dois pedaços gigantescos, o estado do Brasil, quase que da metade para baixo do mapa e da metade para cima, o estado do Maranhão e Grão-Pará com sede em São Luís submetido a ordens diretas de Portugal. O último estado abrangia, subindo noroeste, nordeste e norte o território ocupado hoje pelos estados do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá e parte do Mato Grosso e de Tocantins. Em 1751, inverte-se a centralização do mando quando se institui o estado do Grão-Pará e Maranhão com sede em Belém e no ano de 1772, determina-se a criação do estado do Grão-Pará e Rio Negro antes da criação do futuro estado do Amazonas.2

As cartas de hoje assinalam a Amazônia brasileira de conformação geopolítica ao Norte formada pelos estados do Pará, Amapá, Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia, e Tocantins. Este último desmembrado do estado de Goiás resultando de decisão política, pois por lógica geográfica estaria mais à vontade na região central ou no nordeste do Brasil. Paralelamente a esta existe a Amazônia Legal abarcando os sete estados amazônicos e também o norte de Mato Grosso e o noroeste do Maranhão.

Há ainda a Pan-Amazônia de que fazem parte as nove unidades da Amazônia Legal e também Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia, além da Guiana Francesa encravada ao território geográfico da Amazônia. Esta última mesmo não fazendo parte da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônico), nem sendo ao rigor das leis e não geográfico um território das amazônias são cada vez mais frequentes os intercâmbios entre o estado do Pará e a Guiana Francesa, uma mostra de que as vontades políticas muitas vezes não coincidem com as razões geográficas quando se trata de Amazônia. A floresta densa de terra firme cobria mais de cinco milhões de quilômetros quadrados da Amazônia, no entanto, cerca de 20% deste manto vegetal foram destruídos depois de 1960.

Visando contribuir com essa discussão sobre a formação da Amazônia brasileira, apresentamos abaixo o mapa da divisão política dessa região geográfica, objetivando fornecer elementos necessários à compreensão e localização da região onde se desenvolve essa pesquisa.

AMAZÔNIA BRASILEIRA

http//pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Amazonia_legal.gilf

Segundo Márcio Souza (2001), desde o início as especulações sobre a origem do homem na Amazônia foi cercada de muitas fantasias e teorias imaginosas. Na tentativa de explicar a presença humana no Novo Mundo, as marcas deixadas pelos homens na Amazônia suscitaram inúmeras hipóteses. Segundo ele, a teoria mais aceita é a de que o homem aqui chegou oriundo da Ásia e como a geologia mostra que o continente americano já se encontrava em sua forma atual quando o Homo sapiens apareceu, pode-se aceitar a hipótese de que os grupos nômades atravessaram o estreito de Behring, há 24.000 anos ocupando e colonizando as Américas.3

De acordo com esse pesquisador algumas dessas levas de migrantes asiáticos ou seus descendentes acabaram chegando ao vale do rio Amazonas e é provável que tenham cruzado a floresta por volta de 15.000 anos atrás dando início à colonização da Amazônia, entre outras hipóteses levantadas a propósito dessa ocupação, as mais curiosas falam das audaciosas viagens de certos navegantes do Oriente próximo como fenícios, hebreus e árabes sem esquecer o suposto comércio que os habitantes da desaparecida Atlântida teriam mantido com a região.

Além das explicações baseadas no espírito aventureiro dos antigos marinheiros havia as especulações filosóficas religiosas baseadas na Bíblia, as quais diziam que o homem amazônico era descendente de Noé e tinha recebido o Novo Mundo como herança. Sobre essa origem, em 1607, o fidalgo espanhol Gregorio Garcia escreveu alentado estudo mostrando as afinidades morais, intelectuais e linguísticas entre os judeus e os índios. Garcia citado por Souza (2001) diz que os índios eram descendentes das dez tribos perdidas quando os assírios atacaram Israel em 721 a.C.. Outros discutem a ideia de que a Amazônia tenha sido colonizada por chineses que aqui chegaram por volta de 499 a.C. e por isso o aspecto físico oriental apresentado pelos índios.4

Diante das especulações apresentadas podemos dizer que na verdade, ainda que a população amazônica evidencie a sua herança genética asiática, ela resultou numa constelação bastante diferenciada de tipos físicos, produto de uma diversificada contribuição biológica e cultural gerando um conjunto de comunidades humanas, distinta e nítida em sua identidade, como afirmou o antropólogo Claude Lévi-Strauss:

Este grande e isolado segmento da humanidade consistiu de uma infinidade de sociedades, maiores ou menores, que tiveram pouco contato entre si. E, para completar as diferenças causadas pela separação, há outras, igualmente importantes, causadas pela proximidade: o desejo de se distinguirem, de se colocarem à parte, de serem – cada uma – elas mesmas.5

Até bem pouco tempo a região amazônica era considerada uma área de poucos recursos, o que limitava as possibilidades de grupos humanos desenvolverem aqui uma sociedade avançada. Recentemente, as evidências arqueológicas ou documentais sobre as antigas sociedades complexas da Amazônia ou eram simplesmente negadas ou atribuídas à presença passageira de grupos andinos e centro americanos e aceitava-se como prova de adaptação ao trópico úmido o estilo de vida dos atuais povos indígenas que vivem em pequenas aldeias e se organizam a partir de uma economia de subsistência sob o impacto da colonização européia.

De acordo com Souza (2001), nos últimos vinte anos uma série de estudos começou a sacudir aquelas posições tidas como estabelecidas e a constatar que a Amazônia era na pré-história um rico e diversificado cenário de sociedades humanas, um passado formado por sociedades de grande complexidade econômica e sofisticação cultural, pois escassos sinais de ocupação humana na Amazônia foram encontrados em algumas cavernas e abrigos naturais na época em que ocorre o desenvolvimento e a expansão da civilização humana, tais sinais deixados pelas antigas sociedades sedentárias donos de uma elaborada tecnologia da pedra.

Desse modo é importante observarmos que esses antigos homens da Amazônia não eram exatamente primitivos em termos de tecnologia, pois se pensarmos nos indígenas atuais percebemos uma semelhança, ainda que pequena, entre os primitivos e atuais pelo modo de sobrevivência, uma vez que, supostamente são seus descendentes. É importante sabermos também que os primeiros habitantes da Amazônia formaram uma comunidade de alta sofisticação estabelecendo uma vasta e variada rede de sociedades de subsistência sustentadas por economias especializadas em pesca de larga escala e caça intensiva, além da agricultura cultivando plantas e também criando animais, o que sugere a presença de um intenso sistema de comércio e de comunicação entre os povos.6

Nessa perspectiva podemos dizer que os milênios antecedentes à chegada dos europeus, os povos da Amazônia desenvolveram o padrão cultural denominado Cultura da Selva Tropical e os últimos avanços da arqueologia na Amazônia veem corroborar a tese de que a Cultura da Selva Tropical foi capaz não apenas de formar sociedades perfeitamente integradas às condições ambientais como também de estabelecer sociedades complexas e politicamente surpreendentes. Tais sociedades por estarem localizadas as margens do rio Amazonas e alguns afluentes maiores foram as primeiras a sofrerem os efeitos do contato com os europeus sendo derrotadas pelos arcabuzes, escravização, cristianismo e pelas doenças.7

Gondim (1994) em sua discussão sobre a Amazônia nos diz que entre a chegada dos primeiros europeus e o fim do sistema colonial 250 anos se passaram. Foram tempos de conflitos e de muito sangue derramado em que um mundo acabou em horror e um outro começou a ser construído em meio ao assombro. Segundo ela, a Amazônia foi inventada nesse tempo porque antes era terra de verão constante, a terra em que se ia jovem e se voltava velho, a terra do sem-fim, com suas sociedades tribais povoando densamente a várzea e espalhando-se pela terra firme. Em seu livro A Invenção da Amazônia, Neide Gondim (1994) afirma que:

Contrariamente ao que se possa supor, a Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída; na realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes.

Nesse bojo inclui-se, ainda, a mitologia indiana, que, a par de uma natureza variada, delicia e apavora os homens medievais. A tal conjunto de maravilhas anexam-se as monstruosidades animais e corporais, incluídas tão-somente enquanto oposição ao homem considerado como adamita normal e habitante de um mundo delimitado por fronteiras orientadas por tradições religiosas.8

De acordo com essa autora em 250 anos os europeus se mostraram extremamente repetitivos, foram vários os modelos de colonização e todos chegaram à busca de riquezas e se deram conta da falta de mão-de-obra, isso os fez assaltar as populações indígenas e apresar escravos o que não resolveu o problema, pois a carência de mão-de-obra persistiu. Essa fase da colonização começou com as populações indígenas pagando um preço elevado e a Amazônia que conhecemos hoje é fruto dessa cega perseverança em que os colonizadores pensaram em construir uma unidade produtiva, mas só lograram demarcar uma fronteira econômica.

Souza (2001) diz que nesse período de descoberta foram várias as expedições para o Novo Mundo, entre elas a expedição de Francisco de Orellana que provavelmente teria uma ligação com a família Pizarro e teria deixado a Espanha em busca de riquezas. Em 1540, Orellana conseguiu vencer os índios da costa equatoriana e fundou a cidade de Santiago de Guaiaquil. No mesmo ano Gonzalo Pizarro chegou a Quito na qualidade de governador da província e começou a organizar uma ambiciosa expedição para conquistar e tomar posse dos desconhecidos territórios orientais. Pizarro tinha dois objetivos, o de encontrar as terras do interior do continente e romper com o negócio lucrativo do monopólio português e o de encontrar o fabuloso reino do El Dorado, um lugar cheio de tesouros segundo as lendas, o que mais incentivou a imaginação dos conquistadores.9

Percebemos nesse contexto que o período colonial deixou traços profundos na Amazônia como em outras regiões marcadas pela conquista e pressupõe que seu processo histórico está estritamente ligado a chegada dos europeus no continente americano, o que não a difere das outras histórias continentais, e os avanços do século XX não foram capazes de destruir os laços da região com a terrível e fascinante experiência colonial.

Em 1667, de acordo com Souza (2001) uma parte do território da Guiana, o Suriname, é invadido e conquistado pelos holandeses após diversas tentativas de colonização por parte dos ingleses e franceses e por isso já havia ali uma sociedade de quatro mil habitantes, inclusive de escravos. O modelo colonial holandês se deteve na produtividade empresarial agrícola como a produção de café, cacau, cana-de-açúcar e algodão, culturas prediletas que duraram quase dois séculos. Esse modelo de colônia-empresa no Suriname era de escala bem modesta se comparado com modelos agrícolas de outros territórios, mas a alta produtividade de seus produtos tropicais permitiu que os comerciantes holandeses oferecessem preços que tiravam o sono de seus concorrentes em qualquer lugar do mundo.

Ainda segundo esse autor, o modelo francês tentou a conquista do território da Guiana, uma parte da Amazônia em 1623, tendo como objetivo o estabelecimento de colonos europeus e a conversão dos selvagens. Para enfrentar a hostilidade dos nativos essa expedição com poucos homens limita-se a recolher o pau-brasil, fundam a cidade de São Luís de onde foram expulsos em 1615 pelas tropas portuguesas. Essa expedição composta por oitocentos colonos desembarca na Guiana e como os nobres senhores eram homens da Idade Média perdidos na mudança do Renascimento não era de se estranhar que tentassem repetir na selva tropical o velho modelo de sistema feudal já em ruínas na Europa.10

O autor também explicita que até mesmo antes de desembarcarem na Amazônia esses homens que viviam na ilusão de seus títulos e no delírio orgulhoso de seus poderes feudais, travaram grandes disputas entre eles nas quais aconteceram muitas mortes e em meio a essas disputas mortais os oitocentos homens se viram tratados quase como escravos e foram obrigados a praticar a pilhagem contra os índios. Em pouco tempo essa situação ficou insustentável e os índios começaram a se desesperar com os constantes ataques e maus-tratos praticados pelos franceses e decidiram atacá-los, massacrando-os. Com essa expedição malograda os franceses desistem de ocupar o vale do Amazonas e o território compreendido entre o Oiapoque e o Araguari. No entanto, a França será a única potência européia a manter um enclave colonial na Amazônia: a Guiana Francesa.11

Para Souza (2001) o período da colonização espanhola na Amazônia foi conturbado e heróico, mas muito breve. O estado absolutista tratou de estabelecer limites e a conter o ímpeto dos ousados e ambiciosos conquistadores. Barrados pelas muralhas andinas que dificultavam a penetração no vale amazônico, os espanhóis praticamente abandonaram a região após sucessivos malogros ocorridos ainda no século XVI. As dificuldades de sobrevivência na selva tropical e a forte resistência dos nativos impediram que se estabelecessem imediatamente. Essa colonização era baseada na fundação de cidades e toda a lógica colonial se centrava na disseminação destas, de onde irradiaria a administração e os negócios, pois os colonos espanhóis desejavam uma vida de classe abastada e urbana. Como essas cidades não podiam nascer sem uma base econômica, a colonização da Amazônia se tornou pouco atrativa, pois buscavam basicamente metais preciosos e desejavam enriquecer rapidamente.12

Sendo assim, somente aqueles dedicados à conquista espiritual persistiram na região. Mas deve-se esclarecer que em nenhum momento os missionários foram recebidos pacificamente, pois nesse período muitos padres foram mortos ou dizimados por enfermidades, milhares de índios sucumbiram a varíola, e no final do século VXIII dos aproximadamente dez mil índios que viviam ali no momento do contato com os europeus apenas quatro mil tinham sobrevivido.

Se pensarmos no processo de colonização como disputa de um território muito cobiçado podemos dizer, talvez, que essa epidemia pode ter sido trazida propositalmente pela necessidade da fácil conquista do território, pois de acordo com Souza (2001) para consolidar naquelas áreas assentamentos permanentes e militares exigiu-se o esforço conjunto dos grupos institucionais e segmentos da sociedade civil, mas o enclave militar de mineração não ajudou a expansão de seu domínio ao grande vale ficando aos missionários, especialmente jesuítas e franciscanos, a tarefa de avançar pelas selvas e rios imensos e o projeto colonial dos castelhanos iniciado no século XVI será de novo interrompido durante longos anos nessa área devido ao processo de crise progressiva em que entra o Estado colonial espanhol, uma crise que durou meio século e que os manteve nos contrafortes andinos.13

Nesse processo o modelo de colonização português foi o mais assertivo, pois adotou um sistema que tentava reduzir a Amazônia num mero prolongamento produtivo do Reino, construíram fortificações, povoaram vilas e cidades e procuraram forçar a adesão dos elementos nativos à ordem social da colônia. Os portugueses cuidavam para que sua experiência fosse profunda, certeira e irreversível e por isso fizeram o grande trabalho de aculturação da Amazônia pela colonização portuguesa que ainda hoje é um fenômeno expressivo e duradouro.14

O processo de aculturação seria a assimilação da cultura dos europeus no qual os índios se moldariam às necessidades da economia européia e o resultado desse esforço foi a destribalização dos grupos mais expostos, habitantes das margens do rio Amazonas e de seus afluentes próximos. Seria o início do processo de caboquização dos índios, quando foram retirados das mais diferentes culturas, modos de produção e reunidos nas vilas e aldeias espalhadas de maneira estratégica até surgirem como trabalhadores livres numa economia extrativa colonial. Discutindo essa questão, Márcio Souza afirma que:

Sendo o rio Negro uma das áreas mais densamente povoadas na época da colonização amazônica, a população indígena tornar-se-ia logo uma das maiores fontes de mão-de-obra para o colonizador. O braço indígena era largamente utilizado na exploração de produtos naturais – as drogas do sertão -, o que prejudicaria, naturalmente, suas atividades agrícolas de sustentação. Assim, a mão-de-obra caboca, que vai aparecer quase que simultaneamente com a independência, foi fruto dessa aculturação tão insistentemente forçada pelos portugueses durante duzentos anos.15

Considerando essa afirmativa é possível entendermos como os indígenas tornaram-se uma das maiores fontes de mão-de-obra e como o processo de aculturação prejudicou naturalmente suas milenares atividades agrícolas de sustentação. Assim sendo, os portugueses cuidaram de aplicar seu projeto colonial que era fazer viver o Novo Mundo sua própria linguagem em prol dos interesses da economia portuguesa.

De acordo com Souza (2001) entre 1700 e 1755, os portugueses encontraram grandes obstáculos na realização desse projeto, resolveram desistir de forçar a transformação dos índios em mão-de-obra para as plantações e estrategicamente deram prioridade à construção de uma rede de aldeamentos, quase todos voltados para a agricultura de sustentação utilizando a experiência milenar dos próprios índios como forma de amenização dessa resistência. Com essa estratégia dariam ênfase à conversão espiritual dos índios e os transformavam em “índios portugueses”, mas isso não quis dizer que a organização do trabalho seria esquecida. Nesse momento os missionários tomam o espaço do conquistador.

Outro aspecto importante do processo histórico da colonização amazônica segundo Márcio Souza foi o da lusitanização no qual todos os nomes indígenas de núcleos populacionais foram substituídos por nomes portugueses e na grande experiência do rio Negro foi ensaiada a primeira estrutura industrial com artífices, serraria e estaleiro, ensaio este, ocorrido na administração de Lobo D’Almada (1779). Foi um momento decisivo dessa experiência e sendo um governo da fase colonial avançada pôde regulamentar a mão-de-obra indígena já preparada pelos missionários e pela miscigenação. Lobo D’Almada tinha à mão os primeiros caboclos amazônicos, invólucro biológico que a miscigenação inventou para enfrentar a região considerada insalubre ao homem de raça branca.

Ainda segundo esse autor, para estimular o programa com essa mão-de-obra os administradores enfrentaram o paternalismo fechado dos missionários estabelecendo um modelo social que em relação ao extrativismo da borracha parece hoje curiosamente moderno e liberal. E o colono-chefe-militar vai se transformando num administrador sedentário obediente aos interesses fiscais da Coroa.16

Dessa forma, percebemos que em toda a Amazônia o espaço que se abre entre o colonizador e o colonizado é enorme, pois o último se encontra num mundo contraditório geralmente é um homem desfibrado e incoerente e sobre essa massa servil o patrimonialismo irá crescer e prosperar por uma geração inteira até sofrer a necessidade cada vez maior de o mercantilismo racionalizar seus meios de produção.

O colono advindo da miscigenação, isto é, os povos amazônicos envolvidos nessa transformação enleado pelo poder da Coroa nunca se sentirá capacitado no Amazonas a se emancipar como proprietário, como burguês, pois com a Revolução Industrial batendo a sua porta em busca de matéria-prima o colono voltar-se-à para a defesa de seus minúsculos interesses pecuniários legando a imagem do líder político regional típico, sem contextura ideológica firme, despido de espírito público, buscando a acomodação aos novos status mesmo à custa da perda e da degenerescência, sem marcar sua luta e jamais defendendo posições.

Para Márcio Souza (2001) o equilíbrio do mercantilismo na Amazônia dura o quanto pode, até que uma crise administrativa econômica se instala e faz recrudescer a velha diferença entre caboclos e brancos e leva a província à decadência, tudo isso desencorajava a produtividade e fomentava a inquietação. Daí a imitação das formas políticas das nações coloniais européias mescladas ao liberalismo democrático norte-americano como precisou o naturalista suíço Hans Bluntschili, na sua conferência em Frankfurt, “A Amazônia como organismo harmônico”, em 1918:

É um país maravilhoso e harmônico que se aprende a compreender pela inteligência e pelos sentidos. Com esta Amazônia (a dos índios e dos caboclos) combinam bem os rios grandes sem margens, as florestas silenciosas e não cruzadas por estradas, combinam bem o índio sério, mas fiel, com sua ubá e o seu arpão. Esta região possui raça e vida própria.

A outra Amazônia, com seus palacetes modernos nas grandes cidades, com suas mercadorias vistosas, mas sem valor e de um mau gosto, e as suas formas de governo importadas da Europa e que não evoluíram nas suas significações, correspondentes às condições regionais, mas que se baseiam em efeitos de pura vanglória, ficou estranha ao meu íntimo. Traços de uma adaptação às condições naturais podem se reconhecer, mas infelizmente são apenas início de um equilíbrio. Esta Amazônia quer ser uma filial da cultura da Europa, mas parece mais uma caricatura. É a Amazônia da cultura da cachaça e da folha de zinco, e a influência dela não pode conduzir nos trilhos escolhidos, à benção. 17

Nessa perspectiva é possível dizermos que o que restou dos traços naturais da superestrutura da região amazônica foram as vértebras culturais da colonização portuguesa fincadas profundamente na região aliviando a Amazônia de sua identidade pluricultural e afastando sabiamente a única força suficientemente poderosa dos nativos impondo o seu modelo de integração colonial. E tendo expropriado do índio certas técnicas indispensáveis para a vida na Amazônia ofereceram como herança a vergonha castradora que procura manter a região submetida a uma sociedade de caricatura.18

Bertha K. Becker 2007 diz que entre 1616 e 1777 enfeitou-se a apropriação lenta e gradativa do território estendendo a posse portuguesa para além da linha de Tordesilhas tendo como base econômica a exportação das “drogas do sertão”. O delineamento do que é hoje a Amazônia segundo essa pensadora, se fez somente entre 1850 e 1899 sob a preocupação imperial com a internacionalização da navegação do grande rio e o “boom” da borracha. Finalmente nesse período completa-se a formação territorial com a definição dos limites da região entre 1899 e 1930, em que se destacou o papel da diplomacia nas relações internacionais e do Exército no controle interno do território. Os surtos voltados para produtos extrativos de exportação, as estratégias de controle do território e os modelos de ocupação marcaram toda a formação territorial da Amazônia estando presentes até os dias atuais.19

Na última década do século XIX o coronel da borracha, ou seringalista, era o grande personagem da monocultura brasileira, o “ciclo da borracha”. Ele era o patrão, o dono e senhor absoluto de seus domínios, do outro lado, está o sofrido seringueiro maltratado pelo egoísmo dos coronéis que enriqueceram com a extração do látex. Em discussão Souza diz:

O seringueiro, retirante nordestino que fugia da seca e da miséria, era uma espécie de assalariado de um sistema absurdo. Era aparentemente livre, mas a estrutura concentrada do seringal o levava a se tornar um escravo econômico e moral do patrão. Endividado não podia mais escapar, se tentava a fuga, isso podia significar a morte ou castigos corporais rigorosos. Definhava no isolamento, degradava-se como ser humano, era mais um vegetal do extrativismo do que um homem.20

Segundo Souza (2001) em meados do século XIX, depois do pesadelo vivido, os habitantes da Amazônia recebem o indicativo de um novo tempo, tempo de estabilidade política e progresso econômico, era como respirar sossegado. Os dois indicadores desse novo tempo foram a criação da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas sob a iniciativa do Barão de Mauá e o decreto imperial de 1867 que abriu o rio Amazonas ao comércio de todas as nações.21

Para esse autor, o cosmopolitismo do “ciclo da borracha”, face e sinal de uma triste alienação parece algo forçado, produto de um salto brusco. A Amazônia na historiografia esquemática que se escreve sobre ela parece ter experimentado um vigor inesperado que a retirou do silencioso passado colonial com suas vilas de poucas casas, para um ritmo trepidante e voraz. Uma nova psicologia obrigava as elites a não mais se satisfazerem com a vida pacata e provinciana, pois o comércio da borracha proporcionara inquietudes inéditas e esse rico leite vegetal embalado pela ideologia dos poderosos mostra-se inesgotável.22

Depois desse ciclo a face da Amazônia brasileira se transformou completamente. A economia do látex quebrou o isolamento e buscou integrar a região ao mercado internacional e um dos principais fatores desta transformação foi a mudança do perfil populacional provocada pelas inúmeras levas de imigrantes que chegaram atraídos pelas riquezas do látex e pela necessidade de mão-de-obra. Foi quando também em 1870 a borracha começou a dar sinal de valorização e a Amazônia que era quase um deserto demográfico foi povoada por nordestinos, principalmente do Estado do Ceará, que trouxeram consigo a tenacidade e a capacidade de sobrevivência, mesclaram-se com as populações tradicionais e enriqueceram a cultura regional.

Além da constante e ininterrupta imigração portuguesa, há que salientar a presença de outros grupos étnicos que também contribuíram para a formação da Amazônia moderna como o dos italianos oriundos em sua grande maioria de cidades e vilas do sul da Itália, especialmente das cidades empobrecidas. Estes se destacaram na Amazônia nos campos da educação, arquitetura, música, comércio e indústria juntamente com os espanhóis dos primeiros movimentos operários organizados.23

De acordo com Souza (2001) os projetos econômicos de 1964 e a abertura de faixas de terra para a colonização, levas de trabalhadores sem terra entraram na Amazônia brasileira trazendo seus costumes e tradições. Todos esses contingentes humanos tangidos pela miséria e armados do desejo de sobreviver vieram reconstruir suas vidas atribuladas, alguns lograram sucesso numa prova de que a Amazônia é um território de esperanças. Isso nos faz perceber o desenvolvimento de uma cultura dos velhos tempos lusitanos com um novo conjunto de influências importadas como item de consumo, criando estranhas justaposições.24

Afinal, um ponto comum na história cultural das Américas é a diversidade de relações que pode ser encontrada sob o significado geral que se denomina experiência colonial, da qual a Amazônia não foge à regra e seus outros culturalmente dominados. Para termos uma compreensão qualitativa dessas formas culturais podemos nos servir dos relatos etnográficos, textos científicos, discursos políticos, romances, poesias, arquitetura e da organização urbana.

Desse modo, vemos que muito mais do que gestos desesperados dos conquistadores ou a tenacidade dos colonos, foi através das formas culturais que o imaginário do Ocidente se convenceu da existência de um território chamado Amazônia legitimando-se a uma possessão geográfica com imagens surpreendentes de submissão e essência européia redentora.

Considerando a historiografia da Amazônia vemos o deslumbramento que ela pode nos causar, seja de forma positiva ou negativa, como podemos ver no discurso de Euclides da Cunha posto no trecho abaixo:

Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que sobressalteia geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do Dédalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento. A massa de águas é, certo, sem par, capaz daquele terror que se refere Wallace; mas como todos nós desde mui cedo gizamos um Amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não sei quantos viajantes que desde Humboldt até hoje contemplaram a Hylae prodigiosa, com um espanto quase religioso – sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada. Além disto, sob o conceito estritamente artístico, isto é, como um trecho da terra desabrochando em imagens capazes de se fundirem harmoniosamente na síntese de uma impressão empolgante, é de todo em todo inferior a um sem-número de outros lugares do nosso país. 25

Nesse discurso, podemos dizer que a impressão do autor sobre a Amazônia é de uma selva propícia apenas para os nativos, uma terra selvagem que sempre teve o dom de impressionar a civilização distante, e estar por sua vez, a considerar os povos amazônicos incultos, sem força e sem liderança.

Em contrapartida a esse ponto de vista temos o discurso de Ana Pizarro que vê a Amazônia como uma construção discursiva26, pois é construída a partir de uma diversidade complexa tanto sob o olhar interior como do exterior e toda sua história se constrói em diferentes momentos, por isso a existência de diferentes discursos sobre ela, uma vez que antes da chegada dos europeus já existiam os povos daqui e com a chegada dos mesmos o discurso se modificou e criou-se esse imaginário exuberante, uma imagem paradoxal de inferno e paraíso.

Outro ponto de vista é construído por Milton Hatoum que lança sobre a Amazônia um olhar na perspectiva da heterogeneidade e diz que por menor que seja um território, existirá nele uma pluralidade de culturas, uma vez que os próprios índios já não falavam a mesma língua e com a imigração a Amazônia brasileira tornou-se uma terra sem fronteiras fixas, terra esta em que culturas se interpenetram construindo uma identidade oscilante.

Considerando esse ponto de vista compreendemos que os discursos sobre a Amazônia brasileira se construíram a partir de diferentes olhares, e é válido dizer ainda que a releitura de sua historiografia nos proporciona um olhar a partir do qual podemos ser capazes de aceitar e entender a alteridade e nos construirmos a partir dela.

4. AUTOR E OBRA

Para discutirmos os diferentes olhares sobre a construção da identidade cultural na Amazônia brasileira tomamos para análise os contos Judas-Asveros de Euclides da Cunha, escritor nascido em Cantagalo (RJ), no dia 20 de janeiro de 1866, foi professor, sociólogo, repórter jornalístico, engenheiro, tornou-se famoso por sua obra-prima Os Sertões que retrata a Guerra de Canudos. O Tapará de Alberto Rangel, escritor nascido em Recife em 29 de maio de 1871 e falecido em Nova Friburgo no dia 14 de dezembro de 1945. Suas principais obras foram Opúsculo (Rio de Janeiro, 1900); Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas, com prefácio de Euclides da Cunha (Rio de Janeiro, 1908), entre outras. Um oriental na vastidão de Milton Hatoum, escritor nascido em Manaus em 19 de agosto de 1952. É um escritor, tradutor e professor brasileiro. Hatoum é considerado um dos grandes escritores vivos do Brasil. Descendente de libaneses, ensinou literatura na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e na Universidade da Califórnia em Berkeley. Escreveu quatro romances: Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte (esse último vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura e os três primeiros ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor romance) e Órfãos do Eldorado e ainda sua coletânea de contos Cidade Ilhada em 2009.

Para Euclides da Cunha a Amazônia é concebida como terra sem história, aqui a natureza é “portentosa”, o clima é dotado de uma função superior, é preparada para os fortes e perseverantes. É uma terra destruidora onde o caos, a desordem e a inconstância são fatores de degradação humana, por isso seria propícia apenas para o nativo, outro, não seria capaz de sobreviver numa terra brutal adversária do homem, pois para ocupar e povoá-la era preciso antes domá-la.

Para esse autor, os povos amazônicos eram estereótipos construídos pelos jesuítas e viajantes na época da colonização européia, povos fracos, sem conhecimento, incapazes de emanciparem-se socialmente e muito menos aptos a desempenhar função relevante no papel civilizador da Amazônia. Essa visão positivista de Euclides da Cunha sobre os povos amazônicos é visível em À margem da história. Em Judas-Asvero, o autor apresenta a revolta dos seringueiros, não tomando como alvo o seringalista, mas voltando-se contra si mesmos.

Em poucas páginas e de maneira sutil, Euclides da Cunha descreve a tarefa de um seringueiro em preparar um Judas para ser malhado no sábado de aleluia. Euclides compõe um jogo de imagens tocantes entre o seringueiro e o boneco: o judeu errante, o amaldiçoado seringueiro.

O motivo que enseja o conto é uma revolta dos seringueiros construindo no sábado de aleluia um Judas à sua própria imagem para depois destruí-lo. Existência imóvel, feita de idênticos dias de penúria, os meios- jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável sexta-feira da paixão a estirar-se, angustiosamente, indefinida pelo ano todo afora. Apesar disso, não se revoltam ante o desamparo por deus, não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, sem representar uma indignação direta contra o seringalista, no conto detém-se em uma revolta interiorizada, em uma autopunição. Só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo como escravo aos traficantes impunes que o iludem e este pecado é o seu próprio castigo transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. Ao mesmo tempo em que o Judas representa o sofrimento do seringueiro acarretando piedade por sua condição, é também uma figura que desperta medo e à medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror: as aves retransidas de medo acolhem-se mudas ao recesso das frondes, os pesados anfíbios mergulham cautos nas profundezas apavorados com aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se, lutuosamente, pela superfície do rio”; os homens correm às armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o “pelo sinal’ e apertando os gatilhos, alvejam-no desapiedadamente. A imagem final do conto, os Judas–espantalhos vão descendo o rio juntando-se num festival fantasmagórico, metaforiza a condição dos seringueiros recrutados, embarcados e despejados ao longo dos rios onde se instalam os seringais como confirma o seguinte trecho:

E vai descendo, descendo... por fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspeito e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam, ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores balaços, atrapalhadamente, como ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores,amaldiçoados, outros humílimos, acurvados num acabrunhamento profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados... 27

O olhar de Euclides da Cunha sobre a Amazônia brasileira sugere uma terra destruidora na qual o homem é incapaz de domá-la. Um lugar onde o próprio brasileiro se torna estrangeiro refém de sua própria ganância. Essa impressão dominante torna-se talvez, uma verdade positiva, que o homem aqui seja ainda um intruso impertinente que chegou sem ser esperado nem querido, num momento em que a natureza ainda estava se arrumando e que depois de uma única enchente se desmancham as formações feitas por ela mesma.

Para esse autor aqui a natureza é maravilhosa, mas incompleta. É uma construção estupenda a que falta toda a decoração interior. Tem tudo e falta-lhe tudo e nem mesmo a literatura científica amazônica dá conta de explicar a existência dessa grandiosidade desconexa onde falta o encadeamento dos fenômenos, por isso a lógica inconsciente da existência das coisas e as verdades que se desfecham em hipérboles. Segundo o próprio Euclides da Cunha:

Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro: e está pisando terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes a extraterritorialidade, que é a pátria sem terra, contrapõe-se uma outra, rudemente física: a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso de uma espécie de imigração telúrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas tão remotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um território em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores, num desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que atravessa.28

Na literatura de Euclides da Cunha a Amazônia brasileira se mostra num pensamento positivista, uma Amazônia selvagem que sempre teve o dom de impressionar a civilização distante. Tudo aqui é vacilante, efêmero, onde as próprias cidades são errantes como os homens que entram pelas portas que os levam ao paraíso diabólico dos seringais, onde o aguarda a mais criminosa organização do trabalho na qual o homem trabalha para escravizar-se, pois ao entrar nesse mundo incentivado pela cobiça não tem consciência e se autopunirá por todos os dias, como disse o autor, numa interminável sexta-feira da paixão.

De acordo com Euclides da Cunha o seringueiro, à semelhança dos índios, é o homem que trabalha para escravizar-se. Mas não é um nômade. Nas “estradas” do seringal onde há uma grande concentração de Hevea brasiliensis, o sertanejo passa a vida como um “expatriado de sua própria pátria”29. É sobretudo desse seringueiro-sertanejo, deslocado dos sertões do Nordeste para a Amazônia brasileira que Euclides trata em Judas-Asvero.

A arte do seringueiro espelha na expressão do rosto de pano a dor e o desespero de quem o esculpiu como se a escultura fosse um duplo monstruoso do homem desvalido, pois ao ponto que este acentua no rosto esculpido as linhas mais vivas e cruéis, cria também uma máscara cuja expressão de tortura reflete a tragédia do homem. O seringueiro molda o Judas à sua imagem e a errância desse seringueiro-migrante acaba na via dolorosa inalterável sem princípio e sem fim, num círculo fechado.

Em O Tapará de Alberto Rangel a natureza ocupa o lugar central das representações no qual somente a linguagem altamente rebuscada poderia dar conta de abarcar a magnitude da floresta e dos rios. Além disso, estão associadas a essas representações as ideias sobre as pessoas que habitam esse meio. Em detrimento da exatidão do olhar científico, Alberto Rangel contemplaria numa só mirada o complexo amazônico. Num trecho exemplar sobre o antagonismo entre a síntese artística e a análise científica, no prefácio sobre Rangel e sua obra, Euclides da Cunha reflete:

Um sábio no-la desvendaria, sem que nos sobressaltássemos, conduzindo-nos pelos infinitos degraus, amortecedores, das análises cautelosas. O artista atinge-a de um salto; adivinha-a; contempla-a d’alto; tira-lhe, de golpe, os véus; desvendando-no-la na esplêndida nudez da sua virgindade portentosa.30

O interesse de Euclides da Cunha por diversos aspectos da região amazônica corresponde à perspectiva geográfica que sempre acompanhou seguramente a espinha dorsal de sua obra verificável no conhecido binômio que sempre ocupou suas reflexões: o homem e a terra, por isso seu prefácio nos induz a fazer uma leitura dos contos de Alberto Rangel como faríamos dos seus, nos quais a Amazônia se torna incompreensível e autodestruidora. Aqui a terra é a terra moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo, como afirma no seguinte trecho:

E, ainda sob o aspecto secamente topográfico, não há como fixá-la em linhas definitivas. De seis em seis meses, cada enchente, que passa, é uma esponja molhada sobre um desenho mal feito: apaga, modifica ou transforma os traços mais salientes e firmes, como se no quadro de suas planuras desmedidas andasse o pincel irrequieto de um sobre-humano artista incontentável...31

Ainda em seu prefácio sobre a vida e obra de Alberto Rangel, Euclides da Cunha busca equilibrar ciência e arte em vista talvez, de algo como uma “arte-ciência”. Para ele, nem a ciência com seu discurso técnico e sua compreensão fundamentalmente analítica, nem a arte de postura idealizadora com seus temas deslocados das periferias dariam conta da realidade. Sobre Rangel efetuar uma conciliação entre arte e ciência ele afirma positivamente que o “sonhador norteou sua marcha, balizando-a pelos rumos de uma bússola. E seus poemas bravios se escreveram nas derradeiras páginas das cadernetas dos levantamentos ”32. Diz Euclides da Cunha:

Nas ciências, mercê de seus reflexos filosóficos superiores estabelecendo a solidariedade e harmonia universais do espírito humano, compreende-se que nos dobremos a todos os influxos estranhos.

Mas mestre nenhum, além de nossas fronteiras, nos alentará a impressão artística, ou poderá sequer interpretá-la. A frase impecável de Renan, que esculpiu a face convulsiva do gnóstico, não nos desenharia o caucheiro; a concisão lapidária de Herculano depereceria inexpressiva, na desordem majestosa do Amazonas.33

Refletindo sobre essa ideia, percebemos que sob o olhar estrangeiro somos um povo que absorvemos a cultura e o modo de pensar do estrangeiro e esquecemo-nos de nossa própria cultura. Tais infiltrações são perceptíveis justamente naquilo que Rangel parece ter de mais tradicional: a exaustiva descrição do espaço natural e próximo a isso ou decorrente disso, a inserção do ser humano neste ambiente.

O Tapará, conto que abre o livro, por exemplo, traz uma extensa descrição do caminho que leva ao lago que dá nome ao conto numa verdadeira viagem paisagística. Como se trata da época de uma grave estiagem, a narrativa inicialmente se concentra no cenário natural desolado em que o canal que leva ao lago tornou-se um triste filete d’água onde abunda matéria orgânica pútrida. O narrador percorre lentamente o caminho e essa lentidão é perceptível, num certo nível, pela dificuldade de locomoção, mas no plano da engenharia narrativa essa apreensão se dá muito mais pelo esforço em abarcar descritivamente a paisagem, as lentas ações dos seres naturais, sem falar nas extensas reflexões do narrador sobre o ambiente. Essas digressões colocam Alberto Rangel alinhado com a tradição que se tinha até aquele momento no que se refere às narrativas sobre a Amazônia, cuja detida e demorada anotação dos caracteres naturais do ambiente é uma das mais fortes marcas.

Essa descrição do ambiente amazônico e inserção do homem nesse meio podem ser observadas no decorrer de todo o conto como vemos no trecho a seguir:

A floresta, afogada na cheia, é mais própria para o nativo. No dilúvio amazônico, o homem trocaria bem os seus pulmões por guelras. Tudo lhe é acessível quando n’água. A solidão do centro, quando a rede gangliforme dos lagos se liga a rede arterial das correntes, não tem segredos. O caboclo vara, some-se numa segurança de caminheiro por vias topografadas, e vai até onde o tino tranqüilo lhe indica o fácil pescado. Assim só para ele não há mistério nesse sertão.

Mas também com o termino da enchente, o homem está ilhado, ou pior, emparedado. Baixando a água, baixa-lhe a capacidade de andejo. [...] A trilha pela mata é custosa de reconhecer [...] Aliás não valeria a pena traçar mais viva a estrada: seria sempre como riscada a giz, a esponja da enchente apagá-la-ia.34

Nesse contexto a Amazônia seria propícia apenas para o nativo, pois o próprio a desconhece em certos momentos, nesse ambiente os animais morrem na cruel densidade da floresta amazônica e o homem sofre a punição pela curiosidade exploradora ambiciosa.

Diante dessa discussão, vemos que tanto o discurso de Euclides da Cunha quanto o de Alberto Rangel sobre a Amazônia são discursos positivistas, um olhar que denuncia a incapacidade dos povos amazônicos de emancipar-se e estar à frente de uma civilização da “alta” cultura e se encontram num estágio pronto para absorver a cultura do estrangeiro sem reconhecer-se na sua própria cultura.

Em contrapartida a esses discursos temos o olhar de Milton Hatoum que fala de uma Amazônia de muitas culturas, um lugar que tem história com suas relações de identidade e é sob essa perspectiva que suas narrativas se constroem. O autor utiliza como cenário a cidade de Manaus, personagens imigrantes e nativos para explicitar a condição de sujeitos sem uma identidade fechada e essencializada e portos flutuantes que nos sugere a ideia de transição.

Para Hatoum a Amazônia brasileira não tem fronteiras, sim uma delimitação que não passa de imaginária, pois desde o início da colonização nesse horizonte vastíssimo interpenetram-se línguas portuguesas e espanholas e até mesmo as nações indígenas são bilíngues.

Em uma entrevista Hatoum fala de uma experiência pessoal. De uma dupla viagem, sendo a primeira imaginária, em que o viajante durante a sua infância imagina mundos distantes, e a segunda, uma viagem real na qual o autor se desloca da periferia para vários centros (o centro é sempre plural) com o desejo de deixar a margem e navegar no rio de outra cultura ou sociedade.

Na sua infância a convivência com o Outro exterior aconteceu na própria casa paterna, pois é filho de um imigrante oriental com uma brasileira de origem também oriental e por isso pôde descobrir ainda criança, os outros em si mesmo, e parafraseia Todorov: “Uma pessoa pode dar-se conta de que não é uma substância homogênea e radicalmente estrangeira a tudo que não é ela própria”.35

Essa experiência possibilitou a elaboração de narrativas que apresentam uma diversidade cultural perceptível na trajetória dos próprios personagens evidenciando uma Amazônia brasileira heterogênea na qual as identidades se constroem por meio da diferença.

Em Um oriental na vastidão Hatoum narra a viagem de um japonês, Kazuki Kurokawa, um biólogo de água doce e professor aposentado da Universidade de Tóquio. Era um homem que trazia em si um sonho de infância: viajar pelo rio Negro. Uma viagem de reconhecimento porque já conhecia o Amazonas a partir de outros pesquisadores. A sua profissão lhe dera a oportunidade de viajar por terras distantes e o desejo de conhecer o maior afluente do Amazonas. Deslocado em Manaus, antes de embarcar para o passeio foi até o mercado municipal só para dar uma olhada nos peixes e nas pessoas. Durante o passeio parecia que o japonês conhecia a região muito mais que os próprios moradores. Ao voltarem, o oriental alugou o barco para fazer uma viagem sozinho. Depois de quatro anos, a pesquisadora que levou Kurokawa para o passeio voltou a saber do biólogo quando encontrou-se com o cônsul e seu secretário que vieram a pedido do governo japonês derramar as cinzas de Kazuki Kurokawa nas águas calmas de um remanso no rio Negro.

Nesse conto Hatoum utiliza-se de personagens que apresentam culturas diferentes, mas que dialogam entre si, sem negação e essa aceitação evidencia que as culturas estão sempre se entrelaçando num constante movimento que traduz uma construção de identidade instável, problemática e provisória.

A Manaus portuária utilizada como cenário para as narrativas de Hatoum sugere movimento nos processos de construção das identidades. Nessas narrativas nada é fixo, nada para, é um movimento constante onde as fronteiras se enunciam e nos interstícios dessas enunciações algo começa a se fazer presente, a tradução cultural.

Para Hatoum, a Amazônia brasileira é compreendida como um lugar no qual a cultura é heterogênea, híbrida, pluricultural, lugar habitado por pessoas de vários tipos, com problemas diversos, cultura complexa, pessoas que vivem num processo contínuo de tradução cultural. Por isso, para ele a Amazônia não é apenas indígena, mas heterogênea, marcada sempre pela pluralidade cultural.

5. CULTURAS E IDENTIDADES: abordagens teóricas e conceituais.

5.1. Cultura

Segundo Tylor citado por Laraia (2006), no final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture que “tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”36. Com esta definição Edward Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata transmitida por mecanismos biológicos.

O conceito de cultura pelo menos como utilizado atualmente, foi definido pela primeira vez por Edward Tylor. Pode se dizer que ele formalizou a ideia que vinha crescendo na mente humana. A ideia de cultura, com efeito, estava ganhando consistência talvez mesmo antes de John Locke (1632-1704) que, em 1690, ao escrever Ensaio acerca do entendimento humano, procurou demonstrar que a mente humana não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do nascimento, dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento através de um processo chamado de endoculturação.

Segundo Laraia (2006), John Locke refutou fortemente as ideias correntes na época de princípios ou verdades inatas impressos hereditariamente na mente humana, ao mesmo tempo em que ensaiou os primeiros passos do relativismo cultural, ao afirmar que os homens têm princípios práticos opostos, pois segundo ele, quem investigar cuidadosamente a história da humanidade, examinar por toda a parte as várias tribos de homens e com indiferença observar as suas ações, será capaz de convencer-se, de que raramente há princípios de moralidade para ser designado, ou regra de virtude para ser considerada que não seja, em alguma parte ou outra, menosprezado e condenado por opiniões práticas e regras de condutas bem contrárias umas as outras.

Com referência a John Locke, o antropólogo americano Marvin Harris (1969), afirma que “Nenhuma ordem social é baseada em verdades inatas, uma mudança no ambiente resulta numa mudança no comportamento”.37 Meio século depois, Jacques Turgot (1727-1781), ao escrever seu Plano para dois discursos sobre história universal, afirmou:

Possuidor de um tesouro de signos que tem a faculdade de multiplicar infinitamente, o homem é capaz de assegurar a retenção de suas ideias eruditas, comunicá-las para outros homens e transmiti-la para seus descendentes como uma herança sempre crescente.38

A primeira definição de cultura, como vimos, foi formulada do ponto de vista antropológico e pertence a Edward Tylor que demonstrou que cultura pode ser objeto de um estudo sistemático, pois se trata de um fenômeno natural que possui causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e a evolução.

Ainda segundo Tylor apud Laraia (2006), por um lado a uniformidade que tão largamente permeia entre as civilizações pode ser atribuída, em grande parte, a uma uniformidade de ação de causas uniformes, enquanto por outro lado, seus vários graus podem ser considerados como estágios de desenvolvimento.39

Mais do que preocupado com a diversidade cultural, Tylor a seu modo preocupa-se com a igualdade existente na humanidade. A diversidade é explicada por ele como o resultado da desigualdade de estágios existentes no processo da evolução. Assim, uma das tarefas da antropologia seria a de estabelecer, grosso modo, uma escala de civilização, simplesmente colocando as nações européias em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens, dispondo o resto da humanidade entre dois limites.

Mercier citado por Laraia (2006) mostra que Tylor pensava as instituições humanas tão distintamente estratificadas quanto a terra a qual o homem vive. Elas se sucedem em séries substancialmente uniformes por todo o globo independentemente de raça e linguagem, diferenças essas que são comparativamente superficiais, mas moduladas por uma natureza humana semelhante atuando através das condições sucessivamente mutáveis da vida selvagem, bárbara e civilizada.

Essa visão de Tylor é criticada por Stocking (1968) por deixar de lado toda a questão do relativismo cultural, pois segundo ele, a ideia de relativismo cultural está implicitamente associada à de evolução multilinear, isto quer dizer que a unidade humana, por mais paradoxal que possa parecer tal afirmação não pode ser explicada senão em termos de sua diversidade cultural.

A palavra cultura traz em si uma raiz latina, vem do verbo colo, que significava “cultivar a terra”. No caso de Roma, como se tratava de uma civilização de raízes agrárias, os termos que se referiam à cultura intelectual avançada ficaram ligados, ainda, a toda a metaforização, a todo um imaginário da terra. Diferentemente dos gregos, cuja palavra que mais se aproxima de cultura é Paidéia, ou seja, aquilo que se ensina à criança. Paidós, pedagogia, pedagogo, isto é, de criança, está voltado para a criança, para a alma da criança que deve ser trabalhada até transformar-se em adulto, o que nos parece um conceito mais humanizante.

No caso dos romanos é prático, refere-se a alguma coisa que se trabalha fora de nós, a terra. É o cultivo do solo (colo), do qual saem as formas participiais do passado (cultus) e do futuro (culturus = aquilo que se vai cultivar). Daí, as três dimensões (1) cultivo; (2) culto; (3) cultura. No espírito da língua romana, a cultura está ligada a um trabalho duro de conquista à natureza, às vezes brutal porque a sua primeira fase consiste no domínio da terra. Pode-se dizer hoje que se trata de uma visão um tanto “repressiva” da cultura, pela qual a natureza tem que ser domada, domesticada, assim como “educação” quer dizer “ato de puxar para cima o que está lá embaixo”, ou seja, fazer um esforço de arrancar dos instintos uma força que produza algo de mais alto.

Mas qualquer consideração que se faça implica, no fundo, a ideia de trabalho: quer na linha grega, que nos é hoje a mais simpática, pois liga cultura com criança, com pessoa, quer do ponto de vista romano, em que a cultura é comparada à ação de limpar a terra, depois semear, regar, podar, principalmente podar. Se a gente deixa os galhos, a planta não dá frutos, fica uma coisa selvagem espinhosa, por isso é preciso podar, cortar para sobrarem os troncos e algumas varas mestras de onde vão sair as folhas, as flores e os frutos. Mas tanto um conceito quanto o outro, trazem em si a ideia de processo: a cultura é sempre um resultado que se conquista. Como já disse Stuart Hall (2003):

A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma “arqueologia”. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.40

Nessa perspectiva, segundo Stuart Hall (2003) a globalização em sua forma atual, desassossegada e enfática, vem ativamente desenredando e subvertendo cada vez mais seus próprios modelos culturais herdados essencializantes e homogeneizantes, desfazendo os limites e nesse processo, elucidando as trevas do próprio Iluminismo ocidental, as identidades concebidas como estabelecidas e estáveis, estão naufragando nos rochedos de uma diferenciação que prolifera. Por todo o globo os processos das chamadas migrações livres e forçadas estão mudando de composição, isto é, estão diversificando as culturas e pluralizando as identidades culturais.41

De fato, ainda há nas formas contemporâneas de globalização, forças dominantes de homogeneização cultural, mas bem junto a isso estão os processos que vagarosa e sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais levando a uma disseminação da diferença cultural em todo o globo. Essas outras tendências que buscam pensar a cultura como algo em construção ainda não tem o poder de confrontar e repelir as anteriores, mas tem a capacidade, em todo lugar, de subverter e traduzir, negociar e fazer com que se assimile o assalto cultural global sobre as culturas mais fracas. E já que o novo mercado consumidor depende precisamente de sua assimilação para ser eficaz, há certa vantagem naquilo que pode parecer a princípio como meramente local. Hoje em dia o meramente local e o global estão atacados um ao outro, pois cada um é a condição de existência do outro.

Se pensarmos a cultura como ação e trabalho, do ponto de vista ideológico, passamos a dar importância aos momentos do processo produtivo, pois é a produção enquanto arte que torna o homem culto e não o consumo de bens simbólicos que naturalmente fará parte do processo, mas não como absoluto. Do ponto de vista educacional mais universal, em vez de pensarmos em vender mercadorias devemos pensar em estudar e realizar obras que significa exatamente trabalho enquanto processo e resultado. Sendo assim, não se tratará mais de um problema de classe, o ser humano será culto se trabalhar; e é a partir do trabalho que se formará a cultura.

5.2. Identidade

Segundo Stuart Hall (1997), a questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social porque as velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo social estão em declínio fazendo surgir novas identidades e fragmentando os indivíduos que interagem nesse meio, até então vistos como sujeitos unificados. Assim a chamada “crise de identidade”42 é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.

Segundo esse pensador a transformação das sociedades modernas no final do século XX está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado nos tinha fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais e tais transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados socialmente.43

Zilá Bernd (2003) diz que a identidade é um conceito operatório de larga utilização em ciências humanas, sobretudo a partir dos anos 60, quando se passa do conceito de identidade individual ao de identidade cultural. Segundo ela, o conceito de identidade torna-se recorrente no domínio dos estudos literários a partir do momento em que as literaturas minorizadas no interior dos campos literários hegemônicos recusam a classificação de literaturas periféricas, conexas e marginais e reivindicam um estatuto autônomo no interior do campo instituído.44

Ainda segundo essa autora, construindo-se como um desafio à instituição literária, as literaturas emergentes, como por exemplo, as jovens nações africanas, às vezes ainda próximas do seu passado colonial estão destinadas a desempenhar um papel fundamental na elaboração da consciência nacional. Igualmente, as literaturas dos grupos discriminados, negros, mulheres, homossexuais, funcionam como o elemento que vem preencher os vazios da memória coletiva e fornecer os pontos de ancoramento do sentimento de identidade, essencial ao ato de auto-afirmação das comunidades ameaçadas pelo rolo compressor da assimilação.45

Nessa discussão a autora evidencia a busca do indivíduo pela reapropriação da reconstrução de uma identidade ligada ao resgate das formas onde subsistem as culturas de resistência, matéria-prima da identidade cultural. Nessa perspectiva, devemos pensar na identidade como um conceito que não pode afastar-se do de alteridade: a identidade que nega o outro permanece no mesmo, pois é impossível conceber o ser fora das relações que o ligam ao outro.

Segundo Hall (1997), esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade”.46 A identidade somente se torna uma questão quando está em crise e quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza.

De acordo com esse autor, para entendermos o processo de construção da identidade, precisamos antes compreender algumas concepções sobre ela. A de sujeito do Iluminismo, que estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo, contínuo ou idêntico ao longo de sua existência. A de sujeito sociólogico, que refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura - dos mundos que ele habitava.

Nesta concepção a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas é formado e modificado num diálogo contínuo, com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem, preenchendo o espaço entre o interior e o exterior. O fato de que projetamos a nós próprios nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os parte de nós, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo cultural e social. Nessa perspectiva a identidade costura o sujeito à estrutura, estabiliza tanto o sujeito quanto os mundos culturais que ele habita, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.

Entretanto, para Hall, são exatamente essas coisas que estão mudando. O sujeito previamente vivido numa identidade unificada e estável está se tornando fragmentado, composto não de uma, mas de várias identidades, algumas vezes, contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as necessidades objetivas da cultura, estão entrando em colapso como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, sem identidade fixa, essencial ou permanente. Para esta concepção, a identidade torna-se móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.47 A identidade nessa concepção é definida historicamente e não biologicamente.

Desse modo é possível dizermos que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias empurrando em diferentes direções, de tal modo, que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Considerando essa perspectiva, devemos ter consciência de que a identidade plenamente unificada, completa e segura, é pura fantasia.

5.3. Para entendermos a construção da identidade cultural

Para compreendermos a questão da construção da identidade cultural, estamos nos orientando nos princípios dos Estudos Culturais que surgiram de insatisfações dos estudos disciplinares, que não estavam mais dando conta de explicar os conceitos de cultura.

De acordo com Tomaz Tadeu da Silva (2006), para definir o que são Estudos Culturais há diversos pontos de partida. Segundo ele, os Estudos Culturais podem ser definidos como uma tradição intelectual e política, ou em suas relações com as disciplinas acadêmicas, ou em termos de paradigmas teóricos, ou ainda, por seus objetos característicos de estudos, sendo o último o que mais interessa para ele. Como pode ser reafirmado abaixo:

Para mim, boa parte das fortes continuidades da tradição dos Estudos Culturais está contida no termo singular “cultura”, que continua útil não como uma categoria rigorosa, mas como uma espécie de síntese de uma história. Ele tem como referência, em particular, o esforço para retirar o estudo da cultura do domínio pouco igualitário e democrático das formas de julgamento e avaliação que, plantadas no terreno da “alta” cultura, lançam um olhar de condescendência para a não-cultura de massas.48

Maria Elisa Cevasco (2003) em suas discussões sobre Estudos Culturais cita Raymund Williams, a maior referência teórica nos tempos de consolidação da disciplina e seu pensador mais consistente e original pensava os estudos culturais como uma prática localizada em um determinado campo de forças sociais. Stuart Hall refletindo os novos tempos de academização – o momento em que os Estudos Culturais deixam sua localização inicial no ensino democrático para adultos e se transformam de vez em disciplina universitária, fala de paradigmas. Dois destes paradigmas norteiam os Estudos Culturais: o culturalista e o estruturalista. A nomeação não deve esconder as divergências no interior de uma mesma posição. O primeiro é representado pelos fundadores que vêem a cultura como um todo social, um instrumento de descoberta, interpretação e luta social. Os estruturalistas buscavam na cultura a manifestação de dados estruturais de uma sociedade.49 Como explica Thompson apud Cevasco (2003):

A sociedade capitalista foi fundada sobre formas de exploração que são ao mesmo tempo econômicas, morais e culturais. Se tomarmos a relação produtiva definidora [do sistema] e (...) a observarmos de vários ângulos, ela se revelará cada hora em um aspecto, uma vez em um (o do trabalho assalariado), outra vez em outro (o do ethos aquisitivo), ainda outra vez em outro (a alienação do trabalhador das faculdades intelectuais que não são necessárias para o seu papel de produtor)...50

Para compreendermos melhor essa posição temos como referência o discurso de Lousis Althusser e Stuart Hall apud Maria Elisa Cevasco (2003). O primeiro diz que os seres humanos não são nem autores nem sujeitos de processos sociais, mas efeitos ou sintomas de hierarquias estruturais. Assim, podemos dizer que são as ideologias que formam as estruturas sociais, colocando cada estrutura em seu lugar de representação, pois segundo ele, “As pessoas definitivamente representam não a relação entre elas e suas condições reais de existência, mas o modo como vivem essa relação, o que pressupõe tanto uma relação real como uma relação vivida, imaginária”.51 O segundo diz que “a experiência se dava no terreno vivido, a partir do qual a consciência e as condições se intersectam, e onde na cultura e na linguagem o ser humano “era falado” pelas categorias da cultura pelas quais pensava, em vez de falá-las.”52

Para Cevasco (2003), a posição teórica de Althusser baseada no estruturalismo, considera que a cultura não é nem uma prática em que os seres humanos criam seus significados e valores e nem um domínio em que são treinados nos significados existentes.53 Para ele, a cultura é uma ideologia localizada em outras estruturas e essa ideologia está incrustada em instituições, cuja função é a reprodução das relações de produção, ou seja, desse ponto de vista, a cultura constituiria indivíduos concretos em sujeitos sem possibilidade de escapatórias.

Ainda segundo essa pesquisadora, baseando-se nas discussões de Raymund Williams, é necessário se contrapor às visões idealistas da cultura que insistem em pensá-la como domínio separado da vida concreta. No campo materialista, a questão é ver como a cultura, mais do que um mero efeito da superestrutura, é um elemento fundamental na organização da sociedade e, portanto, um campo importante na luta para modificar essa organização. Em outras palavras, a questão é pensar uma teoria materialista da cultura que leve em conta seu papel social e contribua para a construção de uma alternativa de sociedade mais justa e igualitária.

Podemos dizer a partir dessa discussão que os Estudos Culturais objetiva o combate à hierarquia cultural existente, problematizando o conceito de cultura erudita e popular para torná-lo um conceito aberto e heterogêneo. Isto nos faz compreender que os Estudos Culturais vêem a cultura como uma prática localizada em um determinado campo de forças sociais, e possibilitou a compreensão de uma cultura concebida como um todo social, na qual os sujeitos interagem entre si e onde as estruturas se manifestam e podem ser apreendidas.

Segundo Paul Zumthor (1994), a tradição é uma colaboração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos problemas atuais. Ele a entendia a partir dos modelos, normas, padrões veiculados pela memória e costumes coletivos, nos quais a compreensão e a interpretação da vivência cotidiana se tornariam possíveis para os membros do grupo social a cada instante de suas experiências. Mas nenhuma compreensão pode ser total, nenhuma interpretação faz sentido a curto prazo em virtude de sua própria natureza fragmentária. E é aqui, segundo ele, que intervém na história das gerações humanas, a função do esquecimento.54

A memória do grupo tende a assegurar a coerência de um sujeito na apropriação de sua duração, isto é, ela gera a perspectiva em que se ordena uma existência, e nesta medida permite que se mantenha a vida, e evidentemente cria a história, conferindo sua continuidade aos comportamentos que constituem uma cultura.

Nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando uma parte do que acumularam de experiência no dia-a-dia. A seleção drena assim, duplamente, o que ela criva, desconecta, corta o contato imediato que temos com a nossa história no momento em que a vivemos. Ela nos afasta daí um pouco, permitindo que se crie uma perspectiva ao tempo em que se instaura uma espécie de repouso paradoxal, suspende-nos do real empírico. Mas, também na multiplicidade do que seria urgente talvez registrar na memória coletiva, ela recupera ou determina o que, do vivido, foi, é, e tem chances de permanecer funcional.

São nessas chances de permanência funcional que percebemos uma tendência dominante na qual a comunidade adere memorialmente a formas de pensamento, de sensibilidade, de ação e de discursos graças aos quais ela funciona, não somente porque ela os tem à disposição, mas por causa dos valores de que elas são carregadas, valores estes, que dispõem ao mesmo tempo entre as causas e os efeitos de uma seleção inicial, isto é, uma vontade de esquecimento que implica um desejo. Dessa forma podemos dizer que, se a memória traz apenas alguns traços, não é totalizadora, logo, devemos pensá-la não como lembrança, mas como esquecimento necessário para a construção da memória para haver o desejo de lembrar.

Para Lotman e Uspensky citado por Paul Zumthor (1994), o esquecimento é um mecanismo explorado por uma cultura hegemônica, visando excluir da tradição certos elementos da memória coletiva indesejáveis para ela.55 Nesse sentido, o esquecimento constitui um dos fundamentos de toda ficção aos níveis do imaginário e do discurso, pois, se a memória funciona como uma atividade de triagem, de redistribuição, de deslocamento, de mascaramento e ainda de negação da alteridade, o esquecimento também pode possibilitar versões que estavam ou estão silenciadas na historiografia da humanidade.

Nesse contexto a Amazônia brasileira não foge à regra de outros territórios culturalmente dominados, pois se existem muitos discursos acerca de sua identidade cultural são por causa do esquecimento, uma vez que é nesse processo de lembrar e esquecer que trazemos e reelaboramos a tradição e a diversidade cultural dessa região que ficou silenciada na história científica, positiva e factual. É importante ressaltarmos que os discursos hegemônicos culturalmente deixavam silenciados na história exatamente o elemento compreendido como marginal e talvez por isso a Amazônia brasileira é vista, ainda na atualidade, como a Amazônia indígena com povos incapazes de se firmarem politicamente numa sociedade globalizada.

Reinaldo Martiniano Marques (1998), em seu trabalho Entre o global e o local: cultura popular do Vale do Jequitinhonha e reciclagens culturais julga que todo conhecimento se produz a partir de um local e um olhar sobre um tema, que se lança a partir de um lugar marcado por certas referências e pressupostos próprios de uma reflexão teórico-crítica produzida. Segundo esse autor, ao se pensar as práticas culturais, se faz necessário considerar dois universos discursivos que parecem se opor: o da tradição e o da contemporaneidade, o primeiro se aproxima das experiências culturais locais e populares, e o segundo se refere a um mundo globalizado marcado pela atuação onipresente dos meios de comunicação de massa e pela conformação de mercados transnacionais de produção e consumo de bens materiais e simbólicos.56

O que nos interessa nessa discussão é pensar os cruzamentos entre o tradicional e o moderno, ou seja, devemos desviarmo-nos de uma concepção moderna da cultura baseada na sua estratificação e na hegemonia da letra tendo em vista a noção de hibridismo cultural, que supõe a interação entre a cultura de massa, cultura popular e alta cultura, constituindo uma dinâmica que articula o local e o cosmopolita. Em outras palavras, devemos compreender a cultura como algo aberto a transformações e reelaboração de práticas sociais superando sua ideia estática e compreendendo-a como resultante de uma ação e um trabalho.

Considerando o global e o local definidos por Reinaldo Marques (1998), aqui se destaca o papel desempenhado pelas grandes metrópoles, normalmente as capitais, como pólos irradiadores da modernização econômica e cultural para as regiões mais afastadas, capitais estas, que se debatem em meio aos conflitos e impasses em variados níveis devido à superposição de diferentes temporalidades e espacialidades em que se mesclam o arcaico e o tecnológico, o rural e o urbano, o local e o global resultando num intenso movimento de negociações das identidades, que já não se definem mais territorial e monolinguisticamente, mas de forma transterritorial e multilinguística.

Para Marques (1998), o encontro dos elementos representantes do local e do global possibilita um processo de intensa mesclagem cultural decorrente das transferências interculturais. É a combinação dos elementos tradicionais arcaicos com os modernos produtos da tecnologia, a comunicação oral primária com as técnicas dos meios eletrônicos e massivos que exemplificam a hibridação cultural.57

Nesse sentido podemos dizer que os atores culturais, mais do que indivíduos de cultura particular, são pessoas que realizam um intenso trabalho de reciclagem cultural, pois, segundo Silvestra Mariniello apud Marques (1998), a reciclagem cultural é resultado de um retorno da oralidade, associada à aparição de uma oralidade secundária, a do audiovisual, da informática. Segundo ela, a reciclagem cultural caracteriza-se pela produção de discursos híbridos, a partir do uso de materiais múltiplos e heterogêneos, o que faz com que as práticas da reciclagem sejam portadoras de instabilidade, ameaçando as identidades dos discursos e das formas culturais locais ou globais.

5.4. Cultura e Heterogeneidade

Segundo Cornejo Polar (1997), para entendermos o começo da heterogeneidade, primeiramente, precisamos examinar o problema básico da duplicidade de seus mecanismos: a oralidade e a escrita, problema prévio e mais profundo do que aquele que surge do bi e do multilinguismo.58

O começo mais visível da heterogeneidade caracteriza-se principalmente na produção literária peruana andina e em boa parte latino-americana. Para evidenciar este início, o autor utiliza a crônica sobre Cajamarca na qual protagonizam Atahualpa, representando a oralidade e padre Valverde, representando a escrita em um conflituoso diálogo que apresenta a complexidade de densos e confusos processos de imbricação cultural.

No contexto da crônica oralidade e escrita se encontram em extrema dicotomia. A presença da completa negação da cultura do outro nesse diálogo, nos faz perceber que ambos jamais se entenderiam se não fosse a intervenção de um interprete que aproximou a relação de poder e submissão, a partir dessa intervenção oralidade e escrita começam a se imbricar, uma vez que o livro ( a Bíblia) não representava nem dizia nada a Atahualpa e a oralidade significava para Valverde a não cultura de um povo, “não cultura”, aqui, no sentido de submissão a seus conquistadores.

É notável que o fato de se ter diluído ao máximo a presença da escrita, se teve uma alternativa de conciliação entre letra e voz processando um incessante trânsito da oralidade à escrita. Em outras palavras, os gestos e as palavras de Valverde e Atahualpa, não serão parte da literatura, mas comprometem sua matéria mesmo no nível decisório que distingue a voz da letra, e através disso constituem a origem de uma complexa institucionalidade literária quebrada a partir do seu próprio suporte material, que dão ingresso a vários discursos, bem como o contido na Bíblia, o discurso histórico imperial e ao que começou globalizar-se com o índio, evitando cada vez mais as diferenças étnicas andinas com seus significados de derrota, resistência e represália.

Na crônica Athaualpa teve várias mortes, e essas várias mortes, em certo sentido têm a ver com toda a história de um povo, daí provém a fluída e secular sobrevivência. Mas isso não significa, de modo algum, que os textos e suas representações careçam de identidade e sejam apenas formas aleatórias dessas consciências. De fato, há uma força social que exige respeito à tradição assumida como legítima, isto é, embora se tenha que respeitar a tradição, isso não impede que se apresentem outras versões da história, discursos que foram negados pela cultura escrita dominante.

Contudo, tão enganoso como propor a validade das dicotomias já mencionadas seria procurar somar ambos os discursos evitando suas diferenças, como se um e outro fossem paralelos, mas homólogos. Não o são, de modo algum, pois têm características incompatíveis, apesar de suas eventuais inter-relações. No entanto, bastaria sublinhar que a crônica é o reino da letra, a qual, em todo caso, assimila e transforma as vozes da tradição oral, enquanto as representações da morte do Inca, em sentido inverso, partem de uma escrita fortuita.

Em virtude disso, letra e voz devem estar contidas numa situação sociocultural capaz de mesclar de tal modo os discursos, visto que nenhum deles é inteligível por si mesmo e por essa razão, essa oposição deve ser tratada como objeto de conhecimento. Desta forma, o verdadeiro objeto é esse cruzamento de contradições, no qual sua matéria é a história que imbrica inextricavelmente vários, diversos e opostos tempos, consciências e discursos, pois “desde então nossa literatura inicia a conquista e a apropriação da letra, mas instalada nesse espaço – o da “cidade letrada”, não deixa de sentir, nem se quer agora, como nostalgia impossível o desejo da voz”.59 E essa interdependência de oralidade e escrita nos faz compreender a heterogeneidade presente nos discursos históricos, mesmo estando, alguns, silenciados.

Diante dessa discussão, é possível dizermos que se pode alterar a história, mesmo sendo fiel a seu final, pois isso prova que esta não está congelada, nem detida, mas sim em plena ebulição, e todo esse conflito do diálogo é feito do cruzamento de identidades e alteridades, formando uma cultura heterogênea formada de vários discursos, bem como a construção da identidade cultural na Amazônia brasileira, que nada mais é, do que os diversos modos de vida: costumes e valores dos que habitam e contribuem numa construção de identidades instáveis.

Para Cornejo Polar (2000), esse debate da voz e da letra, talvez não se trate de outra coisa senão da formação de um sujeito que está começando a compreender que sua identidade, é, também, a desestabilizante identidade do outro, espelho ou sombra a que se incorpora, dilacerada e conflituosamente, como opção de alheamento ou de plenitude.60

5.5. Os Estudos Culturais e elementos de crítica contemporânea

Silviano Santiago (1978), em seu texto O entre-lugar do discurso latino-americano cita Montaigne como referência, no intuito de nos ajudar na compreensão das discussões sobre o lugar que ocupa hoje, o discurso literário latino-americano no confronto com o europeu.

Quando o rei Pirro entrou na Itália, logo depois de ter examinado a formação do exército que os Romanos lhe mandavam ao encontro, disse: “Não sei que bárbaros são estes (pois os gregos assim denominavam todas as nações estrangeiras), mas a disposição deste exército que vejo não é, de modo algum, bárbara.”61

Segundo Santiago (1978), esse contexto guarda em essência a marca do conflito eterno entre o civilizado e o bárbaro, o colonizador e o colonizado, Grécia e Roma, Roma e suas províncias e entre a Europa e o Novo Mundo, mas que por outro lado, as palavras do rei Pirro, ditadas por certa sabedoria pragmática, não chegam a esconder a surpresa e o deslumbramento diante de uma descoberta extraordinária, a de que os bárbaros não se comportavam como tais.62 Nessa perspectiva, é possível percebermos que apesar das diferenças econômicas e sociais, os dois exércitos se apresentam em equilíbrio no campo de batalha. É nesse contexto que percebemos a necessidade de inverter os valores que definem os grupos em oposição e, talvez, questionar o próprio conceito de superioridade.

Ainda de acordo com Santiago (1978), no novo e infatigável movimento de oposição, a sabotagem dos valores culturais e sociais impostos pelos conquistadores se operam na superfície, mas afeta definitivamente a correção de dois sistemas que contribuíram para a propagação da cultura ocidental entre nós, o código lingüístico e o religioso, códigos estes que perdem seu estatuto de pureza e se deixam enriquecer por novas aquisições a partir do momento em que ocorre a sutil e complexa contaminação entre o elemento europeu e o elemento autóctone, a mestiçagem.

A América latina segundo esse pesquisador instituiu seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio de norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus transportavam para o Novo Mundo. Em virtude disso, a América Latina não pode mais fechar suas portas à invasão estrangeira, nem tão pouco reencontrar sua condição de inocência, pois sem essa contribuição seu produto seria mera cópia.

Para explicarmos melhor essa contribuição a partir do desvio de normas impostas pela civilização ocidental, partimos agora da discussão sobre fonte e influência, que questiona a atitude do artista de um país em evidente inferioridade econômica com relação à cultura ocidental, à cultura da metrópole, e finalmente à cultura de seu próprio país. Tal questionamento segundo Santiago, apenas assinala a indigência de uma arte já pobre por causa das condições econômicas em que pode sobreviver, e sublinha a falta de imaginação de artistas que são obrigados, por falta de uma tradição autóctone, a se apropriar de modelos colocados em circulação pela metrópole. Ainda de acordo com esse pesquisador, tal discurso reduz a criação dos artistas latino-americanos à condição de obra parasita, uma obra que se nutre de outra sem nunca lhe acrescentar algo de próprio, uma obra cuja vida é limitada e precária encontrando-se pelo brilho e pelo prestígio da fonte.63

A fonte nesse contexto torna-se a estrela inatingível e pura que sem se deixar contaminar, contamina, brilha para os artistas da América Latina quando estes dependem de sua luz para seu trabalho de expressão, e o discurso crítico que fala das influências estabelece a estrela como único valor que conta, deixando ao artista latino-americano, o papel de encontrar a escada e contrair a dívida que minimizará a distância entre ele e a imortal estrela. Esse discurso de originalidade do colonizador deixa claro que só se tornaria verdade aquilo que pudesse ser assinalado pela dívida e pela imitação.

Os Estudos Culturais e a crítica contemporânea veem declarar a falência de tal método, o que implica a necessidade de substituí-lo por outro em que os elementos esquecidos, negligenciados e abandonados serão postos em relevo, em favor de um novo discurso crítico que por sua vez estabelecerá o valor da diferença. Tomemos para essa discussão o texto legível e o escrevível e a contribuição do intelectual latino-americano na construção desse novo modelo.

Para Silviano Santiago (1978) o texto legível é o que pode ser lido, mas não escrito, não reescrito, seria este o texto clássico por excelência, o que convida o leitor a permanecer no interior de seu fechamento. O escrevível apresenta-se ao contrário, um modelo produtor, e não representacional, o texto escrevível excita o leitor a abandonar sua condição de simples leitor, para se aventurar como produtor.64 Nessa nova produção, o intelectual latino-americano se organiza a partir da meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, meditação esta, que transforma o leitor em autor capaz de surpreender o modelo original desarticulando-o e articulando de acordo com suas intenções. Mas para que ocorra esse processo, é preciso antes, de acordo com as teorias acerca dos Estudos Culturais aprender a falar a língua da metrópole para melhor combatê-la. É preciso colocar em justaposição o discurso colonizador e o discurso colonizado e se propor, aí, um trabalho de tradução, pois a construção do conhecimento reflete a prática de uma reorganização do próprio conhecimento enquanto produção inacabada.

Desse modo, tomando como referência o discurso de Silviano Santiago, para produzir, precisamos ler contra e escrever contra, e o escritor latino-americano nos ensina que precisamos nos libertar da dívida e trabalharmos com a troca criando um espaço entre o sacrifício e o jogo, a prisão e a transgressão, a submissão ao código e a agressão, entre a assimilação e a expressão. Ali, nesse lugar aparentemente vazio se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana, seria ali, o entre-lugar do discurso latino-americano.65

No sentido de nos ajudar nessa discussão, os Estudos Culturais nos apresentam alguns conceitos como transculturação, crioulização e hibridismo. Segundo Eurídice Figueiredo (2005), o termo transculturação surge pela primeira vez em 1940, no livro Contrapunteo cubano Del azúcar y Del tabaco, de Fernando Ortiz. 66 Segundo Ortiz apud Reis,

O vocábulo proposto, transcuturação, designa as fases do processo de transição de uma cultura a outra, já que este não consiste somente em adquirir uma cultura diferente, como sugere o sentido estreito do vocábulo anglo-saxão, aculturação, mas implica também necessariamente a perda ou desligamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de uma parcial desculturação, e, além disso, significa a conseqüente criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser chamados de neoculturação. (...) No conjunto, o processo é uma transculturação e este vocábulo compreende todas as fases da trajetória. 67

Nessa perspectiva, transculturação é um processo no qual se dá sempre algo em troca do que se recebe, nele as duas partes saem modificadas e surge uma nova realidade composta e complexa revelada a partir do contato com a diferença. Desse modo, transculturação, não implica simplesmente em adquirir uma cultura diferente, nem a perda ou desligamento de uma cultura precedente, mas a ressignificação, reelaboração de uma cultura na qual os sujeitos vivem uma passagem, um movimento constante para conhecer-se numa identidade.

Outro conceito importante para compreendermos a construção da identidade cultural na Amazônia brasileira é o termo crioulização ou crioulidade. Atualmente na França, o termo privilegia a definição de línguas complexas egressas da situação de contato entre elementos lingüísticos totalmente heterogêneos, explicando-se, assim, a tendência à redução do conceito a uma simples defesa da língua, que é, entretanto, apenas um dos componentes de um debate bem mais amplo sobre a identidade múltipla, como esclarece o teórico da crioulização, Édouard Glissant que diz “Quando digo crioulização, não me refiro absolutamente à língua crioula (sistema de comunicação rudimentar com palavras baseadas na língua do colonizador para comunicação de línguas diferentes), mas ao fenômeno que estruturou as línguas crioulas, o que não é a mesma coisa”.68 Crioulização para Glissant seria a transformação desse sistema rudimentar para uma língua verdadeira. Desse modo para crioulização Vianna (2005) registra o processo pelo qual a língua de relação nascida do contato entre línguas européias, asiáticas e africanas permite a comunicação entre comunidades no sentido de estar afetado por um processo de crioulização que sugere a diversidade cultural e a reelaboração dessas culturas.

Edouard Glissant citado por Vianna (2005) diz que “o mar é história” e autoriza a inscrição de oceanos e mares no âmbito das fronteiras culturais moventes. De fato, autênticas regiões aquáticas como a atlântica e a caribenha constituíram-se na rota do projeto expansionista ocidental não só pelo tráfico de populações transplantadas, mas também por migrações múltiplas.69

Nessa perspectiva, tomamos como referência o discussão de Glissant para dizermos que nesse sentido, o mar é visto, aqui, não simplesmente como lugar de trânsito e passagem, mas como lugar de circulação de elementos culturais diversos que realmente se imbricam num processo de sobreposição e se confundem resultando uma nova realidade. Para crioulização, então, pressupõe-se um movimento aberto que se propaga em várias direções sendo marcante em todo processo de colonização e na construção de nossa identidade cultural.

Glissant nos apresenta ainda, a teoria de que existe atualmente uma arquipelização cultural do Caribe, evoluindo para a crioulização que se aplica também a uma totalidade planetária, que não havendo mais nenhuma autoridade orgânica e onde tudo é arquipélago, se realiza o produto imprevisível de construções culturais heterogêneas e complexas postas em relação.70

Desse modo, é possível pensarmos a crioulização como um processo no qual o ser humano não é uma entidade absoluta, mas um ser num processo perpétuo, produzindo identidades inclusivas a partir das diferenças que se encontram, se ajustam, se opõem, se afinam e produzem o imprevisível.

Nas últimas décadas do século XX a cultura tem sido insistentemente associada ao fenômeno sóciodemográfico das migrações e deslocamentos, momento em que começou na Amazônia brasileira a maior ocupação territorial e cultural, e em que as preocupações da crítica cultural se voltam com frequência para as possíveis implicações de múltiplos movimentos migratórios dentro de um mesmo país, através de fronteiras nacionais e entre continentes.

Esse fenômeno sociodemográfico tem levantado algumas questões como: Quais as consequências desses deslocamentos para os países de primeiro mundo, habituados a catalogar separadamente as categorias raciais e étnicas ou tradicionalmente considerados brancos e homogêneos? O que acontece com a cultura de países de terceiro mundo, quando intensificado o trânsito internacional, a desterritorialização se torna um fenômeno de massa? Como entender os câmbios e conflitos entre povos opressores e oprimidos, colonizadores e colonizados? Seria possível e desejável escapar aos tradicionais binarismos culturais para subverter hierarquias?

Segundo Stelamaris Coser apud Figueiredo (2005), tais questões são multifacetadas e controversas, já que o estado nômade e marginal pode ser hoje a opção natural de intelectuais cobiçados por grandes universidades metropolitanas, mas as pessoas comuns se vêem desprotegidas e desesperadas na condição de despatriamento. Em meio a tais estímulos e pressões, os estudos da cultura veem buscando estratégias para adequar-se aos desafios apresentados pela interculturalidade e multipolaridade da era pós-moderna e pela necessidade de repensar definições de comunidade e nação.71

Dentre os novos conceitos e abordagens difundidos nos países de língua inglesa, por exemplo, ressalta a valorização da ideia de híbrido, e dos processos de hibridação ou hibridismo em substituição a teorias monolíticas e categorias antigas, uniformes e estanques.

Para brasileiros e latino-americanos de um modo geral, o conceito de híbrido remete à longa história de mestiçagem e sincretismo, que caracteriza tanto os mitos e ideais nacionais quanto suas mais profundas divisões e desigualdades.

Argumentando na contracorrente de tentativas essencialistas que querem preservar a ilusão de sujeitos, etnias, raças, locais e nações purificadas, unificadas e coesas, Stuart Hall aproxima-se de Homi K. Bhabha ao ressaltar ambivalência e antagonismo em qualquer ato de significação nos processos de tradução cultural.72 Hibridismo, segundo Coser, se refere não a um sujeito híbrido formado e assumido como tal, mas ao angustiante processo de tradução cultural sem glorificar nem crucificar a globalização, apontando os movimentos contraditórios e desestabilizadores entre tradição e tradução que atuam na produção de novas identidades, pois as comunidades migratórias como já dissemos antes, trazem consigo as marcas da diáspora, da hibridização e da diferença em sua própria constituição.

Nas últimas décadas do século XX, Homi K. Bhabha pode ser considerado como um dos maiores responsáveis pela divulgação do conceito de híbrido. Ele abandona a visão da sociedade e da cultura entrincheirada em dicotomias e posições antagônicas para defender um “terceiro espaço” ambivalente e fluido onde identidades e relações seriam construídas. Diz ele:

A hibridização não é algo que apenas existe por aí, não é algo a ser encontrado num objeto ou em alguma identidade mítica ‘híbrida’ – trata-se de um modo de conhecimento, um processo para entender ou perceber o movimento de trânsito ou de transição ambíguo e tenso que necessariamente acompanha qualquer tipo de transformação social sem a promessa de clausura celebratória, sem a transcendência das condições complexas e conflitantes que acompanham o ato de tradução cultural.73

Segundo Homi K.Bhabha (1998), abre-se aí um espaço para o subalterno que não envolve nem assimilação, colaboração e antagonismo aberto. Tal “experiência intersticial” abre possibilidades para que os grupos minoritários construam suas “visões de comunidade” e apresentem suas próprias versões de memória histórica. Assim o “terceiro espaço”

é capaz de abrir o caminho à conceitualização de uma cultura internacional, baseada não no exotismo ou na diversidade de culturas, mas na inscrição do hibridismo da cultura. Para esse fim deveríamos lembrar que é o “inter” – o fio cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar – que carrega o fardo da significação da cultura.74

Para Bhabha (1998) é o tropo dos nossos tempos colocar a questão da cultura na esfera do além, pois encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.75 Sob essa perspectiva, diremos que o afastamento das singularidades de classe ou gênero como categorias conceituais e organizacionais básicas, resultou em uma consciência das posições dos sujeitos que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno, algo inovador, como a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originais e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Em suas discussões Homi K. Bhabha (1998) diz,

esses “entre-lugares” nos fornecem o terreno para elaboração de estratégias de subjetivação, seja ela singular ou coletiva que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade, pois é na emergência dos interstícios – a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença, que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação, o interesse comunitário ou valor cultural são negociados.76

Então, residir no “além” pode ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural, reinscrever nossa comunalidade histórica. Nesse sentido, o espaço intermédio “além” torna-se um espaço de intervenção no aqui e agora. É viver na fronteira, nem lá, nem cá, é estar no meio.

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o “novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia de novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, transfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.77

Podemos pensar então, que a questão da identidade, da diferença e do outro, é um problema social, visto que, num mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estranho, com a diferença é inevitável, explodindo em conflitos, confrontos e hostilidades, onde o Outro é o corpo diferente.

Diante dessa discussão baseada nos Estudos Culturais e na crítica contemporânea a identidade é, sem dúvida, uma construção, um efeito, uma produção, um posicionamento, uma relação, instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada, relacional, problemática, o efeito de enunciações, narrativas, mitos, uma relação social produzida em conexão com relações de poder.

6. ANÁLISE CRÍTICA COMPARATIVA DOS CONTOS: Judas-Asvero, O Tapará e Um oriental na vastidão

Para entendermos melhor a discussão que faremos a partir daqui, vale a pena discutirmos antes, aquilo que segundo Antonio Candido seria preconceito. Segundo esse autor, o preconceito é um juízo sobre pessoas, ideias, grupos, etc., baseado em impulsos irracionais e falsas noções que são aceitos sem análise prévia. Mas tudo não passa de uma discriminação em geral daquilo que é diferente, isto é, daquilo que não conhecemos. De fato, consciência da identidade implica necessariamente a verificação das diferenças, pois à medida que manifesto auto-respeito e apreço pelo meu grupo, tendo a valorizá-lo em comparação aos outros grupos.78 Desse ponto de vista, o importante é dignificar as culturas como modos de ser e de viver abertos não apenas ao grupo ao qual pertencemos, mas à pluralidade cultural e à hibridização dessas culturas.

Em À margem da história Euclides da Cunha fala das impressões gerais que teve da Amazônia, uma impressão dominante, talvez correspondente a uma verdade positiva de que o homem aqui, é ainda um intruso impertinente que chegou sem ser convidado quando a natureza ainda se formava encontrando nesse ambiente uma grande desordem, em que nem mesmo os rios se firmavam em seus leitos que se rompem e se soldam numa desesperadora formação de ilhas e lagos de seis meses com uma fauna singular e monstruosa, uma natureza portentosa, no entanto, incompleta.79

Alberto Rangel (1920) também a descreve com uma impressão dominante, uma natureza desordenada, que parece lutar consigo mesma pressupondo um lugar inabitável pela raça humana, pelas impossibilidades de sobrevivência como ele mesmo já a nomeou de Inferno Verde.

Depois dessa primeira vegetação ribeirinha, que se sentisse medrosa da água solapadora do Amazonas, as embaúbas mais animosas surgem logo, altas, de folhas com reversos argênteo, de troncos brancacentos[...] depois dela vem a mata, que tem o aspeito de se deter porque sentiu que lhe embargavam o passo.[...] toda ela é igual, cheia, desordenado entulho de galharias e folhagens, fronde torcidas, enganchadas em novelos de cipós[...] parece toda ela lutar consigo mesma, a um tempo, conflagrada e em sossego.80

No conto Judas-Asvero, Euclides da Cunha discute a realidade cotidiana do seringueiro do Alto Purus, uma mesmice vivida dia após dia. Segundo o autor,

No sábado de Aleluia os seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo. Ante a concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as maldades. Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes.

Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado das insídias humanas, sorri, complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá embaixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes.81

Esses discursos sobre o estranhamento nos fazem pensar no olhar do estrangeiro sobre a Amazônia brasileira, em especial, se focamos o discurso do colonizador acerca da estrutura sociopolítica nesta região. Na perspectiva do discurso de Euclides, os povos amazônicos não foram, nem nunca serão capazes de se firmarem politicamente se não pelos estrangeiros, pois essa visão colonizadora pressupõe uma miscigenação composta por um povo de coragem, mas sem conhecimento, sem cultura, povos que usam a força simplesmente como meio de sobrevivência. Como ele mesmo disse “a natureza é portentosa, mas incompleta.” 82

O que nos parece visível é o discurso positivista83 sobre a Amazônia brasileira, o modo de ver o homem amazônico como um ser forte, mas incapaz de emancipar-se. Nesse contexto as verdades se desfecham em hipérboles, mostram-se de relance e sugerem a ideia de que ainda nos casos mais simples, há no Amazonas um flagrante do processo de aculturação, uma vez que o cristianismo foi e sempre será um produto inventado pelo colonizador e o colonizado por sua vez trata de seguir essa tradição que o faz se sentir mais humano em meio a todo esse sofrimento.

Para o estrangeiro os dias excepcionais nas outras regiões do país, são na Amazônia todos os dias de luta pela sobrevivência em uma região de difícil acesso onde as pessoas vivem isoladas de um mundo real, firmado politicamente, mesmo estando nós vivendo um momento que estão denominando pós-moderno no qual a identidade cultural do indivíduo é construída a partir da diferença, num processo em constante mutação onde as culturas interdependem-se.

E consideram, absortos, que esse sete dias excecionais, passageiros em toda a parte e em toda a parte adrede estabelecidos a maior realce de outros dias mais numerosos, de felicidade – lhes são, ali, a existência inteira, monótona, obscura, dolorosíssima e anônima, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável, sem princípio e sem fim, do círculo fechado das “estradas”. Então pelas almas simples entram-lhes, obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé, a sombra espessa de um conceito singularmente pessimista da vida: certo, o redentor universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfrequentados rincões. 84

Esse discurso apresenta a cultura a partir de uma concepção de homogeneidade perceptível no desfechar da narrativa “E consideram absortos, que esses dias excecionais, passageiros em toda a parte... lhes são, ali, a existência inteira, monótona, obscura... na via dolorosa inalterável, sem princípio e sem fim, no círculo fechado das estradas”, isto é, o homem amazônico é, aqui, para o estrangeiro um ser que dispõe de uma cultura inferior incapaz de se entrelaçar com outras culturas, produzir diálogos e interações culturais. Se pensarmos na identidade cultural na Amazônia brasileira como “via inalterável”, estamos vendo a cultura como uma ideologia localizada em outras estruturas na qual sua função é apenas a reprodução das relações de produção, como se o ser humano tivesse surgido em dia e hora marcada, incapaz de inserir-se na sua própria construção de identidade e sujeito apenas a sofrer um processo de aculturação, pois “pelas almas simples entram-lhes, obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé,... tão relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver das águas é o primeiro a fugir”.

No processo de aculturação o ser forma-se para se destruir, é como se toda experiência vivida por ele não valesse nada e que o importante e relevante é a cultura do estrangeiro. Nesse processo a tradição se esvai completamente para que a assimilação da outra cultura seja completa, diferentemente da tradução cultural em que ocorre a alteração dos signos como forma de reelaboração da tradição. Diz Euclides da Cunha:

...é um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens; e os grandes olhos de Deus não podem descer até àqueles brejais, manchando-se. [...] Além disto, só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniatado e escravo... transmudando-lhe a vida numa interminável penitência.85

Com a perda de sua experiência identitária, o homem sente-se expatriado, “é um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens”. Nesse sentido, o homem amazônico sente-se expatriado de sua própria cultura pela necessidade de viver as imposições que o aproximará do colonizador e o faz pensar que apesar da perda de sua tradição cultural, essa é a única forma de se sentir útil nesse espaço, como se percebe no trecho “Além disto, só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniatado e escravo”.

Edward Tylor citado por Laraia (2006) definiu cultura como um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.86 Nessa perspectiva, a cultura de um povo não se define por aquilo que lhe é repassado em sua relação com a estrutura social, mas pela sua experiência adquirida e reelaborada num campo de interação em que os indivíduos contribuem de uma forma ou de outra para a construção de sua identidade.

...e o seringueiro abalança-se a esse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, em risadas, a correrem por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da ferragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e quieta. [...] O judas faz-se como se fez sempre... é o manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes. Não basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima,... mas que é para ele a expressão concreta de uma realidade dolorosa. 87

Em O Tapará, Alberto Rangel fala da Amazônia como uma fisiografia impossível de se revelar totalmente, um lugar que apesar da terra farta o homem padece miseravelmente, onde as condições de vida em que se encontram esses povos são um estado de abandono em meio a um trabalho árduo, não podendo usufruir o mínimo dele, construindo nesse espaço uma vida e não possuir nada que é seu.

A floresta, afogada na cheia, é mais própria ao nativo. No dilúvio amazônico, o homem trocaria bem os seus pulmões por guelras. Tudo lhe é acessível quando nagua. A solidão do centro, quando a rede gangliforme dos lagos se liga à rede arterial das correntes, não tem segredos. O caboclo vara, some-se numa segurança de caminheiro por vias topografadas, e vai até onde o tino tranqüilo lhe indica o fácil pescado.[...] Mas também, com o termo da enchente, o homem está ilhado, ou pior, emparedado. Baixando a água, baixa-lhe a capacidade de andejo...e afinal, pesando por encharcado, desce ao fundo do rio para apodrecer.88

Nesses discursos de Euclides da Cunha e de Alberto Rangel, o indivíduo é apenas um bloco no qual se exercitam os agentes externos, “O Judas faz-se como se fez sempre... é um manequim vulgar... um bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima..., mas que é para ele, o seringueiro, a expressão concreta de uma realidade dolorosa”, molda-se à necessidade de viver à sombra do Outro, é uma “estátua” modelando-se para ser aceito, “com o termino da enchente, o homem está ilhado, ou pior, emparedado”, parece que desistiu de conhecer a si próprio para assumir uma identidade que nada mais é que uma criação espantosa do colonizador, o que recai na discussão de Althusser, apud Maria Elisa Cevasco (2003) sobre a construção da identidade cultural, os seres humanos não são nem autores nem sujeitos de processos sociais, mas efeitos ou sintomas de hierarquias estruturais. Sendo assim, as pessoas definitivamente representam não a relação entre elas e suas condições reais de existência, mas o modo como vivem essa relação, o que a pressupõe imaginária.

Desse modo, na perspectiva do discurso de Alberto Rangel e Euclides da Cunha sobre a identidade cultural, a cultura na Amazônia brasileira é tida como homogênea, é apenas um reflexo da alta cultura, uma construção cultural mal elaborada que importou da cultura colonizadora um modo de vida que não é seu, um borrão da figura humana.

A cheia e a seca no discurso de Rangel associam-se ao conceito de cultura homogênea e ao processo de aculturação, “ilhado”, o ser humano não tem escapatória, o único meio de sobrevivência é a assimilação da cultura imposta pela estrutura social colonizadora, a aceitação do processo de aculturação. De certo, nesse processo a tradição humana adquirida num campo de forças sociais perde definitivamente seus valores para adquirir outros, como diz o referido autor “e afinal, pesando por encharcado desce ao fundo do rio para apodrecer”89, é como se o indivíduo fosse simplesmente uma caixa vazia dotada de uma capacidade ilimitada de obter conhecimentos, e não de reelaborar, por meio da interação, as experiências vividas e apreendidas com o outro.

O trecho “para atingir o Tapará, torna-se forçoso atravessar a baixa, onde essa retina imóvel, incrustada na órbita dos barrancos, olha o sol com insistência espasmódica e enervante.”90, pressupõe a necessidade do homem amazônico ser, ou melhor, parecer um homem capaz de emancipar-se como o estrangeiro e amenizar a distância que os separa. Nesse contexto é possível pensarmos no colonizado como ser que não se assume como parte fundamental de uma sociedade nas relações de convivência, buscando não interpretar a cultura, mas introduzir um modo de vida que não é seu e nem mesmo compartilhar suas experiências deixando-as cair numa ação totalizadora de esquecimento.

Mas se pensamos a cultura como produção, vemos que o processo de construção de uma identidade cultural depende de um conhecimento da tradição enquanto mutação, tradição esta, que tem sua matéria-prima e que nos faz produzir em nós mesmos o “novo”, pois nossa identidade cultural não é nem nunca estará estável, uma vez que a cultura não é aquilo que as tradições fazem de nós, mas aquilo que fazemos de nossas tradições buscando nos tornar e não simplesmente a experiência de ser.

A experiência de nos “tornar” a partir da reelaboração da tradição, evidencia que o esquecimento é um fator fundamental na construção de nossa história, e logo na construção de nossa identidade cultural. Paul Zumthor (1994) diz que a tradição é uma colaboração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos problemas atuais. Nesse contexto, a memória deve ser concebida não como mecanismo da lembrança, mas do esquecimento, pois para que a tradução cultural ocorra se faz necessário o esquecimento de parte da tradição para envolver nesse processo o “novo” e é nesse imbricar de alteridades que surgirá o imprevisível, produto dessa relação de interdependência de culturas.

No sentido de nos ajudar a entender essa relação de interdependência entre as culturas, Milton Hatoum propõe uma leitura da identidade cultural amazônica sob uma perspectiva heterogênea, e utiliza o imaginário amazônico permeado de histórias de imigrantes e viajantes. Segundo ele é necessário que pensemos a identidade cultural deste lugar como heterogênea e híbrida constituída a partir do diálogo em que uma sociedade marcada pela diferença, foi capaz de reelaborar sua tradição.

Um oriental na vastidão trata da viagem de um japonês biólogo de água doce e professor aposentado da Universidade de Tóquio pelo Rio Negro, um sonho de infância. No decorrer de todo o conto observamos exemplos de traços culturais diferentes.

Quando a porta da sala de desembarque se abriu, um bafo quente e úmido paralisou os passageiros. Desse torpor surgiu um homem miúdo; carregando uma sacola vermelha. Os olhinhos apertados e vivos procuraram a placa com o seu nome, e logo a cabeça branca veio na minha direção.91

A referência que se faz ao impacto causado pelo quente e o frio “o bafo quente e úmido”, revela o encontro de dois elementos diferentes, uma mistura que causa um efeito diferenciado daquilo que seria um ou outro, esse efeito é a reação da luta das diferenças num campo real de interação.

De acordo com Homi K. Bhabha (1998),

é o tropo dos nossos tempos colocar a questão da cultura na esfera do “além”. O “além” não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado... Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século, mas, nesse fim de século, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.92

Nesse contexto, percebemos que considerar a cultura como homogênea é algo que não cabe mais ao momento em que vivemos, pois a sociedade se modificou, logo a cultura também. Segundo Bhabha (1998), vivemos um momento denominado de pós-moderno no qual os modos de vida já não são mais os mesmos, os sujeitos são fragmentados e a cultura permeada pelas diferenças, a diversidade cultural.

Nessa perspectiva a diversidade cultural é o objeto de conhecimento empírico do grupo social, esse objeto evidencia-se nas enunciações da cultura. Nesse campo onde ocorrem as enunciações de culturas particulares de cada grupo, abre-se a possibilidade de articulação do hibridismo cultural entendido como resultado de um processo contínuo de transformação cultural, isto é, resultado de construções, de negociações, de reelaboração de identidades.

Milton Hatoum (1999) exemplifica esse processo no trecho “Com reverência, me ofereceu um pequeno estojo com tampa de madeira. Dentro do estojo vi um rolinho de papel-arroz com ideogramas”... “No lugar desconhecido habita o desejo.”93 Percebemos nesse trecho o encontro de elementos da cultura japonesa com elementos da cultura amazônica. A mistura de personagens com diferenças culturais, das quais Hatoum se utiliza evidenciam o caos do mundo contemporâneo, caos aqui, não no sentido negativo, mas no sentido da quebra da tradição e do movimento contínuo no processo de identificação cultural. A Amazônia brasileira para Kazuki Kurokawa, protagonista do conto, é um lugar cheio de mistérios e que para entendê-lo é preciso, antes, vivê-lo. Pois como disse Homi K. Bhabha

Essa significação mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de que os limites epistemológicos daquelas ideias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes – mulheres, colonizados, grupos minoritários, portadores de sexualidades policiadas. Isto porque a demografia do novo internacionalismo é a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades camponesas e aborígenes, as poéticas de exílio, a prosa austera dos refugiados políticos e econômicos94

Nesse momento denominado de pós-moderno, essas ideias etnocêntricas são fronteiras enunciativas, isto é, a fronteira como campo de forças sociais. Assim sendo, o fato do ser humano vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida o mais correto e o mais natural e tal tendência é responsável em seus casos extremos, pela ocorrência de numerosos conflitos sociais que de um modo ou de outro acabam excluindo os sujeitos das margens periféricas que na maioria das vezes são o “miolo” dos grandes conflitos da pós-modernidade. Mas, se pensarmos a cultura sob a perspectiva da heterogeneidade, percebemos que não existem grupos superiores nem inferiores, e sim diferentes.

Não tinha tempo para uma longa viagem. E acrescentou: tempo de vida... uma sacola era sua única bagagem. Fomos de táxi ao porto da escadaria, e no trajeto passamos em frente ao teatro Amazonas, que Kurokawa admirou em silêncio. No porto, acenei para Américo, um dos barqueiros que ficavam na beira da praia, à espera de turistas. Kurokawa quis ir sozinho até o Mercado Municipal: só ia dar uma olhada nos peixes e ver as pessoas.95

A vontade de conhecer o outro, o diferente, parece mover toda a narrativa, “pouco tempo de vida” significa nesse contexto, continuidade. Se o conhecimento é algo inacabado e por isso é um processo contínuo é também nessa continuidade “vida” que as vozes se colocam em justaposição, fazem com que os conhecimentos interpenetrem-se e a diferença entre as culturas torna-se algo comum a dois ou mais grupos. Isto quer dizer que as ideias etnocêntricas tornam-se vulneráveis e o conhecimento crença verdadeira, pois com os deslocamentos de grandes massas populacionais, normalmente incentivadas, causam o caos na identidade cultural do indivíduo.

Combinei com Américo o itinerário do passeio: desceríamos o Paraná do Carreiro até a costa do Murumurutuba, ilha do Maneta e voltaríamos pelo rio Amazonas, com uma parada no encontro das águas... Kurokawa conversava com uma cabocla. Pareciam animados com a conversa; o cientista tocou no ombro da mulher e os dois riram quando ele apontou o rio negro. Despediu-se com um aperto de mão e caminhou até o barco com passos apressados, chapéu de palha na cabeça. Comprara também uma rede vermelha com listas brancas.96

Os elementos culturais particulares e os personagens provocam a todo momento uma interação cultural: o encontro de Kurokaua com a cabocla, o material de pesca e a rede vermelha com listas brancas, representam as culturas amazônica e japonesa, a utilização do porto e do mercado, espaços em que culturas se aglomeram e lugar onde os bens materiais aparecem em grande volume em pleno fluxo de troca, as vozes se entrelaçam causando uma confusão, não se sabe quem ou o que falam, é uma constante busca de apreender o novo. Esses elementos se intersectam na realização de um único ser que busca no desconhecido o desejo de tornar-se.

No fragmento, “Kurokawa não trouxera máquina fotográfica, filmadora, nada.” 97, pressupomos que a construção de uma identidade não depende simplesmente de uma viagem superficial na qual se fotografa os povos e a enunciação da cultura de um determinado lugar, mas de uma vivência no grupo, de troca de experiências, na valorização do seu e do outro e desse trabalho fronteiriço das enunciações da cultura surgirá “o novo” não como parte de passado e presente, mas como tradução cultural.

Se a senhora não se importar, alugo o barco do comandante Américo e faço uma viagem. A minha viagem. ... Temi pelo velho cientista navegando sozinho por aquele mundo de água. Mas era um desejo, um sonho dele. [...] Vou voltar ... Um dia vou voltar e a senhora será convidada para fazer outro passeio. Nunca mais o vi. ... Meses depois, quando encontrei Américo [...] Entregara o barco na hora combinada? Hora e lugar, disse Américo. Quase não reconheci o japonês. Moreninho, parecia um caboclo de cabeça branca. E ainda aprendeu umas palavras de nossa fala. Me disse obrigado, mano, teu barco é pai-d’égua...curvou a cabeça, agradeceu em japonês e deu adeus com um sorriso miúdo. Eu disse: Arigatô, saionara, Kurokawa San. Palavras que aprendi com turistas. Mas aquele Kurokawa não era turista. Será que ele vai voltar?98

Diferente do discurso de Euclides da Cunha e de Alberto Rangel, Milton Hatoum coloca a cultura em justaposição. Na construção da identidade cultural perceptível no trecho “Quase não reconheci o japonês. Moreninho, parecia um caboclo de cabeça branca”, seus elementos não se perdem, mas constitui-se diante da valorização da diferença e no processo de negociação cultural onde a fronteira é ultrapassada.

Segundo Homi K. Bhabha, os embates de fronteira acerca da diferença cultural tem tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos. Essa passagem intersticial entre identidades fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta99, que percebemos em “E ainda aprendeu umas palavras de nossa fala. Me disse obrigado mano, teu barco é pai d’égua ... curvou a cabeça, agradeceu em japonês e deu adeus com um sorriso miúdo”.

Pensava na pergunta de Américo quando fui ao encontro do cônsul e seu secretário. [...] Subimos o rio Negro durante mais de três horas... O sol começava a declinar, as margens se estreitavam... logo depois o céu silenciou. E o silêncio subtraiu a noção de tempo. Quando entramos num outro rio ainda mais estreito, o comandante apontou o mapa: paraná da Paz. O cônsul fez um sinal com as mãos, o barco navegou lentamente, sombreado por uma vegetação alta e espessa; depois seguiu por uma curva que parecia terminar na floresta. O comandante desligou o motor, e com um varejão ele conduziu o barco entre galhos e plantas aquáticas até alcançar um remanso. Era um remanso grande, quase um lago, ou belo como um lago de águas espelhadas. Um círculo de águas calmas. 100

A própria construção da narrativa de Hatoum sugere um processo no qual estão envolvidos passado e presente “pensava na pergunta de Américo quando fui ao encontro do cônsul e seu secretário”, tempo e espaço “o sol começava a declinar, as margens se estreitavam...” que são essenciais na construção da identidade cultural, pois nos leva a perceber que para nos tornar, precisamos buscar em nossa tradição a matéria-prima para realização da tradução cultural.

Nesse sentido, a construção da identidade cultural é um trabalho de reelaboração da tradição onde os mundos se correspondem num processo simultâneo, onde as margens se estreitam entre uma cultura e outra (ou outras) e vai se mostrando nos interstícios em que tempo e espaço, são o aqui e o agora, onde o interesse comunitário ou valor cultural são negociados e a fronteira não é fixa, mas sim o lugar do imprevisível e nos permite uma releitura da nossa história buscando os discursos silenciados nessa trajetória.

O professor Kurokawa deixou uma carta-testamento. Pediu duas coisas: que as cinzas do corpo dele fossem espalhadas nas águas deste lugar. E que a senhora fizesse isso. [...] Por favor, espalhe as cinzas sem pressa. Assim temos tempo para a cerimônia.101

Kurokawa fez uma viagem de reconhecimento, não uma viagem de turismo, conhecer superficialmente a identidade cultural de um povo, é o ver de todo mundo e se vemos e conhecemos dessa forma, nos deparamos com o saber homogeneizado, saber este, que não cabe num processo de construção identitária, pois para que a tradução cultural se realize, precisamos de um conhecimento que nos permita penetrar nas experiências de outras culturas, é necessário que interpretemos a cultura do outro para reelaborarmos a nossa tradição, um processo contínuo que precisa de tempo para se construir.

O desejo de que suas cinzas fossem espalhadas em águas calmas, sem pressa, nos leva a pressupor que o processo do encontro com a diferença até a tradução cultural e a aceitação do Outro é contínuo e simultâneo, é um processo lento e na construção de nossa identidade cultural tudo vai se transformando aos poucos e isso requer a consciência de identidade instável.

Sob a perspectiva do olhar dos três Autores sobre a identidade cultural na Amazônia brasileira, o discurso de Euclides da Cunha recai sob a ideia de dependência cultural que sempre norteou os estudos relativos ao espaço ocupado pela literatura brasileira no confronto com outras literaturas, sobretudo a de matriz européia, pois o perfil da crítica comparatista no Brasil delineia-se pela transformação dos conceitos operatórios gerados pelo confronto entre metrópole e colônia no âmbito hierárquico das relações entre as culturas, considerando-as inferiores ou superiores. Por essas razões de ordem histórica e cultural, constituiu-se um legado de dívida entre colonizado e colonizador.

Nessa perspectiva pressupõe-se que o discurso de Euclides sobre a Amazônia é determinista e positivista, “É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem.”102, pois em seu discurso, a cultura na Amazônia é uma caricatura da alta cultura. Em Judas-Asvero este discurso está posto na figura do seringueiro e sua luta diária e monótona em toda parte “Vinga-se de si mesmo: puni-se, afinal, a punição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída.”103, o homem amazônico é aqui forte, mas imaturo e incapaz de emancipar-se como o homem da metrópole, assujeitando-se a seguir o modelo construído hierárquica e historicamente perceptível em “Às vezes o rio alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e traiçoeiro.” Para ele, apesar de natureza portentosa, a Amazônia é monótona, “Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na última espira dos remansos – lá se vão, em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo, descendo...”104 as pessoas que vivem aqui, apesar de terem à mão um ambiente colossal são fracas e o que lhes resta é viver as imposições da metrópole.

No discurso de Alberto Rangel percebemos também um discurso positivista homogeneizado, segundo ele, aqui o homem molda-se à natureza, nossas capacidades tornam-se minúsculas à grandiosidade da região, o que nos leva à ideia de cultura homogeneizada, homem aculturado, nada se constrói, tudo é inalterável. A Amazônia para ele, também é monótona, as identidades não se transformam, não existe o contato com a diferença, e se isso não acontece, a tradição não se reelabora. Os homens estão confinados nesse inferno, a identidade aqui, é para ele, unificada, e o homem amazônico deixa-se moldar pela necessidade de se sentir mais próximo da “civilização” buscando ser uma caricatura do homem da metrópole, pois

A fatalidade seringueira ainda não desceu sobre o lago do Tapará e a outros tantos. Barrigudas e seringaranas, nas vizinhanças inumeráveis, despertam apenas a lembrança da indústria com elas impossíveis. E por isto, que a nada se prestam, nem para achas de lenha, nem o seu leite é elástico, tendo o aspecto de semelhança completa a seringa legítima, dispõem-se como paródia de troça. São um escárnio vegetal. [...] Em vez de seiva- milhão, é seiva, é seiva-água morna.105

Diferentemente de Cunha e Rangel, Hatoum lança sobre a Amazônia brasileira um olhar que pressupõe um hibridismo cultural, a quebra de hierarquias, o descentramento de um lugar privilegiado resgatando os valores de cada cultura, entendendo a alteridade como componente de todo e qualquer grupo social, possibilitando a interlocução propícia à troca de experiências no processo de construção da identidade cultural do homem, deixando claro que o discurso uno não é mais viável na experiência de sujeitos que estão denominando de pós-modernos. E no sentido de explicitar seu discurso na perspectiva da heterogeneidade, Hatoum sempre utiliza no mesmo campo de interação elementos que sugerem a diferença cultural, como percebemos no trecho a seguir.

Despediu-se com um aperto de mão e caminhou até o barco com passos apressados, chapéu de palha na cabeça. Comprara também uma isca de corrico, um carretel de linha de náilon e uma rede vermelha com listas brancas. Agradeceu a espera , pôs a tralha no barco e ficou de pé no convés. Américo talvez, para se exibir, tocou o sininho da partida.106

Para Hatoum a Amazônia não é apenas indígena, nessa região há um conjunto de habitantes, pessoas de vários tipos, com problemas diversos, costumes e valores construídos ao longo do tempo, talvez por isso a presença dessa complexidade em suas narrativas, pobres, índios, prostitutas, peixeiros, carregadores, meninas exploradas sexualmente, imigrantes, entre outros elementos que marcam a existência de um campo real de enunciações culturais e reelaboração de culturas.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Viver na fronteira pode ampliar para além de todos os limites os desafios da liberdade de escolha. São nessas fronteiras, que tudo se revela variável, abrem-se possibilidades de tornar possível o impossível. As fronteiras são, nesse sentido, lugares de travessia, passagem.

As diferenças culturais podem ser entendidas como constituintes de identidades, pois somente a partir delas somos capazes de nos reconhecer enquanto sujeitos sociais, nos identificar como tal e contribuir para a reelaboração da tradição cultural.

Interagindo no campo social, nossas diferenças se manifestam, são negociadas e apreendidas. As identidades, nesse campo, são os pontos de identificação nos quais eu me identifico a partir do outro e abro a possibilidade de tornar possível o surgimento de algo novo.

Por tudo isso que dissemos e baseando-nos nas abordagens teóricas e conceituais no decorrer desse trabalho, salientamos dizer que a Amazônia brasileira pode ser uma construção discursiva associada ao fenômeno sociodemográfico das migrações desde as últimas décadas do século XX, e que esse processo migratório pode ser parte constituinte da construção de identidade cultural na Amazônia brasileira.

Podemos supor ainda, que esse processo migratório permitiu a construção de mecanismos como o hibridismo, a heterogeneidade e a transculturação, que são fatores determinantes para a compreensão dessa construção identitária instável da Amazônia, levando em consideração a contrariedade de um discurso que revela a identidade cultural pura e completa, pois diante das discussões, a Amazônia brasileira é um campo de forças sociais permeado de alteridades que interagem entre si, permitindo o diálogo entre as culturas no qual os elementos de uma e de outra são alterados e/ou reelaborados.

Nessa negociação a fronteira é ultrapassada e há o encontro com o “novo”. Sendo a fronteira, o terreno fértil para elaboração de estratégias de subjetivação singular ou coletiva, que dão início ao surgimento de novos signos de identidade, é ela que define a própria ideia de sociedade, a fronteira nesse sentido, segundo Homi K. Bhabha é o “entre-lugar”, espaço em que colocamos a cultura em justaposição, onde nada se perde totalmente, mas se constitui diante da valorização do eu e do outro.

Desse modo, pode se assegurar que a identidade cultural na Amazônia brasileira é plural, heterogênea e híbrida. Nos contos analisados ela está posta na figura do seringalista, do seringueiro, que trazem consigo para a Amazônia brasileira modos de vidas diferentes, isto é, costumes e valores que os afastam e ao mesmo tempo os aproximam pela esperança e pela cobiça; na figura do caboclo miscigenado e dos personagens imigrantes. Todas essas culturas, incentivadas ou não, contribuem para a construção da identidade cultural, pois são os elementos intrínsecos de uma cultura e outra que se imbricam e dão sentido aos novos signos construídos nesse processo.

Sendo assim, a Amazônia brasileira não é simplesmente a Amazônia indígena como é posta, ainda, em muitos discursos positivistas e oficiais. Ela é antes de tudo um terreno de diversidades, uma fronteira com presença de sujeitos concretos, marcados pela alteridade que a todo momento transformam sua identidade instável e incompleta.

Como já dissemos em nossa análise, os discursos que se apresentam sobre a identidade cultural na Amazônia brasileira, apesar de se distanciarem até certo ponto, também tem suas aproximações, pois sob o olhar dos três autores, a Amazônia como qualquer outra região apresenta uma unidade colossal, com grande biodiversidade, e se falamos de diversidade não podemos pensar na cultura como homogênea, como se apresenta nos discursos sobre cultura de Euclides da Cunha e Alberto Rangel, que podem se aproximar do discurso de Milton Hatoum pela apresentação da Amazônia em sua grandiosidade, mas que se afastam pelo modo homogeneizado de ver a cultura sob o olhar da mesmice, pois Hatoum apresenta a Amazônia na perspectiva da complexidade das pessoas que a habitam, do deslocamento do lugar fixo, da interdependência cultural e da hibridização dessas culturas.

Como disse Antonio Callado In. Silviano Santiago “O jabuti que só possuía uma casca branca e mole deixou-se morder pela onça que o atacava. Morder tão fundo que a onça ficou pregada no jabuti e acabou por morrer. Do crânio da onça o jabuti fez seu escudo.”107 À medida que o trabalho de contaminação se instaura, se torna mais eficaz, ou seja, no momento que o eu se deixa contaminar pelo outro e deixa de ser mera cópia para se envolver num processo de hibridização, o elemento híbrido reina. Ao sabotarmos o modelo colonizador através de contribuições de misturas da cultura, nos construímos em nossa identidade cultural.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 TUPIASSÚ, 2005, p. 302.

2 TUPIASSÚ, 2005, p. 302-303.

3 SOUZA, 2001, p. 17.

4 SOUZA, 2001, p. 18.

5 LÉVI-STRAUSS, In. SOUZA, 2001, p. 18.

6 SOUZA, 2001, p. 19.

7 SOUZA, 2001, p. 24.

8 GONDIM, 1994, p. 9.

9 SOUZA, 2001, p. 30.

10 SOUZA, 2001, p. 64-65.

11 SOUZA, 2001, p. 66.

12 SOUZA, 2001, p. 67.

13 SOUZA, 2001, p. 69.

14 SOUZA, 2001, p. 72.

15 SOUZA, 2001, p. 76.

16 SOUZA, 2001, p. 93.

17 BLUNTSCHILI. In. SOUZA, 2001, p.98.

18 SOUZA, 2001, p. 98.

19 BECKER, 2007, p. 23-25.

20 SOUZA, 2001, p. 183.

21 SOUZA, 2001, p. 175.

22 SOUZA, 2001, p. 176.

23 SOUZA, 2001, p. 184-185.

24 SOUZA, 2001, p. 186.

25 CUNHA, 1999, p. 01.

26 PIZARRO, 2005, p.133.

27 CUNHA, 1999.p.57.

28 CUNHA, 1999, p. 7.

29 HATOUM, In. GALVÃO e VENTURA, 2002, p. 324.

30 CUNHA In. RANGEL. 1920, p. 9.

31 CUNHA In. RANGEL. 1920, p. 11.

32 CUNHA, In. RANGEL. 1920, p. 07.

33 CUNHA, In. RANGEL. 1920, p. 21-22.

34 RANGEL, 1920, p. 29-31.

35 HATOUM In. collat 6, 2007.

36 TYLOR, In. LARAIA, 2006, p. 25.

37 HARRIS, In. LARAIA, 2006, p. 26.

38 TURGOT, In. LARAIA, 2006, p. 27.

39 TYLOR. In. LARAIA, 2006, p. 30.

40 HALL, 2003, p. 44.

41 HALL, 2003, p. 44.

42 HALL, 1997, p. 7.

43 HALL, 1997, p. 9.

44 BERND, 2003, p. 15.

45 BENRD, 2003, p. 15.

46 HALL, 1997, p. 9.

47 HALL, 1997, p. 13.

48 SILVA, 2006, p. 20.

49 CEVASCO, 2003, p. 99-100.

50 TOMPSON, In. CEVASCO, 2003, p. 100.

51 ALTHUSSER, In. CEVASCO, 2003, p. 101

52 HALL. In. CEVASCO, 2003, p. 101.

53 CEVASCO, 2003, p. 108.

54 ZUMTHOR, 1994, p. 13.

55 ZUMTHOR, 1994, p. 16.

56 MARQUES, 1998, p. 126.

57 MARQUES, 1998, p. 134.

58 CORNEJO POLAR, 1997, p. 219.

59 CORNEJO POLAR, 2000, p. 271.

60 CORNEJO POLAR, 2000, p. 271.

61 MONTAIGNE In. SANTIAGO, 1978, p. 9.

62 SANTIAGO, 1978, p. 10.

63 SANTIAGO, 1978, p. 17-18.

64 SANTIAGO, 1978, p. 19.

65 SANTIAGO, 1978, p. 26.

66 REIS. (org.) FIGUEIREDO, 2005 p. 465.

67 ORTIZ. In. REIS, 2005 p. 467.

68 GLISSANT. In. VIANNA, 2005, p. 104.

69 VIANNA, In. FIGUEIREDO, 2005, p. 106.

70 GLISSANT, In. VIANNA, 2005, p. 106

71 COSER, In. FIGUEIREDO, 2005, p. 164.

72 COSER, 2005, p. 172.

73 BHABHA, In. ABDALA, 2004, p. 113.

74 BHABHA, In. COSER, 2005, P. 174.

75 BHABHA, 1998, p. 19.

76 BHABHA, 1998, p. 20.

77 BHABHA, 1998, p. 27.

78 CANDIDO, In. Revista Remate de Males, ano 1, p. 96.

79 CUNHA, 1999, p. 2.

80 RANGEL, 1920, p. 28.

81 CUNHA, 1999, p.52.

82 CUNHA, 1999, p. 3.

83 O positivismo surgiu em fins do século XVIII – princípio do século XIX como uma utopia crítico-revolucionária da burguesia anti-absolutista, para tornar-se no decorrer do século XIX, até os dias atuais, uma ideologia conservadora identificada com a ordem estabelecida.

84 CUNHA, 1999, p. 53.

85 CUNHA, 1999, p. 53-54.

86 LARAIA, 2006, p. 25

87 CUNHA, 1999, p.54.

88 RANGEL, 1920, p. 30.

89 RANGEL, 1920, p. 30.

90 RANGEL, 1920, p. 34.

91 HATOUM, 2009, p.30.

92 BHABHA, 1998, p. 19.

93 HATOUM, 2009, p. 30.

94 BHABHA, 1998, p. 23-24.

95 HATOUM, 2009, p. 30-31.

96 HATOUM, 2009, p. 31.

97 HATOUM, 2009, p. 31.

98 HATOUM, 2009, p. 33.

99 BHABHA, 1998, p. 22.

100 HATOUM, 2009, p. 33-34.

101 HATOUM, 2009, p. 34-35.

102 CUNHA, 1999, p. 53.

103 CUNHA, 1999, p. 53.

104 CUNHA, 1999, p. 58.

105 RANGEL, 1920, p. 44-45.

106 HATOUM, 2009, p. 31.

107 CALLADO In. SANTIAGO, 1978, p. 9.


Publicado por: JEANETE DOS SANTOS E SANTOS

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