Pentecostalismo e Nova Era : Expressões da Religiosidade Pós-Moderna

INTRODUÇÃO

Vivemos uma época chamada de pós-modernidade1. Parece estar em moda, pelo menos quando se trata de religião, falar de Nova Era, misticismo, ecologia, como também fundamentalismo, pentecostalismo, êxtase… Palavras que exprimem realidades nada “novas” retornam ao vocabulário corrente com toda força, quando se referem a esses fenômenos.

Muita gente tenta colocar tudo num caldeirão só, numa tentativa vã de misturar tudo e ver o que dá. Outros insistem nas trincheiras dum combate ferrenho e igualmente infrutífero entre Nova Era e Cristianismo, particularmente o Cristianismo pentecostal. Já há uma produção relativamente considerável sobre todos esses fenômenos, embora geralmente tomados em separado e sob o enfoque da sociologia ou da psicologia.

Este trabalho quer ser, portanto, um instrumento de colaboração para a melhor compreensão das realidades consideradas, sob o enfoque filosófico da fenomenologia. Logo, é antes de tudo um convite e ao mesmo tempo desafio a vencermos os próprios preconceitos acerca do tema.

Destarte, após ser estabelecido o método, seguindo os consagrados parâmetros do segundo livro da Metafísica de Aristóteles, passamos à ciência em si. Primeiro numa construção dos conceitos com os quais se vai trabalhar ao longo do texto, não no sentido de esgotar-lhes completamente o sentido numa palavra cabal, mas apenas na tentativa de elaboração de instrumentos de trabalho viáveis. Assim, depois do panorama histórico-conceitual de Nova Era e Pentecostalismo estaremos autorizados a esboçar uma possível relação entre os dois fenômenos tantas vezes tomados como antagônicos. Será um diálogo possível? Não seria a Nova Era obra do demônio, ou o Cristianismo defasado, passado? Será o Pentecostalismo mais uma expressão do fenômeno religioso pós-moderno?

A essas perguntas tentar-se-á responder tendo sempre em vista o caráter introdutório e de esboço deste trabalho e levando em conta suas limitações de espaço, de tempo e o dito popular segundo o qual “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Não se pretende, pois, esgotar o assunto nem se tem a pretensão de encerrar a discussão. Ao contrário, espera-se poder fomentá-la e incrementá-la para, indicando pistas de reflexão, aprofundar os questionamentos e desvelar um pouco mais a verdade.

 

 

 

CAPÍTULO I
O MÉTODO FENOMENOLÓGICO EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO

Para que se atinja a meta de verificar a possibilidade ou não de diálogo entre a Nova Era e os movimentos pentecostais e neopentecostais, é necessário traçar um caminho. Como já dito, a bibliografia a respeito desses dois fenômenos é, pelo menos no âmbito sociológico, antropológico e psicológico, relativamente vasta.

No entanto, pelo próprio caráter da monografia científica, o que se pretende aqui não é uma dissertação sobre dois temas ditos distintos e opostos, mas o estabelecimento da relação entre eles. Por isso, vale perguntar o que a filosofia da religião tem a dizer que possa contribuir com as outras disciplinas.

Assim, sem soberba ou vaidade intelectual, o método mais adequado para atingir a meta proposta não é senão a fenomenologia de Husserl, pelo seu próprio princípio de suspensão de juízo. Sinta-se, pois, o leitor desafiado a, por pelo menos até o término no texto, vencer os próprios preconceitos e a deixar de lado as idéias pejorativas que se tenha em relação aos fenômenos para poder avançar a uma compreensão mais empática através da pesquisa da verdade, essência de toda atividade acadêmica.

 

Geertz dizia que os homens habituados a sentar em cadeiras quadradas, em ambientes quadrados, pensando pensamentos quadrados, devem começar a pôr na cabeça um sombrero mexicano, aquele enorme chapéu redondo, para entender outros mundos. Talvez também os cristãos precisem por na cabeça um chapéu redondo, bem grande, para compreender de maneira renovada e profunda seus próprios esquemas de comportamento e os grandes dogmas da vida de fé. Nesse sentido, no fundo, a Nova Era é um convite para olhar, pelo menos por um instante, segundo o ponto de vista “religioso” que ultrapassa, de maneira ortodoxa ou não, o mundo cristão, passando por cima dele para repensar com olho mais atento as mesmas verdades clássicas, sabendo distinguir entre aquilo que é essencial à fé e aquilo que, ao invés, é assumido vez por vez pela cultura e pelo mundo em que se vive. (Terrin, 1996, p. 17).

 

 

 

Numa fenomenologia da religião não poderemos partir de imediato do conceito de Deus para depois investigarmos a religião, como em outras filosofias da religião. Ao contrário, é necessário procurar na intencionalidade e na vivência do indivíduo o fenômeno, a coisa como nos aparece. Não se quer aqui, por outro lado, fazer uma análise comparativa de religiões ou formas de vivê-las: este não é um estudo antropológico. Por isso, não se fará estudos sobre resultados de pesquisas ou questionários, não querendo desmerecê-los, apenas que não convém aos objetivos propostos.

Trata-se, pois, de um estudo do ponto de vista filosófico. Enquanto tal procurar-se-á verificar que contribuições uma filosofia da religião (mais especificamente uma fenomenologia da religião) tem a nos dar.

Tenha-se claro também que nem o próprio Husserl quis que sua fenomenologia geral fosse tomada como dogma. Vários outros pesquisadores reconheceram-lhe limitações e a utilizaram até onde era possível e necessário.

O que nos interessa aqui é, num primeiro momento suspender o juízo: não emitir previamente julgamentos de valores seja quanto à Nova Era, seja quanto ao pentecostalismo. Com isso em mente, passamos ao segundo capítulo, onde serão tomados em separados os dois fenômenos. Traçaremos um panorama histórico de cada um e procuraremos identificar suas principais características, no anseio de entrarmos no mundo de seus adeptos para compreendermos os fenômenos como eles o compreendem: o fenômeno como ele se apresenta. No terceiro capítulo estudaremos a possibilidade do diálogo. Veremos como um fenômeno entende o outro e procuraremos estabelecer os pontos em que se tocam. Não se trata de apenas mostrar uma mera troca de acusações, tampouco de sonhar a utopia do estabelecimento da religião universal. É tão somente a busca do diálogo em si.

Um último esclarecimento é ainda válido. Seguindo a linha de pensamento de Rudolph Otto, por “compreender o fenômeno como seus adeptos o compreendem e vivem” não se entenda que queremos jogar-nos no perigoso abismo do subjetivismo puro. Portanto, leia-se “o estabelecimento dos noemas e noésis”: estudo dos atos (como os indivíduos vivem a religião em questão – o fascínio e “terror” diante do sagrado) e do objeto (o sagrado, o “totalmente outro”).

CAPÍTULO II
ESTABELECENDO CONCEITOS

2.1 A pós-modernidade como resposta à modernidade

Para que se compreenda a pós-modernidade e sua proposta, é necessário primeiro conhecer aquilo a que ela responde: a modernidade. É também importante ter em mente que falamos em pós-modernidade não necessariamente tomando “pós” em sentido cronológico, como se a modernidade tivesse surgido e a pós-modernidade a tivesse suplantado e apagado todos os seus traços e vestígios, mas justamente no sentido de resposta a algo, pois, como é será possível constatar, ainda hoje há defensores e traços das duas propostas.

Sendo assim, aqui veremos primeiro o que é e como surgiu a modernidade, para depois compreendermos a razão de ser da pós-modernidade.

2.1.1 O surgimento do Racionalismo na Idade Moderna

Racionalismo, tomado apenas etimologicamente, é um termo um tanto vago. Nada mais seria que uma perspectiva cultural pela qual o homem chega a verdades absolutas apenas com o uso da faculdade da razão. Neste trabalho, no entanto, o termo será tomado conforme o define Hegel, como aquela corrente filosófica que vai de Descartes a Kant, passando por Leibniz e Spinoza. Assim, René Descartes é considerado o “pai do Racionalismo moderno”. Foi uma das correntes filosófico-científicas do homem da Idade Moderna.

Para esse movimento, o homem pode chegar pela razão, a verdades de valor absoluto. Seja a partir de fatos, os quais, ultrapassando a mera força dos sentidos, permitem ao homem, com a força da razão, abstrair e atingir condições transcendentais do mundo; seja a partir da pura intuição, que prescinde dos fatos.

O que o Racionalismo buscava, na verdade, era conhecer a essência. Por isso, não se prendia aos fatos e ao mundo sensível, mas afirmava que a razão humana poderia transcender e chegar ao conhecimento de realidades supra-sensíveis, pela força da abstração e das concatenações racionais.

Essa corrente de aproximava, assim, da metafísica de Platão. Não de pode, entretanto, incorrer no erro de achar que o Racionalismo é apenas uma corrente teórica. Ao contrário, terá conseqüências também na ética e mesmo na política.

Para que se compreenda melhor seu surgimento, é importante conhecer seu contexto, pós-medieval e ainda pré-Revolução Francesa e Industrial.

A Idade Média européia, centro a partir do qual de estuda a História do Ocidente, foi dominada pela Igreja Católica Apostólica Romana. O Cristianismo era Cristandade. Igreja e Estado unidos num casamento que parecia indissolúvel. Com e processo de feudalização originado ainda no final da Antigüidade e princípio do período Medieval essa situação se agravou. Toda a conjuntura política, econômica, social, cultural e religiosa era profundamente marcada pela influência da Igreja. Portanto, não é de se admirar que a visão de mundo das pessoas fosse aquela pregada dos púlpitos das igrejas, catedrais e basílicas.

No campo do conhecimento, a segunda etapa da Idade Média se caracteriza pela Escolástica, a filosofia cristã da Idade Média, em sentido estrito, mais especificamente a Alta Idade Média (séculos IX a XIV), em distinção à Patrística, da Baixa Idade Média. O termo “Escolástica” deriva claramente de “escola”. No latim, scholasticus designava justamente o professor das artes liberais, depois o de filosofia ou teologia, seja primeiramente nas escolas dos conventos, mosteiros e catedrais, seja posteriormente nas Universidades.

No período da Escolástica, as formas de ensino eram basicamente duas, que poderíamos claramente comparar àquilo que são hoje nossas aulas expositivas e seminários, respectivamente:

A lectio, ou seja, o comentário de um texto;

A disputatio, que consistia na discussão de determinado problema a partir do exame dos argumentos favoráveis e contrários.

Por isso, a atividade literária nesse período, além de muito importante, assumiu principalmente a forma de comentários ou de coletâneas de questões.

A tarefa intelectual fundamental dos pensadores escolásticos era a defesa da fé com argumentos racionais, tendo em vista que, sendo razão e fé dons provenientes do mesmo Deus, era inconcebível que as duas fossem inimigas ou contrárias, senão que devesse colaborar para a realização do próprio homem.

Assim, não podemos considerar a Escolástica como propriamente autônoma como a filosofia grega. Sendo sua finalidade essa acima estabelecida, o que se fazia nesse período era apenas usar uma filosofia determinada (sobretudo o neoplatonismo ou o aristotelismo) para a explicitação dos dogmas da religião. Vigoraria então o argumento da autoridade para que se fosse aceito como válido um argumento.

 

Auctoritas é a decisão de um concílio, uma máxima bíblica, a sententia de um Padre da Igreja ou mesmo de um grande filósofo pagão, árabe ou judaico. O recurso à autoridade é a manifestação típica do caráter comum e supra-individual da investigação escolástica, em que cada pensador quer sentir-se apoiado pela responsabilidade coletiva da tradição eclesiástica. (ABBAGNANO. 2003, p 344. Grifo do autor.).

 

 

 

Ao longo de toda a história do conhecimento humano e da Humanidade em si, vê-se que o homem sempre tentou compreender o mundo que o cercava. Desde o mito até a atual era da técnica, esse é um problema longe de ser esgotado.

Das cosmogonias e cosmologias gregas chegou-se ao Cristianismo Ocidental medieval. Nesses 10 séculos sob a hegemonia da Igreja Católica, a teologia estava em voga e tinha a seu serviço a filosofia. A concepção de mundo do homem medieval era teocêntrica e profundamente marcada pela religiosidade, ainda que nem sempre fosse aquela oficial ditada pela Santa Madre Igreja.

Entretanto, as coisas começaram a mudar e já entre os séculos XIV e XV se percebia que o feudalismo entrava em crise, por razões que não nos cabe analisar aqui, devido à brevidade deste trabalho. O fato é que, a Idade Média Ocidental compreende aquele período de mais ou menos 10 séculos, entre o fim da queda de Roma e a queda de Constantinopla; predominava a Igreja; o feudalismo era o sistema que organizava a sociedade em si, herdando a filosofia grega e o direito e o idioma latinos.

Falar do declínio do período medieval não é falar, pois, de declínio só de um dos aspectos acima. A queda do sistema feudal foi se dando por (e gerando) mudanças no homem e na sociedade, o que afetou também a hegemonia clerical.

Como acontecera na Grécia antiga, o homem precisava agora de outras explicações para a realidade à sua volta. Com o advento das Grandes Navegações, os horizontes se expandiam. O comércio refervilhando aos poucos, possibilitou o acesso a outras culturas também por obras literárias que foram sendo traduzidas. A Grécia clássica era redescoberta e as artes sofriam efervescência. Claro que tudo isso com o patrocínio da burguesia, que queria ascender, primeiro socialmente, depois politicamente, não só com benefícios, mas com participação (se não detenção mesmo) do poder.

As mudanças queridas, patrocinadas e efetivadas pela burguesia foram se dando aos poucos. Nada disso aconteceu de uma hora para outra, mas com o passar das décadas e dos séculos, culminando na Revolução Francesa.

Outro aspecto a ser ressaltado é que essa mudança de mentalidade acarretou mudanças em todas as esferas da sociedade. Das cinzas do feudalismo foi se configurando o capitalismo. Da hegemonia da Igreja Católica, veio o cisma do Ocidente. A nova ética protestante casava muito bem com o espírito do capitalismo e, portanto, com o ideal da burguesia.

Pela própria índole do capitalismo era necessária a expansão dos mercados. Era mister que houvesse um espírito aventureiro e científico que possibilitasse a concretização do que se almejava. O homem voltou a ser o centro e a medida das coisas. Era o que pregava o Racionalismo.

Esse era o contexto do que se chamava de Ciência no período que antecede o Racionalismo. Era essa a proposta do Racionalismo e o início das promessas da modernidade, que possibilitaram a abertura dos caminhos para a era da técnica que permitiria ao ser humano enquanto tal viver mais e melhor. É importante ter isso claro na mente para uma melhor compreensão do fenômeno e uma melhor percepção do porquê ele não representou uma ruptura plena e imediata com o paradigma precedente e trouxe em seu seio as motivações para o surgimento do paradigma pós-moderno.

 

 

 

 

 

2.1.2 René Descartes

A produção intelectual de Descartes foi uma inovação em diversos sentidos. O “Discurso do método”, sua obra mais famosa é pequena em extensão, porém grande nas idéias que veicula. E mais, foi escrita não em latim, como gostavam e prescreviam os escolásticos, mas em vernáculo (francês), o que possibilitava o conhecimento não apenas aos eruditos como a um círculo um pouco maior de pessoas (um pouco porque a maior parte da população era analfabeta). De qualquer maneira, tudo isso não deixou de ser um impacto e chamou logo bastante atenção.

Tiago Adão Lara ressalta que:

 

Católico convicto, Descartes se propôs encontrar, pela filosofia, fundamentação para uma ordem sócio-política que não descambasse no ateísmo e no materialismo. Essa fundamentação não podia mais ser pedida à fé, pois a Europa estava dividida nesta época: protestantes e católicos brigavam, entre si, para obter a hegemonia.

Esse escopo de Descartes explica por que sua filosofia se esmera em provar, racionalmente, a existência de Deus e a existência da alma como princípio nitidamente diverso do corpo. (1986, p. 35).

 

 

É consenso unânime ou, pelo menos, quase unânime, que Descartes inaugura a Idade Moderna em âmbito filosófico. Portanto, como nesse período ainda ao se havia estabelecido a demarcação entre filosofia e ciência como hoje a temos, pode-se dizer que inaugurou ou foi um dos fundadores da ciência moderna também.

 

2.1.3 Características do paradigma racionalista

Descartes via o mundo como uma máquina. No Discurso do método isso fica bem claro. Ele compara o mundo a um relógio. A natureza nada mais é que um conjunto de peças que deve estar em perfeito funcionamento.

Com essa obra ele pretendia partilhar com o leitor o método que encontrou para si a fim de alcançar uma ciência universal que possa elevar a nossa natureza ao seu mais alto grau de perfeição.

 

Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez, poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma humana, que são os fundamentos de sua metafísica. Na quinta, a ordem das questões de Física que investigou, e, particularmente, a explicação do movimento do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e depois também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e que razões o levaram a escrever.2

 

 

O método de Descartes é o da dúvida. Para a razão funcionar bem, é necessário limpar o terreno da mente de todo preconceito; é preciso, num primeiro momento duvidar de tudo, principalmente do que já se tem estabelecido como verdade absoluta, como dogma. A partir de então, deve-se buscar verdades elementares, verdades que se bastem a si próprias e não precisam de outras precedentes. Pois, duvidando de tudo, aquilo que conseguir se estabelecer como verdade depois disso tem necessariamente que ser uma verdade absoluta. O que se quer com esse método é a garantia de idéias claras e distintas.

Cartésius (“Descartes” em latim – daí o nome método “cartesiano” e “plano cartesiano”) resume e enumera apenas quatro regras, quatro passos a serem dados no caminho de seu método:

 

O primeiro era o de jamais acolher coisa alguma como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção. E de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis fossem para melhor resolvê-las.

O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir. (p.45) 3

 

 

Como podemos perceber, esse método é um tanto matemático. Nada mais natural, considerando que essa era uma das áreas de interesse e pesquisa de Descartes, além da geometria e da física, por exemplo. Vale lembrar que nos séculos XVI e XVII não havia a mesma demarcação do saber tal como hoje temos.

Ser filósofo não excluía ser investigador de outros campos. Ao contrário, às vezes até supunha. Para Descartes, a Ciência era uma árvore da qual a raiz é a filosofia; a física é o tronco e os ramos são os outros saberes particulares.

Assim, o que Descartes almejava era um método que fosse uma espécie de panacéia racional, capaz de resolver todos os problemas da investigação filosófica e racional. Porém, não foi ele quem viu seu projeto levado a cabo, mas Newton, que séculos depois realizou a façanha de medir e estudar a natureza em seus fenômenos através de fórmulas matemáticas.

A física de Newton elevou ao ápice as contribuições e anseios das obras de Kepler, Copérnico, Descartes e Galileu, numa síntese de maestria singular. De modo que a visão do mundo como uma máquina como temos hoje teve seus alicerces assentados desde esses pensadores.

Ver o mundo como uma máquina, a qual podemos decompor em partes menores até compreendê-la a partir dessas partes trouxe muita influência e resultados positivos para as diversas ciências, como essas começaram a desenvolver-se. Esse projeto foi levado a cabo sobretudo a partir do Positivismo derivado do empirismo baconiano.

Fritjof Capra assim se expressa a esse respeito:

 

Enquanto Galileu realizava engenhosos experimentos na Itália, Francis Bacon descrevia explicitamente na Inglaterra o método empírico da ciência. Bacon foi o primeiro a formular uma teoria clara do procedimento indutivo – realizar experimentos e extrair deles conclusões gerais, a serem testadas por novos experimentos –, e tornou-se extremamente influente ao defender com vigor o novo método. Atacou frontalmente as escolas tradicionais de pensamento e desenvolveu uma verdadeira paixão pela experimentação científica. . (1982, p. 51).

 

Com o tempo, a escola empirista inglesa foi sobrepujando a racionalista francesa. Conseqüentemente, o indutivismo de Bacon foi tomando o lugar do dedutivismo de Descartes. Com o advento do Positivismo de Augusto Comte, a ciência foi elevada á cátedra de supremo saber, único, racionalmente válido, mais perfeito de todos. Estava, portanto, estabelecida como definitivamente separada da filosofia e da religião.

Interessa-nos aqui a visão de mundo que permaneceu por detrás e por debaixo de tudo isso: a visão mecanicista que se iniciou com Descartes.

2.1.4 Influências do paradigma racionalista

Descartes retomou uma cisão no ser humano já realizada pelos gregos, a saber, o homem é corpo e alma. Ele conseguiu agravar essa separação. O homem é uma coisa pensante (res cogitans) dentro de uma coisa extensa (res extensa); uma alma aprisionada num corpo, com o qual se comunicava através de uma medula cerebral.

Conforme já visto, o modelo cartesiano comparava a natureza e o corpo do homem, bem como dos animais, a uma máquina, mais especificamente um relógio – cuja fabricação, aliás, atingiu um alto grau de perfeição em sua época –, pois era um modelo privilegiado para outras máquinas automáticas: “considero o corpo humano uma máquina. […] Meu pensamento […] compara um homem doente e um relógio mal fabricado com a idéia de um homem saudável e um relógio bem feito” (Capra, 1982, p. 57 citando Descartes).

 

No parágrafo seguinte, Capra continua:

A concepção de Descartes sobre organismos vivos teve uma influência decisiva no desenvolvimento das ciências humanas. A cuidadosa descrição dos mecanismos que compõem os organismos vivos tem sido a principal tarefa dos biólogos, médicos e psicólogos nos últimos trezentos anos. A abordagem cartesiana foi coroada de êxito, principalmente na biologia […]. (1982, p. 57).

 

Dentre os êxitos que essa maneira de ver o mundo e o homem, esse paradigma científico, propiciaram basta olhar para os avanços da microbiologia, da genética, da física e da química entre outras. Para uma visão mais abrangente dos resultados que a ciência alcançou com o assim chamado modelo reducionista ou mecanicista, vale remeter-nos ao segundo capítulo de O ponto de mutação, onde Fritjof Capra faz uma análise bastante significativa e pertinente.

Aqui interessa-nos reconhecer que a ciência foi sendo construída nesses moldes, mas que ainda antes do século XX surgiram as primeiras críticas, incoerências e dificuldades do modelo reducionista, ainda que no início fossem apenas parciais. Na física, por exemplo, a “descoberta” dos campos de força eletromagnéticos forçou os cientistas a uma adequação até da própria linguagem à nova realidade com que se deparavam. “Crise” maior adveio da Teoria da Relatividade de Einstein, do Princípio de incerteza (Heisenberg) e de todo o desenvolvimento da física quântica, que fez os físicos reverem conceitos e definições, pois nem mesmo o vocabulário de que dispunham favorecia ou permitia a expressão das novas “descobertas” realizados por meios outros que não a metáfora.

Com o passar do tempo, a religião em geral e o cristianismo em particular foram se tornando alvo de senão ódio, pelo menos desprezo por parte dos cientistas e dos círculos de acadêmicos e intelectuais. Pensadores posteriores como Comte, Marx, Feuerbach, Freud e Nietszche hostilizaram profundamente o fenômeno religioso, caracterizando-o como infantil, irracional e danoso ao homem e à sociedade. Ao mesmo tempo reafirmavam as promessas da ciência, quase que deificando-a e tornando cada vez mais largo e profundo o abismo entre ciência e religião e entre fé e razão.

Por outro lado, os teólogos também se entrincheiraram combatendo esses pensadores e essas correntes como a hereges. Somente a partir do século XIX começaram a surgir tréguas a partir do diálogo entre a teologia liberal e a psicologia experimental. O Dr. Norberto Abreu, da UnB assim escreve:

As relações entre ciência e religião no final do século XIX e início do século XX foram descritas por Russel (1985) como dominadas por um espírito de conciliação, decorrente do fim da antiga batalha entre ciência e teologia acontecida nos séculos anteriores em função das sucessivas descobertas científicas. Em seu relato, ele conta que, no século XIX, a maioria dos cientistas britânicos pensava que não existia um conflito essencial entre a ciência que praticavam e “as partes da fé que os cristãos liberais seguiam considerando como fundamentais” (p. 118), assim como acreditavam que era possível sacrificar verdades literais como a do Dilúvio ou a de Adão e Eva. Nesse contexto, passa a ser dominante o espírito de reconciliação sob o qual, por um lado, os cientistas admitiam “modestamente que existem domínios fora da ciência”, e, por sua vez, os teólogos liberais concediam que “não se atreveriam a negar nada que seja suscetível de prova científica” (p. 119). Esse espírito aparece então claramente na idéia de que a ciência por si mesma não e suficiente para explicar com seus métodos as experiências místicas e espirituais. […] (2005, p. 12).

2.1.5 As limitações do paradigma racionalista

Sem dúvida são notórias as mudanças que a revolução causada pelo paradigma racionalista trouxe para a ciência e a sociedade. Entretanto, não podemos nos deixar pela ilusão da ideologia segundo a qual a ciência é o único saber racionalmente válido, que contem a si no mínimo a possibilidade de todas as respostas e a panacéia para todos os males da humanidade. Não importa que cresçamos ouvindo isso. Nesse ponto a crítica de David Hume ainda é um tanto pertinente.

Para que se reconheçam, no entanto, as limitações de um modelo reducionista como o sobre o qual nossa ciência em última instância se assenta, basta que prestemos bastante atenção ao próprio discurso ideológico que subjaz em suas falácias.

Na medicina, por exemplo, a qual é alegada como um modelo dos benefícios do paradigma mecanicista, diz-se que esse paradigma ajudou a combater e erradicar doenças, a elevar a qualidade e a estimativa de vida da população, a melhorar, enfim, as condições de vida do ser humano na Terra.

Comecemos pelo próprio conceito de “doença”. Devido aos avanços da microbiologia, de fato deu-se um salto considerável, da crença na geração espontânea da vida ao conhecimento de organismos microscópicos, e o processo da pasteurização também assegurou uma maior higienização para os produtos do gênero alimentício. Entretanto, esses mesmos avanços como que impediram os médicos e biólogos de compreender o ser humano como um ser de relações, como ser não extra, mas parte do meio ambiente em que vive. Não ajuda no processo de cura uma compreensão de doença como algo muito localizado e isolado, causado por um fator específico – o agente causador – que deve, por sua vez, ser combatido com um medicamento específico. Esquece-se que o ser humano em questão é um “doente” que traz já em si o potencial de cura. Que sua “doença” não é necessariamente causada por um único fator, mas que os fatores psicológicos e ambientais também influenciam, e muito! Esquece-se também que a própria história mostra que não foi só a medicina quem proporcionou um aumento na qualidade de vida da população, mas antes de tudo uma profunda mudança de hábitos e mentalidades. Até porque, como é bem conhecido, a medicina na sociedade capitalista em que se vive não é de alta qualidade disponível a todos de maneira igualitária.

Nesse sentido, é muito importante a crítica feita por Capra e vale, uma vez mais, remeter-nos a ela, pois sem dúvida não é só na medicina que se podem ver as críticas e os danos (por vezes catastróficos) que uma visão puramente reducionista de ciência pode trazer, ao invés dos benefícios prometidos.

A pós-modernidade vem, então, como reação a essas promessas não cumpridas, trazendo em seu bojo as próprias promessas e explicações para o mundo e a natureza e cosmovisão, em suma, estabelecendo-se como um outro paradigma.

Se a modernidade traz o paradigma reducionista ou mecanicista, a pós-modernidade prega o paradigma holístico. Este, ao invés da análise do método científico racionalista-empirista, valoriza a síntese; pretende uma visão orgânica, ecológica, totalizante sobre os fenômenos estudados. No lugar de se concentrar nas partes, como o faz o método mecanicista, que a tudo desmancha, estuda e remonta, uma visão sistêmica do mundo se concentra nas relações entre os elementos e na interdependência deles entre si, deles e o todo e entre os mais variados fenômenos do Universo com o cosmo.

Fritjof Capra, em seu O ponto de mutação propõe de maneira detalhada essa mudança de paradigmas, como um processo natural e conseqüente das mudanças da sociedade. Explica também como que a ciência contemporânea, sobretudo a física quântica, tem cada vez mais se aproximado das idéias de doutrinas orientais milenares como o I ching. Essas “filosofias” também trabalham com os opostos, mas da maneira dicotômica da filosofia grega, de opostos que não de misturam, mas são antagônicos, nos quais se imprime juízo de valor estabelecendo qual o melhor e qual deve ser eliminado a todo custo, como nas relações corpo / mente; matéria / espírito; bom / mal; luz / treva etc. O yin-yang também trabalha com a idéia de opostos, mas não com esse mesmo caráter pejorativo da cultura ocidental. Para os orientais, os opostos não são necessariamente bons ou maus, ao contrário. São em si bastante necessários para o próprio equilíbrio do homem, da natureza, do mundo.

Tudo isso, é claro, traz implicações bem visíveis para o fenômeno religioso e as religiões enquanto tais. Se o paradigma reducionista facilita toda uma construção científica de uma teologia sistemática, o paradigma holístico vai dar preferência a um contato direto e imediato com a divindade, sem necessidade de outras vias que não o próprio indivíduo e a própria divindade que se manifesta nele e no mundo. É nessa situação que podemos falar de “Nova Era”.

2.2 A Nova Era

Quando se fala de Nova Era, é importante ter presente que não se trata de um movimento organizado como os movimentos sociais, mas de uma colcha de retalhos que reúne em si expressões diversas, antigas e novas, às vezes até aparentemente irreconciliáveis. É muito mais uma cultura ou expressão cultural religiosa (ou pseudo-religiosa) do que uma religião ou movimento social/religioso.

Esse fenômeno é também conhecido como Era de Aquário. Diz-se que a Era de Peixes foi a da Cristandade e do Cristianismo. A Era de Aquário, portanto, já começou, substituindo o Cristianismo e seu paradigma por uma nova maneira de ver, encarar e viver a vida; enfim, um novo paradigma. Assim diz Aldo Natale Terrin:

“Nova Era”, “New Age”, “Era de Aquário” são termos que indicam esse movimento que olha para frente com saudade do passado e do passado remoto. Se o termo nova era remonta à esotérica Alice Bailey, o seu significado não se esgota dentro do esoterismo, significando hoje em dia muito mais. Está ligado à concepção de Jung sobre as passagens de época para época, a partir das “coisas que se vêem no céu”. A idade de Aquário é vista, portanto, como a Era cujo elemento é o Ar e cujos planetas governantes são Saturno e Urano. E, enquanto Saturno indica mais a estagnação e a inércia, Urano indica a mudança, a transformação, o progresso, a consecução de um novo estado avançado de desenvolvimento da consciência. Desse modo, hoje, Nova Era é um “termo guarda-chuva”, capaz de acolher tudo e o contrário de tudo: Saturno e Urano juntos. Para além dessa nebulosa de significados, porém, veicula pelo menos uma realidade com a sua marca específica: é uma realidade que se afirma como “contra-altar” à secularização, como “contracultura” quanto ao moderno, como pós-moderno light, enquanto procura corrigir os grandes conflitos da história e das sociedades com um surplus de “consciência” e de humanidade, negando o predomínio da razão e da técnica (1996, pp. 15-16).

 

Muito embora o autor delineie pelo menos alguns dos traços principais do que vem a ser Nova Era, é importante frisar que ele não tem a pretensão de esgotar todo o seu significado nesse parágrafo ou em sua obra. Seria até um risco e um erro muito grande querer descrever e transcrever tudo o que a Nova Era traz em si e consigo. Por isso, o que se pretende também aqui é apenas “oferecer uma primeira visão global” (1996, p. 17).

2.2.1 O surgimento, os lugares e os mestres da Nova Era

Mesmo não querendo apenas repetir um jargão de que “tudo o que surge de novo vem dos Estados Unidos e é por eles difundidos”, é impossível não associar as origens desse fenômeno às da Coca Cola ou ro rock – admitindo-se, naturalmente, que não com as mesmas proporções nem as mesmas formas. Em seu próprio seio ela está impregnada de das religiões e idéias orientais (harmonia cósmica universal, o valor da mística, superação da dicotomia mente/espírito etc.).

Ainda assim, foram justamente em centros clássicos de desenvolvimento do pensamento da Nova que na década de 70 essas idéias foram sendo concentradas, aproveitadas e aprofundadas: Pasadena e Esalen (Califórnia), Princeton (Nova Jersey). Aliás, atualmente, só na Califórnia há mais de 40 desses Growth Centers funcionando, onde se procura desenvolver o potencial humano de metapsicologia e metafísica (mundo oculto paranormal).

Criticando a técnica, a ciência e a epistemologia, a Nova Era pretende um discurso científico ou pseudocientífico. Para isso, apropria-se de textos e idéias de mestres antigos já consagrados como de pensadores modernos e contemporâneos, sobretudo no campo da física e da psicologia atuais.

Dos mestres antigos podemos citar

[…] o abade calabrês Joaquim de Fiori, que na manhã de Páscoa de 1190 teve uma grande iluminação, na qual pôde ver por um instante todas as conexões intrínsecas à história da salvação. A sua visão tornou-se importante, sobretudo porque atribuiu ao terceiro período, isto é, ao período do espírito Santo, a idade da intelligentia spiritualis, na qual se revela a verdade divina sem necessidade da Escritura e dos sacramentos […]. E, de fato, a nova época (Nova Era) se configura como o período da liberdade, da contemplação, da fraternidade, do amor. (Terrin, 1996, p. 53. Grifo do autor).

 

 

Depois dele, veio ainda o idealismo alemão e O. Spengler, que viu no abade a superação do dualismo agostiniano, mas em idéias que, por serem um olhar místico, devessem perder o sentido no momento em que fossem assumidas intelectualmente e transformadas em premissas de um pensamento “científico”. Tudo isso vem ao encontro da proposta de interpretação livre, espiritual e romântica da terceira era descrita pelo abade, a Era do Espírito Santo, que viria transformar e suplantar a Era do Filho (Era de Peixes).

Nicolau de Cusa também é invocado em favor das “novas” idéias. Nele

 

Predomina a suprema idéia da totalidade como momento abrangente das partes, dos contrastes, das diferenças. E a Nova Era – que busca acima de tudo a visão “orgânica” da realidade, aquela para a qual já apelava Spinoza e que ecoa hoje através da própria filosofia, por H. Jonas – encontra um ponto de referência não secundário nesse cardeal católico precursor dos novos tempos e testemunha de uma visão aberta e de um horizonte claramente oniabrangente da visão cristã. (Terrin, 1996, p. 54. Grifo do autor).

 

No período de declínio da Escolástica há também mestre Eckhart, bastante citado no meio da Nova Era. Suas idéias sobre o retorno da alma para Deus e de sua unidade e identidade com ele foram condenadas como heréticas pela Igreja Católica após sua morte, mas influenciaram e influenciam místicos e espiritualidades em nossos tempos.

 

Um outro pensador que merece ser citado, segundo Terrin, é Schleiermacher, teólogo da “mística da natureza”:

Quando fundamenta a religião sobre a “natureza infinita do todo, do uno e do inteiro”, acolhe e sanciona a visão holística da Nova Era sem hesitações, e quando define a própria essência da religião a partir do “sentido e do gosto do infinito” faz também uma operação epistemológica análoga àquela desejada pela Nova Era: determina o tipo de conhecimento específico da religião, postulando uma tese que vê a religião como sendo diferente da metafísica e da moral justamente no sentimento, ou melhor, da intuição. (Terrin, 1996, pp. 54-55).

 

Até aqui, podemos ver claramente que a Era de Aquário bebe diretamente de fontes platônicas, neoplatônicas e gnósticas. Isso se deve à sua forte veia mística, o que pode ser constatado na história do pensamento ocidental nas diversas correntes de misticismo da Idade Média. O diferencial está, contudo, na união das fontes: misticismo ocidental e religiões orientais.

Entretanto, não podemos deixar de lado alguns dos mestres mais próximos de nós cronologicamente. Por exemplo: P. Teilhard de Chardin, H. M. Enomiya-Lassalle e o guru indiano Sri Aurobindo.

O primeiro foi um jesuíta antropólogo que inspira a Nova Era na mesma proporção em que foi hostilizado pela Igreja Católica. Naturalmente o motivo da inspiração e da hostilização é o mesmo: seu posicionamento por demais reconciliador entre Deus e mundo e natureza e espírito. Sua visão sobre a evolução da matéria, numa passagem progressiva da biosfera para a noosfera, bem como sua visão global sobre a história dos homens, de Cristo e de Deus também têm muito que dizer e contribuir para a Nova Era.

Ao seu lado há também outro jesuíta, mas que morreu há poucos anos: Enomiya-Lassalle. Viveu muitos anos no Japão e se tornou mestre zen, o que lhe possibilitou uma combinação entre a espiritualidade oriental e a fé cristã.

Sri Aurobindo, por sua vez, é um guru indiano bastante conhecido tanto no Oriente como no Ocidente. É claro que não poderia faltar pelo menos um desses grandes mestres a ser citado, dentre tantos que influenciam as idéias e práticas que circulam na Nova Era. Ele vislumbra uma “transformação da consciência”, numa evolução para o espírito de todo o universo. Ao passo que a matéria ascenderia, a consciência divida desceria, até o ponto de encontro: a consciência supramental, o divino. Esse caminho já está sendo lentamente preparado para a transformação do mundo todo. Aliás, em 1968 foi fundada sob sua égide a cidadezinha de Auroville, que trabalha para que se realize essa nova consciência mundial.

Muitos outros pensadores poderiam ser aqui evocados. No entanto, não é nosso objetivo a elaboração de um compêndio, e as próprias limitações das pesquisas impedem que os supracitados pudessem ser aprofundados. O que nos interessa no momento é o sumo das idéias centrais vinculadas para que se possa compreender pelo menos algumas das principais características desse fenômeno e, olhando depois as características do pentecostalismo, se estabeleça a possibilidade do diálogo entre ambos.

2.2.2 Características da Nova Era

Aldo Terrin, ao iniciar a tratar sobre a Nova Era nos diz que:

A tese predominante da Nova Era deve ser enfatizada para que se possa distinguir essa sensibilidade religiosa de todos os outros movimentos que possuem uma fisionomia mais clara, uma doutrina mais precisa e encabeçam uma liderança sociocultural específica. Trata-se aqui apenas de reconhecer a valor da intuição contra a razão, de yin contra yang, do hemisfério direito do cérebro contra o hemisfério esquerdo, para poder “metamorfosear a consciência e a vida”, […]. (1996, p. 19).

 

 

Nesse ponto, o autor nos remete a O tao da física, de Fritjof Capra, para uma compreensão mais aprofundada sobre a concepção chinesa de yin e yang. Capra Também retoma essa explicação no primeiro capítulo de seu O ponto de mutação. Como vai nos interessar bastante neste trabalho para melhor entendermos os desdobramentos da Nova Era, também aqui será apresentada a explicação dada por Capra.

 

2.2.2.1 O I ching

Acima já havíamos acenado para a influência das religiões e doutrinas orientais no ocidente com a Nova Era. Dentre essas idéias, sem duvida o I ching sobressai como explicação da realidade. Essa é, aliás, a base do pensamento chinês.

Nessa “filosofia”, o tao – a essência primária da realidade – é um processo contínuo de fluxo e mudança. Esse processo é, na verdade necessário e é a forma de organização e “funcionamento” de todo o universo, através da flutuação cíclica de dois pólos arquetípicos fundamentais: o yin e o yang.

Antes da explicação dos seus significados, fique aqui claro que, embora se fale de dois pólos arquetípicos fundamentais que flutuam dando ordem ao universo, não se trata da típica dicotomia ou oposição entre dois contrários que a mentalidade ocidental está tão acostumada a procurar e enxergar em tudo. Por isso, “é importante, e muito difícil para nós, ocidentais, entender que esses opostos não pertencem a diferentes categorias, mas são apenas pólos extremos de um único todo” (Capra 1995, p. 33).
Se são pólos de um único todo, não existe nada que seja só yin ou só yang, mas todos os fenômenos e acontecimentos do universo são manifestações das oscilações existentes entre ambos. Poderíamos, concordando com Capra e com Porkert, por ele citado, estabelecer a seguinte relação entre esses dois arquétipos:

YIN
CONTRÁTIL
RECEPTÍVEL
CONSERVADOR
TERRA
LUA
NOITE
INVERNO
UMIDADE
FRESCOR
INTERIOR
FEMININO

YANG
EXPANSIVO
AGRESSIVO
EXIGENTE
CÉU
SOL
DIA
VERÃO
SECURA
CALIDEZ
SUPERFÍCIE
MASCULINO

Também é bastante pertinente esclarecer que yin e yang nunca estiveram, na cultura chinesa, associados a valores morais. Nem yin nem yang são bons ou maus entre si. O que é bom é o equilíbrio dinâmico entre ambos e, por conseguinte, o que é mau ou nocivo é o seu desequilíbrio.

Segundo essa concepção, história, evolução, progresso não são lineares, mas cíclicos, numa constante oscilação entre yin e yang. “Tendo yang atingido seu clímax, retira-se em favor do yin; tendo o yin atingido seu clímax, retira-se em favor do yang” (Capra, 1995, p. 33). Assim, após o apogeu da modernidade, onde predominou o yang, viria a Era de Aquário carregada do yin procurando dar o equilíbrio.

2.2.2.2 “O yang se retira em favor do yin”

Já dissemos como a Nova Era surgiu como resposta ao Império da razão e da experiência. Falta-nos ainda saber o que ela propõe ou repropõe como novidade para estes tempos.

Quando falamos da modernidade e do racionalismo dissemos como a razão foi exaltada na ciência, tornando-a imperadora e autoritária a ponto de se autoproclamar a única forma válida de conhecimento. Não tendo cumprido suas promessas de vida melhor outras propostas começaram a surgir e agora assistimos a um verdadeiro “des-endeusamento” da razão e um “re-encantamento” do mundo. O ser humano procura de novo integrar-se ao meio onde vive, a si mesmo, ao transcendente. O elo perdido na Idade Média é agora resgatado.

Cada vez mais se busca valorizar o que é intuitivo, espiritual, transcendental. Procura-se com renovador ardor o hiperunâneo platônico ou suas variações. Um mundo sem dor ou sofrimento é intensamente desejado. Surgem ou se redescobrem métodos para alcançá-lo: meditação, budismo, hinduísmo, técnicas psicossomáticas (shiatsu, do-in, heiki, homeopatia, acupuntura, yoga, massagem etc.), importações orientais, enfim. Entretanto, à diferença do cristianismo dominante e de outras religiões, este mundo não é visto como mal em si, mas bom, harmonioso, meio de ir além. Daí a preocupação com a ecologia e o florescimento e ONG’s e movimentos preocupados com o verde. À diferença da modernidade, no entanto, o ser humano não é o centro do universo ou extra naturae, mas parte integrante do todo. Prefere-se a síntese holística à análise cartesiana.

Daí o não-preconceito com o diferente, a fomentação do sincretismo, a busca pelo antigo e primitivo. As religiões animistas e espiritualistas oferecem explicações mais plausíveis dentro dessa cosmovisão. Anjos e demônios voltam a povoar o outro e mundo e este também. É possível estabelecer contato com espíritos-guias – a mediunidade ganha força. Em certos lugares isso chega mesmo a virar show quando publicamente se oferece a oportunidade de comunicar-se com figuras famosas como artistas, filósofos ou chefes políticos e militares importantes ao invés de apenas parentes e amigos em particular. É o chamado channeling, sobre o qual não nos deteremos por, concordando com Terrin, considerar que seja apenas um apêndice e não a essência do fenômeno.

Por detrás, debaixo, e em redor de tudo isso, podemos perceber que o que sustenta e incentiva essa mudança de paradigma é uma mudança na concepção de Deus até então em voga no Ocidente. O Deus da Escolástica e dos filósofos, dos teólogos e dos manuais de teologia dogmática, dos silogismos perfeitamente encadeados e da lógica racionalmente válida não preenche os corações e nem permite um contato capaz de suprir as necessidades do coração do homem. Era preciso um Deus mais imanente, próximo, amoroso, materno, capaz de realmente tocar. O Cristianismo percebeu isso muito bem ainda na Idade Média, com suas várias correntes místicas de veia platônica e neoplatônica. O pentecostalismo não deixa de ser uma expressão desse anseio.

São bem sabidas as limitações desse trabalho. Cada uma dessas características e mestres em particular poderia bem ser tema de um trabalho separado. Aliás, poderia bem encher bibliotecas sem esgotar o assunto. Contudo, acreditamos que o panorama oferecido é capaz de deixar entrever as linhas onde poder-se-á estabelecer contato e diálogo com a realidade que vem a seguir.

2.3 O pentecostalismo

No verbete “pentecostalismo”, no Dicionário de termos religiosos e afins, de Aquilino de Pedro, encontramos:

 

Movimento cristão que salienta fortemente a importância do Espírito Santo e os aspectos mais relacionados com a Terceira Pessoa da Trindade: batismo no Espírito, dom de línguas, curas… e, em geral, os carismas. Destacam também a oração de louvor. Surgiu em comunidades protestantes. Atualmente existem também numerosos grupos ou comunidades de pentecostais (ou carismáticos) católicos. Em geral, se valorizam neles a mencionada oração de louvor, o compromisso moral individual, o apreço pelo carismático sem desconhecer a autoridade. São vistos como pontos menos positivos ou negativos o “afã” pelo milagroso e o desinteresse pelos aspectos da justiça social. (1999, p. 241).

2.3.1 O surgimento

O pentecostalismo surgiu no protestantismo fim do século XIX, nos Estados Unidos, ao lado de outros movimentos com os quais partilha algumas características, tais como o fundamentalismo, o milenarismo, evangelicalismo 4.

Originou-se no âmbito da Igreja Metodista, fundada por John Wesley. O século XIX, nos diz Ivo Pedro Oro5, assistiu a uma profunda secularização da sociedade capitalista. Se Max Weber identificou a ética protestante como propulsora do capitalismo, com o passar das décadas esse mesmo capitalismo proporcionou um ambiente de resfriamento do fervor original do protestantismo: o envolvimento cada vez maior com as atividades geradoras de renda e lucro, advindo da cada vez maior urbanização e industrialização; a credibilidade sempre crescente da ciência e da tecnologia (enquanto promessas da modernidade para uma vida melhor), com suas explicações sobre a realidade, o homem, a vida, a religião, a Bíblia; a conseqüente dessacralização do mundo, da vida e do ser humano; o surgimento e expansão da chamada e já mencionada teologia liberal etc.

Com tudo isso, os membros da Igreja Metodista perceberam o distanciamento de sua Igreja dos ensinamentos do seu fundador. Isso também se verificou em outras igrejas protestantes posteriormente. A partir de então, esses membros fundaram um movimento chamado Holiness (Santidade), que visava justamente promover esse retorno às raízes e ensinava que, para a salvação, era necessária a conversão e, em seguida, uma nova e mais profunda experiência religiosa: o “batismo no Espírito Santo”.

Assim diz Pe. Alberto Garuti - P.I.M.E:

O pastor Charles Pharam, nos Estados Unidos, foi quem mais aceitou as idéias do Holiness, e as ensinou na escola de estudos bíblicos em Topeka, Kansas. Os alunos, que concordavam com essas idéias, acreditavam ter recebido o Espírito Santo e sentiam-se guiados em suas vidas pelo mesmo Espírito.

Segundo uma interpretação ao pé da letra de alguns trechos dos Atos dos Apóstolos (2, 1-12; 10, 44-48; 19,17), eles acreditavam que o sinal característico por ter recebido o Espírito Santo era o dom das línguas e, posteriormente, o dom da cura das doenças.
Surgiram assim comunidades de pessoas que aspiravam a esses dons do Espírito e que, sem pretender fundar uma nova denominação religiosa, desejavam levar um pouco de renovação às comunidades metodistas e protestantes em geral.

No início, sua vida não foi fácil. Seu entusiasmo exagerado levantou suspeitas entre as comunidades batistas e metodistas, que acabaram se afastando do movimento. Sentindo-se rejeitadas pelas denominações tradicionais, as novas comunidades acabaram formando um movimento próprio, passando a serem chamadas “pentecostais” pelo fato do ponto central do movimento ser o batismo no Espírito, recebido como num segundo Pentecostes.

Fundamentalmente, vemos nesse movimento, além do entusiasmo e da exaltação, o mesmo anseio que está na origem do protestantismo nos Estados Unidos: o desejo de liberdade, de não depender de uma Igreja institucionalizada, de formar comunidades mais livres, justamente o que fizeram os que, em 1620, fugiram da Inglaterra no navio “Mayflower”, pois se sentiam sufocados pela Igreja do Estado, a anglicana.6

 

 

 

No Brasil, o protestantismo já está presente desde meados do século XIX, trazido por imigrantes. No entanto, o número de seus adeptos começou a crescer de maneira acentuada somente depois de trazido para cá o ramo pentecostal e de surgidas as primeiras igrejas pentecostais brasileiras, a partir de 1950, de maneira que atualmente, mais de 70% dos que se dizem protestantes são de igrejas pentecostais.

Em 1910, numa reunião da Assembléia de Deus no Estados Unidos, depois de ouvida insistentemente, na oração em línguas, a palavra “Pará”, tendo-a interpretado como sendo um destino de missão, no ardor de Paulo e Barnabé dos Atos dos Apóstolos, procuraram em mapas, descobriram o Estado do Pará e pra lá enviaram dois missionários suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg.

Pe. Alberto Garuti assim se expressa sobre as igrejas pentecostais brasileiras:

Até 1950, o protestantismo de matriz pentecostal estava reduzido, no Brasil, a três organizações religiosas de matriz americana: Assembléia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e Igreja do Evangelho Quadrangular.

A partir dessa data, começou a se impor um pentecostalismo autônomo, com matriz brasileira e independente do exterior. As quatro Igrejas que mais se impuseram foram:

a Igreja Brasil para Cristo, fundada em 1956 por Manoel de Mello, substituído depois da morte pelo filho Paulo Lutero de Mello e Silva;

a Igreja Deus é Amor, fundada em 1962 por Davi Miranda;

a Igreja Casa da Bênção, presumivelmente fundada em 1974;

a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 por Edir Macedo.7

 

2.3.2 Características

 

Uma primeira situação que sobressai no âmbito das igrejas pentecostais é sua alta tendência à divisões em outras igrejas. Isso se deve, entre outras coisas, à livre interpretação da Bíblia e da facilidade de enxergar no cotidiano sinais da ação e até dos milagres de Deus na vida do crente. Assim, qualquer discordância quanto a alguma interpretação pode ser facilmente resolvida com o surgimento de outra igreja.

 

Esse é o caso, por exemplo, do aparecimento da Igreja Universal do Reino de Deus, na década de 1970, fundada por Edir Macedo, Romildo Soares e Roberto Augusto Alves, oriundos da Igreja Pentecostal Nova Vida. Devido ao surgimento “tardio” e a algumas características que saltam à vista mais que em outras, a IURD, com outras como a Deus é Amor, fazem parte do neopentecostalismo.

 

Contudo, o que todas têm em comum, segundo Pe. Alberto Garuti, em maior ou menor grau, naturalmente é:

 

• a importância dada à revelação direta do Espírito Santo, que consistiria em graças concedidas às pessoas para entenderem as verdades e os mistérios da fé contidos nas Escrituras;

• a prática de batizar somente adultos;

• a crença numa iminente segunda vinda de Cristo;

• um rigor moral que proíbe o que pode parecer fútil e mundano, como beber, fumar, dançar, assistir à televisão e, sobretudo para as mulheres, a frivolidade no vestir, no corte dos cabelos, o uso de calças compridas, etc;

• grande facilidade em interpretar como avisos ou revelações divinas certos acontecimentos da vida;

• visão das doenças como punições divinas pelo pecado. Não que Deus envie diretamente a doença, mas permite que o diabo a cause como castigo para o crente;

• a busca da cura da doença especialmente pela oração, a ponto de evitarem ir ao médico ou de tomar remédios;

• a freqüente presença de Satanás e, como cura, a prática do exorcismo.8

 

 

 

 

Não seria audácia acrescentar a essa lista que o pentecostalismo é no fundo uma reação ao tradicionalismo dogmático e autoritário – não sem cair, é claro, no seu próprio autoritarismo e dogmatismo – das igrejas históricas.

 

Procuram-se as causas para a rápida propagação desse fenômeno. Dificilmente poder-se-á encontra a causa única e cabal. Porém, os diversos enfoques – sociológico, psicológico, pastoral – em conjunto, sem dúvida teriam grande contribuição a dar para melhor compreendermos a situação.

 

Até mesmo devido a contexto de surgimento e implantação no Brasil (e outros países subdesenvolvidos), a sociologia vai ressaltar que as igrejas pentecostais fazem seus adeptos principalmente nas periferias dos grandes centros urbanos, onde uma série de problemas típicos dos grandes inchaços populacionais não encontra solução onde deveria: nos poderes públicos. As igrejas, enquanto pequenas comunidades que oferecem amparo, uma promessa de vida melhor, uma explicação plausível para a realidade e dificuldades que os cercam e até mesmo uma solução para as suas vidas, através duma mudança de conduta e fé no poder divino apresentam, então, uma proposta bastante coerente e atraente, sobretudo para o enorme contingente desorientado e desempregado advindos do processo de migração e êxodo rural.

 

A psicologia nos apresenta a satisfação da necessidade profunda que o ser humano tem de se sentir acolhido. Ora, perdendo o senso de comunhão que há nas famílias tipicamente estruturadas, desagregadas pelos mais diversos problemas sociais e agruras da vida, somando à sensação de abandono por parte das autoridades e da sociedade em geral e mesmo à falta de sentido para a vida, não fica difícil perceber porque as igrejas pentecostais, enquanto comunidades pequenas, onde todos se conhecem e se envolvem emotivamente no ambiente propício para isso, onde, devido ao forte apelo para a emoção o sentido de pertença a um grupo é forte, se multiplicam e estão cada vez mais lotadas.

 

Nesse sentido cabe analisar a pastoral da Igreja Católica, bem como das outras igrejas históricas e tradicionais, que não oferecem esse sentimento de pertença e essa acolhida, tão caros a todos nós, porque componentes da nossa afetividade, dimensão tão tipicamente humanos, porque nos distingue e nos humaniza. Buscando o sentido para a vida e a solução para as angústias no Deus que não é convenientemente apresentado nessas igrejas, também fica fácil perceber porque o trânsito religioso em direção aos ambientes pentecostais.

 

Fenomenologicamente poderíamos dizer que o divino e transcendente, que no fundo é o que o ser humano mais busca na vida, não é encontrado em meio ao caos dos problemas sociais em que vivemos, nem tampouco em semblantes sisudos e nada acolhedores ou preparados pastoralmente das igrejas tradicionais. Como reação típica da pós-modernidade, o “totalmente outro” é procurado na emoção, no irracional9, no sentimento, e encontrado no mundo re-encantado apresentado pelo pentecostalismo.

 

Nas igrejas neopentecostais, sobretudo na IURD, vale destacar ainda algumas outras características. Uma delas é a veiculação da assim chamada Teologia da prosperidade, segundo a qual para que Deus haja na vida do fiel este deve estar disponível financeiramente, pagando o dízimo e dando a oferta, na certeza de que Deus é fiel e sempre cumpre suas promessas, e há de cumular de muitos mais bênçãos o bom dizimista, na mesma medida em que este contribuir com a igreja.

 

O imaginário coletivo a respeito de espíritos agindo livremente no mundo também é bastante acentuado. O Satanás e seus demônios são os responsáveis por toda sorte de males que há no mundo e na vida do crente. Assim, os cultos estão sempre lotados, atraindo uma massa de doentes, pobres, desempregados, desiludidos, que, em cultos como a sessão do descarrego às terças-feiras, têm os demônios, os encostos de sua vida exorcizados pelos pastores, na mesma proporção em que dão o dízimo com generosidade. Diz Rabuske (2001, p. 335) a respeito da crença no demônio em ambientes fundamentalistas:

 

O fundamentalismo se caracteriza por uma interpretação literal das Escrituras. Não há espaço para uma interrogação de cunho hermenêutico. A aplicação para o mundo do leitor é mecânica. A conseqüente prática consiste em tentar repetir mecanicamente o que os evangelhos narram, principalmente no que diz respeito aos milagres em geral e aos exorcismos em particular. Essa maneira de proceder vem ao encontro da mentalidade tradicional acrítica, que continua a compreender o demônio e seu mundo tal como sempre foi veiculado na cultura ocidental, especialmente na literatura clássica. O fundamentalismo é o modo de pensar das pessoas que crêem não poder abdicar da fé no demônio.

 

 

Esses demônios são facilmente identificáveis em sua atuação no mundo: são os orixás das religiões afro-brasileiras, são os adeptos de outras religiões, em geral, mesmo de outras igrejas cristãs, os que são “do mundo10”, os que não se comprometem com a casa que eles pregam etc.

 

Tudo isso é veiculado amplamente e com veemência não só nos templos e cultos, como nos mais diversos meios de comunicação, onde, com um marketing profissional e arrojado se transmitem pregações, celebrações, orações, enfim, idéias típicas desse movimento religioso e dessas seitas. Só a IURD, por exemplo, possui no Brasil duas redes televisivas e algumas estações de rádio.

 

Essa é, na realidade, uma característica bastante premente. Acentua-se cada vez mais a distância entre o considerado sagrado (espaço celebrativo – templo –, o pastor/padre, aquilo, enfim que prega a moral e a doutrina de cada igreja) e o considerado profano (o mundo do trabalho, da cultura, as atividades do cotidiano) ao mesmo tempo em que se tenta com sempre maior força se utilizar dos meios do profano para chegar ao sagrado, sacralizando e re-encantando o mundo e a vida, como num retorno à Idade Média com todos os instrumentos tecnológicos da modernidade11.

Também na Igreja Católica podemos falar de um pentecostalismo, no movimento denominado Renovação Carismática Católica12. Surgiu também nos Estados Unidos, mas num contexto um pouco diferente do pentecostalismo protestante. Foi na década de 60 (época do Concílio Vaticano II, considerado uma “primavera de renovação para a Igreja”), a partir dum encontro de retiro de oração de estudantes universitários de Pittsburgh. Portanto, originou-se e atraiu primeiramente a classe média, a juventude universitária e urbana.

 

Diferentemente do pentecostalismo protestante, a recorre à autoridade estabelecida submetendo-se à autoridade papal e do magistério da Igreja sem questionar sua validade. Daí que defenda ferrenhamente até as ditas mais conservadoras doutrinas e dogmas católicos. Por exemplo, não há restrições para batismo sacramental a crianças, não há ataques a Nossa Senhora (ao contrário!) ou às imagens nas igrejas, enfim, a nenhuma doutrina oficial do Catecismo da Igreja Católica.

 

É possível, no entanto, o estabelecimento, ou pelo menos tentativa de um estabelecimento de um denominador comum entre essas diversas correntes:

A ênfase em uma experiência mística com Deus, que se dá através da oração (pessoal e comunitária), manifestando-se através dos sentidos, do êxtase, do milagroso;

O enfoque especial à pessoa, presença e atuação do Espírito Santo, enquanto doador dos dons e carismas que possibilitam ao crente a experiência com Deus almejada e acima descrita;

 

A facilidade em perceber Deus no cotidiano da vida, através dos mais variados sinais (sonhos, acontecimentos, pessoas etc.), revelando um profundo desejo de imanência da divindade, que fala quase “face a face” ao crente como a Moisés no Êxodo, sem deixar de reconhecer-lhe a dimensão absolutamente transcendente ou cair num panteísmo – considerado, aliás, abominável;

A institucionalização quase nula sobretudo nas fases iniciais de estruturação das igrejas;

A “demonização” ou desprezo do outro que é diferente (de outra igreja, religião ou “do mundo”);

A utilização do profano (televisão, marketing, músicas populares etc.) em benefício do sagrado.

 

Sem dúvida poder-se-ia prosseguir em identificar outras características comuns a essas diversas correntes do pentecostalismo. Contudo, o que temos até aqui já basta como instrumental para continuarmos a proposta deste trabalho no próximo capítulo.

 

 

CAPÍTULO III
O DIÁLOGO

 

Já foi visto anteriormente que há muita possibilidade e efetivação de trocas mútuas de ataques entre a Nova Era e o Cristianismo, sobretudo pentecostal.

 

De um lado, temos que a Nova Era já considera o Cristianismo ultrapassado. Sua Era, a de Peixes já passou, cedendo lugar à atual, a de Aquário. Suas doutrinas são antiquadas, principalmente a respeito das idéias sobre Deus, por serem muito preocupadas com a forma racional que devem assumir sacrificando até mesmo o conteúdo, mutilando-o. Seus adeptos não demonstram o vigor de um encontro pessoal e vivo com a divindade tão presente na natureza, no mundo, no homem. As diversas igrejas não manifestam o sinal da unidade que pregam e não possibilitam em seu espaço o tão desejado encontro com Deus, porque esse não pode estar preso a grilhões e correntes de esquemas, dogmas, instituições e convenções.

 

Dessa maneira, como uma completa suspensão de juízo é algo ideal, pois o ser humano carrega sempre em si uma boa parcela de bagagem de pré-conceitos e “pré-juízos”, os adeptos da Nova Era, embora queira unir o novo e o velho e acolher tudo, num sincretismo e numa abertura ao diferente, já que é ela própria “diferente” na sociedade, coloca-se sob suspeita tudo o que cheira a um mofo duma tradição enferrujada e gasta, incluindo igrejas, doutrinas, dogmas.

 

Por outro lado, os cristãos também rebatem, ou com uma tentativa de neutralidade e indiferença (ou mesmo ignorando) ou com desprezo, como fazem sobretudo os pentecostais. Nesses ambientes é comum fazer-se críticas à Nova Era colocando-a como obra do demônio que anda solto no mundo, como uma onda de doutrinas falsas, erradas e heréticas que deve ser exatamente por isso evitada e combatida a todo custo, como um caminho certo para o inferno, como joio e por aí vai. Então é possível fazer até verdadeiras cruzadas iconoclastas queimando e destruindo imagens e símbolos de toda sorte que representam a dita Nova Era. Em igrejas e correntes pentecostais mais radicalistas como a IURD, onde se demoniza tudo o que é diferente, pois a verdade e a salvação estão com eles e eles apenas, palavras como ecumenismo e diálogo inter-religioso são verdadeiros palavrões. Mas também na Igreja Católica, na Renovação Carismática, por exemplo, a Nova Era é vista com um olhar de reprovação, especialmente por quem não a conhece ou apenas superficialmente.

 

Numa visão em que a Era de Aquário é obra de Satanás e seus demônios que andam soltos pelo mundo, bem a gosto da Idade Média, nada mais natural do que um combate espiritual no imaginário coletivo dos adeptos. Nesse combate, há exércitos, táticas, armas, a saber, a oração, o jejum, a penitência, a pregação etc. Tudo isso desemboca num combate religioso: demonizando a outra experiência religiosa, demoniza-se também aquele que a experimenta.

 

Num quadro de ataques como o acima descrito, o que fazer? É possível fazer alguma coisa?

 

Se quisermos travar um diálogo entre duas realidades tão aparentemente distintas, é necessário, como já advertido no início deste trabalho uma atitude de compreensão. Para esta, por sua vez, faz-se mister o extermínio dos preconceitos (o mais possível, pelo menos), tão caro a tradições filosóficas como a fenomenologia e ponto de partida do próprio método cartesiano. Do ponto de vista cristão, vale ainda a advertência do Concílio Vaticano II no documento Nostra Ætate, sobre justamente o diálogo inter-religioso, para procurarmos antes olhar mais para o que nos une do que para o que nos separa.

 

Assim, antes de querermos chegar já direto à concepção de Deus na Nova Era e no pentecostalismo, que é no fundo o ponto primordial de divergência e mútuas “acusações”, seria mais proveitoso e interessante olharmos para a experiência religiosa proporcionada e realizada em cada um. Com esse procedimento, poderemos sem dúvida perceber várias e importantes semelhanças. Ambos procuram uma maior intimidade e imanência com o transcendente; uma divindade que não esteja nos livros e manuais, mas no coração do homem e com ele dialoga diretamente, suprimindo seus anseios mais profundos numa relação de amizade profunda, chegando a uma experiência de comunhão tão íntima que beira o monismo. Tanto Nova Era como pentecostalismo vêem o êxtase como algo ordinário – no sentido de ao alcance do ser humano –; como meio para se atingir a experiência de comunhão supracitada: deve por isso ser incentivado, treinado e praticado. Nova Era e pentecostalismo nasceram como reação ao formalismo e autoritarismo de igrejas e experiências religiosas tradicionais e dogmáticas, e se constituíram sobre essa base, evitando ao máximo as formas de institucionalização e prezando pela espontaneidade e acolhimento comunitário e liberdade no relacionamento pessoal com o transcendente. Os dois fenômenos dão forte ênfase à experiência subjetiva, emotiva, afetiva, emocional, irracional como manifestação e expressão de um relacionamento autêntico e verdadeiro com o “totalmente Outro”. Tanto um como outro vê um mundo espiritual interagindo largamente com o nosso mundo temporal através de espíritos – sejam os espíritos guias ou os anjos e demônios. Enfim, ambos são, em última instância, expressão da reação à fragmentação que a modernidade trouxe à sociedade e também à religião ocidental.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo chegado até aqui, algumas considerações são pertinentes para uma continuidade e aprofundamento das reflexões acerca do tema.

Primeiramente não podemos esquecer que aqui se trata de um trabalho limitado que não tem a pretensão de dar a última palavra, resolver o problema sozinho ou encerrar todo o debate que gira em torno da questão. Quer apenas apontar pistas e espera que isso tenha sido possível.

Dessa feita, pode-se alegar que em alguns pontos o texto tenha sido exagerado e, por isso mesmo, falso ou falacioso. Trata-se apenas de um recurso metodológico (como o usado por Max Weber com seus “tipos ideais”) para que se tivesse parâmetros para aproximação ou afastamento da realidade. Com isso, os aspectos que mais interessavam puderam ser ressaltados, mas sem desfigurar a realidade de maneira a não torná-la mais identificável ou inteligível, como numa caricatura. Como já dito num era intenção dar a última palavra e sim uma contribuição.

Por fim, vale a pena acreditar que o diálogo é sempre possível e não medir esforços em realizá-lo, principalmente lá onde parece mais irrealizável, pois é justamente lá onde mais se necessita. Por isso, após todo o itinerário percorrido, este trabalho leva a concluir, espera-se que de maneira não temerária, que é sim possível um diálogo amistoso entre Nova Era e pentecostalismo.

Devido às várias semelhanças, sem dúvida um tem muito a ensinar e aprender com o outro. A Nova Era, por exemplo, não pode esquecer que o que pretende trazer por novidade tem muito mais é de revalorização do passado: o Cristianismo não seria assim tão velho e ultrapassado como pretendido; ainda há sempre novos ares para se respirar num sobrado antigo antes de simplesmente querer demoli-lo. Os cristãos, principalmente os pentecostais, por sua vez, precisam praticar mais o evangelho que pregam, para saber acolher, como o fez tão bem o Mestre que apresentam, as mulheres samaritanas, os publicanos e “pecadores públicos”, em uma palavra, o diferente. Leve-se em conta que Jesus veio apresentar Deus, não uma religião.

Para isso, façamos, pois, o árduo exercício da epoché, que exige por si só muito esforço e boa dose de disciplina, mas que traz como recompensa a alegria do diálogo que gera compreensão e aprendizado mútuos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ALDAY, Salvador Carrillo. Renovação no Espírito Santo. 2 ed. Louva-a-Deus: Rio de Janeiro, 1992.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação – a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 14 ed. Cultrix: São Paulo, 1995.
CARRANZA, Brenda. Renovação Carismática Católica – Origens, mudanças e tendências. Santuário: Aparecida, 2000.
DESCARTES, René. Discurso do método. Abril Cultural – coleção Os pensadores.
LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no ocidente – a filosofia ocidental, do Renascimento aos nossos dias. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio – uma análise sociológica do fundamentalismo. Paulus: São Paulo, 1996.
PEDRO, Aquilino de. Dicionário de termos religiosos e afins. 10 ed. Aparecida: Santuário, 1999.
RABUSKE, Irineu J. Jesus exorcista – estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. Paulinas: São Paulo, 2001.
SCHAEFFLER, R. Filosofia da religião. Rio de Janeiro: Edições 70, 1983.
TERRIN, Aldo Natale. Nova Era – A religiosidade do pós-moderno. Loyola: São Paulo, 1996.
WATTS, Alan. Mito e religião. Fissus: Rio de Janeiro, 2002.
http://www.pime.org.br/pimenet/missaojovem/mjregpentecos1.htm em 2/12/2005
http://www.pime.org.br/pimenet/missaojovem/mjregpentecos2.htm em 2/12/2005
http://www.pime.org.br/pimenet/missaojovem/mjregpentecos3.htm em 2/12/2005

 

1 Não se desconhece nesse trabalho a discussão em torno do termo e do conceito. Entretanto, é necessário um posicionamento para que se possa trabalhar. Concordando com autores como Capra e Terrin, aqui será aceita a pós-modernidade como conceito-instrumento que visa auxiliar a explicação da realidade, por motivos que ficarão óbvios ao longo do texto.

2 Advertência ao Leitor em Discurso do Método.

3 Discurso do método, 2ª parte. Neste trabalho é usada sempre a tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior para a coleção Os pensadores, da Abril Cultural.

4 Posteriormente, aqui no Brasil, “pentecostal” e “evangélico” acabaram se tornando sinônimos.

5 Cf. O outro é o demônio. Paulus, 1996.

6 Em http://www.pime.org.br/pimenet/missaojovem/mjregpentecos1.htm em 2/12/2005, grifos do autor.

7 Em http://www.pime.org.br/pimenet/missaojovem/mjregpentecos2.htm em 2/12/2005, grifos do autor.

8 Em http://www.pime.org.br/pimenet/missaojovem/mjregpentecos1.htm em 2/12/2005

9 Aldo Terrin discute essa terminologia e opta por não utilizá-la como dicotomia em relação ao irracional, pois não é possível um totalmente isento do outro, posicionamento que assumiremos aqui.

10 Esse é um termo comumente empregado em círculo pentecostal para designar aqueles que, por não serem da mesma igreja ou religião, ou de igreja ou religião alguma, não têm a mesma mentalidade e, sobretudo, a mesma ética ou modo de vida – falar, vestir, trabalhar, pensar, crer...

11Um exemplo típico: há igrejas que dizem que a TV é obra do demônio e, por outro lado, utiliza-se a TV para a pregação da Palavra de Deus, fazendo que o crente a utiliza apenas para ver aquele determinado programa permitido pela Igreja naquele determinado horário. Ainda outro exemplo: o rock costuma ser visto também como obra do demônio, mas há bandas evangélicas de rock e mesmo paródias de músicas famosas, tornando permitido e bom o que era proibido por ser mal.

12 Para uma análise aprofundada sobre a Renovação Carismática especificamente ver CARRANZA, Brenda. Renovação Carismática Católica – Origens, mudanças e tendências. Neste trabalho interessa-nos apenas os pontos em comum que têm o pentecostalismo e o neopentecostalismo protestantes e a Renovação Carismática e qual a sua relevância para a problemática proposta: é possível um diálogo entre o pentecostalismo e a Nova Era?


Publicado por: Saulo Maurício Silva Lobo

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