Nietzsche e a condenação à solidão
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1. Nietzsche e a condenação à solidão
A filosofia nietzschiana é feita a golpes de martelo: tende a agredir bases que se estabeleceram de forma histórico-social, ou talvez, tornar estas bases como socialmente constituídas, visto que se busca destituir a transcendentalidade dos valores e da vida.1 Tudo escapa às mãos dos ídolos, o homem se vê despido diante de Nietzsche, tudo lhe é arrancado. Despido diante do mundo, resta-lhe apenas a vida.2 Não tendo para onde desviar os olhos, o homem é obrigado a viver, não pode mais se esconder, não tem como não mais assumir sua obrigação diante do mundo. Assim, pretendemos passar por três pontos martelados por Nietzsche em sua filosofia: a metafísica, o cristianismo e a linguagem para pensar o homem como um algo só no mundo.
2. O martelo sobre a metafísica
O pensamento metafísico tem seus primórdios no “ser” de Parmênides. Ele configura as bases que influíram sobre as preocupações de vários filósofos; de Platão à Kant, todos se preocuparam com o conhecimento do “existir das coisas”, “da essência das coisas”, do “ser dos entes”3. Parmênides, assim, é quem inicia a especulação filosófica para além do mundo como se apresenta, para além do mundo material; Marias (2004) assim o descreve:
Parmênides é o filósofo mais importante de todos os pré-socráticos. Significa na história da filosofia um momento de fundamental importância: o surgimento da metafísica. Com Parmênides, a filosofia adquire sua verdadeira hierarquia e se constitui de forma rigorosa. Até então, a especulação grega havia sido cosmológica, física, com um propósito e um método filosófico; mas Parmênides quem descobre o tema próprio da filosofia e o método com qual se pode aborda-lo. Nas mãos dele a filosofia passa a ser metafísica e ontologia; já não versa mais simplesmente sobre as coisas, mas coisas enquanto são, ou seja, como entes. (...) A tal ponto que a filosofia stricto sensu começa com ele, e o pensamento metafísico conserva até os nossos dias a marca que lhe imprimiu a mente de Parmênides. (MARIAS, 2004, pp.22-23)
A partir de Parmênides, o pensamento filosófico passa a ser embebido pela metafísica e se torna necessário especular sobre a natureza das coisas: as ideias de Platão, o “ser” Aristotélico, o cogito de Descarte, o idealismo de Kant, tudo versa sobre possibilidade do “ser” das coisas: se realmente conhecemos as coisas como são, se elas se apresentam em si, se elas apresentam apenas como nossa mente pode reconhecê-las, se são apenas juízos, se são aparências.
Nietzsche (1844-1900) negará a tradição filosófica, o filosofo alemão desviará do percurso de Parmênides: no embate sobre o sobre o “ser”, preferirá a Heráclito: não há essência a se encontrar nas coisas, não há “ser nos entes”, a realidade flui, panta rei4, na sentença de Heráclito. Nietzsche assim se posiciona:
Separo, com profundo respeito, o nome de Heráclito. Se os demais filósofos rejeitaram o testemunho dos sentidos, porque os sentidos são múltiplos e variáveis, Heráclito rejeitava tal testemunho porque apresenta as coisas como dotadas de duração e unidade. Também Heráclito foi injusto com os sentidos, que não mentem, nem à maneira que os eleatas se figuravam, nem como ele acreditava; em geral, não mentem. O que fazemos com seu testemunho é que introduz nele a mentira; por exemplo, a mentira da unidade, a mentira da realidade, da substância, da duração. A razão é a causa de falsearmos o testemunho dos sentidos. Estes não mentem quando nos mostram o vir a ser das coisas, o desaparecimento, a mudança. Mas em sua afirmação segundo a qual o ser é uma ficção, Heráclito terá eternamente razão. O mundo das aparências é o único real, o mundo, verdade foi acrescentado pela mentir.(NIEZSCHE,2001,p.22)
A realidade flui, o rio não é o mesmo5, não há “ser” por trás das coisas. Assim, Nietzsche nega a metafísica de Parmênides. Dividir a realidade em “realidade” e “aparência”, entre “verdade” (quando se descobre o ente) e “opinião” (dada pelos sentidos), eis o nascimento da metafísica (MARIAS,2004,p.24). Os sentidos mostram apenas o “mundo da aparência”, mas é aqui que existe o mundo, o erro dos filósofos foi negar a “aparência”, foi negar os “sentidos”:
Quereis que vos diga tudo que é peculiar aos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à idéia do devir, seu egipcismo.(...) Tudo com que os filósofos se ocupam há milhares de anos são idéias — múmias; nada real saiu vivo de suas mãos. Todos acreditam desesperadamente no ser. Porém como não podem apoderar-se dele, buscam as razões segundo as quais ele lhes escapa: "É forçoso que haja aí uma aparência, um engano por efeito do qual não podemos perceber o ser — onde está o impostor?" já o apanhamos gritam alegremente — são os sentidos! (NIETZSCHE,2001,p.21)
A negação do mundo imanente, dos sentidos como mecanismo que conhece o mundo, a transformação do mundo numa dualidade, onde há a imobilização de conceitos, o “ser” que é eterno e imutável6, a negação do devir, da fluidez do mundo, eis a denúncia nietzschiana. Tal crítica parte de um princípio famoso da filosofia de Nietzsche, de uma dualidade clássica: o espírito apolíneo e dionisíaco. Em seus estudos sobre a Grécia pré-socrática, Nietzsche entendeu que não havia separação entre os deuses das artes Apolo e Dionísio, havia completude: racionalidade e embriaguez representavam a afirmação da vida para o grego, a tragédia enquanto representação da vida (GRÜNEWALD,2013,pp.6-7). Os dois deuses ocupavam lugar na vida dos helenos, “a articulação entre estes dois espíritos constitui a vida humana, o princípio fisiológico, um não pode estar sem o outro, pois sozinhos levariam ao caos” (GRÜNEWALD,2013,pp.6-7). O grande erro da filosofia é abandonar Dionísio, o rompimento com o espírito dionisíaco representa a negação da vida, a negação do espírito trágico, da humanidade, segundo Grünewald (2013) ao se abandonar Dionísio “deixou-se para trás o sim extasiado dos gregos à vida.” (p.8). A filosofia abandona o mito, culmina na metafísica, os gregos entram em “decadência”7, seu precursor é Parmênides, mas o grande responsável, de acordo com Nietzsche, é Sócrates.
A “decadência” vem com racionalização da vida proposta por Sócrates8, o abandono do espírito dionisíaco, do espírito grego. A razão se torna o único caminho para se encontrar a verdade. Não só isso, ela é fator à felicidade humana: “Quisera adivinhar de que idiossincrasia pode nascer a equação socrática: razão = virtude = felicidade, a mais extravagante das equações e contrária, em particular, a todos os instintos dos antigos helenos.”(NIETZSCHE,2001,p.16). Ele sentenciou a cultura grega ao declínio, “por privilegiar a razão, por afirmar a existência de valores universais, e por conceituar as virtudes, ele foi co-autor9 do assassinato das artes e do espírito dionisíaco” (HRYNIEWICZ,1998,p.454). Ainda, seu discípulo mais famoso, Platão, teria devidamente seguido os passos do mestre, pois, em Platão o “mundo das aparências” surge em plenitude na “Teoria das ideias”: no mundo das ideias reside a perfeição, a realidade das coisas, a suprema ideia de Bem; aqui, no mundo sensível, resta apenas a aparência, as cópias imperfeitas feitas pelo Demiurgo a partir ideias que residem no mundo celeste, que é perfeito, eterno e imutável (HRYNIEWICZ,1998,pp.354).
Nietzsche sentencia Sócrates e Platão a símbolos dessa decadência, ora, “Essa irreverência de considerar os grandes sábios como tipos de decadência nasce em mim precisamente num caso em que o preconceito letrado e iletrado se opõe com maior força: reconheci em Sócrates e em Platão sintomas de decadência, instrumentos da decomposição grega, pseudo-gregos, antigregos”(NIETZSCHE,2001,p.14). São símbolos da negação do espírito grego, símbolos da negação do espírito trágico, motivo de aversão ao filósofo alemão, a quem a visão dionisíaca da vida se faz tão cara, são o pontapé ao próximo passo dessa negação da vida: o cristianismo.
3. Do martelo sobre o cristianismo
“Sócrates deixou como herdeiros Platão, Paulo e o cristianismo” (HRYNIEWICZ,1998,p.454). A “decadência” iniciada pelo abandono grego do espírito dionisíaco tem sua manifestação ainda na religiosidade cristã. Pensando na História da filosofia, Santo Agostinho, Bispo de Hipona, tem como um dos pilares da sua filosofia, Platão10, este, aos olhos de Nietzsche “tão cristão antes do cristianismo” (NIETZSCHE,2001,p.97).
O problema cristão segue o problema metafísico: “O cristianismo associado com a negação da vida, dos instintos, o cristianismo como platonismo para o povo” (GRÜNEWALD,2013,p.10). Nega-se o mundo, a expectativa cristã torna o mundo terreno um local de penitência, Adão e Eva foram expulsos do paraíso pelo pecado, este mundo está condenado à morte, apenas àqueles que se arrependerem do pecado e aceitarem a expiação feita pelo Filho de Deus, poderão receber a vida eterna, os demais queimarão no lago de fogo. A história do cristianismo é a decadência do homem pelo pecado e a redenção dos arrependidos (não esquecendo a danação dos que não se arrependerem)11. A história do cristianismo é a história da negação no mundo.
O resultado disso é o moralismo. A moral dos escravos, dos ressentidos, estes que representam a negação da vida12, dos bem-aventurados por serem pobres de espírito, porque deles será o Reino dos Céus (Mateus cap.5, vers. 3). Essa é a história do cristianismo segundo Nietzsche “igreja primitiva lutou contra os "Inteligentes" em favor dos "Pobres de Espírito"(NIETZSCHE,2001.p.28), a moralização da vida, a negação do espírito dionisíaco:
A moral anti-natural, isto é, toda moral ensinada, venerada e predicada até agora, se dirige, ao contrário, contra os instintos vitais e é uma condenação já secreta já ruidosa e descarada desses instintos. Quando se diz: "Deus vê dentro dos corações" diz-se não às aspirações internas e superiores da vida e se considera Deus como inimigo da vida. O santo que agrada a Deus é o castrado ideal. A vida finda ali onde inicia o reino de Dzeus. (NIETZSCHE,2001,p.28)
Moral cristã, está que tem como base o pecado, pois “o salário do pecado é a morte, o dom gratuito de deus é a vida eterna (Romanos cap.6, vers. 23)” Aos olhos de Nietzsche, apenas mais uma representação da violação do espírito de Dionísio, pecado representa a negação dos instintos, a negação da própria natureza, a moralidade cristã é a herança de Sócrates, a afirmação do espírito apolíneo, como aponta Grünewald:
Dentro de todas essas concepções, o cristianismo nega as necessidades e valores vitais. Ele é abdicação dos instintos, dos desejos, é contra o prazer, pois tudo o que é instinto é pecado. “O pecado, diga-se mais uma vez, essa forma de autoviolação humana” (Nietzsche, 2007, p.59). Assim, o cristianismo, do mesmo modo que fizeram Sócrates e Platão, privilegia o espírito apolíneo e empreende toda uma moral. O homem acaba perdendo sua relação com a natureza, com o próprio homem, com os instintos. (GRÜNEWALD,2013,p.15)
O ato de Adão, introduziu o pecado no mundo, a desobediência perante Deus, este que se desagradou de Adão, e o expulsou do paraíso. Deus é o grande “motor moral” do cristianismo. Ele quem se desagrada do pecado e exige a fidelidade do homem: “Sede santos, porque eu sou santo” (1 Pedro cap. 1º, vers. 16). Ele que há de julgar os vivos e os mortos, Nietzsche encontra Deus como problema à vida:
A própria vida nos obriga a determinar valores, a própria vida evolui por meio de nossa mediação quando determinamos esses valores. Infere-se daí que toda moral contra a Natureza, que considera Deus como idéia contrária, como a condenação da vida. é apenas, na realidade, uma apreciação da vida; de que vida? De que espécie de vida? já apresentei a contestação: da vida descendente, debilitada, fatigada condenada. (NIETZSCHE, 2001,p.32)
Nietzsche buscará, dessa forma, a superação de Deus, a desvalorização da ideia de Deus como um algo insuperável. O filósofo quebra o primeiro mandamento, amar a Deus sobre todas a coisas, renega-o, o coloca sobre posição questionável, como um algo humano “Como? O homem seria tão-somente um equívoco de Deus? Ou então seria Deus apenas um equívoco do homem?” (NIETZSCHE,2001,p.7). Por fim o condena a morte, “Deus está morto”13, sentencia Nietzsche, numas de suas mais famosas e provocativas afirmações. A morte de Deus é a superação do espírito apolíneo, da moralização da vida e da negação do mundo, o fim do legado socrático e da “decadência” grega, como explica mais uma vez o texto de Grünewald:
Sendo o cristianismo, para Nietzsche, uma versão vulgar do platonismo, ou platonismo para o povo, o anúncio da “morte de Deus” consistiria em se acabar com esse modo metafísico de pensamento, com essa concepção de mundo ideal cuja vida tem que espelhar uma perfeição, e com a oposição entre aparência e realidade, verdade e falsidade, bem e mal, que sustenta toda a noção metafísica. Tal evento significa não só acabar com a ideia de Deus, mas tudo que está atrelado a ela e que implica negação à vida, como a moral. Seria o fim da moral tradicional e aceitação dos valores vitais, pois o que justifica a vida é a própria vida, não há necessidade de nada externo para justificá-la. (GRÜNEWALD,2013,p.16)
É a superação de Sócrates, Platão e Paulo que Nietzsche busca, a desmoralização da vida, transposição da moralidade e da negação do mundo. Mas, ainda nos resta mais uma martelada a empreender: sobre a linguagem.
4. Do martelo sobre a linguagem
A filosofia nietzschiana possui essa necessidade de transposição de valores transcendentes, inquestionáveis, supralunares14. É um espírito que busca mundanizar o homem. O problema da linguagem entra em contato com esse mesmo espírito e tal problema esta na confluência do problema nietzschiano do conhecimento. Problema que novamente se articula na relação entre homem e mundo: é sobre como o homem se posta como sujeito cognoscente no mundo, ou melhor, como o homem foi posto como sujeito cognoscente no mundo pelos filósofos, este é o alvo do martelo de Nietzsche.
A atividade do conhecimento em Nietzsche ganha um cunho humano, é o resgate do espírito dionisíaco que embala Nietzsche: o retorno do homem à natureza, aos instintos, não mais uma racionalização apolínea do mundo, mas uma afirmação do homem enquanto animal que faz uso do conhecimento meramente como instrumento sublunar: não mais metafísico, não mais divino, mas apenas um algo humano, terreno, imanente. O sujeito do conhecimento nietzschiano não é o indivíduo dotado de uma “alma racional”, de um “cogito” ou é um “sujeito transcendental”15, o sujeito do conhecimento em Nietzsche é apenas um animal que necessita sobreviver. Brum (1986) assim aponta a perspectiva nietzschiana:
Nietzsche concebe o conhecimento como uma atividade específica do animal humano, ligada as suas necessidades de conservação e preservação vital. Instrumento antropomórfico que humaniza e assimila o mundo à nossa perspectiva, o conhecimento está em reação estreita com a vida do homem e suas necessidades vitais. (BRUM,1986,p.13)
Apenas um animal humano, “não mais o orgulhoso animal divino, mas um acontecimento contingente, que inventa pela necessidade vital de sobreviver e dominar” (BRUM,1986,p.17). Nietsche apela, assim, a uma humanização do homem e, por tal caminho, busca trazer o mundo como um algo humanizado, antropomórfico, destituído de transcendência. Conforme a passagem de Nietzsche citado por Brum (1986) em seu texto:
O homem, uma pequena espécie animal presunçosa, a quem, por felicidade, o tempo está medido. A vida terrestre: um episódio, uma exceção sem consequências e sem importância para o caráter global da Terra. A própria Terra, como os outros astros, um hiato entre dois Nadas. (NIETZSCH,1969 apud BRUM, 1986,p.19)
Vivemos não mais no mundo criado por Deus no sexto dia e nem somos mais criados a Sua imagem e semelhança conforme relata o livro Gênesis em seu primeiro capítulo, somos mais uma espécie dentre as outras. Nosso orgulhoso intelecto não passa de ferramenta para sobrevivência, todo cunho metafísico se esvai. O conhecimento assume a forma apenas de necessidade biológica e social, atividade do animal humano num sentido “biológico, que necessita conservar-se e desenvolver-se; e gregário, que precisa viver em sociedade e comunicar-se” (BRUM,1986,p.28). Vivemos, assim, num mundo onde atribuímos sentido, tudo o que foi pensado não foi pensado para o mundo, na descoberta da “coisa em si”, mas, como dito, é um mundo antropomórfico, interpretado arbitrariamente e dominado pela espécie humana, que o faz apenas no intuito de continuar a viver (BRUM,1986, 35-36).
Em meio a este mundo antropomórfico, de sentidos atribuídos, de necessidades vitais biológicas e sociais, a linguagem surge como instrumento à interpretação desse mundo e à comunicação. O animal humano, por “necessidade e tédio”, busca viver em comunidade, à vida em conjunto se faz necessária uma forma de comunicação e certas verdades em comum, formas de interpretar o derredor que tornam o mundo um local de comum interpretação, “mundo da verdade”, que remete à linguagem como produtora desse mundo (BRUM,1986,pp42-43). O homem, assim, faz uso da linguagem de forma arbitrária, como produtora de verdade sobre o mundo, mas “ele só deseja algumas verdades, as que lhe são úteis. As que tem valor para a conservação da vida.” (BRUM,1986,p.44).
Sendo a função da linguagem a de aparelho à necessidade vital e suas verdades apenas construções, o que resta ao homem? Apenas “metáforas”. Para Nietzsche, todo o aparato de verdade sobre o qual sociedade erigiu seus valores não passa de “metáforas”. São ilusões, construções, mecanismos de sobrevivência ao animal humano. Este, em seu orgulho, transformou tais ilusões em valores universais, toda a verdade, nas palavras de Nietzsche como aparecem no texto de Brum, é:
Uma multidão de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em suma, uma reunião de relações humanas (menschlichen Relationen) que foram poeticamente e retoricamente aumentadas, transpostas, ornamentadas e que – após longo uso (nach langem Gebrauch – parecem a um povo firmes (Fest), canônicas (kanonisch) e obrigatórias (Verbindlich). (NIETZSCHE,1969apudebBRUM,1986,p,50)
O problema da linguagem em Nietzsche surge com esse tom de transformação de conhecimento socialmente construído em verdades universais, em princípios que negam a fluidez do mundo, ou seja, em princípios que enrijecem o mundo, permeando-o de verdades intransponíveis, ou seja, através da linguagem, encontra-se o princípio do “ser”, cria-se uma essência no mundo, traveste-se o mundo pela razão tendo a linguagem por ferramenta:
Expliquemos agora de maneira quão diferente nós (digo nós por cortesia) concebemos o problema do erro e da aparência. Outrora a mudança, a variação, em geral o vir a ser eram considerados como provas da aparência, como sinais de que devia haver aí algo que nos extraviara. Hoje, ao contrário, vemos com exatidão até que ponto a preocupação da razão nos obriga a fixar a unidade, a identidade, a duração, a substância, a causa, a realidade, o ser, de sorte que nos enreda no erro e torna necessário o erro, ainda que mediante uma comprovação rigorosa adquiramos a certeza de que ali existe o erro. Sucede como no movimento dos astros, só que neste caso nossos olhos são o advogado perpétuo do erro, e naquele quem advoga em favor do erro é nossa linguagem. (NIETZSCHE,2001,pp.23-24)
A verdade ainda surge como artifício de moralidade: “Comparado ao mentiroso excluído por todos, os homem verídico exibe as qualidades “morais” da verdade: honradez, confiabilidade, utilidade” (BRUM,1986,p.51). O “homem verídico”, sinal social de homem moral, homem com valores, é para Nietzsche o reflexo da decadência grega, da superação de Apolo sobre Dionísio, a racionalização da vida, impeditivo à transposição dos valores que negam o mundo, que encontram na idiossincrasia socrática a resposta à vida. Eis o problema da linguagem em Nietzsche: “A razão na linguagem, que velha embusteira! Temo que jamais nos livremos de Deus, posto que cremos ainda na gramática” (NIETZSCHE, 2001,p.25)
5. Sem ser, sem Deus, sem linguagem: a solidão do homem nietzschiano
Esse três momentos da filosofia de Nietzsche foram utilizados aqui para trazer a tona uma possibilidade: a solidão do homem depois de Nietzsche. Ao perder a metafísica, o homem perde o “ser”, não há essência no homem, é apenas um animal como os outros demais, vivendo num corpo celeste como os demais, não há uma essência superior, apenas um animal buscando sobreviver. Ao perder Deus, o homem está órfão, desprovido de criador, desprovido de um pai, pois apenas Deus é pai: “A ninguém na terra chamem 'pai', porque vocês só têm um Pai, aquele que está nos céus (Mateus cap.23vers. 9), a vida perde o propósito, já não há mais um Reino de Deus a buscar. Nem a linguagem nos garante a possibilidade de verdades, tudo são metáforas. O que resta ao homem? “Apenas” mundo e a vida.
Retirando toda a transcendência da vida do homem, desgarrando-o das mãos dos ídolos, Nietzsche entrega o homem à solidão, mas uma solidão criadora. O homem está livre para ter o mundo em suas mãos, não mais um mundo dual, onde há a negação do que está a volta por um mundo “ideal”, “espiritual”, símbolo de decadência: “ Dividir o mundo num mundo real e um mundo de aparências, seja à maneira do cristianismo, seja à maneira de Kant (um cristão pérfido, afinal de contas) é somente uma sugestão da decadência, um sintoma da vida descendente” (NIETZSCHE,2001,p.25), o homem se encontra livre dessas invenções:
O Mundo-verdade; uma idéia que não serve mais para nada, não obriga a nada; uma idéia que se tornou inútil e supérflua; por conseguinte, uma idéia refutada: suprimamo-la! (Dia claro, desjejum, retorno do senso comum e da alegria. Platão se cobre de vergonha e todos os espíritos livres fazem um tumulto dos diabos.) O Mundo-verdade acabou abolido, que mundo nos ficou? O mundo das aparências? Mas não; com o Mundo-verdade abolimos o mundo das aparências! (Meio-dia, momento da sombra mais breve, termo do erro mais demorado, ponto culminante da humanidade: INCIPIT ZARATUSTRA.) (NIETZSCHE,2001,p.27)
A solidão em Nietzsche é um estado criador, lugar onde é possível manifestar nossa “Vontade de potência”, potencialidade geradora, potencialidade vital, local criador do homem que se permite gerador do mundo que o cerca. Homem como criador: “possibilidade de vida através das artes e ilusões” (BRUM,1986,62). Mas essa solidão geradora não serve a todos, é apenas aos que superaram a decadência grega, aos que superaram a transcendência, apenas aos que superaram a Deus: “A partir do vazio deixado pela morte de Deus, o conhecimento está ligado à Vontade de Potência enquanto vontade formadora que ser a vida” (BRUM,1986,63). O desarraigamento dos conceitos imóveis, dos conceitos que atribuem sentido inquestionável ao mundo é local de solidão ao que Nietzsche convida, local de criação, é o lugar do artista:
A verdade divina e o conhecimento como contemplação dão lugar à verdade humana e ao conhecimento como construção. Nesta mudança, algo se perdeu: a função tranquilizadora do conhecimento, sua transcendência doadora de sentido. Ganhou-se a imanência, a condenação a uma continua produção de antropomorfismos úteis, a concepção do homem como criador de valores. Tal pano de fundo, Nietzsche parece entender a todas as formas de conhecimento: desde a percepção sensível até a ciência, passando pela formação de linguagem e conceitos. Todas são, a seu modo, atividades artísticas, no que se revelam que – sem o homem – o mundo não teria sentido. Este, “escultor, duro martelo, divino espectador que no sétimo dia contempla sua obra”, agora se encontra só – neste mundo sem Deus -, falando e ouvindo os ecos de suas próprias criações. (BRUM,198672 – grifo nosso)
A solidão, assim, lugar de afirmação de um mundo humano, antropomórfico, que aceita suas metáforas. Solidão que é dada a tais espíritos, é para aqueles os sem-Deus: “Para um homem devoto não existe solidão – esta invenção foi feita somente por nós, os sem-Deus”16. Resta a arte geradora, que cria constantemente, supera a imobilização do “ser” e assume movimento, assume um vir-a-ser, constante movimento e transformação, pois não há mais valores inquestionáveis, tudo é humano, o rio não é sempre o mesmo. (TEDESCO, STREIDER,2014,p.24).
Esses desgarrados dos valores, espíritos criadores que assume sua força geradora, os espíritos livres17 que tomaram a vida em suas mãos, que superaram a morte de Deus, espíritos que aceitam a vida em sua tragédia; é a busca de Nietzsche por Dionísio, a retomada do ideal grego pré-socrático:
De acordo com a concepção de Nietzsche, a vida é profunda dor e destruição, e somente a arte é capaz de proporcionar ao indivíduo força para aceitá-la e enfrentá-la. A tragédia grega transforma todo esse horror da vida em beleza. O espírito de Dionísio está, assim, ligado fortemente ao sucesso do mundo grego, e com ele a sua força antitética, Apolo, cuja duplicidade gera a tragédia e o desenvolvimento da arte. (GRÜMEWALD,2013,p.7)
Nietzsche nos lega a solidão, pois retira a golpes de martelo verdades que nos recusamos a negar, nos leva a aceitar nossa condição de animais humanos lutando para sobreviver, retira nossos poderes mágicos, retira até nossos poderes linguísticos, mas nos presenteia com o mundo, é a “ afirmação da vida até em seus problemas mais árduos e duros; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifício de nossos tipos mais elevados, é o que eu chamei de dionisíaco, e nisso acreditei encontrar o fio condutor que nos conduz à psicologia do poeta trágico” (NIETZSCHE,2001,p.101). Nietzsche entrega tudo em nossas mãos, agora tudo é criado pelo homem: deus, a metafísica, a ética, as estruturas, a linguagem, as regras que produziram este texto, tudo não é mais do que humano, demasiado humano18.
6. Referências
BRUM, José Thomaz. Nietzsche: as artes do intelecto. São Paulo: L&pm, 1986. 80 p. (Coleção Universidade Livre).
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Atica, 2000. 567 p.
GIACÓIA JUNIOR, Oswaldo. Para a genealogia da moral. São Paulo: Scipione, 2008. 71 p. (Reencontro Filosofia).
ÜNEWALD, Aline Leite. Nietzsche: crítica da "verdade" metafísica e afirmação da vida terrena. Sacrilegens: Revista dos alunos do programa de pós-graduação em ciências da religião, Juiz de Fora, v. 10, n. 1, p.4-21, 1 jan. 2013. Semestral. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2018.
HRYNIEWICZ, Severo. Para Filosofar: Introdução e História da Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1998. 511 p.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O crepúsculo do ídolos: ou a filosofia a golpes de martelo. Curitiba: Hemus, 2001. 102 p. Tradução de Edison Bini e Márcio Pugliesi.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 303 p.
MARÍAS, Julian. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 589 p.
TEDESCO, Anderson Luiz; STRIEDER, Roque. “A Formação Dos “Espíritos Livres” em Nietzsche ” In: Seara Filosófica, n. 9, Verão, 2014, p.39-53.
TRINDADE, Rafael. Nietzsche e a Solidão. 2018. Disponível em: . Acesso em: 06 nov. 2018.
1 Oswaldo Giacóia Junior em seu livro Para uma genealogia da moral, comenta: “ Ao contrário do que sustentam os moralistas, os supremos valores morais não são absolutos, de validade objetiva, isto é, independentes dos condicionamentos psicológicos, sociais, políticos, econômicos e culturais. Todos eles têm uma história, no interior do qual e sob determinados circunstâncias surgem, impõem-se, desdobram-se e modificam-se, sofrem deslocamentos de sentido e, também, parecem.” (GIACOIA JUNIOR,2008,o.14)
2 Hryniewicz afirma que Nietzsche “desenvolveu um princípio de afirmação total da vida” (HRYNIEWICZ,p455,1998)
3 Marilena Chauí assim define a metafísica “A metafísica é a investigação filosófica que gira em torno da pergunta “O que é?” Este “é” possui dois sentidos: 1. significa “existe”, de modo que a pergunta se refere à existência da realidade e pode ser transcrita como: “O que existe?”; 2. significa “natureza própria de alguma coisa”, de modo que a pergunta se refere à essência da realidade, podendo ser transcrita como: “Qual é a essência daquilo que existe?”. Existência e essência da realidade em seus múltiplos aspectos são, assim, os temas principais da metafísica, que investiga os fundamentos, as causas e o ser íntimo de todas as coisas, indagando por que existem e por que são o que são.” (CHAUÍ,p.263,2000)
4 Frase atribuída à Heráclito, em relação à fluidez da realidade, Heráclito entende a realidade como panta rei, ou seja, “tudo passa”. (MARCONDES,2007,p.35)
5 “Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque o rio não é mais o mesmo” (HERÁCLITO apud MARCONDES,2007,p.36).
6 Marcondes assim apresenta a ideia de Parmênides: “Se, no entanto, formos além da nossa experiência sensível, da nossa visão imediata das coisas, descobriremos, através do pensamento, que a verdadeira realidade é única, imóvel, eterna, imutável, sem princípio, nem fim, contínua e indivisível” (MARCONDES,2007,p.36)
7 Termo utilizado por Nietzsche em O Crepúsculo dos ídolos para se tratar o abandono do espírito dionisíaco.
8 Sócrates seria um representante da busca sobre a natureza das coisas através da razão, Marcondes define assim a filosofia de Sócrates: “A concepção filosófica de Sócrates pode ser caracterizada como um método de análise conceitual. Isso pode ser ilustrado pela célebre questão socrática “o que é....?” – encontrada em seus diálogos -, através da qual se busca a definição de uma determinada coisa, geralmente uma virtude ou qualidade moral” (MARCONDES,2007,p.46).
9 O outro autor ao qual a citação se refere é o poeta Eurípedes, que não será observado neste texto.
10 Sobre a influência da filosofia de Platão em Agostinho, Marcondes diz “A aproximação entre a filosofia de Platão, que conhecia através dos intérpretes de Alexandria e de traduções latinas, e o cristianismo constitui a primeira grande síntese entre o pensamento cristão e a filosofia grega, o chamado platonismo cristão.” (MARCONDES,2007,p.112).
11 Sobre o estado de pecado a qual se encontra o mundo, sobre a salvação e condenação do homem nos baseamos nos evangelhos de Mateus cap.5 e João cap. 3 e nos livros de Romanos cap. 5 e Apocalipse cap.20.
12 Na obra Genealogia da Moral, Nietzsche desenvolve a ideia da dualidade entre moral dos senhoras e a moral do escravos, esta é baseada do ressentimento e afirma “aquilo que é próprio da condição de inferioridade.(...) A moral do escravos tem suas bases em Sócrates e sua expressão máxima no cristianismo. (HRYNIEWICZ,1998,pp.456-457)
13 Sentença de Nietzsche que aparece no livro Assim falou Zaratustra (1883).
14 Na divisão dos Cosmos aristotélico há o mundo terrestre (sublunar) e celeste (supralunar).
15 Conceitos relacionados à Platão, Aristóteles, Descarte e Kant que se relacionam à capacidade do homem de chegar ao conhecimento.
16 Trecho do aforismo 367 de Gaia Ciência (1882), citado conforme aparece no site Razão Inadequada.
17 Tedesco e Streider elaboram em seu texto uma visão sobre o conceito de “espíritos livres” e relacionam ele a ideia de Übermensch, traduzido muitas vezes por além-do-homem ou super-homem, relacionam à ideia de superação do valores que culmina na valorização da vida, na ideia de amor fati, amor ao fato, que não abordamos aqui, percebemos a relação no trecho que se segue: “Na perspectiva de Nietzsche os que são espíritos livres tem em mãos a possibilidade de se transformarem no Übermensch quando descobrirem que a vida é o bem mais precioso e assim concluírem que o amor fati é fruto desta descoberta.” (TEDESCO, STREIDER,2014,p.26).
18 Título de um texto de Nietzsche de 1878.
Publicado por: Wallace Aparecido de Barros
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