AFETIVIDADE COMO CONTEÚDO DAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

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1. RESUMO

O presente estudo se desenvolve a partir de um tema central: a afetividade. Wallon (1941) frisa que o aspecto afetivo é imprescindível e faz parte intrínseca do processo de formação humana. O estudo se desenrola por meio da problemática central de como que a afetividade se insere no contexto escolar, tendo como premissa de que a escola é um ambiente essencial quando falamos de desenvolvimento humano. As relações, socializações e afetos que são estabelecidos na escola são inerentes à formação da personalidade e expressão da criança. E quando falamos de expressão, falamos também de corpo e movimento, falamos do nosso campo de atuação, a Educação Física, a qual pressupõe atuação em todas as dimensões estruturais do desenvolvimento humano. Desta forma, o objetivo central deste estudo é entender como podemos desenvolver a afetividade no contexto pedagógico da Educação Física e da organização escolar, tendo em vista a realidade do ensino tradicional, que segmenta e padroniza mentes e corpos, se distanciando da integralidade entre corpo, mente e emoção.

Este estudo balizou-se, num primeiro momento, em uma análise dos documentos legais que regem o sistema educacional, buscando entender como a afetividade é sugerida como tema do processo ensino-aprendizagem. Num segundo momento, realizei uma pesquisa qualitativa exploratória com professores de Educação Física da Escola Parque 308, com o objetivo de detectar o entendimento destes professores sobre a afetividade em seu contexto escolar e quais métodos são utilizados por eles para o desenvolvimento dos aspectos sócio-afetivos em suas praticas de ensino. Dá-se a reflexão de que tipo de educação almejamos construir em nossas escolas, e se esta, valoriza o aspecto afetivo como componente formativo, fazendo jus ao desenvolvimento integral da criança e do adolescente.

Palavras-chave: Educação Física escolar; afetividade; desenvolvimento integral; corporeidade.

ABSTRACT

This study develops from a central theme: affectivity. Wallon (1941) stresses that the affective aspect is essential and is an intrinsic part of the process of human formation. The study unfolds through the central problem of how affectivity fits into the school context, with the premise that school is a relevant environment when we talk about human development. The relationships, socializations and affections that are established in school are inherent. the formation of the personality and expression of the child. And when we speak of expression, we also speak of body and movement, we speak of our field of activity, Physical Education, which presupposes acting in all structural dimensions of human development. Thus, the main objective of this study is to understand how we can develop affectivity in the pedagogical context of Physical Education and school organization, in view of the reality of traditional teaching, which segments and standardizes minds and bodies, distancing themselves from the integrality between body, Mind and emotion.

This study was initially based on an analysis of the legal documents governing the education system, seeking to understand how affectivity is suggested as a theme of the teaching-learning process. Secondly, I conducted an exploratory qualitative research with Physical Education teachers at Parque 308 School, aiming to detect the understanding of these teachers about affectivity in their school context and which methods are used by them for the development of socio-affective aspects. In their teaching practices. We reflect on what kind of education we aim to build in our schools, and if it values ​​the affective aspect as a formative component, doing justice to the integral development of children and adolescents.

Key words: school physical education; affectivity; integral development; corporeality.

2. INTRODUÇÃO

Este trabalho surgiu a partir de uma inquietação interna, motivada por experiências, não só como aluna, mas também como estagiária de educação física. Observei e vivenciei o descuido de algumas instituições escolares a respeito da qualidade das relações sociais que eram alimentadas na escola.

Quando criança estudei em uma escola que erroneamente se denominava construtivista, lá pude experienciar na pele a gravidade do descuido com as questões referentes ao acolhimento e à afetividade. Era uma escola que buscava apenas o rendimento dos alunos e estar na lista das melhores escolas da cidade. As dificuldades que eu já tinha, advindas de um ambiente familiar conflituoso, se agravaram ainda mais ao me deparar com um ambiente escolar excludente e competitivo.

Tal situação me levou a um bloqueio na aprendizagem, justamente na fase mais importante do desenvolvimento lógico e linguístico infantil, Estágio Categorial, dos 6 aos 11 anos (WALLON, 1941/1981).

Já na condição de acadêmica, realizando minhas observações sistemáticas como estagiária no ensino infantil, doeu-me o coração presenciar em sala de aula, uma situação similar a que fui submetida: uma professora, em frente a toda classe, gritando com um aluno e o chamando de burro, apenas porque não estava desenhando da forma que ela tinha mandado.

Apesar de tantas críticas a esse tipo de situação, esses são casos recorrentes que nos colocam de frente ao descuido com dimensão afetiva, sobretudo na educação infantil. A partir disso, não podemos deixar de reavaliar o tipo de ensino e que competências necessitam ser mais valorizadas no processo de ensino-aprendizagem.

A importância da afetividade no desenvolvimento integral da criança e do ser humano é inquestionável.  A escola enquanto lócus cada vez mais exclusivo do convívio infantil na sociedade atual exerce uma função de destaque nesse processo, visto que é a partir do convívio diário que a criança irá dialogar com o meio, podendo ele ser enriquecedor ou não para o seu desenvolvimento pleno.

Porém, historicamente, a realidade no cotidiano educacional ancorou o processo de ensino e aprendizagem na valorização do aspecto lógico-racional em detrimento da subjetividade, dos afetos, da corporeidade, da sensibilidade espiritual, culminando na repressão da natureza espontânea da criança.

Tendo em vista esse descuido com os aspectos afetivos, seja na teoria como na prática escolar, este estudo busca aprofundar-se nestas questões a fim de resgatar, através dos teóricos, o papel e o valor da maturação da experiência afetiva infantil no ambiente escolar, possibilitando seu desenvolvimento humano integral, e entender o que a escola e as aulas de educação física, em específico, representam ou podem representar no contexto escolar.

Neste sentido, entendendo que na educação integral todas as dimensões humanas devem receber atenção equilibrada para serem desenvolvidas, mas constatando-se a centralidade que o aspecto cognitivo recebe na educação escolar, a despeito do texto legal (PCN, LDB), o presente estudo tem como objetivo compreender como as aulas de educação física, enquanto disciplina com elevado potencial para a interatividade, podem contribuir para o desenvolvimento da afetividade na formação infantil, numa sociedade que cada vez mais se distancia do contato direto. O intento é identificar como os docentes de Educação Física elaboram e executam em suas aulas o estímulo ao desenvolvimento da afetividade. Que metodologias de ensino e intervenção pedagógica são usadas pelos professores e pela comunidade escolar visando à articulação dos aspectos afetivos do aluno. A partir dessa incursão, buscaremos refletir a respeito de possíveis caminhos para uma educação mais humanizada.

Para buscar responder à pergunta do presente trabalho, adotamos como estratégia um estudo de ordem qualitativa exploratória onde entrevistamos alguns professores de Educação Física da Escola Parque, a fim de saber como eles articulam dentro da escola e nas suas práticas de ensino os aspectos sócio-afetivos dos alunos. Da transcrição das entrevistas destacamos algumas metodologias utilizadas pelos professores em suas intervenções que trazem à tona o debate a respeito da afetividade como importante componente formativo da educação física, e sua aplicabilidade no contexto escolar.

Surgem também reflexões ao longo do texto que nos instigam a pensar que tipo de escola queremos construir e se a que predomina nos dias de hoje é adequada à proposta de uma formação humana integral e plural.

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Antes de demais análises e interpretações das questões psíquicas e subjetivas da inter-relação humana, é necessário, a princípio, buscar uma reposta para a pergunta: o que é afetividade?

Um dos teóricos que busca responder a esta pergunta e que traz a afetividade como objeto central dos seus estudos é Henri Wallon, de acordo com o autor (WALLON, 1941), a afetividade é imprescindível na formação do indivíduo, tendo em vista que é caracterizada como um dos quatro domínios funcionais. Tais domínios norteiam toda a construção da personalidade da criança e do adolescente. Os quatro domínios funcionais são definidos como: o ato motor, o conhecimento, a afetividade e a pessoa. Esses domínios se articulam de forma interfuncional, portanto se desenvolvem de forma correlacionada.

Wallon (1941) frisa o não determinismo entre os domínios, de modo que eles se desenvolvem a partir da correlação entre os fatores de cunho orgânico e social. Inicialmente, os fatores orgânicos e primitivos são predominantes no desenvolvimento da criança, porém, a partir do seu amadurecimento e da sua inserção no meio social-afetivo, os fatores sociais vão tomando espaço na formação do Eu nas manifestações afetivas e formas de expressão do indivíduo no mundo em que o cerca.

A afetividade social, ou como Wallon (1941) chama de “afetividade moral”, vai se estruturando de forma progressiva na personalidade humana. Como afirma Merleau-Ponty: “o Mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta” (1999, p. 576).

Galvão (1995, p.61) afirma que para Wallon “as emoções, assim como os sentimentos e desejos, são manifestações da vida afetiva”, ou seja, para o autor a afetividade se caracteriza como uma expressão da totalidade do psiquismo humano, desde sua construção intrínseca até sua expressão. Neste sentido, mesmo entendendo que toda subjetividade traz uma inerente dificuldade de conceituação, Codo & Gazzotti (1999) apontam que a afetividade consiste no:

conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões, acompanhados sempre de impressão de dor ou prazer, de satisfação ou insatisfação, de agrado ou desagrado, de alegria ou de tristeza.

Contudo, Wallon (1941) distingue a afetividade de suas demais manifestações: o sentimento, a paixão e a emoção. Esses conceitos são frequentemente confundidos entre si ou considerados sinônimos, porém, são processos neurológicos distintos. Para o autor, a afetividade é um domínio mais abrangente, o qual inclui as três manifestações citadas acima. As emoções são reações primitivas e inconscientes, que segundo MacLean (1990), em seus estudos sobre fisiologia da psique humana, ocorrem no sistema límbico, nas regiões sub-corticais, uma série de respostas químicas e neurais baseadas nas memórias emocionais. Já o sentimento envolve processos mentais mais conscientes, em que ocorrem a interpretação e externalização das emoções, que são processadas na parte neocortical do cérebro. Nesse âmbito a paixão tem função reguladora, de autocontrole, e está presente a partir do domínio de um objeto ou situação.

É importante salientar que quando este autor fala de afetividade não há julgamento em relação à qualidade do estímulo ou da interação, independente se é boa ou ruim, pode vir a integrar-se à psique do indivíduo ao longo do seu desenvolvimento. Assim, a afetividade está associada aos estados de bem-estar e mal-estar.

Chamada de afetividade orgânica, os motivadores ou estímulos desse bem-estar ou mal-estar são puramente externos, próprio dos primeiros meses de vida, em que o bebê está suscetível aos estímulos externos, sem diferenciação do eu e do outro, ligados primordialmente a reflexos e respostas corporais primitivas. À medida que se dá a interação com o meio social, desenvolve-se a afetividade moral. A criança terá outros motivadores, os quais envolvem a sensibilidade ao outro, com origens na relação “indivíduo-outrem”, podendo ser relações de cunho social ou pessoal (WALLON, 1975).

Wallon esclarece a correlação entre as relações humanas e o indivíduo, bem como o fator histórico envolvido, de acordo com a análise da autora Ana Almeida:

A importância das relações humanas para o crescimento do homem está escrita na própria história da humanidade. O meio social é uma circunstância necessária para o desenvolvimento do indivíduo. Sem ele, a civilização não existiria, pois, foi graças à agregação dos grupos, que a humanidade pôde construir os seus valores, os seus papéis, a própria sociedade. (2005, p.4)

Wallon (1941) traz também um apanhado histórico e social para reafirmar a importância que as relações sociais têm sob a formação humana. O autor afirma que o meio social foi condicionante para as formações civilizatórias e para a humanidade da forma que a conhecemos hoje, com suas distintas sociedades, cada qual com seus valores e culturas. Portanto, o meio físico e os fatores orgânicos, juntos, são a base para a formação do indivíduo e tudo o que aprendemos, tanto a nível pessoal como também de sociedade, é mediado pelo contexto social e emocional, como afirma Fonseca:

As emoções, hoje universalmente reconhecidas, assumem um papel fundamental nas interações sociais, que contextualizam qualquer tipo de aprendizagem. Porque não nascemos ensinados, temos que aprender num contexto social e emocional, numa dimensão de dois sujeitos em interação, que compartilham cultura, um experiente que ensina, e outro inexperiente que aprende. (2016 p.369)

Esse desenvolvimento do indivíduo, entretanto, não ocorre de forma linear, como explica Wallon (1975), mas sim por meio de oscilações ou alternâncias entre a afetividade e a cognição ao longo dos estágios de desenvolvimento. Em sua obra o autor examina como se dá a alternância dos fatores sócio-afetivos e cognitivos ao longo dos seis estágios de desenvolvimento. Ele cita também alguns conceitos como a lei da alternância funcional, a qual diferencia as direções dos domínios funcionais, que oscilam ora entre força centrífuga - movimento primordialmente cognitivo voltado para dentro (conhecimento de si), e ora centrípeta - direcionado ao conjunto funcional afetivo, para fora (conhecimento do mundo exterior). Portanto, Wallon distingue os estágios impulsivo-emocional, personalismo e puberdade e adolescência como de predominância centrípeta, e os estágios sensório-motor e categorial como predomínio do conjunto funcional cognitivo. Na vida adulta, supõe-se o equilíbrio entre o domínio funcional cognitivo e afetivo. O predomínio entre um domínio e outro nos estágios de desenvolvimento é conceituado por Wallon (1975) como a lei da predominância funcional. E por fim, a lei da integração funcional estabelece uma relação progressiva entre os estágios e conjuntos funcionais, em que se inicia de funções mais simples e vai se hierarquizando a partir do amadurecimento do estágio anterior.

Wallon (1959/1986) afirma que o aspecto social humano não é apenas uma condição imposta externamente, mas sim uma necessidade biológica, pois sem o social não há formação humana: “O indivíduo, se ele se apreende como tal, é essencialmente social. Ele o é, não em virtude de contingências externas, mas devido a uma necessidade íntima. Ele o é geneticamente” (Wallon, 1959/1986a, p.164).

Wallon em seu artigo “O papel do ‘outro’ na consciência do ‘eu’” (1959) aborda como a relação indivíduo-meio interfere na formação da própria personalidade, e consequentemente, como nos vemos e nos expressamos diante ao mundo. Portanto, são a partir das interações com o meio que o indivíduo terá um arcabouço afetivo que irá moldar a forma como irá expressar suas emoções, sentimentos e paixões, e esses três aspectos estarão intimamente ligados com seu desenvolvimento integral, sendo ele cognitivo, afetivo e motor. Entretanto, essa influência não é unilateral, mas sim uma via de mão dupla em que o meio transforma o indivíduo e este, por meio se suas reações, também transforma o meio social que o cerca. De modo que os acontecimentos da vida de uma pessoa ficam marcados em sua psique, deste modo, o vinculo afetivo que está ligado a tais acontecimentos, sejam eles positivos ou negativos, irão determinar o desenvolvimento deste indivíduo. Portanto, a presença de afeto nas relações presentes na vida da criança se torna crucial para que ela consiga crescer e se desenvolver com segurança e autonomia (RIBEIRO, 2010).

É importante trazer para a análise os casos em que na infância ou ao longo da vida em geral, há ausência ou pouco afeto na criação, pois, relações afetivas e ambientes de convívio nocivos podem levar ao desenvolvimento de questões psicossomáticas, como estados depressivos, transtorno de ansiedade generalizada (TAG), apatia, entre outros. Portanto, históricos de relações tóxicas e traumas podem comprometer a forma de expressão, a vitalidade e a autoestima da pessoa (RIBEIRO, 2010).

Lapierre, em seu artigo sobre “Corpo e Psiquismo” confirma:

O psiquismo é a afetividade, a emoção. O estado de ânimo, o amor, o ódio, a ansiedade, o prazer, o desejo, a agressividade, a sensualidade e todos os sentimentos ligados à relação com o outro e com os outros. Essa evidência afetiva é o componente fundamental da personalidade. É de uma ordem distinta da vivência intelectual, mas interfere constantemente e a condiciona em grande parte (LAPIERRE 2008, p.17).

Vimos, portanto, a importância do conjunto funcional afetivo no desenvolvimento da criança e, ao trazer para o nosso âmbito de atuação, o sistema educacional, podemos perceber mais ainda como tal aspecto da formação humana afeta também a aprendizagem da criança e seu desenvolvimento cognitivo.

A fase da infância é estudada pelos pesquisadores como uma fase crucial para a construção e o desenvolvimento do ser humano, isso se dá pelo fato de que é nessa etapa em que a criança terá contato com novos conhecimentos e irá explorar diferentes sensações motoras e sociais a partir do convívio familiar e escolar. Nessa etapa ocorre a construção dos aspectos cognitivos e motores em função das experiências da criança. Wallon (1986) aborda esse primeiro contato da criança com o mundo externo, evidenciando a troca dos saberes e valores provenientes do contexto social, cultural e afetivo em que a criança está inserida. O autor coloca a afetividade como premissa para a cognição, pois é a partir do contato com o meio que a criança irá desenvolver progressivamente a consciência de si, a qual desencadeará novas funções cognitivas. Será através da emoção que o indivíduo irá comunicar e trocar saberes como o meio, de modo a estimular cada vez mais aprendizagens mais complexas.

Apesar da afetividade e cognição serem funções diferentes entre si, elas são inseparáveis no processo de desenvolvimento psíquico (DANTAS, 1992), estabelecendo uma relação recíproca e interdependente, pois, como visto anteriormente, a cognição e a afetividade andam lado a lado ao longo do desenvolvimento da criança e do adolescente, a partir da lei de “alternância funcional”, criada por Wallon.

Desta forma, é um equívoco separar esses dois conceitos, principalmente quando falamos de algo que possui uma magnitude na formação da criança, se há algum desequilíbrio nessa relação há um comprometimento na forma como ela organiza, assimila e se expressa diante as situações que lhe são submetidas. Wallon (1963) afirma que essa relação entre inteligência e a manifestação afetiva é uma manifestação dialética, pois “[...] se, por um lado, não existe nada no pensamento que não tenha surgido das primeiras sensibilidades, por outro lado, a luz da razão dá às sensibilidades um novo conteúdo.” (ALMEIDA, 2001).

A formação da criança não é e não deve ser tratada de forma fragmentada, a cognição é sim uma função muito importante do desenvolvimento humano, mas se estimulado separadamente, sem valorizar o ser humano como um todo e negando o valor da subjetividade humana, distanciamo-nos cada vez mais da integralidade entre corpo, mente e emoção. Com referência a essa dualidade, Wallon afirma que:

É contra a natureza tratar a criança fragmentariamente. Em cada idade, ela constitui um conjunto indissociável e original. Na sucessão de suas idades, ela é um único e mesmo ser em curso de metamorfoses. Feita de contrastes e de conflitos, a sua unidade será por isso ainda mais suscetível de desenvolvimento e de novidade. (1941, p.198)

Portanto, a respeito da integralidade da formação humana, todas as atividades motoras têm impacto nos aspectos afetivos e cognitivos, assim como toda representação afetiva influi nas atividades motoras e na função cognitiva, e toda função mental também reflete nas dimensões afetivas e motoras. Essas três dimensões se integram no quarto conjunto: a pessoa. Este quarto conjunto se forma a partir da união entre as dimensões citadas anteriormente, que é desenvolvida a partir da integração entre o meio orgânico e o social, culminando na formação integral do Ser, a pessoa. (WALLON, 1941).

Para Piaget (1954) a afetividade influencia na estrutura da inteligência, por que é a energia que impulsiona o processo de aprendizagem, podendo retardar ou acelerar esse processo. Fonseca acrescenta que:

As emoções afetam todas as aprendizagens, quanto mais envolvidas forem com elas, mais mobilizadas são as funções cognitivas da atenção, da percepção e da memória, e mais bem geridas e fortes serão as funções executivas de planificação, priorização, monitorização e verificação das respostas. (FONSECA, 2016, p.371).

Ou seja, quando há um estímulo emocional relacionado ao objeto de aprendizagem, o cérebro responde mais facilmente, ele capta, memoriza e internaliza a informação de uma forma que tal aprendizagem se torna mais marcante na memória a longo prazo.

Segundo Piaget referenciado por Wadsworth (1996), nenhum conhecimento é adquirido por si só sem antes haver uma interação entre um sujeito ou objeto, ou seja, uma interação estimulada por algo externo. O autor considera a criança como um ser dinâmico, que está sempre em busca de interações com a realidade e em busca de estímulos, os quais abrirão espaço para novas estruturas e representações mentais.

A afetividade, se bem estimulada na criança, cumpre esse papel de dar energia e movimento ao corpo, à alma e à mente da pessoa. É a partir dela que a criança e o adolescente se sentirão motivados e curiosos pelo mundo a sua volta, e é a partir dessa curiosidade e desse interesse que eles estarão mais abertos a novos conhecimentos e aprendizagens, a partir de relacionamentos saudáveis e enriquecedores. Vygotsky (1998) explica detalhadamente como ocorre o desenvolvimento da aprendizagem na criança, o qual apenas é possível com a peça chave: a mediação. Para o autor, o desenvolvimento é gerado a partir de um desafio proposto para criança. A partir daí, há um espaço entre o que ela já conhece e domina - Zona de Desenvolvimento Real, e o que pode vir a aprender - Zona de Desenvolvimento Potencial. Esse espaço é denominado de “Zona de Desenvolvimento Proximal” - ZDP. A ZDP é onde ocorre o processo de mediação. Que é imprescindível para que a criança possa assimilar dominar e internalizar esse novo conhecimento, de modo que ela venha a fazer parte de uma nova zona de desenvolvimento real.

Essa mediação é justamente a inter-relação com o meio e com o social, onde o diálogo e as trocas afetivas serão a base para a elaboração cognitiva. Vygotsky (1988) traz isso bem claramente quando afirma que os fatores interpessoais culminam no intrapessoal, relativo à psique da criança. É através da comunicação com o Outro que o indivíduo irá se apropriar dos conhecimentos, valores e objetos socioculturais. Portanto, para o autor, a interação social é indispensável para a aprendizagem e para o desenvolvimento.

Como já observado ao longo desse texto, a afetividade toma um papel importante na formação do indivíduo e por isso é importante estar atento às suas implicações no comportamento da criança. O conjunto afetivo quando estimulado em sua dimensão positiva irá enriquecer, reforçar e motivar a atividade cognitiva. Porém, se estimulado em sua dimensão negativa, pode ocorrer o processo inverso, de intimidação, bloqueio e interrompimento do fluxo do desenvolvimento da aprendizagem do aluno (FONSECA, 2016). BEAN et al (1995) acrescenta que a autoestima também é um elemento ocasionado pelo modo como ocorre a vida afetiva da criança, de forma que interfere diretamente em sua aprendizagem. Afirma que se o aluno está bem e estabelece uma relação positiva com a sua autoimagem tenderá a aprender mais rápido e com facilidade. Afinal, quando estamos bem com quem somos, a relação que traçamos com o Outro e com a realidade que nos cerca se torna mais leve e prazerosa.

A aprendizagem ao ocorrer adequadamente estabelece circuitos neuronais no cérebro do indivíduo, transformando a sua mente e o sentimento de si próprio. Nos aspectos negativos, porque as situações, os desafios ou as tarefas de aprendizagem não devem gerar no indivíduo qualquer vestígio emocional de ameaça, de desconforto, de insegurança, receio ou medo, pois neste caso a acessibilidade às funções cognitivas superiores de retenção, de planificação, de tomada de decisão, de execução e de monitorização e verificação ficam bloqueadas e comprometem o funcionamento mental adaptado que retrata o processo de aprendizagem na sua fase final de fluência e de automaticidade (FONSECA, 2016, p.367).

Fonseca (2009) traz uma abordagem biológica de como se desdobram essas implicações na aprendizagem. Para o autor, um ambiente em que está presente um clima ameaçador, vexatório, que humilha ou desvaloriza o indivíduo, desencadeia um bloqueio nas funções cerebrais superiores corticais, a partir do sistema límbico. Essas funções estão diretamente envolvidas com os sistemas de planificação, execução e capacidade de resolução de problemas. Portanto, a criança ou adolescente que é submetida a estresse constante, tanto no ambiente familiar como também na escola, pode vir a desenvolver problemas emocionais, tais como depressão, apatia, ansiedade, baixa autoestima, vulnerabilidade, agressividade, entre outros. Esses problemas emocionais, segundo o autor, quando manifestados em estágios decisivos do desenvolvimento da aprendizagem da criança - como nas fases de alfabetização e de aprender a calcular e a resolver problemas, pode vir a comprometer irremediavelmente a socialização da criança e a estruturação da sua personalidade.

Essa análise que o autor traz é de suma importância, pois nos faz perceber como o ensino e as aprendizagens vão além das funções puramente cognitivas, e como a afetividade é, e assim deve ser olhada, como um aspecto também essencial para que a aprendizagem realmente aconteça. Muitos desses sofrimentos emocionais e estresses crônicos nos alunos acontecem também a partir da dificuldade de corresponder às expectativas sociais e escolares, de um sistema educacional que, na maioria das vezes, não olha para a sensibilidade e a sutileza do ser humano ali presente.

Sabemos que a aprendizagem ocorre a partir de situações desafiadoras para a criança, estimulando-a a explorar suas capacidades e internalizar novos conhecimentos, e para que isso ocorra da melhor forma, é necessário que se crie um ambiente saudável e seguro para a criança, onde ela possa se expressar e que seja livre de julgamento, onde se entenda que errar faz parte da aprendizagem.  Dantas (1992, p. 41) propõe o “desenvolvimento intelectual dentro de uma cultura mais humanizada”, em que a criança seja olhada em sua totalidade e possa se emocionar, explorar, desenvolver relações saudáveis e estabelecer uma ponte entre a emoção e a inteligência, pensamento corroborado pelo RCNEI – Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil:

Nesse sentido, as instituições de Educação Infantil devem favorecer um ambiente físico e social onde as crianças se sintam protegidas e acolhidas, e ao mesmo tempo seguras para se arriscar e vencer desafios. Quanto mais rico e desafiador for esse ambiente, mais ele lhes possibilitará a ampliação de conhecimento acerca de si mesmo, dos outros e do meio em que vivem. (BRASIL, 1998 p. 15).

A escola deve ser esse ambiente, pois é ali onde a criança irá estabelecer boa parte de suas relações afetivas, já que será, também, a primeira influência socializadora da criança fora do círculo familiar. Segundo Almeida (1999, p. 13), “a partir do momento em que a criança entra na escola, o desenvolvimento infantil adquire um novo rumo e um desenvolvimento mais complexo de relações socioemocionais”.

O diálogo, ou a mediação, como afirmava Vigotski, entre o corpo docente e o aluno, é a chave para que se crie esse ambiente saudável e enriquecedor. Essa relação é uma relação transformadora quando estabelecida de forma a entender a especificidade de cada aluno, estimulando a criança a se sentir bem-vinda no ambiente escolar e a compartilhar e interagir com o diferente. Por isso, “a aprendizagem só se dá de forma integrada no sujeito que aprende: sentir, exprimir e agir” (WEISS, 2008, p. 22).

Todas essas implicações da vida afetiva humana na formação do Eu, por estarem intimamente ligadas à nossa percepção de nós mesmos e à forma como nos colocamos diante das situações, transpassam também o desenvolvimento psicomotor e tônico-postural. A função tônico- postural regula o tônus, isto é, o grau de tensão da musculatura, como também, é responsável pela linguagem facial, corporal e postura, ou seja, diz respeito à expressividade corporal do indivíduo e corresponde à dimensão afetiva do movimento, tendo como elemento base a emoção (GALVÃO, 1996).

A corporeidade desempenha um papel relevante para uma existência saudável, sendo o corpo essencial para a organização psíquica, pois é ao longo das experiências afetivas da criança que se desenrola o processo fundamental de união entre corpo e psique. “Suponho que a palavra psique aqui signifique a elaboração psíquica de partes, sentimentos e funções somáticas, isto é, da vivência física” (WINNICOTT, 1949/1978, p. 411). O termo “corporeidade” faz referencia a esta união entre corpo, psique e afetividade. Sendo o nosso corpo a “ferramenta” de expressão da nossa mente e dos nossos afetos, a corporeidade entende a expressão do copo para além de aspectos puramente fisiológico, trazendo uma visão mais sensível da totalidade que compõe a nossa expressão corporal (GONÇALVES, 2008).

Os afetos primários de desejo, alegria e tristeza não estão internalizados apenas na mente, mas também estão correlacionados com a nossa resposta corporal. Assim, compreender os afetos primários é entender os processos corporais e psíquicos que se apresentam dentro de nós (ESPINOSA, 1677/2009, p. 98). Portanto os afetos ao longo da vida nos constroem como ser humano e como corpo existente, e a mente se nutre e aprende através da troca de afetos entre os corpos (PEIXOTO, 2013).

Essencialmente, o corpo é relacional. É estruturado a partir das relações internas e externas com outros corpos, pela sua virtude de afetar o outro de inúmeras formas e também de ser afetado, como uma troca de saberes e conhecimento sobre o mundo. Espinosa (ESPINOSA, 1677/2009) chama essa troca de afecção, que é a capacidade que o corpo tem de afetar e ser afetado, transformar e ser transformado.

Para Wallon (1975), é por meio do movimento, estimulado pela experiência emocional, que a criança terá contato com o outro e poderá reconhecer, a partir da interação com outro indivíduo, as possibilidades de expressão e movimentação de si próprio. Desta forma, as experiências de cunho afetivo estarão presentes na nossa linguagem corporal, e a partir das vivências que temos, moldamos, aos poucos, a expressão de nós mesmos. É no corpo que estarão registradas nossas memórias emocionais mais profundas (BATISTA, 2008).

Merleau-Ponty, em sua obra Fenomenologia da Percepção, afirma que tudo o que vivenciamos de cunho afetivo, social e cultural é percepção, e frisa que toda experiência perceptiva é, impreterivelmente, uma experiência corporal. Sentir, tocar, agir, ver, ouvir, enfim, viver, são experiências que passam inicialmente pelo estímulo corporal. Desse modo, a percepção não ocorre apenas do ponto de vista interno ou individual, mas também envolve o outro e o que está a nossa volta, sendo mediada por um sistema que compõe o sujeito, que é o seu corpo, o mundo, e o outro, de forma que o nosso movimento se dá a partir da nossa percepção do mundo. Cada sensação e cada experiência estão associadas ao movimento, e cada objeto nos direciona a realização de uma ação.

Para Merleau-Ponty (1945), esse conjunto perceptivo de ordem corporal faz parte da estruturação do esquema corporal, que é uma bagagem de conhecimentos, sensações e experiências que contribuem para a formação da nossa expressão no mundo, como nos apresentamos em determinados espaços e nos relacionamos com o outro. Ou seja, a nossa expressão de si deriva do modo em que percebemos o mundo e percebemos o outro, influenciando na construção da nossa personalidade.

Por meio da linguagem corporal podem-se detectar valores, sentimentos e emoções que em algumas situações estão interligados com processos de carências, dificuldades e necessidades do aluno. Portanto, há a necessidade de compreender o indivíduo como um ser integral, valorizando também os seus aspectos psicossociais e inter-relações com o meio. É importante, no processo educacional, entendermos o corpo como unidade da pessoa, pois é nele em que se instala a sua subjetividade, e é por meio dele que o ser humano irá se comunicar, expressar e transparecer suas necessidades, desejos, valores, dificuldades emocionais e existenciais (FEIJÓ, 1998). A partir da linguagem corporal, o indivíduo irá interagir com o meio, caminhando para o enriquecimento do outro e de si mesmo.

A Educação Física adquire mais legitimidade, portanto, como um meio de estímulo ao desenvolvimento da personalidade do aluno. As interações e afetividade ali presentes irão ajudá-lo a construir e entender o seu próprio eu, a sua personalidade.

Como destacado anteriormente, o movimento do corpo advém de distintas memórias, memórias estas que contam a história de cada um, que constroem a nossa forma de nos movimentarmos no mundo. Portanto, cabe a reflexão de o quanto que a educação física se torna essencial nas escolas, tanto por ser a única disciplina que traz a expressão do corpo como componente curricular, quanto por ser um campo do conhecimento que se interliga intimamente com a subjetividade humana. Como afirma Kunz (2001), quando mediada por professores conscientes da totalidade do ser humano, são instigados no aluno criatividade, o diálogo, a autonomia e a resolução de conflitos, aspectos a primeira vista de cunho social, mas que são inseparáveis do corpo e do movimento e, portanto, indissociáveis da Educação Física.

A atividade física estimula vários estados emocionais. Diante de algumas situações durante o jogo, o estudante está suscetível a lidar com sentimentos e emoções diversos, inclusive frustrações. A forma como ele irá reagir e se expressar nestas situações irá dizer bastante a respeito de sua estrutura afetiva, de modo que lidar abertamente e conscientemente com essas situações na prática de ensino, pode proporcionar contribuições positivas no processo de estabilidade emocional, perfazendo uma oportunidade para lidar com sentimentos, emoções e estabelecer diálogos com o interior e o exterior.

Portanto, a Educação Física é, potencialmente, uma disciplina com recursos diversos que podem contribuir para o processo de autoconhecimento e incidir na estabilidade afetivo-emocional, a qual pode constituir um incentivo para uma melhor qualidade de vida. No contato com o próprio corpo e o corpo do outro, aprender a definir limites e limitações e ter compreensão das próprias emoções e comportamentos são aprendizados que podem ser desenvolvidos nas aulas de educação física, uma vez que essa disciplina não influencia somente no desenvolvimento físico, mas também no desenvolvimento emocional do indivíduo (DEUTSCH, 2003).

Diante de tantas capacidades que podem ser estimuladas e desenvolvidas na aula de Educação física, seria ela um espaço propício para a o desenvolvimento integral da criança e do adolescente? É um ponto de reflexão muito interessante, essencialmente quando entendemos que o componente da Educação Física lida com os quatro conjuntos funcionais, já mencionados anteriormente. A partir do jogo, a criança terá contato com atividades em grupo, irá dialogar, tanto verbalmente como também corporalmente com o meio, e irá também exercitar seu raciocínio lógico, havendo, assim, uma indissociabilidade entre motricidade, emoção e pensamento. Documentos oficiais afirmam que “As maneiras de andar, correr, arremessar, saltar resultam de interações sociais e da relação dos homens com o meio; são movimentos cujos significados têm sido construídos em função das diferentes culturas em diversas épocas da história”. (BRASIL, 1998, p.47)

Lapierre (2008) enfatiza que a união entre a motricidade e a dimensão afetiva da criança é estimulada é capaz de aumentar seu rendimento escolar, pois, como vimos anteriormente, os conjuntos funcionais, afetivo, motor, cognitivo e psíquico se desenvolvem de forma correlacionada. Para Lapierre, uma mediação motora sistematizada tem o objetivo “dar voz ao corpo, fazer desse “psi-corpo” um corpo que atua, um corpo que fala de si mesmo, de seus desejos, suas carências, de seus fantasmas e suas angústias em uma vivência simbólica que tem valor de linguagem”. (LAPIERRE, 2008 p.18).

Pudemos ver como a afetividade está intimamente relacionada com o desenvolvimento motor da pessoa, e quando estimulada contribui diretamente para o desenvolvimento integral da criança, inclusive para o seu desenvolvimento cognitivo. A educação física desenvolve um papel importante nesse processo e possui uma gama de conhecimentos que podem ser desenvolvidos em aula em prol do desenvolvimento do aluno, e que vão além da função motora em si e de encontro da subjetividade humana.

Sabendo de todas essas implicações no desenvolvimento não é justo construirmos uma compreensão de educação escolar que segmenta o aluno e separa o corpo das relações afetivas, que trata o corpo como uma máquina, distanciando-o da sua subjetividade.

Este corpo não é uma máquina, um instrumento que registra as informações do mundo exterior na forma de um decalque. [...] seu sentir não é um sentir de qualquer corpo animal. Sua especificidade está exatamente no processo relacional homem/mundo, procede da sua existência concreta de sentir, pensar, agir, sonhar, imaginar, desejar, seduzir. O homem aprende a sentir, sentindo o mundo através de seu corpo (TEVES, 1992, p. 8/9).

Lapierre, de forma belíssima, também questiona racionalização do corpo:

Mas meu corpo não é só um conjunto de órgãos, é o lugar onde eu vivo, onde eu sinto, onde eu existo. Lugar de desejo, de prazer e de sofrimento, lugar da minha identidade, do meu ser. Esse corpo, dominado pelos seus sentimentos e suas pulsões, escapa à racionalização, porque, precisamente, ele é irracional (LAPIERRE, 2008 p.16).

Essa dualidade também ocorre entre a educação física e a educação intelectual, em que, no ensino tradicional, a criança quieta e silenciosa é tida como aluno ideal, e em contrapartida o aluno que tende a ser mais agitado é mandado para o professor de educação física, com a função de disciplinar a criança e a fazer ficar parada, para que as suas notas não sejam prejudicadas (LAPIERRE, 2008).

Castellani (1988) explana que a Educação Física se legitimou no Brasil como componente escolar na primeira metade do século XX, trazendo o nome de ginástica. Era ministrada inicialmente por instituições militares e, visando a manutenção da “ordem social”, as intervenções tinham como premissa forjar uma sociedade de indivíduos “fortes”, “saudáveis” e disciplinados para servir ao país. Esse movimento inicial da educação física no Brasil também possuía influências da medicina, de cunho higienista, buscando a eugenização da sociedade brasileira. Portanto, a Educação Física ganhou força com a construção da ideia de um corpo ideal, a partir de atividades padronizadas e da centralização nos aspectos motores e estéticos do indivíduo. Para o autor, tais aspectos históricos podem influenciar a forma como a educação física se coloca e é vista pela sociedade, porém não são determinantes. A dimensão humana vem fazendo parte cada vez mais do nosso componente, ganhando força a construção da ideia de corpo que extrapola os limites orgânicos e biológicos, que é também social e cultural.

Em contraponto a essa padronização corporal, é importante que nós, professores de educação física, tragamos a corporeidade em nossas aulas, que haja espaço para o diálogo e trocas enriquecedoras, que a criança possa construir sua autonomia, apossar-se do seu próprio corpo e se movimentar pelos espaços com liberdade e respeito para com si mesmo e com o outro.

Quero dizer, que é preciso olhar sensivelmente o corpo na busca da sua consciência corporal e não da disciplina imposta ou padronizada. Devemos habitar este corpo, sentir suas necessidades, anseios, limites, sensações; ou seja, aceitá-lo, para quiçá descobrir sua consciência e sabedoria (Moreira, 1995, citado por Brandl, 2002).

Entretanto, a educação integral do aluno no sistema educacional não se diz respeito somente ao professor de educação física, mas também à escola e em como o ambiente escolar é formado. Intencionalmente ou não, a política pedagógica da escola e o modo como as relações são desenvolvidas e estimuladas no ambiente escolar irão influenciar na aprendizagem do aluno. Tendo em vista que tal influência é inevitável, é importante analisarmos se em nossas escolas estão sendo construídos ambientes saudáveis e propícios para um desenvolvimento saudável, que valoriza a importância que a afetividade tem na formação humana.

Dantas (1992) afirma que a escola comete um erro enorme quando desvaloriza a dimensão humana do educando, quando ignora o contexto social em que a criança está inserida, quando esquece que cada aluno é um ser cheio de subjetividade e também cheio de potenciais, quando não dá relevância ao convívio, à cultura e a sociabilidade como componentes essenciais na formação do aluno, quando esquece que o aluno não é só mental, mas é também corporal e social, é um ser múltiplo.

Goleman (1995) propõe uma visão sobre a inteligência humana que vá além das capacidades puramente cognitivas e intelectuais e ressalta a importância de trazer também, no ambiente escolar, as capacidades de gestão emocional, compreendendo que existem capacidades além da inteligência também relevantes para o desenvolvimento acadêmico, pessoal e social do indivíduo. Galvão propõe que:

[...] frente à questão das emoções, a ação pedagógica não deve se restringir à compreensão e ao controle, mas deve incluir também a oferta de possibilidades de expressão. É preciso que a escola reflita sobre as possibilidades que oferece, buscando situações em que a expressão seja de fato o objetivo da atividade e não um transbordamento indesejado que tenderá a ser contido (GALVÃO, 2001 p.30).

Tendo em vista os variados apontamentos teóricos referentes à importância dos estímulos e das capacidades sócio-afetivas na infância e na juventude, percebemos a necessidade de as Instituições escolares trazerem o aspecto afetivo também como foco formativo dentro das práticas pedagógicas. Ao pesquisar como esse tema está sendo levantado pelos documentos legais e norteadores da educação básica, pude inferir que trazem a afetividade como um componente também essencial para o projeto educacional escolar.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) trata das questões sócio-afetivas nos termos dos artigos 29, 32 (inciso IV) e 35 (§7), quando frisa o fortalecimento dos vínculos sociais como um dos objetivos da educação básica e prioriza o direito a uma educação integral baseada no desenvolvimento dos aspectos físico, psicológico, intelectual e social do aluno.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), também assenta um compromisso com a educação integral, reconhecendo uma educação básica que faça jus à formação integral do ser humano e questionando tendências educacionais reducionistas que privilegiam apenas a dimensão intelectual. Defende uma educação que assuma “uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente e do jovem adulto - considerando-os como sujeitos de aprendizagem - e promova uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades” (BRASIL, 2017, P. 14?).

A BNNC também estabelece as “10 competências gerais da educação”, presente nos tópicos 8°, 9°’ e 10°, salientando a capacidade de lidar e reconhecer as próprias emoções e as dos outros, e de praticar o autoconhecimento e cuidado com a sua saúde física e emocional. Também defende o exercício da empatia e do diálogo, estabelecendo sempre uma relação de respeito para com o outro, mediante o “acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.” (BRASIL, 2017,p. 10). Por fim, propõe uma práxis pessoal e coletiva com autonomia, respeitando os princípios democráticos, inclusivos e solidários.

O tema da afetividade também está presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) quando o documento traça os princípios fundamentais que devem permear o processo de aprendizagem na educação básica, sendo eles: éticos, políticos e estéticos. Os princípios éticos se referem à valorização da autonomia da criança e do adolescente, assegurando que o aluno seja ativo no processo, se manifeste e estabeleça vínculos afetivos, ampliando a sua compreensão sobre si mesmo e sobre o mundo. Os princípios políticos fazem referência a uma educação para a cidadania, em que o ambiente escolar deve ser um espaço no qual o aluno seja estimulado a estar comprometido com o bem estar coletivo e individual, em que o aluno possa expressar seus sentimentos e ideias, contribuindo para a formação de um indivíduo crítico e que zela pela coletividade. Já os princípios estéticos tangem às manifestações artísticas e culturais, ao lúdico, à sensibilidade e subjetividade do Ser. Este documento propõe “II – a indivisibilidade das dimensões expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural da criança” (BRASIL, 2013 p.98).

Os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) também apontam para a necessidade do aluno aprender a conviver em grupo, dialogar e ser positivamente estimulado em sua dimensão afetiva. Afirma também a importância de se criar um ambiente determinante para que uma um ensino de qualidade aconteça, uma organização escolar pautada nos valores democráticos, que tem como foco também as questões sociais. O documento elenca as capacidades que devem ser desenvolvidas ao longo do processo escolar: “os objetivos se definem em termos de capacidades de ordem cognitiva, física, afetiva, de relação interpessoal e inserção social, ética e estética, tendo em vista uma formação ampla” (BRASIL, 2013 p.47).

O PCN referente à disciplina de Educação Física do ensino fundamental lembra a desvalorização histórica das capacidades sócio-afetivas e corpóreas, enfatizando que é necessário superar essa perspectiva e estabelecer uma união entre corpo, mente e afeto. O texto estabelece uma relação indissociável entre corpo e emoção, principalmente nas práticas de educação física, que por meio do jogo, do “calor do momento”, os alunos podem vir a manifestar questões emocionais. O documento defende que tais demandas não sejam simplesmente “varridas para debaixo do tapete”.

O êxito e o fracasso devem ser dimensionados tendo como referência os avanços realizados pelo aluno em relação ao seu próprio processo de aprendizagem e não por uma expectativa de desempenho predeterminada. Por isso, as situações de ensino e aprendizagem contemplam as possibilidades de o aluno arriscar, vacilar, decidir, simular e errar, sem que isso implique algum tipo de humilhação ou constrangimento (BRASIL, 1997 p.30).

Diante a todas essas informações, vejo que na teoria a afetividade é sim reconhecida como peça importante desse quebra-cabeça. Porém me vem o questionamento de se ela realmente está sendo valorizada nas instituições escolares e, se sim, como que as escolas lidam na prática com a dimensão sócio-afetiva no ambiente escolar e durante a prática pedagógica.

4. METODOLOGIA DE PESQUISA

A metodologia utilizada no presente trabalho foi exploratória, a partir de uma análise qualitativa dos dados coletados. Para além da revisão literária e análise de documentos, a partir de uma inquietação minha sobre como tal aspecto pode ser mediado na prática, instigou-me compreender, a partir da visão dos docentes, como a emoção e a afetividade são inseridas na ação pedagógica destes profissionais, como são desenvolvidas e articuladas na prática pedagógica da escola e do professor de Educação Física. A partir disto, escolhi cinco professores de Educação Física para conversar sobre o tema. Os professores selecionados para as entrevistas eram todos da Escola Parque 308 Sul, em Brasília-DF. Essa escola foi especificamente escolhida por possuir uma proposta pedagógica que valoriza o aluno como um ser integral e por ser historicamente uma referência de ensino público no DF.

Faz-se necessário, inicialmente, explicar o contexto escolar em que essa pesquisa foi aplicada, pois esta escola possui uma proposta alternativa de ensino.

A Escola Parque 308 Sul foi inaugurada em 1960 e tombada como Patrimônio Cultural do DF em 2004. Segundo Wiggers (2011) foi idealizada por Anísio Teixeira almejando uma educação democrática e autonômica voltada para o desenvolvimento de crianças, jovens e adultos críticos e conscientes de seu papel social.

Atualmente a escola recebe, no contraturno da Escola Classe, alunos do 1° ao 5° ano e até hoje busca fazer jus à proposta do Professor Anísio Teixeira com aulas regulares de educação física, teatro, artes visuais, dança e música. Tais disciplinas correspondem à proposta da escola de aproximar o aluno de uma maior vivencia cultural, artística e corporal. Como também frisa em seu Projeto Político Pedagógico - PPP, esta proposta visa proporcionar ao aluno vivências que levem a uma percepção poética e uma maior compreensão do mundo, prezando pelo desenvolvimento integral dos alunos.

Outro motivo relevante para a escolha da escola foi a minha vivencia e o contato mais próximo que tive da escola e de sua proposta pedagógica entre os anos de 2017 e 2018, quando atuei na escola como participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - PIBID. Foi uma significativa experiência, pois pude experienciar como a comunidade escolar valoriza a qualidade das relações estabelecidas dentro da escola, proporcionando uma mediação com os alunos que leva em conta a dimensão subjetiva da formação humana, e sendo um espaço onde se preza sempre pelo coletivo. Portanto, este trabalho tem também por objetivo honrar essa oportunidade enriquecedora que tive em minha graduação.

As entrevistas foram desenvolvidas com os cinco professores de Educação Física do turno vespertino da escola. Para a identificação dos entrevistados foram utilizados nomes fictícios: Professor Felipe, Professora Paula, Professor Guilherme, Professora Camila e Professor Ricardo.

Já havia tido um contato anterior com esses professores, o que facilitou o agendamento de dias e horários das entrevistas, que foram realizadas na própria escola e de forma individual com cada professor.

Optei por entrevistas individuais uma vez que meu intuito era poder captar uma maior riqueza de detalhes e aprofundamento referente ao tema com cada entrevistado. As entrevistas foram planejadas de forma semiestruturadas e realizadas no dia 18 de setembro de 2018, no período da tarde, durante o intervalo e após o termino das aulas. Ao iniciar as entrevistas, pontuei para eles os temas centrais a serem abordados, sendo: 1. Qual é seu entendimento a respeito dos aspectos afetivos na formação da criança? 2. Em sua opinião, qual é o papel da escola e da Educação física no desenvolvimento desses aspectos sócio-afetivos? 3. Como você desenvolve esses aspectos em sua prática de ensino?

As entrevistas foram gravadas pelo celular, totalizando em torno de 8 minutos de áudio, os quais foram transcritos e selecionados os pontos mais relevantes para este estudo, de acordo com a recorrência dos temas e a proximidade com o tema do presente trabalho.

Posso dizer que uma das dificuldades durante o processo de pesquisa foi delimitar um tempo máximo para cada entrevista, o que dificultou, posteriormente, a organização de todo o material coletado.

5. RESULTADOS, ANÁLISE E DISCUSSÕES

Durante e após a coleta de dados, percebi que nas entrevistas foi notável a relevância que eles dão ao tema da afetividade, evidenciando como ela é um tema bastante presente no ambiente do corpo docente da escola.

O Professor Felipe afirma que a afetividade no contexto escolar constitui um papel relevante, pois é a ponte que liga o aluno ao conhecimento.

Para a Professora Paula, a afetividade é:

[..] a relação que eu estabeleço com o meu aluno, é o trato que eu dou a essas crianças como seres humanos. A afetividade, está relacionada a esse aspecto do desenvolvimento da formação humana: como eu falo com o meu estudante, como eu estimulo a relação entre eles, como eu falo o conteúdo de determinada aula, o trato que eu dou pra aquele estudante antes de começar a aula de educação física, no recreio, na entrada da escola etc.

A partir da fala dos dois professores é possível obervar como a afetividade sempre está presente na mediação do professor e, quando se trata de formação humana, a forma de lidar com o aluno irá influenciar na relação ensino-aprendizagem. Desta forma a construção do repertório afetivo do aluno, querendo ou não, é efeito das mediações as quais ele está submetido, portanto é um aspecto que não pode ser ignorado durante o processo de ensino, visto que a afetividade é tanto premissa quanto consequência de qualquer processo formativo. Desta forma, podemos utilizar do diálogo como um meio de aproximar o aluno do conhecimento, de modo que “antes de chegar ao conteúdo, eu preciso chegar à criança/jovem como ser humano, enquanto ‘Ser’ e não enquanto armazenador de conteúdo.” (Professora Paula).

Ao se referir sobre qual é o papel da Educação Física no desenvolvimento dos aspectos sócio afetivos, o Professor Felipe traz que o nosso campo de atuação é social. O próprio ambiente das práticas de Educação Física propicia a relação com o outro, a expressão de si, “diferente da sala fechada, em que o corpo fica parado, não se expressa, é passivo. Na Educação Física a criança tem espaço pra criar, se soltar.” (Professor Felipe).

Também para a Professora Camila a sociabilidade e a Educação Física estão intimamente relacionadas e, se assim propor o professor, pode vir a ser um espaço de expressão e conscientização de sentimentos e emoções. E complementa:

Acho que a Educação Física é importante justamente para desenvolver a expressão da criança, assim como as emoções e os sentimentos pra vida adulta, para sociedade, pra forma como ela se expressa. A sociabilidade nos exige isso. né! E a Educação Física tem um papel chave nisso.

Ao aproximar o tema da nossa área de atuação, dois professores citaram o jogo como instrumento no desenvolvimento de valores sociais. Segundo o Professor Felipe, para quem “criança é cognição, ação e emoção, é pensamento, é movimento e é sentimento”, o jogo é importante para saber lidar com as frustrações, e a partir da dinâmica de quem ganha e quem perde, por exemplo, aprende-se a elaborar e expressar os sentimentos de uma forma mais consciente. O Professor Guilherme também apontou as aprendizagens oriundas do jogo como forma de estimular a inter-relação entre os alunos:

[...] você precisa do outro para que o jogo aconteça. Quando você brinca ou pratica uma atividade com pessoas que você gosta, ela possui outro valor. Tem casos de alunos que não se dão bem, mas mesmo assim, em prol da atividade eles participam e acabam cooperando. Então realmente a educação física é a base da afetividade aqui na escola.

Ao entender qual era a visão destes professores a respeito da afetividade no campo de atuação deles, indaguei-os sobre como eles mediam essas questões em suas práticas de ensino, tanto na perspectiva da educação física como também na organização do contexto escolar.

A Professora Paula afirma que o aspecto sócio-afetivo se inicia desde o primeiro dia de aula, e é um processo que está em constante construção, tanto individualmente com cada aluno, como também com a turma, na relação entre eles, e cita uma brincadeira      que passa para seus alunos:

A construção afetiva está presente em uma simples brincadeira com balão ou em uma brincadeira de se abraçar e cantar “olá como vai? Eu vou bem, e você vai bem também?” Uma brincadeira pequenininha que talvez as pessoas não valorizem, mas é uma atividade que, pra mim, é fundamental pro primeiro ano, para crianças de sete anos.

O Professor Guilherme aponta que na escola os horários das turmas de Educação Física são em conjunto, uma medida que estimula a todos os alunos se relacionem para além dos limites de turma e séries.

A Professora Camila diz que a afetividade perpassa a prática docente o tempo inteiro e que procura em suas aulas ser um exemplo para seus alunos, sendo uma professora respeitosa e que ao estar diante de uma queixa ou choro de um aluno não relativiza, mas valoriza a construção de um espaço em que a criança se sinta à vontade para se expressar. Aponta que em algumas situações, no calor do momento, pode haver uma tendência do professor a cortar o aluno ou ser ríspido no modo de falar. Mas explica que é necessário que entendamos que são crianças, seres em construção, como nós também, e precisam de proteção na hora que expressam suas delicadezas. E acrescenta como método utilizado dentro de suas práticas:

Também tento tratá-los de uma forma horizontal. Acho que isso os deixa livres para se expressarem. Na medida em que você cria um laço que não é hierarquizado, que não seja  tão somente disciplinar, você acaba deixando as crianças mais à vontade para se expressarem, e eu acho que isso é muito rico, afinal o afeto é fundamental para o ato educativo. Fundamental estabelecer um vínculo sincero, orgânico com a criança. Quanto melhor esse vínculo acho que melhor você consegue avançar na aquisição de novas habilidades e novos conceitos, né?

Ao escutar a fala da Professora Camila, intrigou-me o momento em que ela diz que em certas ocasiões pode ser difícil manter a prudência, suponho que por questões próprias emocionais, um dia que não foi muito bom, ou uma própria frustração de lidar com um aluno que não segue o script de “aluno ideal”. Assim, faz-se necessário muitas vezes parar, respirar, reencontrar o seu centro e encontrar meios maduros e não agressivos de mediar a situação.

A respeito dessas circunstâncias algumas vezes conflituosas com alunos, ela traz um caso de um aluno que chegou na escola sendo muito agressivo, e que constantemente ia para a coordenação por agredir fisicamente ou verbalmente um colega. Com o tempo foram notando mudanças visíveis em seu comportamento:

[..] ele é um caso nítido de como é importante a gente tratar a criança de uma forma mais terna e amorosa. Ontem mesmo eu dei aula de natação para ele, e ele já incorporou a questão do obrigado, de pedir desculpas pros colegas, presta a atenção na aula, não se envolve em conflito por qualquer coisa, caso sinta que está acontecendo alguma coisa de errado ele nos procura, quando está se sentindo mal ele consegue expressar de uma forma mais clara com a gente. Então isso tudo é resultado de ter uma cultura de diálogo com as crianças, né? (Professora Camila).

O Professor Ricardo complementa ao apresentar que essa não é só uma postura isolada, mas também de todo corpo formativo da escola:

[...] ações que vêm sendo desenvolvidas pela supervisão, pela coordenação e pelo conjunto de docentes tem fortalecido esses vínculos dos alunos com a escola. Se a gente se torna indiferente às vidas das pessoas, dificilmente a gente teria condições de estabelecer vínculos tão respeitosos e consistentes.

Guilherme também aborda essa temática em sua fala ao dizer que constantemente se deparam com casos de alunos com um convívio familiar conturbado, o que muitas vezes isso se reflete na forma como o aluno se relaciona na escola. Em alguns casos eles se fecham ou se isolam. O professor cita uma frase do diretor que o marcou: “quando o aluno vier te dar um abraço, não sai não, dá o abraço nele, por que pode ser o único abraço que ele recebe no dia”. O diretor afirma também que “é muito gratificante, um tempo depois, encontrar esse aluno e receber esse retorno, de que a nossa atuação realmente marcou a vida daquela criança de uma forma positiva.” (Professor Guilherme).

Os Professores Ricardo e Camila trouxeram uma crítica à tendência autoritária do ensino tradicional e até mesmo historicamente no campo da educação física, que vem sendo, muitas vezes, cerceadora a dimensão afetiva, a partir de uma “domesticação de corpos para a não expressão” (Professora Camila). O Professor Ricardo afirma que a mediação de conflitos no dia-a-dia da escola por meio de estratégias coercitivas podem até resolver o problema no imediato, mas no final não vão. De acordo com uma perspectiva educacional que eduque para a vida, diz ele:

As práticas democráticas internas da escola criam condições nas quais essas interações viabilizem uma participação não subalterna dos alunos, mas que cada um desses sujeitos, desde o primeiro ano entenda e exercite esse direito fundamental que é da participação e poderem se expressar e entenderem que a gente se torna humano convivendo com humanos, pois essas interações sociais são determinantes para que a gente erga homens e mulheres com um enriquecimento a altura do tempo histórico em que a gente vive. (Professor Ricardo).

Para além, portanto, da atuação do professor dentro de sala de aula, é necessário que se construa um ambiente escolar coletivo e consciente dessas questões. Que a diretoria, coordenação e professores, juntos, possam exercer uma educação que valorize a subjetividade humana, ao contrário da perspectiva tradicional de ensino, em que o aluno é suprimido pelo seu rendimento escolar, sendo o aluno o objeto central do processo educativo e levando em conta as diferentes dimensões e inteligências que compõem a formação do Ser.

A Escola Parque 308 é um exemplo quando analisamos essa articulação da escola em prol de um desenvolvimento integral do aluno (WIGGERS, 2011). Ao analisar o seu PPP, é notável a relevância que é dada ao componente afetivo. Em vários trechos do documento é ressaltada com premissa da escola sua função social de formar sujeitos autônomos, cabendo garantir e construir saberes indispensáveis para a inserção social. No campo da Educação Física o PPP estabelece que “São trabalhados conteúdos através de atividades que desenvolvem os domínios psicomotor, afetivo-social, cognitivo e a reflexão sobre seus valores e atitudes no contexto social, dentro da perspectiva da formação humana e cidadania.” (SEE/DF, 2018 p. 123).

Tendo em vista que na escola todas as decisões ou situações delicadas são conversadas coletivamente, e com a política de que o que ocorre na aula de um professor a responsabilidade não é só dele, mas de toda a escola, formando uma grande rede de apoio, o Professor Ricardo aponta que “o nosso projeto escolar é de emancipação, é civilizatório, é de formação humana, do cuidado, do carinho e da atenção”. Frisando a importância de estarem atentos não só ao componente curricular, mas também no diálogo, as supervisões, coordenações e orientação educacional buscam, na escola, desenvolver um trabalho coletivo ao lidar também com questões que perpassam a formação dos alunos, para além do componente curricular. O professor acrescenta ainda que é imprescindível que essa proposta de ação democrática seja articulada ao projeto político pedagógico, e que seja elaborado e concretizado por todos os segmentos que compõe a instituição escolar.

Esse processo de formação humana é inesgotável e a gente entende que a escola tem um papel fundante e a nossa área de conhecimento também tem uma contribuição relevante na formação de cada um dos alunos. (Prof. Ricardo).

Através da fala dos professores referente a situações e atuações práticas no dia-a-dia da escola, ficou mais claro para mim como a afetividade pode e deve ser inserida em todas as instâncias do cotidiano escolar, desde a elaboração da proposta pedagógica até a execução da mesma, desde a forma democrática e horizontal de lidar com seus alunos às atividades propostas para a turma, visando uma maior conscientização da própria expressão do aluno e da relação entre eles, e, também, desde a perspectiva de sala de aula/quadra até a mobilização conjunta do corpo formativo escolar em fomentar uma escola mais humanizada.

“Acho que a gente trabalhando a afetividade e insistindo nisso ajuda bastante. Fazer pelo menos um mundo melhor para cada criança. Dizem que a gente não pode mudar o mundo né, mas cada criança é um mundo, e quantas crianças já não mudaram por aqui?” (Professor Felipe).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no que foi apresentado, a dimensão afetiva engendra todo o processo de formação da criança, tendo em vista que é a partir delas que se estruturará a forma como a criança se coloca e se percebe diante ao mundo, como assimila e responde aos estímulos do contexto em que está inserida. Por conseguinte, estará atrelado ao desenvolvimento harmônico, ou não, do aluno.

Ao levar em conta todos os aspectos da formação psíquica da criança e da inter-relação com o outro, a escola se torna um dos ambientes mais relevantes na vida da criança, sobretudo considerando a realidade atual onde se observa um crescente distanciamento físico entre as pessoas.

A Educação Física por si só predispõe um espaço de expressividade e interação, e sendo um campo do conhecimento que historicamente desvalorizou as capacidades sócio-afetivas em sua atuação, faze-se necessário trazer a teoria para a prática e superar perspectivas educacionais reducionistas, a fim de possibilitar uma educação integral que estabeleça uma união entre corpo, mente e afeto. Um corpo que tem voz e cor própria, que fala de si e ocupa espaços, que é estimulado a se expressar com liberdade e respeito, que é habitado.

Foi abordado, tanto nos apanhados teóricos como nas falas dos professores entrevistados, a realidade da “padronização dos corpos” no ambiente escolar, uma situação que, infelizmente, deparamo-nos ao analisar o contexto social em que as instituições escolares estão inseridas. Diante de uma sociedade capitalista e potencialmente excludente, que visa desempenho, rendimento e lucro, que categoriza e estereotipa, distanciando-se cada vez mais da dimensão subjetiva e humana que compõe a nossa relação com o mundo, faz-se necessário a construção de uma educação que eduque para a vida, para a formação de crianças e jovens que atuem de forma consciente do seu valor social no mundo.

Com a pesquisa realizada detectamos algumas metodologias de ensino que podem ser relevantes para a mediação e o estímulo das capacidades afetivas dentro do processo de ensino. Dentre elas observamos a importância de dialogar e valorizar dentro da aula capacidades como a regulação emocional. Ao invés de suprimi-las é necessário estimular a manifestação das emoções e sentimentos. Os discentes precisam ter oportunidade de situar com palavras e ações o que lhes incomoda. Falar, expressar, colocar para fora o que sente. Isso é algo que pode acontecer como parte integrada às atividades motoras, ou melhor, psicomotoras, porque cada movimento carrega emoção. Nessa integração pode-se formar um ambiente de convívio em que se valorize a pluralidade e o respeito nas relações. Desta forma, o professor de Educação Física possui em mãos uma ferramenta importantíssima, que é o jogo, pois através dele podem ser estimuladas várias reflexões, proporcionando o desenvolvimento de valores sociais e a conscientização de si e da relação com o outro.

Outra estratégia que pode ser utilizada é uma atuação interativa que traga uma percepção horizontal e não hierarquizada com o aluno. Compreender a premissa de que o processo de aprendizagem é um todo que interage com o estudante, o docente e o ambiente, sendo o aluno, o centro deste processo.

É importante estimular uma curiosidade em relação ao mundo para que aprender seja prazeroso, sempre considerando que o erro é realmente parte do processo de aprendizagem e faz parte do processo natural da vida. Para que se expressem e exercitem a participação ativa na própria aprendizagem.

Considerando a organização coletiva da instituição escolar, é importante que todas as instancias da escola dialoguem sistematicamente em suas coordenações a estruturação de um espaço seguro e aberto, que enxergue as múltiplas inteligências e necessidades trazidas pelos alunos, a partir do entendimento de que as emoções, principalmente no processo de aprendizagem, devem ser entendidas e trabalhadas, e não suprimidas. A ação coletiva favorece que não apenas os alunos, mas também os professores se sintam acolhidos. Assim, em conjunto, é possível intervir e mediar ações pedagógicas de uma forma mais consistente.

Ao longo da escrita deste trabalho, em alguns momentos, inquietou-me se eu apenas não estava sonhando demais ou idealizando uma utopia de um sistema educacional consciente da formação humana. Mas ao conversar com os professores entrevistados pude ver que é sim viável, é uma realidade que podemos construir em nosso ambiente de trabalho. Uma das várias aprendizagens que tive ao longo do meu curso, e talvez a mais marcante para mim, foi o entendimento de que a mudança em perspectiva macro pode parecer distante, mas se olharmos à nossa volta, em nosso círculo de atuação, na escola, com os nossos alunos e nossos colegas de profissão, podemos enxergar múltiplas possibilidades e caminhos para uma educação mais humanizada.

Este estudo analisou uma pequena amostra de professores com reconhecida atuação humanista na área de Educação Física. Pela disponibilidade de tempo e de conhecimento necessários, não foi possível acolher uma amostra maior. Penso que seria interessante, deixando como sugestão para os leitores, realizar um estudo mais abrangente, buscando mapear e analisar como são mediadas as questões sócio-afetivas nas escolas públicas e/ou particulares de Brasília, observando o desdobramento no contexto escolar e na vida dos estudantes e analisando, também, a diferença entre a teoria e a prática. Será que nessas escolas há mais alegria, inteligências, sociabilidade, amor...?

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Publicado por: Barbara De Araujo Vaz Da Costa

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