O SISTEMA DE PRECEDENTES JUDICIAIS NO NOVO CPC E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA EFETIVA SEGURANÇA JURÍDICA

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1. RESUMO

Este trabalho objetiva analisar a problemática da segurança jurídica a partir da instituição, pelo Novo Código de Processo Civil, de um sistema de respeito aos precedentes emitidos pelos tribunais superiores. Sendo o sistema de precedentes algo mais próprio do common law e tendo em vista ser o civil law a tradição jurídica vigente do Brasil, o trabalho, inicialmente descreve os dois grandes sistemas jurídicos ocidentais. Após, há o estudo do sistema de precedentes norte-americano, com vistas a conferir uma análise prospectiva que pode servir à construção do sistema pátrio. Adiante há a exposição do sistema instituído pela nova legislação e a diferenciação de institutos no que é sucedido da investigação sobre os desafios que podem surgir na prática dos tribunais. O estudo realizado mediante análise descritiva de obras conclui pela existência de um sistema em construção que pode, de fato, contribuir para uma efetiva segurança jurídica.

Palavras-chave: Precedentes Judiciais. Segurança Jurídica. Sistema de Precedentes Vinculantes.

ABSTRACT

This work tends to analise the problem of the legal certainty from the institution, by the New Civil Procedure Code, of a respect system to the judicial pronouncements by the superior courts. Knowing that the binding system is more likely in the common law tradition, and that in Brazil the tradition is the civil law, the work, inicially describes the both legal systems. After that, there is the study about the north american binding precedents system in order to give a prospective analysis wich can help in the construction of brazilian system. Foward, there is the exposition about the system instituted by the new law and the differentiation of the institutes, and what happens next it is the investigation about the challenges that may occcur in the practice of the corts. The study made by descriptive analysis concludes for the existence of a system in construction that may, indeed, contribute for an effective legal certainty.

Keywords: Judicial Precedents. Legal Certainty. Binding Precedents.

2. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo a análise acerca da possibilidade de haver uma maior segurança jurídica e efetividade dos provimentos judiciais para os jurisdicionados em virtude da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015) que almejou instituir um sistema de precedentes no país. Como será visto, a ideia de precedentes não era estranha ao nosso ordenamento antes da vigência da supracitada lei: a súmula vinculante, norma constitucional acrescida pela EC/2004 que visou editar enunciados vinculantes e gerais, e a regra que previu a inadmissibilidade de recurso por existência de sentença em conformidade com súmula dos tribunais superiores (súmula impeditiva de recurso) compõem dois bastantes exemplos de mudanças legislativas que visaram conferir maior autoridade às decisões judiciais.

Apesar dessa importante inauguração legislativa, há que se levar em conta a tradição a que o Brasil originalmente pertence: o civil law, desde sua consolidação com a Revolução Francesa, confere às leis um importante papel orientador do Direito. Os precedentes, como será visto, são institutos próprios do sistema do common law, e por isso um prévio estudo dessas grandes tradições orientais se faz essencial para a análise acerca da existência e do papel de um sistema de precedentes brasileiro.

Assim, na primeira parte deste trabalho são expostas a história e evolução de cada uma dessas tradições, com descrição dos seus principais elementos. A seguir, é feita uma breve análise do sistema misto, assim considerado, norte-americano. Como se verá, o fato dos Estados Unidos possuírem uma Constituição escrita e adotarem um sistema de precedentes vinculantes baseado na hierarquia dos tribunais superiores faz a comparação ser importante do ponto de vista prospectivo.

A seguir, no segundo capítulo, tem-se o Novo CPC propriamente dito. Primeiramente há as conceituações necessárias e as diferenciações entre elas para o devido delineamento dos institutos próprios da nova legislação. Além disso, se faz necessário analisar as técnicas de manuseio próprias do common law cujo entendimento é essencial para a aplicação racional do sistema de que se visou instituir.

Finalmente, no capítulo 4, tem-se uma análise com vistas a antever alguns desafios que poderão porventura ser enfrentados na construção desse novo sistema. Ainda, há item que versa sobre a construção do sistema de precedentes no Brasil e sua relação com a segurança jurídica.

A metodologia utilizada é a descritiva e as fontes utilizadas são livros, artigos científicos amplamente revisados por pares, teses e dissertações com vistas a se chegar, dentro dos limites próprios deste tipo de trabalho, numa resposta ao questionamento proposto.

3. AS ORIGENS HISTÓRICAS DO SISTEMA DE PRECEDENTES

Para uma melhor compreensão do sistema de uniformização de jurisprudência inaugurado pelo novo Código de Processo Civil (NCPC), Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, é necessária uma exposição das duas grandes tradições jurídicas do direito ocidental: o common law e o civil law. É pacífica a ideia de que a tradição vigente no direito pátrio é de origem romano-germânica, ligada à lei escrita como principal fonte de direito, ao método dedutivo (em que predomina a fórmula: lei + fatos= decisão), à dogmática. Entretanto, a adoção, no país, de institutos correlatos aos do common law ainda na vigência do Código passado, Lei 5.869 de 11 de janeiro de 1973, mostra o fortalecimento dessa tradição no direito pátrio que tentou conferir carga eficacial aos precedentes1. Dessa forma, não apenas pelas características desses sistemas jurídicos tomadas isoladamente, mas, principalmente, pela intersecção que tem se formado pelos dois e pela discussão que tal fato tem gerado para o direito como um todo, sua análise se justifica no presente estudo.

Em verdade, o sistema jurídico brasileiro convive com um paradoxo metodológico: a necessidade de compatibilizar uma tradição constitucional extremamente influenciada pelo direito norte-americano (common law) e uma tradição infraconstitucional sustentada em influências oriundas da Europa continental (civil law).

Entendendo o direito não apenas no seu aspecto formal, mas também como expressão cultural, não estanque no tempo, podemos entender o porquê desse englobamento de institutos com o objetivo de conferir efetividade e segurança jurídica para os jurisdicionados e é essa análise que este capítulo objetiva fazer.

3.1. O civil law e o common law

3.1.1. O civil law

O civil law pode ser basicamente descrito como a tradição jurídica que tem a lei escrita como principal fonte do direito. Mas apesar do direito escrito ser há muito existente na história da civilização, considera-se como marco na história desse sistema o período que veio após a Revolução Francesa com o declínio do que se chamou de Antigo Regime. Para Gilissen (2003, p.14) as consequências das ideias advindas da Revolução Francesa de 1789 e as reformas conseguintes constituem uma verdadeira cisão nas instituições do mundo moderno ocidental. Estavam revogadas, então, a maior parte das leis do Antigo Regime, com seus privilégios e costumes. Um dos costumes era justamente a atividade política dos juízes. Nesse sentido:

Sabemos que, no antigo regime, os juízes (“parlements”), além das tarefas jurisdicionais, exerciam também funções políticas, como a expedição dos “arrets de réglement”, verdadeiros textos normativos através dos quais regulavam matérias pretensamente conexas com o exercício da jurisdição e, bem assim, o registro de atos normativos do monarca (“droit d’enregistrement”), por meio dos quais controlavam sua conformidade às leis fundamentais da monarquia (controle de constitucionalidade), oportunidade em que dirigiam ao soberano as “remontrances”, que eram reclamações sobre a incompatibilidade dos atos reais, e que podiam levar à recusa do registro, caso não atendidas.(ROCHA,1995,p.96).

Além disso, os juízes eram verdadeiros representantes da aristocracia e os defensores e legitimadores da manutenção do status quo, por isso eram vistos com desconfiança pela burguesia. Com a consolidação da revolução o que se seguiu foi uma série de tolhimentos na função institucional deles, relegando-os a meros aplicadores e observadores da lei criada pelo Poder Legislativo (a Assembleia), sem nenhuma liberdade criativa. Esse processo de reformulação do ofício dos juízes marcou a magistratura do ocidente até o presente século (ROCHA, 1995, p.97).

Dessa forma, a maneira que os burgueses tiveram de romper com a tradição anterior de manutenção de privilégios foi inaugurar um sistema baseado na racionalidade imposto pelos legisladores. Nesse sentido, afirma Mourão Lopes Filho (2014, p.33) que a principal contribuição da Revolução Francesa foi elaborar um embasamento teórico que permitiu afirmar ser a lei escrita a representação da vontade do povo. Temos, então, o Poder Legislativo como representante da vontade geral, e tal fato é da maior importância porque utilizando a teoria de Montesquieu para negar o poder do monarca e assumir a divisão tripartite tão conhecida, os burgueses se estabeleceram como os controladores da atividade jurídica do Estado subordinando os juízes. Ainda, podemos citar três teorias usadas pelos burgueses que contribuíram para construir o sistema jurídico que viria a predominar por todo o mundo contemporâneo: a teoria da soberania nacional, que muda o centro de emanação do poder do monarca para a nação2; a teoria do regime representativo a qual afirma que à própria nação compete designar os representantes para governá-la e que cabe a estes unicamente a definição das leis que irão reger os indivíduos; e a teoria da separação de poderes, fundamental para coibir o abuso de poder (GILISSEN, 2003,p. 414-415).

A análise da interpretação dada à teoria da separação de poderes de Montesquieu também é essencial para a compreensão da estrutura do civil law. Na construção desse novo Estado não importava a manutenção de igualdade entre os poderes, mas sim a verdadeira primazia do Parlamento sobre o Judiciário. Nesse sentido, para Montesquieu (apud MARINONI, 2009, p. 29) “o julgamento não poderia ser ‘mais do que um texto exato da lei’; o juiz deveria ser apenas a bouche de la loi, ou seja, um juiz passivo e sem qualquer poder criativo ou de imperium.”

Desse modo, a escolha da arquitetura legislativa se deu no sentido de negar os costumes e tradições francesas do passado e de estabelecer um novo direito nacional, tentando exaurir todas as situações que pudessem haver na vida cotidiana de modo a não conferir margem para interpretação do juiz no caso concreto. Não havia a possibilidade de os pronunciamentos dos magistrados orientarem condutas posteriores (LOPES FILHO, 2014, p.39). Eis uma característica marcante do referido sistema: a busca pela codificação, trazendo inúmeros artigos que traziam pormenorizadamente as circunstâncias de subsunção do caso concreto na norma geral e abstrata. O objetivo era que o direito, tomado aqui como sinônimo de lei, ficasse conhecido por todos. O Código Civil de Napoleão continha 2.281 artigos. O Código prussiano, de franca influência francesa, organizado por Frederico O Grande, por sua vez, tinha mais de dezessete mil artigos o que evidencia o temor do Parlamento de deixar lacunas nas leis (MARINONI, 2009, p.32). O reflexo dessa escolha dos revolucionários se fez sentir no direito pátrio como podemos observar nesse excerto de Guimarães (1958, p.330) sobre o dever funcional dos juízes:

Deverá o juiz obedecer à lei, ainda que dela discorde, ainda que lhe pareça injusta. É um constrangimento que o princípio da divisão de poderes impõe ao aplicador. Seria o império da desordem se cada qual pudesse, a seu arbítrio, suspender a execução da norma votada pelos representantes da nação. Lembremo-nos, ainda uma vez, de que todo o poder vem do povo e que o povo cometeu aos membros da assembleia, e não a juízes, a tarefa de formular as regras jurídicas que o hão de governar.

Outro aspecto importante sobre a escolha da estrutura legislativa pelos revolucionários diz respeito a sua Constituição: ela era flexível3. Por serem as leis tidas como expressão da vontade do povo e produzidas pelo Parlamento cujos integrantes eram unicamente da classe burguesa, não faria sentido a existência de qualquer mecanismo que limitasse a produção delas. Como a sociedade da época era constituída de uma classe política só, não havia a necessidade de uma Constituição unificadora rígida4 para restringir a atuação do legislador como aconteceu em outros sistemas: a soberania passou da figura do monarca para a Assembleia Nacional (ROCHA, 1995, p.96). Havia, pelo menos em teoria, identidade política entre Parlamento e sociedade. Além disso, no século XIX não havia ainda a ideia de direito como sistema, como um constructo hierárquico que funciona em virtude da existência de uma norma jurídica fundamental das quais as normas inferiores retiram sua eficácia. Existia a ideia de uma norma abstrata que desconsiderava as peculiaridades de cada caso e que se confundia com a própria ideia de justiça sendo esta relegada a um plano formal (LOPES FILHO,2004, p.37-38).

A supremacia do Parlamento se fazia notar, ainda, por um órgão muito particular da novel tradição do civil law francês: As Cortes de Cassação. Como já dito, aos juízes era permitido apenas fazer a subsunção do fato à norma agindo dentro dos limites permitidos pelo legislador. No entanto, com o surgimento dos casos, algumas dúvidas espontaneamente surgiram e já em 1790 foi instituída lei que determinava que o juiz tinha o dever de consultar o Legislativo para perquirir sobre a correta aplicação da norma ao caso. No entanto, como explica Marinoni (2009, p.33), inicialmente, o referido órgão não possuía caráter jurisdicional, ou seja, não integrava a estrutura do Judiciário: tinha caráter repressivo no sentido de negar efeitos cassando ou anulando a decisão, mas não obrigava o juiz a requerer a devida interpretação. Não havia previsão dentre as atribuições da Corte de formulação sugestão de decisão substitutiva.

No entanto, com o passar do tempo e com o aumento dos casos de cassação de decisões judiciais, o Parlamento percebeu que o melhor momento para proferir a escorreita interpretação da lei seria quando da cassação do efeito da decisão erroneamente proferida. Dessa forma, a Corte, que era anteriormente um órgão consultivo, tomou feições jurisdicionais, tornando-se o órgão de cúpula do Judiciário (MARINONI, 2009, p.33-34). E tal fato é de importância crucial, pois evidencia a percepção de que a lei comporta interpretação e que o processo de uniformização deveria ser feito não pelo Legislativo, mas pelo próprio Judiciário.

Com o passar do tempo o civil law se mostrou inadequado para resolver os casos conflituosos. A codificação insuficiente, o aumento da complexidade das situações apresentadas (pois o acesso à justiça tinha aumentado), a perda da homogeneidade do Parlamento e a evolução das teorias interpretativas constituíram aspectos que reclamaram flexibilidade por parte de todo o Judiciário. Nesse sentido, para Pereira Filho e Cordeiro (2016, p. 47-48), a estabilidade e a previsibilidade são aspectos fundamentais ao desenvolvimento de uma nação e quando tais atributos não podem ser conferidos aos jurisdicionados através da justiça, é necessária uma revisão do sistema.

3.1.2. O common law

O common law, por sua vez, é a tradição jurídica que tem como principal característica a fixação do caso concreto pelo juiz como fonte do direito ao contrário do civil law que tem como principal fonte a lei. Sua origem remonta ao século XII e por essa razão a própria conceituação do que seja o referido sistema acabou ganhando nuances que merecem relevo e que se devem ao longo intervalo histórico em que se desenvolveu.

Numa perspectiva histórica, common law ou comune ley5 é o direito comum a toda a Inglaterra (aplicado pelos juízes do rei) em contraposição ao direito local6, das gentes (DAVID, 2002, p. 359). Segundo Gilissen (2003, p. 209) os costumes locais (dos mercadores, das cidades nascentes, etc) não tiveram relevância para a evolução do referido sistema: a monarquia inglesa logo conseguiu impor sua supremacia sobre o território contra os interesses das mencionadas jurisdições senhoriais (feudais) que pouco a pouco perderam grande parte de suas competências.

Numa perspectiva estrutural, o common law se contrapõe ao equity law: assim como o civil law é dividido em direito público e privado, também o common law comporta essa divisão como “ramo do direito”. Com o passar do tempo, o rei e seu Tribunal já não conseguiam dar conta dos numerosos litígios que se apresentavam, sobretudo em razão dos novos tipos de conflitos que surgiam. Além disso, os writs7 eram em número insuficiente e os juízes do rei se viam impossibilitados de dar solução aos casos. Segundo, Gilissen (2003, p. 210-211), o sistema de writs data do século XII e até 1832 permaneceu basicamente com mesmo número de fórmulas-padrão, pois os barões locais firmaram acordo para refrear o poder da jurisdição do rei. No entanto, o Statute of Westminster II (1285)8 permitiu que casos similares poderiam receber writs, o que resultou, na realidade, no aumento do número de situações acobertadas pelo remédio. Dessa forma, podemos observar uma importante diferença com relação ao civil law: aqui a importância está em encontrar o writ aplicável ao caso. Nesse sentido, temos a exposição de David (2002, p. 363-364):

É necessário que fique clara a importância primordial que as questões de processo tiveram, nestas condições, na Inglaterra. Enquanto no continente9 os juristas concentravam a sua atenção principalmente na determinação dos direitos e obrigações de cada um (regra substantiva do direito), os juristas ingleses concentravam a sua atenção nas questões de processo. Remedies precede rights: em primeiro lugar o processo.

Temos, ainda, o common law como direito criado pelo juiz10 contraposto ao direito codificado11: utilizando a terminologia do sistema, temos que o primeiro tem como fonte o case law, ou seja, o precedente judicial. No entanto, não é correta a ideia de que a tradição em comento rechaça o statute law12. Se não há precedente para a questão, o direito posto é usado de maneira supletiva em maior ou menor frequência, a depender da experiência nacional de produção legislativa. Ainda, segundo Gillisen (2003, p. 211), o common law foi construído de fato pelos juízes delegatários da atividade do rei da Inglaterra nos séculos XII e XIII, como já foi mencionado: eles eram práticos da atividade jurisdicional ao contrário dos legistas formados nas universidades europeias da tradição civil. Além disso, não era exigido dos common lawyers (advogados ou juízes) licenciatura em direito. Para Cappelletti (1993, p.123), essa diferença na formação dos sistemas é uma causa evidente da maior autoridade do juiz do common law e isso deriva do próprio conceito de direito adotado.

Ainda, mesmo sabendo que o common law se baseia na análise dos casos precedentes, é importante salientar que os juízes gozavam de ampla discricionariedade para acatar ou rejeitar um julgado. Quer dizer, até o século XIX não havia um sistema de vinculação aos precedentes.13 Havia descontentamento, pois faltava previsibilidade no sistema: casos semelhantes acabavam tendo desfechos diversos até mesmo quando os advogados apresentavam o precedente adequado para a corte. Segundo Cross; Harris (apud PEREIRA FILHO; CORDEIRO, 2016, p. 51), não houve nessa tradição a preocupação de formar um direito de um só corpo, estável. E o desenvolvimento da doutrina do stare decisis foi fundamental para acrescentar essa estabilidade14 ao sistema.

O stare decisis15 também chamada de doctrine of precedentes pode ser traduzido como regra do precedente: trata-se de uma decisão tomada em sede de tribunal colegiado que obriga o mesmo tribunal e os juízos que lhe são vinculados. Primeiramente, o tribunal que declara a sentença tem que decidir se ela tem condições de vincular decisões futuras após o que o mesmo declara em que extensão a decisão será vinculante. Importante notar o efeito retroativo tácito que a fixação do precedente vinculante comporta: isso significa que as decisões anteriores não mais se aplicam, estabelecendo um modelo de progresso do direito. Na Inglaterra, composta atualmente tanto por common law como por lei escrita, mesmo quando um juiz decide com base na lei, interpretando-a, a decisão constitui precedente vinculante. O juiz que decidir caso semelhante fica adstrito à interpretação conferida no primeiro caso (WAMBIER, 2009, p.5).

Na explicação de Soares (2000, p. 40-41), a decisão judicial, tanto nos EUA como na Inglaterra, tem duas funções. Na primeira, decide o caso posto para julgamento fazendo coisa julgada entre as partes, criando direito entre elas. Nesse aspecto, se assemelha ao direito romanista salvo no que tange ao poder criador do juiz. Na segunda função, típica do common law, a decisão transborda seus efeitos para além das partes criando precedente de força vinculante. Trata-se de uma regra surgida do caso concreto em contraposição direta à regra surgida do comando geral e abstrato do civil law. Por esse motivo, se faz essencial a compreensão do suporte central da decisão para que o precedente seja aplicado a casos correlatos. A esse conjunto de argumentos que fundamentam o precedente dá-se o nome de ratio decidendi que será objeto de análise posteriormente.

Para Farnsworth (1963, p. 62), a justificação para a regra dos precedentes se dá pelos seguintes atributos: “igualdade16, previsibilidade, economia e respeito”. O primeiro atributo encontra razão no próprio princípio informador do sistema: tratar casos semelhantes semelhantemente17. Essa igualdade está intimamente ligada à ideia de justiça. Para Carpena (2009, p. 91), a não aplicação do precedente vinculante simboliza uma quebra de confiança no modelo jurídico que regula a sociedade. O problema que surge é a quantidade de equivalência existente em um dado precedente, quer dizer, se a categoria de semelhança for abrangente, o juiz pode julgar muitos casos com um mesmo precedente; se a categoria de semelhança for mais estreita, então menos casos se valerão de tal precedente. Na prática, esse problema é resolvido dentro da sistemática de funcionamento do common law de cada Estado.

O segundo atributo gera estabilidade, uma vez que o jurisdicionado sabe qual o direito aplicado para dado caso. As partes podem, dessa forma, antecipar o futuro, planejar, enfim, ter uma certa quantidade de confiança o que sempre é algo desejável. O comportamento das pessoas em sociedade acaba se moldando aos ditames dos precedentes vinculantes. No entanto, não se trata de um atributo livre de considerações. Por exemplo: se todas as penas de morte fossem decididas apenas por uma regra de precedentes, haveria previsibilidade, mas alguns réus tendo seus casos tomados isoladamente poderiam ser inocentados. Estabilizar decisões em um mundo instável é um processo que pode levar a decisões abaixo do ideal em termos de justiça. O que se quer dizer é que a previsibilidade tem um custo, mas a escolha política jurídica que estabeleceu o stare decisis privilegiou a estabilidade das relações sociais.

A economia decorrente do uso de precedentes vinculantes se dá pelo aumento da eficácia: esse sistema permite que haja menos reconsiderações sobre questões já vistas e, dessa forma, modera tempo e energia. Dessa forma, o juiz reduz o esforço decisório. Contrariamente, quando não há precedente vinculante, o magistrado tem que analisar o caso em sua plenitude.

Sobre o quarto atributo, Farnsworth (1963, p. 62) afirma que: “[...] a adesão a decisões anteriores mostra o devido respeito à sabedoria e experiência das gerações passadas de juízes”. Wambier (2009, p. 6) afirma que o sistema de common law inglês é tão tradicional a esse respeito que os magistrados aplicam, ainda hoje, precedentes que datam de mais de 400 anos. Nesse sentido, Goodhart (apud WAMBIER, 2009, p. 6):

Não é incomum encontrar o registro de um caso da jurisprudência inglesa ocupando 50 páginas impressas, com uma detalhada discussão de casos anteriores, e esses casos, podem ter 400 ou 500 anos de idade. (...) Em Bottomley v. Bannister ([1932] 1K.B. 458), precedentes decididos em 1409 e 1425 foram citados para auxiliar na decisão do juiz em determinar quem seria responsável pelo vazamento de um aquecedor a gás instalado em 1929.

Finalmente, a acepção de common law que mais interessa ao presente estudo diz respeito àquela que o coloca como a família jurídica cuja ascendência18 remonta ao direito da Inglaterra em contraposição ao denominado civil law (família de direito romano-germânica) (SOARES, 2000, p.47). Aqui a importância jaz na análise comparativa buscando, num primeiro momento, buscar os elementos diferenciadores para então justificar a aproximação que se dá entre os dois sistemas nos dias atuais.

Pode-se dizer que o objetivo do common law é resolver casos concretos. Não há um escalonamento hierárquico de regras (como na pirâmide de Kelsen). Antes, é uma colcha de retalhos: há a intenção de que haja lacunas e a razão, então, é chamada para solucioná-las. No direito romano-germânico, de outro modo, o apelo à razão se dá quando da formulação de regras gerais ou quando da interpretação dessas regras e aqui a existência de lacunas é evitada. Afirma-se com isso que o common law é um sistema aberto em que pela técnica das distinções novas regras são estabelecidas e que o sistema romano-germânico é fechado (DAVID apud SOARES, 2000, p.54). Ainda sobre o uso da razão, afirma David (2002, p.445) que o direito inglês surge como um produto da história19. Os direitos românicos deram maior importância à sistemática e isso se constata pela sua formação nas Universidades, na doutrina e na legislação. No entanto, como já foi afirmado, não é correto dizer que a lei escrita não foi importante na formação do common law. Nesse sentido, afirma Gilissen (2003, p.215) que nos séculos XIII e XIV os reis da Inglaterra chegaram a legislar mais do que os da França. Acerca da doutrina, de fato, a fundação do common law deve mais aos juízes que aos doutrinadores, mas até isso comporta exceções: algumas obras doutrinárias adquiriram tanto respeito que têm poder comparável à lei em certos países (DAVID, p. 444).

Ainda, como já citado, o papel do juiz foi fundamental para a consolidação do common law. Não houve oposição à atividade dos magistrados pelo Parlamento. Contrariamente, eles atuaram juntos contra a arbitrariedade do monarca tutelando direitos da sociedade e, por isso, não houve a necessidade de tolher sua atuação como houve no civil law francês. Se neste sistema houve uma necessidade de exaurimento de todas as situações possíveis em forma de codificação para que o papel do juiz fosse relegado a de um aplicador das leis, naquele o magistrado não só interpretava como formulava direitos e deveres a partir dos casos (MARINONI, 2009, p. 19). Ainda sobre esse aspecto, afirma Rocha (1995, p. 89) que há na tradição de origem inglesa a doutrina do judicial review que afirma que há um direito fundamental que se sobrepõe do parlamentar. Essa ideia surgiu no século XVII na Inglaterra com a ideia de coibir os abusos da Coroa e em muito se assemelha ao controle de constitucionalidade. Aliás, essa doutrina é encampada pelos Estados Unidos justamente para fundamentar a organização do seu sistema judicial como veremos adiante.

A análise desses sistemas se mostra relevante nesse trabalho porque atualmente o direito brasileiro se constitui de um sistema misto de sistemas jurídicos a exemplo do que aconteceu na origem do direito dos EUA. Dessa forma, se faz lógica a ideia de que a compreensão da nossa presente atualidade perpassa pelo entendimento do seja seus elementos componentes. Ainda, analisaremos a seguir o sistema de predecentes judiciais americano cujos institutos foram paradigma para a elaboração do nosso novo Código de Processo Civil.

3.2. O sistema de precedentes norte-americano: uma breve análise

Para constatar que os Estados Unidos pertencem a um sistema de common law misto como já afirmado, precisamos, antes, entender a evolução política e jurídica da sua história. Quer dizer, é necessário compreender as peculiaridades da formação desse sistema. Dessa forma, a análise aqui apresentada tem, num primeiro momento, dois objetivos: como se deu a formação do pioneiro federalismo americano e como se deu a aplicação do direito inglês no território durante as primeiras décadas de colonização.

Inicialmente, a colonização inglesa se deu nos primeiros anos do século XVII com a ocupação de parte da costa atlântica: em 1722 havia treze colônias oficialmente sob tutela da Inglaterra. Ela foi em tudo diferente da ocupação espanhola e portuguesa: a autonomia existente resultou do modelo de dominação que a Inglaterra aplicou.

Houve, então, no sistema supracitado de colonização uma descentralização marcante, de tal forma que permitiu o surgimento de autonomia dos governos locais20. Segundo Farnsworth (1963, p. 10), a autonomia concedida propiciou um desenvolvimento não uniforme da organização política das colônias de tal forma que se pode falar em treze arranjos jurídicos diferentes entre si, que se individualizaram por data de fundação, tipo de controle da metrópole e as vicissitudes locais. É importante lembrar que nos navios que partiam para os EUA existiam pessoas que iriam cumprir pena, tentar uma vida melhor, buscar uma maior liberdade religiosa, tentar a atividade mercantil, dentre outros objetivos. Essa variedade cultural21, religiosa, econômica se fez sentir na construção jurídica de cada colônia.

Dessa forma, as colônias desenvolveram um corpo de leis próprio que só seria revisado se houvesse oposição às leis inglesas. A aplicação do direito da metrópole tinha um princípio: o do Calvin’s case o qual consistia na obrigatoriedade de aplicação do common law inglês mas “na medida em que suas regras são apropriadas às condições de vida reinantes nestas colônias” (DAVID, 2002, p. 450). Assim, observando as diferenças já citadas (a cultura, a economia, a religião dos povos ocupantes das novas terras) pode-se constatar que as regras do common law eram inadequadas para tratar as relações dos colonos ali assentados. Os novos problemas da vida social nas simples colônias americanas não se assemelhavam aos problemas regidos pelo common law cuja construção se deu em meio ao sistema feudal inglês.

Nesse sentido, Farnsworth (1963, p.10) analisa os motivos da dificuldade de aplicação da norma inglesa nas colônias recém-formadas:

Havia, pelo menos, três obstáculos à aplicação imediata de Direito Inglês no período colonial primitivo. O primeiro consistia na insatisfação com que muitos colonos consideravam certos aspectos da justiça social na Inglaterra, tendo sido o desejo de escapar às intoleráveis condições de vida na pátria de origem o motivo de sua imigração para o Nôvo Mundo. Tal se aplicava sobretudo àqueles que haviam vindo em busca de liberdade religiosa, política ou econômica. O segundo obstáculo, mais ponderável, era falta de juristas com experiência, o que retardou o desenvolvimento do Direito norte-americano durante o século XVII. [...] O terceiro obstáculo, finalmente, era a disparidade das condições de vida nos dois países. Particularmente no princípio, a vida era mais primitiva nas colônias e as instituições inglesas usuais que chegaram a ser copiadas o foram apenas superficialmente.

Então, por causa da descentralização e da impertinência do sistema inglês, houve nos primeiros anos uma tentativa de legislação por parte dos colonos que tentou regular os negócios realizados. Havia liberdade legislativa para as colônias, no sentido de que podiam elaborar seus regramentos desde que não fossem contra os costumes da metrópole, no que resultou, até pela falta de técnica, num sistema bastante simples. As fontes utilizadas eram as mais diversas: iam desde o uso da Bíblia, passando por princípios antigos de direito até a própria consciência do juiz no caso apresentado para julgamento. Nessa época, o controle da Inglaterra sobre esses regramentos era, na realidade, quase inexistente.

Com o passar do tempo, a inconsistência na utilização das fontes supracitadas começou a causar insatisfação nos colonos. O arbítrio dos magistrados se fez perceber pois praticamente não havia controle das decisões proferidas. Nessa época, como um balizador da atividade dos juízes houve as primeiras codificações.22 Há nessa época, como se vê, uma opinião favorável ao direito sistematizado em leis.

O aumento da complexidade da vida dos colonos levou a uma necessidade de um sistema jurídico mais elaborado: a insuficiente legislação existente na época e o aumento do número de conflitos aliados a um controle maior por parte da Inglaterra no que concerne aos casos de revisão das leis coloniais levaram a um maior interesse pelo sistema inglês23. Mas a consolidação da aplicação do common law nos EUA ainda passaria por um período de incerteza após o processo de independência americana de 1776: houve, a essa época, uma aversão política nos novos estados formados.

Dessa forma, o novo Estado republicano estimava a ideia da codificação. Além disso, alguns acontecimentos favoreceram temporariamente a adoção do direito escrito no sistema jurídico americano: a proibição que alguns estados erigiram de citação de decisões inglesas nos seus julgados24; a existência de vários territórios de influência francesa ou espanhola e, ainda, a vinda de imigrantes de países em que a tradição do common law era desconhecida. Entretanto, ao final do século XIX, o common law foi finalmente estabelecido como o sistema jurídico dos EUA,25 exceto na Louisiana. Dentre os motivos para tanto, pode-se citar que os EUA falam a língua inglesa e a colonização foi, de fato realizada por maioria inglesa. Além disso, obras típicas do common law exerceram crucial influência e as escolas de direito contribuíram para a formação de especialistas na aplicação do direito (DAVID, 2002, p. 453).

Mas a adoção do sistema inglês não foi integral nem instantânea. Muitas regras nem chegaram a vigorar nos EUA porque não se adequavam às situações da vida dos americanos. Ademais, não houve adoção de regras inglesas após a proclamação da independência: a evolução dos sistemas segue independente (DAVID, 2002, p.454).

Pode-se afirmar, ainda, que os direitos possuem diferenças marcantes. Uma distinção fundamental existe no próprio nascimento dos EUA como nação: eles se constituíram como um federalismo presidencialista. Segundo Soares (2000, p.62-63), foi o primeiro país a consagrar separação de poderes tal qual prescreveu Monstesquieu, com presidencialismo e supremacia do Poder Judiciário assentados em uma Constituição escrita que viria a inspirar o sistema jurídico de inúmeras nações modernas. Como já foi analisado, a interpretação que se deu à teoria de Monstesquieu foi totalmente diferente na França à época da Revolução Francesa: a desconfiança que havia com relação aos magistrados inaugurou um sistema de submissão ao Parlamento, o qual era tido como guardião da vontade do povo. De acordo com Rocha (1995, p.88-89), contrariamente, os revolucionários americanos eram hostis ao Parlamento inglês e as suas regras e arbitrariedades e, por isso, logo quiseram controlar o legislativo estadunidense por receio de que houvesse aquele tipo de controle no novo país.

Outro aspecto fundamental que conferiu originalidade ao sistema de common law americano foi a supremacia da Constituição o que representou, por si só, um cerceamento à atividade do legislador que encontrou nela um balizador. Dessa forma, afirma Rocha (1995, p. 89-90) que há a existência de dois estratos de normas: a Constituição, tida como a materialização do pacto social, no sentido de ela própria seria a representante da vontade do povo26 e as leis emanadas do legislador submetidas aos limites dela. Houve, então, a formação do federalismo, construção americana em que as entidades políticas cederam parte de sua autonomia e se subordinaram a um Estado federal e a uma norma hierarquicamente superior, o que conferiu unidade ao sistema.

A Constituição americana previu um Judiciário independente e autônomo composto por uma Corte Suprema e cortes inferiores. Inicialmente, entretanto, não houve previsão de que os tribunais federais fizessem controle das leis estaduais e federais. Apenas alguns anos depois o Congresso aprovou lei que dispunha sobre as competências do Judiciário: introduziu a revisão federal para determinados casos, continuou com a autorização de controle judicial dos tribunais estaduais sobre as leis estaduais (baseado nas constituições estaduais) e inaugurou o controle dos tribunais federais sobre as leis estaduais contrárias à Constituição federal. Mas a resolução mais importante sobre a estrutura do Judiciário americano surgiu da decisão emblemática do caso Marbury contra Madison em que o presidente da Corte negou produção de efeitos a uma lei federal porque entendeu que o Congresso extrapolou de sua competência ao homologá-la. Algum tempo depois, a Corte assumiu autoridade para aprovar validade de leis estaduais também (FARNSWORTH, 1963, p. 7-9). Surge, assim, o Judiciário como órgão de proteção da Constituição (com o supracitado controle de constitucionalidade) e como controlador da atividade do Poder Legislativo.

Como já afirmado, o sistema jurídico americano é reconhecido como um common law misto: a fonte principal do direito é jurisprudencial. É assim, um direito produzido, em maior parte, pelo Judiciário. Nesse sentido, David (2002, p.459) leciona:

O direito, quer para um jurista americano, quer para um jurista inglês, é concebido essencialmente sob a forma de um direito jurisprudencial; as regras formuladas pelo legislador, por mais numerosas que sejam, são consideradas com uma certa dificuldade pelo jurista que não vê nelas o tipo normal da regra de direito; estas regras só são verdadeiramente assimiladas ao sistema de direito americano quando tiverem sido interpretadas e aplicadas pelos tribunais e quando se tornar possível, em lugar de se referirem a elas, referirem-se às decisões judiciárias que as aplicaram. Quando não existe precedente, o jurista americano dirá naturalmente: “There is no law on the point” (Não há direito sobre a questão), mesmo se existir, aparentemente, uma disposição de lei que a preveja.

A problemática da aplicação do common law nos EUA perpassa pela estrutura do seu Poder Judiciário. Como adotaram o federalismo como sistema de governo, há em sua formação dois estratos de organização: os níveis federal e estadual. Há, já de início, uma diferenciação com relação ao federalismo de outros países: nesses a jurisdição federal possui hierarquia superior, mas nos EUA as jurisdições estaduais e federais existem paralelamente.

A Justiça federal divide-se em District Courts (tribunais de distrito) que constituem a primeira instância (existem 94 distritos ao todo e há pelo menos um por estado da federação); em Courts of Appeals (cortes de apelação) que são tribunais que decidem os recursos interpostos às decisões dos tribunais de distrito (são 13 e estão divididos em base territorial) e a Supreme Court (Corte Suprema). A Justiça estadual tem composição variada de estado para estado. Isso se deve ao grau de federalismo existente e à própria construção histórica do sistema jurídico dos EUA: cada estado tem sua própria organização. São esses tribunais que realizam a maior parte do trabalho do Judiciário27 e detêm competências que datam da época colonial. A justiça de primeira instância é geralmente chamada de Trial Courts. A maioria dos estados têm instância intermediária de recursos cujos nomes variam, sendo chamada Court of Appeals no Alaska, por exemplo, mas alguns têm apenas dois graus de jurisdição. E há em todos os estados os Tribunais Supremos cuja nomenclatura também tem variação (GODOY, 2004, p. 4-9).

A jurisdição federal, por sua vez, é aquela que foi estabelecida pela Constituição: as competências não firmadas como federais são exercidas pelas jurisdições estaduais, em regra. A Primeira Lei Judiciária de 1789, uma lei federal, também atribuiu competências para a Justiça federal. A competência criminal recai sobre as ofensas às leis federais e as causas cíveis, por sua vez, são basicamente as seguintes: quando os EUA são parte; casos entre particulares sobre lei federal e a chamada jurisdição de diversidade (diversity cases) em que contendem cidadãos de diversos estados, o que reclama uma jurisdição imparcial. Ainda, algumas leis federais reservam determinadas matérias para julgamento nos tribunais federais tais como: direito naval, ações falimentares, direitos autorais, dentre outras. No entanto, na maioria dos casos, a jurisdição dos tribunais federais e estaduais é concorrente, por isso se fala em existência paralela das justiças: as partes podem demandar em qualquer delas (FARNSWORTH, 1963, p. 49-50).

Além disso, há de se analisar a competência legislativa: sobre esse aspecto a décima emenda à Constituição americana afirma que “Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem por ela negados aos Estados, são reservados aos Estados e ao povo” (SOARES, 2000, p.84).

Dessa forma, a competência legislativa federal deve fundar-se em texto constitucional e a estadual é residual. Assim, podem completar a legislação federal naquilo que lhe falta, mas sempre em consonância com a Constituição. Há também determinadas matérias de competência exclusiva federal. Feitas essas considerações, não se pode esquecer de que a principal fonte do direito americano é a atividade dos juízes, ou seja, é jurisprudencial. É relevante afirmar que, mesmo nas matérias de competência exclusiva do Congresso, esse muitas vezes se absteve de legislar. Ainda, a divisão da competência legislativa não segue a divisão das competências jurisdicionais de modo que as jurisdições dos estados podem julgar litígios de direito federal e vice-versa. Surgiram tantos problemas de ordem prática atinentes a essa questão que o Congresso em 1789 tentou solucioná-los através do Judiciary Act: houve a determinação de que quando fosse o caso de jurisdição federal sobre casos envolvendo estados da federação, exceto se houvesse lei federal, deveriam ser aplicadas as leis (the laws) de um estado. No entanto, surgiu dúvida sobre o alcance do termo “laws”: se albergaria apenas o statute law (legislação) ou também o direito declarado, ou seja, o common law estadual28. Na célebre decisão do caso Swift v. Taylor (1842), a Corte Suprema deu razão ao uso do general common law (DAVID, 2002, p. 461-466).

Segundo Farnsworth (1963, p. 54-55), houve críticas e elogios a essa decisão da Suprema Corte: houve, por um lado, uma contribuição para a unificação do direito nacional, essencial para a concreção da ideia de nação norte-americana mas também houve uma dualidade indesejada, pois a solução dos casos poderiam ter dois desenlaces a depender da jurisdição requisitada. Após um século de aplicação dessa sistemática de julgamento, a Suprema Corte no caso Erie Railroad Co v. Tompkins reverteu a jurisprudência vigente. Assim, a Suprema Corte decidiu que “um tribunal federal julgando questões originadas no direito estadual, deve decidir substancialmente da mesma forma como faria o tribunal do Estado em aprêço” (FARNSWORTH, 1963, p. 55). Logo, o que se quis estabelecer é que não mais existia a general common law29.

Portanto, desde a formação do supracitado precedente, que data do ano de 1938, houve um distanciamento ainda maior do common law inglês. Para Gilissen (2003, p. 217), o direito americano avançou mais rápido que o inglês para a isonomia, permanecendo, porém, variado em virtude da existência dos 50 laws30 dos estados componentes, sendo a proeminência da Suprema Corte essencial para a sua unidade.

Já foi visto que o sistema federal de governo e a adoção de uma Constituição delineou particularidades no sistema de precedentes estadunidense. Pode-se dizer que a vinculação aos precedentes se deu de maneira menos ampla em comparação à Inglaterra: os conflitos existentes entre as jurisdições estaduais e a própria dinâmica de alterações sociais propiciaram a existência de uma sistemática mais flexível. Apesar dessas diferenciações, entretanto, trata-se de uma técnica plenamente estabelecida no direito americano. Dito isso, a vinculação obrigatória aos precedentes judiciais31 se dá em relação aos tribunais superiores de uma mesma jurisdição e das decisões do respectivo tribunal32. É necessária apenas uma decisão do tribunal correspondente para haver vinculação (FARNSWORTH, 1963, p.65). Mas os Supremos tribunais dos estados e a Suprema Corte não estão obrigados pelos próprios precedentes o que, neste último caso, tem primordial relevância por ser a respectiva corte a intérprete da Constituição. Assim, o próprio texto constitucional se mantém íntegro o que confere estabilidade para as instituições para a nação enquanto as interpretações acompanham as necessidades sociais. Os Supremos tribunais dos estados, por sua vez, não são tão favoráveis a mudanças na sua jurisprudência (DAVID, 2002, p. 490-491).

3.3. Efetividade e segurança jurídica no direito norte-americano

Nesse item o objetivo é demonstrar brevemente como o sistema de precedentes norte-americano contribuiu para uma maior efetividade através da segurança jurídica conferida pela sua aplicação. Segundo Leal (2013, p. 144), o estado ideal de conhecimento das normas é aquele que confere ao cidadão balizar sua conduta com segurança, dentro de uma mínima margem de erro. Afirma, ainda, que é a existência de um precedente judicial vinculante sobre determinado caso fático que aumenta a medida de conhecimento dos cidadãos.

Nesse sentido, Cardozo (apud MARINONI, 2013, p. 123) afirma que:

A adesão ao precedente deve ser a regra, e não a exceção, supondo-se que os litigantes devam ter fé na administração imparcial da justiça nas cortes. Do contrário, o trabalho dos juízes aumentaria até a exaustão se toda decisão tomada pudesse ser reaberta em todo caso, e alguém não pudesse delinear seu próprio caminho na segurança dos caminhos traçados por outros que vieram antes dele.

Ainda, Corsale (apud MARINONI, 2013, p. 124) traz a ideia de previsibilidade no sentido de que um ordenamento que não consiga trazer “previsão e qualificação jurídica inequívocas” não pode existir.

Como já visto, a previsibilidade é uma das justificações da existência do stare decisis. Assim, o que se quer alcançar quando se privilegia esse atributo do ordenamento é a segurança nas relações sociais que é uma das maiores finalidades do direito. Quando o cidadão não pode confiar na predição do ordenamento e das decisões judiciais, há um obstáculo que o impede até mesmo de exercer sua cidadania. Ainda, a segurança jurídica pode ser também analisada sob o ponto de vista da estabilidade: deve haver continuidade no respeito aos precedentes. Não há estabilidade, dessa forma, quando um juiz ou tribunal se percebe como integrante da estrutura jurídica, mas busca, ao seu alvedrio, decidir conforme sua consciência. Ao contrário, pode-se, por exemplo, constatar no common law americano essa coerência interna através da análise do sistema de apelação (appeal): ele apenas é permitido nas situações em que há “erro de direito”33. Há, dessa forma, um instrumento poderoso para barrar a revisão pelos tribunais, tal é a confiança no fato de que os juízes respeitam os precedentes das respectivas cortes (MARINONI, 2013, p.127-132).34

O aspecto da efetividade do sistema fica ainda mais notório quando analisamos o funcionamento do Supremo Tribunal dos Estados Unidos: em 90% dos casos é requisito para ter sua questão analisada um writ of certiorary que é um certificado que atesta ter a matéria especial e importante fundamento para que seja conhecida. A Supreme Cort só julga uma em cada doze questões que possuem o certificado o que resulta num total de 130 a 160 casos por ano e a maior parte é julgada por improcedência35, por não ter o caso interesse de intervenção dessa corte.

Para estabelecer uma comparação, a despeito das diferenças entre os respectivos sistemas jurídicos, tem-se o Supremo Tribunal Federal que no ano de 2016 proferiu 14.533 decisões colegiadas dentre decisões interlocutórias e finais. No ano de 2017, foram 12.896.36

A justificação do presente trabalho, como já afirmado, reside na análise do novo sistema de uniformização de jurisprudência inaugurado pelo NCPC e na utilização de alguns mecanismos típicos do common law americano o que invoca uma análise pormenorizada, porém não exaustiva, de algumas de suas técnicas para que se possa perquirir acerca da possibilidade de uma maior efetividade para o sistema jurídico brasileiro. É o que faremos no capítulo a seguir.

4. NOVO CPC E OS INSTRUMENTOS DE UNIFORMIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

O Novo Código de Processo Civil (NCPC), consubstanciado na Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, veio como resposta a uma série de insatisfações acerca de várias questões jurídicas: inadequação de institutos que não acompanharam a prática jurídica contemporânea, demora do andamento processual, falta efetividade e segurança das decisões proferidas, dentre muitas outras.

Especificamente sobre a segurança jurídica e efetividade das decisões judiciais proferidas, havia o problema das diversas jurisprudências que em nada vinculavam os juízes, os quais se sentiam livres para motivar seus julgados, muitas vezes, conforme sua consciência. Muito comum era a situação (e ainda é, conforme será analisado)37 em que acerca do mesmo caso, a depender do magistrado encarregado, havia decisões de provimentos contrários. Com o passar do tempo, alguns mecanismos foram introduzidos para tentar diminuir a discrepância entre as decisões proferidas tal como a súmula vinculante. No entanto, para os casos não sumulados ou não amparados por algum mecanismo de uniformização o problema perdurou.

Assim, surgiu pela primeira vez na nossa legislação a menção explícita a precedentes judiciais e a mecanismos de uniformização de jurisprudência com vistas a trazer efetividade aos princípios constitucionais da isonomia e da segurança jurídica. Esse presente capítulo objetiva analisar, dentro dos limites deste trabalho de pesquisa, se há, de fato, com essa inauguração legislativa, um sistema de precedentes brasileiro e a sua sistemática de aplicação e funcionamento.

4.1. Conceituações necessárias: distinção entre precedente judicial, jurisprudência, súmula e decisão judicial

Como já afirmado, alguns dos objetivos do NCPC foram conferir segurança jurídica aos jurisdicionados e unidade para as decisões proferidas pelos tribunais superiores. Obviamente, a adoção de instrumentos característicos do common law ocorreu por motivos diferentes daqueles verificados nos EUA e na Inglaterra. Ainda sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, houve um movimento de observância dos precedentes: com o aumento do número de litígios proporcionado pela facilitação do acesso à justiça, a partir da Constituição de 198838, houve um incremento proporcional da atividade judicial e, com isso, dificuldades de operacionalização do direito nos casos concretos (CAMBI; FOGAÇA, 2015, p. 337-338). Nesse sentido, Barroso (apud CAMBI; FOGAÇA, 2015, p.338) reconhece que “[...] tem-se verificado a saudável tendência, no direito brasileiro, de valorização dos precedentes judiciais. A atitude geral de observância da jurisprudência é positiva por promover valores relevantes como segurança jurídica [...]”. Houve, assim, a partir da década de 1990, uma série de reformas que estabeleceu eficácia estendida para além das causas em julgamento. Igualmente nesse sentido, Nogueira (2016, p. 247) afirma que o processo civil foi sendo transformado na esfera infraconstitucional para atender aos princípios constitucionais voltados à estabilização do direito.

Assim, o sistema de uniformização de decisões instituído no Brasil em muito difere daquele praticado nos países tradicionalmente inseridos no common law. Nestes os precedentes formam jurisprudência basicamente com base na razão de decidir39, enquanto aqui, até mesmo pelas microrreformas realizadas ao longo do tempo na legislação e pela influência da tradição jurídica outros países, foram utilizados instrumentos estranhos àquela realidade tais como enunciados, verbetes e súmulas (NOGUEIRA, 2016, p. 248).

Pelo motivo exposto, antes da investigação acerca da existência de um sistema de precedentes no Brasil, é necessária uma delimitação conceitual dos elementos utilizados no sistema de uniformização de decisões no NCPC, quais sejam: jurisprudência, súmula, precedentes e decisão judicial.

Primeiramente, para fazer a distinção conceitual necessária, será utilizado o conceito amplo de precedente40, após o que, em item específico, se fará uma construção mais pormenorizada da sua aplicação e constituição.

A súmula é o enunciado sintético retirado de jurisprudência reiterada acerca de matérias específicas acerca das quais houve discussão. Assim, Neves (2017, p. 1390) leciona que tendo o tribunal firmado uma compreensão sobre determinado assunto, há o dever de anunciar adequadamente que aquela é jurisprudência de sua corte. Sendo ela retirada da jurisprudência, há o consenso de que ela seja mais estável. A jurisprudência é formada pela atividade dos tribunais no percurso do tempo. A súmula, por sua vez, tem origem em um ato administrativo do respectivo tribunal: possuem, assim, um marco temporal de existência que é a data de sua publicação (LOPES FILHO, 2014, p. 126-127).

As súmulas no direito brasileiro, para Marinoni (2013, p. 480-481), surgiram antes como instrumento para dar celeridade, para “desafogar o Judiciário”, do que para atender aos princípios de segurança jurídica, de isonomia e de coerência de jurisdição. Além de terem surgido sem vinculação aos princípios citados, foram concebidas na forma de enunciados gerais e abstratos sem levar em consideração os casos que deram origem a elas. A crítica que se faz é a de que, com essa sistemática, as súmulas acabaram não levando em conta os precedentes pelos quais surgiram e, por conseguinte, seus fundamentos e valores. Com isso, sua aplicação ficou estática no tempo, tendo sua obsolescência constatada quando da não aplicação pelos tribunais41, revelando, com isso, uma falta de compromisso na construção de desenvolvimento do direito (STRECK, apud MARINONI, 2013, p. 482).

Como dito, as súmulas se expressam por enunciados que são produtos da atividade estatal e emanam generalidade e abstração: nisso se assemelham às leis. Para Mancuso (2014, p. 352-366), as súmulas vinculantes, tal como foram concebidas na Constituição de 1988, possuem uma obrigatoriedade até maior do que as leis: segundo o art. 103-A, a decisão que não observar seu enunciado pode ser cassada. Além disso, as súmulas vinculantes, assim como a lei, não conseguem abarcar todos os casos da vida cotidiana: estão também sujeitas a interpretação, ocasionando a pluralidade jurisdicional já criticada. Nesse sentido, se manifestou o Ministro Victor Nunes Leal: “Em alguns casos, interpretar a Súmula é fazer intepretação de interpretação. Voltaríamos à insegurança que a Súmula quis remediar”.

Para Romão e Pinto (2015, p. 41), a necessidade de súmulas decorreu de uma deficiência no desenvolvimento da sistematização da teoria de precedentes judiciais no Brasil. Caso tivesse havido a concessão de eficácia vinculante aos precedentes dos tribunais àquela época, atendidas as exigências teóricas determinadas, não teria sido estatuída a figura das súmulas sobre jurisprudência reiterada sobre a mesma matéria.

Com o NCPC, houve uma ressignificação das súmulas: o art. 927, II e IV42, preceituam que agora elas servem à interpretação do direito para toda a sociedade (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2015, p. 610). Não menos importante é o art. 926 §2º43 que contém proibição de edição de enunciado de súmula desvinculado das circunstâncias fáticas dos precedentes que ensejaram sua produção. Assim, segundo Neves (2017, p. 1391), o NCPC conferiu eficácia vinculante para as súmulas pois consagra a observância a ratio decidendi na sua elaboração, de modo que os tribunais precisam considerar os fundamentos dos precedentes.

Já o art. 926 §1º44 traz outra importante prescrição: a de que os tribunais, na forma estabelecida em seus regimentos internos, organizem enunciados de suas jurisprudências dominantes alçando-os a importantes instrumentos de uniformização de julgados dos respectivos tribunais.

Para a conceituação de jurisprudência, é salutar a lição de Romão e Pinto (2015, p. 39):

Jurisprudência distingue-se de precedente, primordialmente, por uma razão de natureza quantitativa. Enquanto este faz referência à decisão relativa de caso específico, aquela se reporta à pluralidade de julgamentos (grupos de precedentes) no mesmo sentido. A diferença, no entanto, não é somente de cunho semântico, mas também de natureza processual, pois, em ordenamentos que se fundam em sistemas de precedentes obrigatórios, apenas uma decisão possui força normativa e capacidade para a produção do Direito. [...] a criação de precedentes é mais elementar, vez que uma única decisão pode constituir precedente digno de manuseio [...] a jurisprudência é organizada a partir de precedentes com idêntica orientação ao longo de razoável dimensão temporal.

Essa definição é a visão tradicional de como se operava o direito jurisprudencial no Brasil: a atividade jurisdicional tinha como diretrizes a lei e atividade jurisprudencial consubstanciada pelo livre convencimento dos juízes. Segundo Zaneti Jr. (2015, p. 414), a atividade formadora de jurisprudência praticada sob a égide do código anterior revelou-se ultrapassada, herança de um pensamento que operou contra racionalidade e privilegiou a decisão individualizada caso a caso, o que trouxe subjetivismo e insegurança. Era comum o fato de um mesmo órgão fracionário de um tribunal decidir em desconformidade com suas próprias decisões pretéritas ou mesmo atuais, sem qualquer justificativa. Não havia a ideia de vinculação: as decisões passadas não possuíam caráter normativo.45

Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2015, p. 609-610) afirmam que, tradicionalmente, a jurisprudência é a interpretação reiterada de casos no mesmo sentido de forma a gerar uniformidade ainda que não haja vinculação a ela. No entanto, o novo código trouxe, da mesma forma que para a súmula, uma ressignificação. Com o NCPC, há uma mudança muito significativa: a jurisprudência dos tribunais deixa de ter caráter persuasivo (internamente)46 para assumir papel normativo como precedente vinculante.

Já no primeiro dispositivo do NCPC, que inaugura o sistema de precedentes, temos a ressignificação supracitada. Assim preceitua o art, 926, caput: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência47 e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Além disso, temos o que o NCPC chama de precedente com força vinculante:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;

II - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Assim, o comando “observarão” traz a manifesta obrigatoriedade de tribunais e juízes obedecerem às suas decisões, mantendo uma coerência interna, e às dos tribunais superiores, não como se fazia anteriormente, de modo discricionário, mas de maneira vinculada. Os precedentes adquiriram caráter normativo e, por essa razão, os juízes agora são menos livres no seu próprio convencimento e mais ligados à interpretação dos precedentes já existentes. Dessa forma, o NCPC objetiva romper com a tradição persuasiva da jurisprudência de juízes e tribunais hierarquicamente vinculados e com a tradição do direito jurisprudencial em si (ZANETI JR., 2015, p. 412-420).

Por fim, há que se distinguir precedente de decisão judicial. Certamente todo precedente advém de uma decisão judicial, mas nem toda decisão judicial é precedente. Assim, primeiramente só constitui precedente a questão que versa sobre direito (e não sobre fato). Além disso, se apenas aplicar dispositivo de lei, também não constitui precedente. Ademais, se ao interpretar a lei há apenas afirmação de julgado anterior, também não há precedente. O precedente existe quando há o enfrentamento das questões de direito e há elaboração de uma tese jurídica (MARINONI, 2013, p. 214).

4.2. Análise sobre a necessidade de um sistema de precedentes no Brasil

Como já foi afirmado, desde a promulgação da Constituição houve um grande número de mudanças na legislação infraconstitucional com vistas a promover o que se convencionou chamar de Reforma do Judiciário, cujo objetivo foi (e ainda é) o de atender aos diversos princípios constitucionais relacionados ao processo, realizando a ampliação da força vinculante das decisões dos tribunais superiores. Assim, podemos constatar que, antes mesmo da entrada em vigor do NCPC, o legislador ordinário já estava incorporando a ideia da vinculação aos precedentes no nosso ordenamento. Para citar algumas alterações legislativas, temos: o art.518 §1º do Código de Processo Civil de 1973 que instituiu a chamada “súmula impeditiva de recurso”, que permitia ao julgador negar seguimento à apelação contra decisão fundamentada em enunciado de súmula dos tribunais superiores e, ainda, há ainda a previsão de se negar seguimento a recurso em confronto com súmula ou jurisprudência do próprio tribunal (art. 557 do mesmo código) (BUSTAMANTE, 2015, p. 296).

O presente item pretende apontar alguns dos motivos que levaram paulatinamente à adoção de instrumentos de uniformização e vinculação do common law: o surgimento do constitucionalismo no civil law; a influência do neoconstitucionalismo no Brasil; o sistema de controle difuso de constitucionalidade e a criatividade judicial.

4.2.1. O surgimento do constitucionalismo no civil law

Como leciona Marinoni (2013, p. 65-67), o surgimento das Constituições rígidas48 inaugurou uma época em que começou a haver desconfiança de que as leis não representavam de fato os interesses das pessoas. Assim, a lei passou a se submeter a uma Constituição que, por sua vez, trazia em si os direitos fundamentais que deviam ser respeitados por ela: houve uma transformação do significado do direito. Dessa forma, se a noção de direito está contida na Constituição, a atividade jurisdicional não tem mais como foco declarar a lei, mas sim adequá-la aos parâmetros constitucionais. Com o passar do tempo, os países do civil law adotaram suas Constituições e surgiu a necessidade do controle de constitucionalidade das leis: em alguns países essa atividade coube, inicialmente ao legislativo, mas aos poucos a figura do juiz foi se consolidando. Ora, é evidente a transformação da atividade dos magistrados: de declaradores da lei a intérpretes da Constituição. No mesmo sentido, Lopes Filho (2014, p. 62-63):

Surge, então, o Estado constitucional para melhor amoldar o Estado de Direito ao Estado Social. Consequentemente, ocorrem a constitucionalização do Direito e o fortalecimento do Judiciário. [...] Tal ascensão do Judiciário, entretanto, também traz um problema se ainda concebida sua função sob a ótica do positivismo normativista: a discricionariedade. Abandona-se a crença de previsibilidade, certeza e segurança forjada pelo congênere exegético (o juiz, há muito, não é a boca da lei), passando a admitir uma discricionariedade do intérprete e aplicador para arrematar o processo de definição da norma jurídica a se aplicar. [...] No mundo ocidental, sejam os ordenamentos de tradição inglesa – como a Inglaterra que criou sua Corte Constitucional – sejam os de tradição alemã – com forte influência de seus pensadores ao redor do mundo – ou os de influência francesa [...] todos experimentaram a constitucionalização e a judicialização do Direito.

Tal compreensão acerca de como se deu essa mudança de paradigma nas relações entre os Poderes (com a supracitada judicialização49 do Direito) nos países do civil law é essencial, pois tal fato reverberou no Brasil desde as primeiras Constituições. Para tanto, além dessa introdução sobre o constitucionalismo nos países de tradição civil law, será feita uma análise sobre como o neoconstitucionalismo contribuiu para atribuir um novo papel aos magistrados no Brasil o que acabou levando a uma reação legislativa de desenvolvimento da obrigatoriedade dos precedentes nos tribunais (LOPES FILHO, 2014, p.79).

4.2.2. A influência do neoconstitucionalismo no Brasil

No mundo, tem-se como marco temporal do neoconstitucionalismo o pós-Segunda Guerra Mundial em resposta às ideologias totalitárias (nazistas e fascistas) que usaram a legislação como referência de legitimidade para os atos dos regimes. No Brasil, o neoconstitucionalismo tem como marco o fim do regime militar com a instauração da nova ordem constitucional de 1988. Essa nova perspectiva revelou a insuficiência da legislação para regular os comportamentos das pessoas e alçou as constituições a instrumentos dotados de eficácia normativa. Em razão disso, a legislação não mais possuía independência em relação ao sistema: os princípios instituídos na Constituição foram tomados como o ponto de partida e a própria interpretação das leis a teria como fator delimitador.

Assim, esse fenômeno modificou a ideia vigente sobre Constituição no país: antes tida como um livro que continha princípios não realizáveis, de caráter programático, foi alçada ao instrumento efetivador de princípios de justiça social, igualdade e liberdade sem que, para isso, houvesse dependência dos legisladores (SARMENTO apud, ROMÃO; PINTO, 2015, p.72).

Romão e Pinto (2015, p. 69) reconhecem algumas características trazidas por esse fenômeno: pretensão de máxima proteção de direitos fundamentais; desenvolvimento de uma nova maneira de interpretação do direito, contrapondo-se subsunção e ponderação, ou seja, a valoração de princípios que consiste no enfrentamento entre eles em alguma situação objetiva, conferindo-se peso maior ao mais adequado para a situação; intensa constitucionalização dos direitos, inclusive dos ramos de direito do ordenamento fazendo todo sistema coadunar com a lógica constitucional e a judicialização das relações sociais e da política50.

Lopes Filho (2014, p. 69), aponta como características do constitucionalismo contemporâneo: a vinculação moral ao cumprimento objetivo dos direitos fundamentais, a constitucionalização do ordenamento ao propor uma nova interpretação à luz dos princípios constitucionais até nas relações de direito privado e a eficácia normativa conferida aos preceitos de direito fundamental.

Houve uma notável aceitação do novo constitucionalismo no Brasil, em grande parte pelos esforços empreendidos pelos doutrinadores do Direito.51 No entanto, uma das características supracitadas se destacou: a força normativa aplicada aos princípios. Assim, os casos em que havia uma controvérsia eram resolvidos (e ainda são) pelo instrumento da ponderação de princípios. Com o passar do tempo, não havia mais a preocupação em classificar a norma como regra ou princípio: o que fosse já reconhecido como princípio servia ao caso concreto sem maiores análises (BARCELLOS apud LOPES FILHO, 2014, p. 75).

Dessa maneira, começou a haver no Brasil uma interferência excessiva nas causas que envolviam políticas públicas, isso tudo sem a participação parlamentar. Não havia, pelo menos inicialmente, um controle para o uso da teoria da ponderação de modo a frear o uso inadequado dos princípios. Leciona Barroso (2012, p. 369-371), que a esse fenômeno em que há participação intensiva do Judiciário na realização de valores constitucionais sem a participação dos outros poderes dá-se o nome de ativismo judicial. Essa expressão foi cunhada nos Estados Unidos para se referir ao período em que a Suprema Corte foi presidida por Earl Warren, entre 1959 e 1964. Durante esse tempo, houve uma atuação encoberta da supradita Corte conduzida por uma jurisprudência progressista concernente, em sua maioria, a direitos fundamentais, sem a participação do Executivo e do Legislativo. A reação conservadora a essa atuação cunhou, então, esse termo de caráter pejorativo para designar essa atividade. 52

No Brasil, essa falta de critérios de racionalidade no uso da ponderação de princípios ensejou a instalação de uma insegurança jurídica. Ainda, para Romão e Pinto (2015, p. 73), a atividade judicial brasileira sem controle no uso da ponderação ocasionou uma discricionariedade ensejadora de quebra de isonomia perante as decisões judiciais. A criatividade judicial advinda de tal fato se revelou em um dos motivos pelos quais houve uma reviravolta no sentido de promover a obrigatoriedade dos precedentes dos tribunais superiores.

4.2.3. A criatividade judicial

Sobre o fenômeno da criatividade judicial, Cappelletti (1993, p. 20-21) afirma que é inerente ao sistema de interpretação do direito legislativo pelo Judiciário um certo grau de criatividade, pois mesmo com o intuito de formular o mais claro preceito de lei o legislador, ainda assim, deixaria margem à interpretação pelo tão só fato de ser a lei produto da linguagem que comporta em seu bojo todo tipo de incertezas e ambiguidades. E tal fato não se adstringe à interpretação do direito, pelo que se estende a todo os campos da produção humana como a música, a literatura e à filosofia.

Nesse mesmo sentido, argumenta Marinoni (2013, p. 83-86), que certamente o juiz desejado pela tradição civil law à época da Revolução Francesa, como já visto, não pode ser aquele que decide com bases em conceitos indeterminados e regras abertas. Assim, na época do Estado liberal clássico havia a vinculação ao princípio da tipicidade das formas processuais: dessa forma, era garantida, através da contenção judicial, a liberdade do jurisdicionado através da vedação de atuação fora dos limites das formas processuais postas pelo legislador. No entanto, aqui no Brasil, houve a necessidade de que se conferisse maior poder de atuação do juiz para que o jurisdicionado pudesse se valer de formas processuais não codificadas para abarcar novos direitos materiais conferidos. Também houve atividade do Legislativo no sentido de confeccionar regras abertas com conceitos indeterminados como, por exemplo, “abuso de direito de defesa” ou “dano irreparável ou de difícil reparação”, ambos do CPC de 1973. Tais medidas foram baseadas no entendimento de que não havia a possibilidade de o legislador abarcar todas as formas processuais, tampouco as que abarcassem todos os direitos materiais.

Conforme o que foi exposto, o real problema se apresenta não pela construção de conceitos indeterminados, mas pelo grau de criatividade exercido pelos tribunais judiciários (CAPPELLETTI, 1993, p. 21).

Quanto a esse aspecto, Barroso (2012, p. 372-378) apresenta algumas críticas. Primeiramente, a de que os juízes não são escolhidos por eleição: então, quando determinam deveres para o Legislativo ou para o Executivo, ou anulam atos dos mesmos há uma atividade de cunho político para a qual eles não foram investidos. Faltaria aos juízes, então, legitimidade democrática para tais atos. Além disso, há a crítica à atuação hegemônica do juiz como intérprete da Constituição. Para evitar isso aponta a análise de dois aspectos: a da capacidade institucional, que consiste na competência do Poder que poderia exarar a melhor decisão, por exemplo, a demarcação de terras indígenas cuja atividade demanda conhecimento técnico; e a dos efeitos sistêmicos que consiste em avaliar as consequências das decisões de um magistrado sobre um segmento que transcende a decisão judicial, por exemplo, sobre um segmento econômico. Por fim, a crítica feita é no sentido de que o debate realizado pelo Judiciário tem categorias próprias de pensamento e estrutura argumentativa as quais não seriam compreendidas pela população em geral que ficariam à mercê da discussão sobre questões importantes.

Assim, afirma Cappelletti (1993, p. 26) que apesar de haver, como já foi dito, uma criatividade intrínseca no ato de interpretar, isso não significa uma autorização para livre atuação do juiz no caso concreto. A uniformização de jurisprudência foi sendo introduzida com as reformas processuais com o propósito de atenuar essa criatividade jurisprudencial.

Nesse mesmo sentido Cambi (apud ROMÃO; PINTO, 2015, p.79) aponta o fenômeno da jurisprudência lotérica que acontecia com muita frequência: “a mesma questão jurídica é julgada por duas ou mais maneiras diferentes. Assim, se a parte tiver a sorte de a causa ser distribuída a determinado juiz, que tenha entendimento favorável [...], obtém a tutela jurisdicional”. Assim, a criatividade judicial constituiu um dos principais fatos que motivaram a adoção de um sistema de precedentes de forma a diminuir a insegurança jurídica da sociedade.

Finalmente, será abordado como um dos motivos ensejadores da adoção de um sistema brasileiro de precedentes a sistemática do controle difuso de constitucionalidade das leis no Brasil.

4.2.4. O controle difuso da constitucionalidade das leis

No sistema de controle difuso de constitucionalidade das leis qualquer juiz de primeiro grau pode afirmar a nulidade de lei ou ato normativo. Como leciona Lopes Filho (2014, p. 79):

No Brasil, ao historicamente se adotar o controle difuso de constitucionalidade, não se estabeleceram disciplinamentos ou poderes diferenciados entre magistrados. Mesmo um juiz recém-empossado na mais longínqua comarca de um Estado-membro possui, a princípio, diante de um caso concreto, os mesmos poderes de revisão, controle e interpretação dos atos legislativos de que desfruta um ministro do Supremo Tribunal Federal. Considerando sua proximidade dos fatos e das pessoas, está mais apto a exercer, na perspectiva neoconstitucional, uma ponderação precisa. Isso rompe a ordenação vertical que a estrutura brasileira tradicionalmente preservava, pois o Direito passaria a ser mais bem determinado pelas instâncias mais baixas.

No entanto, na análise de Marinoni (2013, p. 161-163), o juiz de primeiro grau que negue validade a lei ou ato normativo se coloca contra um ato aprovado por um representante do povo. A sua legitimidade vem, então, da ideia de que os direitos fundamentais se excluem da esfera de atuação do Legislativo, sendo dever do Judiciário protegê-los e afirmá-los. Surge, entretanto, uma contradição: há a possibilidade de um juiz decidir de maneira destoante de um ministro do Supremo Tribunal Federal, que, aliás, como função precípua a guarda da Constituição.

Segundo Romão e Pinto (2015, p. 83) tal contradição existe porque não foi levado em consideração que esse modelo importado dos Estados Unidos, desde a Constituição de 1891 no Brasil, não aderiu aos precedentes obrigatórios. O Judiciário, então, conviveu com essa contrariedade: decisões de juízes hierarquicamente inferiores com concepções diferentes acerca de um dado direito fundamental que recebeu uma interpretação pelo STF.

Evidencia-se, então, a adesão aos precedentes como uma forma de evitar essa contradição e tentar conferir isonomia e segurança para o sistema jurídico. Segundo Lopes Filho (2014. p. 79), o intuito da construção de um sistema de precedentes foi justamente remodelar os papeis no judiciário preparando-o para o protagonismo dos órgãos mais elevados. Com isso, confere-se coesão interna ao sistema.

4.3. O Novo Código de Processo Civil: composição dos precedentes e suas principais ferramentas de manuseio

Dado o conceito amplo de precedentes, será traçado neste item um detalhamento do que o NCPC convencionou chamar de precedente para que possa ser feita uma análise das principais ferramentas de manuseio desse sistema recém-estabelecido. Além disso, será feita uma descrição da composição dos precedentes, ou seja, uma análise para que saiba qual a parte da decisão que vinculará os casos futuros.

4.3.1. Conceito de precedentes à luz do Novo Código de Processo Civil

Como já dito, precedente judicial é conceituado, de maneira ampla, como sendo o de um pronunciamento judicial em um caso que sirva de direcionamento para casos posteriores equivalentes (LOPES FILHO, 2014, p. 125). Na distinção inicial já feita em capítulo anterior, pode-se notar a dificuldade sobre uma delimitação teórica sobre precedentes. Isso se deu em boa parte pelo fato de o ordenamento brasileiro ter importado conceitos de um sistema de funcionamento diverso ao invés de construir uma nova teoria nacional. Essa conceituação, portanto, é da maior importância porque irá constituir uma das premissas básicas da sistemática que se pretende instaurar e ela, por óbvio, não pode se dar sob as sombras das concepções positivistas tão arraigadas no sistema anterior.

Neves (2017, p. 1404), conceitua precedente como “julgamento que sirva como razão de decidir de outro julgamento proferido posteriormente”. A ressalva a ser feita é a de o precedente não nasce a partir do proferimento da decisão que o contém, mas a partir do momento em que é usado como fundamento parar decidir outro caso semelhante. Ou seja, ele se transforma em precedente. Assim, Taruffo (apud MARINONI, 2013, p. 105) afirma que o dever de se respeitar precedentes deriva do fato de ter sido proferido por quem tem autoridade e obriga aos que vão decidir casos semelhantes, impactando a vida das pessoas.

Marinoni (2013, p. 214), leciona que não são apenas as distinções de outros institutos que são capazes de formar o conceito de precedentes, mas também a identificação dos seus conteúdos. Precedente é, então, a primeira decisão que formulou tese jurídica para um determinado caso.

Para Romão e Pinto (2015, p. 43), para que haja formação de um precedente é imprescindível a averiguação cautelosa da decisão paradigma e a análise dos argumentos e fundamentos utilizados por ambas as partes do conflito. Então mediante a comparação das lides com fatos semelhantes é que há o nascimento do precedente. Duxbury (apud FOGAÇA, 2016, p. 82) no mesmo sentido, afirma que apenas se constitui precedente judicial a decisão que pode servir de paradigma para outros julgadores e para a sociedade em geral, tendo em vista sua transcendentalidade que parte do caso concreto e passa a valer para os casos similares.

Após o fornecimento do conceito amplo já supracitado e do desenvolvimento das premissas de sua análise, Lopes Filho (2014, p. 281) preceitua o significado de precedente como uma decisão judicial que traz acréscimo de entendimento. Nem toda decisão é precedente, mas todo precedente certamente é decisão judicial que traz ganho hermenêutico e, assim, facilita a aplicação da lei mediante a realidade do caso concreto.

Finalmente, em análise aplicada à sistemática proposta pelo NCPC53, Zaneti Jr. (2015, p. 420-421) leciona:

Na interpretação correta do novo CPC, precedentes normativos formalmente vinculantes são as decisões passadas (casos-precedentes) que tem eficácia normativa formalmente vinculante para os juízes e tribunais subsequentes (casos-futuros) e são de aplicação obrigatória, independentemente das boas razões da decisão. [...] O CPC/2015 rompeu definitivamente com a tradição brasileira do direito jurisprudencial e da jurisprudência persuasiva, elencando no art. 927 e incisos os casos em que os precedentes no Brasil obrigam, portanto, não normativos e vinculantes [...] Daí falarmos, nestes casos, de precedentes normativos vinculantes, uma vez que não normas primárias, estabelecidas como tal pela legislação processual [...].

Além disso, há que se fazer a distinção entre precedente vinculante e precedente persuasivo. Este deve ser considerado na fundamentação da decisão como argumentos válidos, mas pode não ser aplicado desde que o magistrado motive a razão do desacordo. Exemplo de precedente persuasivo ocorre quando da divergência entre turmas de mesma hierarquia em um tribunal. Como não deve haver precedentes divergentes, sob pena de comprometimento da coerência do sistema, eles terão, nesse caso, apenas eficácia persuasiva, pelo que os magistrados submetidos haverão de optar por um deles ou, ainda, por não seguir nenhum.

4.3.2. Composição dos precedentes: a ratio decidendi e o obiter dictum

Para Didier Jr, Braga e Oliveira (2015, p. 441), o precedente é a decisão judicial cujo elemento normativo pode direcionar decisões de casos semelhantes futuros. Cruz e Tucci (apud DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, 2015, p. 441) afirmam que os precedentes se compõem de duas partes: as situações de fato que embasam a lide e proposição surgida na motivação do provimento (ratio decidendi). É essencial observar que o que vincula no precedente é a ratio decidendi ou holding para os americanos, ou seja, a parte vinculante é a dos fundamentos jurídicos essenciais para a solução do caso. 54

Para Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2015, p. 613), no mesmo sentido, o precedente pode ser definido como as razões constantes da justificação (ratio decidendi) da resolução da lide. Pondera, entretanto, que ratio decidendi diz respeito à “unidade de direito” e não se confunde com fundamentação, que concerne ao caso concreto, e estão ambos na justificação. A ratio decidendi seria assim a “razão necessária e suficiente”, sem a qual não seria possível chegar ao deslinde da demanda e, por essa razão, nem tudo o que está na justificação aproveita para a construção do precedente. A essa parte judicial que não é necessária para a solução do caso dá-se o nome de obiter dictum.55 Assim, será obrigatória apenas a norma jurídica extraída para a tomada decisão a partir do caso originário. Utilizando a linguagem adequada à tradição romano-germânica, o que acontece é uma abstração construída a partir da justificação da decisão. É importante reiterar que o juiz não irá simplesmente aplicar a jurisprudência ou a ementa (ou dispositivo) do caso anterior: ele irá investigar a ratio decidendi do caso precedente e proceder a uma análise comparativa com o caso atual e só assim decidir pela utilização ou não daquela razão alcançada.

Para Marinoni (2013, p. 219), as razões de decidir que compõem o precedente importam aos juízes no sentido de dar um propósito coerente ao direito e, principalmente, aos jurisdicionados que podem encontrar em sua aplicação a segurança jurídica e confiabilidade necessários aos seus negócios e atividades. No entanto, não basta aos juízes, nessa construção, olhar apenas a fundamentação da decisão, mas também o relatório e o dispositivo: o que se quer dizer é que as razões são encontradas basicamente na fundamentação, mas não apenas nela. Dessa forma, ao julgar um caso o juiz cria duas normas: a primeira tem caráter geral e está relacionada com a interpretação da conformação do caso com as leis em geral; a outra tem caráter particular e dá solução àquele caso e tem a aptidão de formar coisa julgada (DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, 2015, p. 443).

Obter dictum56, como já exposto, se constitui de um comentário, uma opinião ou uma análise dita de passagem e não essencial ao deslinde do caso. Assim, apesar de não ser precedente, pode se revelar como uma sustentação à construção e, por tal fato, não deve ser desprezado. Há, muitas vezes, no caso em julgamento, questões não foram colocadas pelas partes, mas que têm a ver com a causa (MARINONI, 2013, p. 233).

4.3.3. As principais ferramentas de manuseio dos precedentes

Após delineada a composição dos precedentes, se apresenta a questão de como será a ratio decidendi aplicada ao caso levado ao Judiciário sob a égide do NCPC. Conforme será analisado, dentro do escopo deste trabalho, há uma teoria geral dos precedentes que explica o funcionamento das técnicas praticadas na tradição do common law que, obviamente, terão de ser incorporadas à prática dos operadores do Direito no Brasil, com o intuito de cumprir a finalidade de elevar a segurança jurídica e a efetividade das decisões. Dentre as técnicas existentes, serão examinados o distinguishing, a técnica da sinalização, a transformation, além das técnicas de superação overruling e antecipatory overruling.

4.3.4. Distinguishing

O distinguishing é a principal técnica usada na aplicação dos precedentes judiciais que consiste na comparação entre os fatos do precedente com os do caso em análise.

Assim, é elementar que além da pesquisa sobre o que seja a ratio decidendi do precedente, faz-se necessário comparar essa razão (ou razões) com o caso em julgamento. É essa técnica jurídica que permite fazer uma distinção entre os casos tendo como consequência a submissão ou não ao precedente analisado.

Para Marinoni (2013, p. 327), entretanto, no caso de não aplicação do precedente, não basta a mera distinção dos fatos entre os casos: há de se ter uma distinção fática convincente capaz de permitir a não aplicação do precedente ao caso. Além disso, a não adoção de um dado precedente, neste caso de distinção, não quer dizer que ele esteja revogado ou equivocado. Ele simplesmente não é aplicável ao caso em análise. No entanto, se há uma distinção rotineira com relação a um dado precedente, isso pode significar que ele esteja perdendo sua autoridade vinculante perante os magistrados e que mereça uma revisão.

Segundo Nunes e Horta (apud NEVES, 2017, p. 1409), não é raro em alguns países de common law a prática de tentativa de não aplicação pelos juízes de um dado precedente por considerá-lo injusto ou equivocado, segundo sua própria consciência.

Considerando o exposto, o legislador atentou para este fato da experiência de aplicação dos precedentes quando exigiu fundamentação satisfatória na hipótese de distinção no NCPC. De acordo com o art. 489 §1º, inciso VI: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial [...] que: VI- deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. Da leitura do dispositivo pode-se constatar que será fulminada de nulidade a decisão que faça a distinção e não fundamente satisfatoriamente, o que contribui exatamente para coibir os casos em que há distinção discricionária do julgador. No mesmo sentido o Enunciado 306 do FPPC: “ O precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa”.

Ainda, para Didier Jr, Braga e Oliveira (2015, p. 491) a técnica do distinguishing comporta dois significados: para definir o método de comparação (distinguishing-método) entre o caso em julgamento e o precedente57 e para definir o resultado dessa comparação, nos casos em que se conclui pela diferença entre eles (distinguishing-resultado)58.

4.3.5. Técnica de sinalização

Quando há a construção de um precedente vinculante, os jurisdicionados da tradição do common law passam a regular sua conduta através da razão contida nele por depositarem confiança em sua compulsoriedade. Assim, para que haja alteração ou mesmo revogação desse precedente que goza da confiança dos jurisdicionados, os ganhos devem ser superiores à quebra da segurança jurídica provocada por tais medidas. Além disso, haverá que existir a sinalização dessa superveniente impertinência jurídica do precedente (FOGAÇA, 2016, p. 102).

Assim, os tribunais não ignoram que tal precedente não mais tem valor vinculante, mas buscam, antes, sinalizar, que ele está perdendo a congruência com a realidade social.

Objetiva-se, então, comunicar que o precedente será revogado, impedindo com isso que alguém paute sua conduta com base nele e saia prejudicado. Ressalte-se que as partes da lide não são surpreendidos por tal sinalização e têm seu provimento de acordo com o provimento vigente, justamente para não haver quebra de segurança jurídica (MARINONI, 2013, p. 335).

4.3.6. Transformation

Através da técnica do transformation, o tribunal identifica que a ratio de um precedente se tornou inadequada e promove a sua reconstrução como uma nova norma, ocorrendo a revogação tácita (DUXBURY, apud FOGAÇA, 2016, p. 107).

Marinoni (2013, p. 342-343), afirma que o tribunal deixa de aplicar o conteúdo do precedente e realiza uma reconstrução da ratio, sem revogá-lo.

Assim, nova solução jurídica que foi aplicada ao caso não apresenta congruência com a ratio que se pretendeu afirmar, justamente porque houve reconfiguração pelo tribunal no momento da decisão, muitas vezes sem a indicação expressa desse ato. Esquiva-se assim de realizar um overruling59, apesar de a diferença substancial entre as duas ferramentas seja o fato deste ser expresso. Dessa forma, quando há a reconstrução de determinado precedente há, na verdade, a aplicação de uma nova norma, distinta daquela originária (FOGAÇA, 2016, p. 107).

Uma das vantagens apontadas no uso dessa técnica seria a manutenção, pelo menos de maneira artificial, do precedente, uma vez que teria havido apenas a sua reformulação, mesmo que as razões jurídicas originárias não fossem mais aceitas, havendo a preservação, de alguma forma, da segurança jurídica depositada. A desvantagem jaz na superficialidade da técnica: os magistrados obrigados à aplicação do precedente não conseguem delimitar o que foi transformado e muitas vezes aplicam o precedente anterior (EISENBERG, apud MARINONI, 2013, p. 345). Assim, para a manutenção da coerência interna do sistema, e considerando a dinâmica dos precedentes, a técnica que melhor se apresenta é o overruling, conforme será analisado. Didier, Braga e Oliveira (2015, p. 495), inclusive, afirmam que a técnica do transformation viola o dever de coerência prescrito no art. 926.

4.3.7. Overruling e antecipatory overruling

O Direito é um produto cultural da sociedade e, como tal, não pode permanecer estático uma vez que impediria seu próprio desenvolvimento. Uma das principais dificuldades dos sistemas de precedentes nas nações que adotaram o common law é o equilíbrio que deve haver entre a mudança ensejadora de justiça e a segurança jurídica que o sistema deve proporcionar. Nesse sentido, Didier, Braga e Oliveira (2015, p. 495): “A possibilidade de mudança do entendimento é inerente ao sistema de precedentes judiciais. O dever de estabilidade da jurisprudência não impede a alteração do entendimento; ele impede alteração injustificada desse entendimento”. Para Eisenberg (apud MARINONI, 2013, p. 389), um precedente pode ser revogado quando não mais se conforma à realidade social em que está inserido e ao sistema a que pertence, e, por isso, os mesmos valores (confiança, segurança, estabilidade) que sustentaram sua permanência passam a promover agora sua revogação.

Para Marinoni (2013, p. 391), a revogação do precedente deve se dar pelo enfrentamento das condições básicas do overruling − a perda de congruência social e surgimento de incongruência sistêmica – e dos requisitos de manutenção do precedente, tais como, segurança jurídica e estabilidade. Nesse sentido leciona Eisenberg (apud MARINONI, 2013, p. 390):

Um precedente deixa de corresponder aos padrões de congruência social quando passa a negar proposições morais, políticas e de experiência.[...] As proposições morais determinam uma conduta como certa ou errada a partir do consenso moral geral da comunidade, as proposições políticas caracterizam uma situação como boa ou má em face do bem estar geral e as proposições de experiência dizem respeito ao modo como o mundo funciona [...] A Corte deve utilizar proposições morais ancoradas nas aspirações da sociedade como um todo, assim como empregar proposições de conteúdo político que reflitam uma situação como boa para a generalidade da sociedade.[...] Do mesmo modo, as proposições de experiência, assim como as de moralidade e política devem ter ancoragem social.

O surgimento de uma incongruência sistêmica acontece quando o tribunal que gerou o precedente passa a proferir decisões inconsistentes em relação a ele, tanto pela via das exceções ao precedente como instaurando precedentes controversos.

Então, pode-se observar que o processo de superação do precedente acaba retirando do ordenamento jurídico uma norma e, por isso, necessita atender a determinados requisitos para atender a legitimidade depositada no sistema. Assim, para a promoção de um overruling espera-se uma fundamentação ainda mais minuciosa do que se dá para a formação de um precedente.

No NCPC, a técnica de superação aplicada a súmulas, jurisprudência dominante e a qualquer precedente está delineada no art.927 §2º a §4º.60 O parágrafo segundo prevê para a alteração de súmulas ou para o julgamento de casos repetitivos a possibilidade de realização de audiências públicas para a exposição das fundamentações que ensejam a mudança de entendimento do tribunal.

O antecipatory overruling acontece quando um juiz obrigado a seguir precedente, ou mesmo tribunal inferior, não aplica precedente ainda válido por haver uma grande probabilidade de que o tribunal vá superá-lo. Não se trata se revogação antecipada, pois, como já dito, o precedente ainda é válido, mas o tribunal já sinalizou que irá revogá-lo. A existência dessa técnica contribui para a existência de um sistema de precedentes mais dinâmico e flexível uma vez que o overruling, como já visto, passa por processo mais complexo (DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, 2015, p. 506-507).

5. OS DESAFIOS NA APLICAÇÃO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Apesar de haver, após a vigência da Constituição de 1988, uma crescente mudança na legislação infraconstitucional processual conferindo eficácia aos precedentes (jurisprudência e súmula) e criando a ideia de respeito às decisões dos tribunais superiores, é incontestável que, historicamente, a tradição judicial brasileira se firma na lógica racionalista positivista de respeito às leis. Assim, a tradição do civil law que fundamenta o sistema jurídico brasileiro confere maior importância à aplicação das leis, como fonte primária do Direito, no caso apresentado ao Judiciário.

Macêdo (2015, p. 461), admite que o direito brasileiro mesmo tendo compatibilidade com vários institutos do direito norte-americano, não possui experiência nem uma sistemática de entendimento acerca do stare decisis. Essa compreensão acerca das técnicas de manejo e dos conceitos sobre os precedentes é essencial, pois, sem ela, haverá uma prática embaraçada e pouco útil aos jurisdicionados. Assim, não é bastante a institucionalização do sistema mediante a legislação, mas a construção de uma teoria apta a atender os anseios da sociedade.

Sobressai, assim, a problemática da prática dos magistrados cuja lógica de trabalho segue o método subsuntivo. Sobre isso, Silva (apud GOUVEIA; BREITENBACH, 2015, p. 492) afirma: “...os juristas modernos não conseguem pensar o direito a partir do caso; não conseguem pensá-lo através do problema. Somos induzidos por uma determinação paradigmática, a pensá-lo como sendo produzido pela norma, enfim, pelos códigos”.

Como já visto, além de outros aspectos, foi essa visão do Direito através da atividade dos juízes a grande ensejadora da reviravolta da busca do respeito aos precedentes. Lopes Filho (2014, p. 72-77) afirma, ainda, que houve principalmente a busca por certeza e previsibilidade na atividade jurisdicional. No quadro instituído pelo neoconstitucionalismo, apesar de haver uma reestruturação com a adoção de princípios como norma, como já visto, não houve a busca de construção de outros institutos capazes de conferir à sociedade tais atributos. Assim, a solução encontrada no sistema de precedentes passa por essa ressignificação do que seja a decisão judicial. Esta não mais é a expressão de algo fixado em lei, tampouco ato de vontade que integra a produção normativa: ela aparece como uma resposta argumentativa de análise de questões fáticas, trazendo um aumento de significado à própria lei. Essa decisão, como já visto, servirá de base para orientar atividade jurisdicional posterior.

Dessa forma, há que se considerar as diferenças culturais entre os sistemas nesse processo de adoção de institutos sob pena de haver a formação de um sistema desvirtuado, incapaz de ajustar à dinâmica constitucional buscada. Um exemplo do que pode ocorrer para criar uma deformação no uso dos precedentes é o uso equivocado do distinguishing: com o intuito de atender aos ditames de celeridade processual, pode-se aplicar precedentes a casos que não o comportam. Outra situação factível61 é sistematizar a técnica de busca ao precedente como uma aplicação de ementa. Afirma Barreiros (2015, p. 198), nesse sentido: “Não raro, decisões judiciais informam estarem aplicando um dado precedente, de cujo teor apenas referem a ementa, sem a preocupação de fazer o cotejo fático para que se afira se o caso a ser julgado se insere ou não na linha argumentativa da ratio decidendi do precedente”. Lopes Filho (2014, p. 72), afirma, ainda, que aplicar métodos hermenêuticos das leis aos precedentes é um erro e embora um precedente possa apresentar uma enunciação canônica tal como uma lei, não pode haver o intuito de generalização e abstração sob pena de abarcar situações que não estão compreendidas na sua ratio decidendi.

Ainda sobre esse aspecto, Romão e Pinto (2015, p. 42) concluem que no Brasil julgadores tratam precedentes e ementas como equivalentes. Esse tratamento pode atrapalhar a aplicação do NCPC e, ainda, prejudicar a construção de um sistema de precedentes brasileiro. Tal hábito é de ordem pragmática: o magistrado utiliza a ementa como se fosse ratio decidendi, ou seja, como se fosse o cerne do precedente.

Outro desafio na aplicação do NCPC jaz na fundamentação62 adequada dos precedentes. Apesar de a fundamentação das decisões já possuir status constitucional (art. 93, IX)63 e de o Código de Processo Civil de 1973 já trazer mandamento expresso nesse sentido (art. 458, II)64, a prática judiciária muitas vezes mostrava o completo desrespeito por esses preceitos. A justificação se dava por uma ponderação de princípios, dentre os quais o da celeridade processual de tal sorte que era uma atividade muitas vezes chancelada pelos próprios tribunais superiores.

O NCPC repete a regra do antigo código e inclui outras seis hipóteses (no art. 489 §1º, como já visto) ao prescrever a fundamentação como essencial às decisões, sejam elas decisões interlocutórias, sentenças ou acórdãos, sob pena de nulidade. O intuito é haver um controle da atividade dos magistrados, reduzindo a discricionariedade na atividade de fundamentação. Os dispositivos da nova lei processual surgiram como uma resposta às críticas da doutrina no que diz respeito à deficiência argumentativa das fundamentações e pelo não enfrentamento de todas as razões trazidas pelas partes. Para Macêdo (apud ROMÃO; PINTO, 2015, p. 178), há uma grande importância na maneira como a decisão é fundamentada para a formação do sistema de precedentes, de tal forma, que não é possível existir precedente sem fundamentação adequada. Por isso, o NCPC demanda uma apreciação exaustiva dos argumentos para formação de razões fundadas nos fatos trazidos.65

Conforme o exposto, a principal medida para a formação de um sólido sistema de precedentes capaz de proporcionar segurança para as condutas dos jurisdicionados é a conscientização de todas as pessoas que participam do processo judicial, sob pena de que se repita o que aconteceu no regime da lei processual revogada. A segurança jurídica que se pretende alcançar com o novo sistema instituído será objeto de análise da seguinte seção.

5.1. A busca pela segurança jurídica através dos precedentes vinculantes

A segurança jurídica vista por Marinoni (2013, p. 118-127) como constituída por previsibilidade e estabilidade é essencial para a formação de um Estado que se afirme de Direito. Na Constituição brasileira a segurança jurídica é tanto direito fundamental como princípio estatal de ordem jurídica.66 Assim, o Estado brasileiro tem o dever de realizar as suas funções de modo a assegurar segurança aos brasileiros, além de se abster de praticar atos que atentem contra ela. A segurança jurídica confere ao cidadão um guia de como se comportar em seus negócios jurídicos e atos em geral, de modo a esperar consequências dentro de espectro fixado pelo Estado. A previsibilidade, então, possibilita ao cidadão a ciência das consequências advindas de seus atos com um alto grau de certeza: para tanto há que haver compreensão do texto jurídico e confiabilidade naqueles que o produzem. A estabilidade, por sua vez, está relacionada a continuidade tanto do direito legislado como do respeito às decisões judiciais formadoras de precedentes vinculantes.

Como amplamente já visto, a tradição civil law primeiramente buscou a segurança jurídica na ideia da supremacia da lei, na própria ideia de Direito como norma posta: trata-se do positivismo legalista cujo auge foi alcançado com a Escola da Exegese.67 Ignorava-se a vagueza e indeterminação da linguagem. Nas palavras de Kauffman (2002, p. 283):

Quem seguir a concepção – ingênua – segundo a qual o juiz deduziria a sua decisão jurídica da lei, “subsumiria” o caso na norma codificada, atribui à codificação a função de fonte única de toda a decisão jurídica. A actividade jurisprudencial será “correta” de transportar o conteúdo da norma codificada para o caso a decidir, sem lhe acrescentar ou retirar nada. Assim, a teoria do direito e a metodologia jurídica têm apenas uma função relativamente ao juiz: formular as regras exactas de transferência. [...] No entanto, a ideia de que o veredicto judicial decorreria, inequivocadamente, da norma codificada, foi entretanto superada.

Assim, apesar da perda de prestígio do legalismo positivista para a promoção da segurança dos jurisdicionados, essa crença de que o magistrado só aplicaria o conteúdo das normas servia para conduzir o juiz a uma solução de previsibilidade razoável. No entanto, ao longo do tempo, mesmo nos países de tradição civil law, o foco do elemento que poderia conferir ampla previsibilidade e estabilidade passou da norma geral e abstrata para as decisões judiciais (LEAL, 2013, p. 65).

A adoção de um sistema de precedentes, vem, então para atender a esse anseio da sociedade. Como pode-se falar em segurança jurídica quando para casos com fatos semelhantes há, muitas vezes, provimentos diametralmente diversos? Além disso, a existência do deletério fenômeno da jurisprudência lotérica constitui uma das principais causas do aumento do prestígio dos precedentes judiciais no Brasil. Afirma Fogaça (2016, p. 158) que a jurisprudência lotérica, expressão cunhada por Eduardo Cambi, consiste no fato de que uma mesma questão jurídica é decidida de dois ou mais modos diferentes, de tal sorte que se uma dada parte tiver a ventura de ter sua causa distribuída ao juiz que tenha o entendimento favorável, receberá ela a tutela.

Assim como, no passado, era vigente a errônea ideia de que a lei seria o único elemento a conferir segurança jurídica para a sociedade, também a exacerbação do significado dos precedentes vinculantes na realidade brasileira pode levar ao mesmo equívoco.

No ensinamento de Lopes Filho (2014, p. 113-121), se a segurança jurídica se consubstanciar em previsibilidade de resultados com base em enunciados preestabelecidos, os precedentes não funcionam para esse propósito mais do que as leis. Se os atores do processo judicial praticarem a sistemática de precedentes buscando a mesma ilusão exegética (se “a” então “b”) que fizeram outrora com as leis, o sistema se mostrará inviável. Se houver apenas o intuito de buscar essa previsibilidade com a fixação de julgamentos dos tribunais superiores, o que vai existir é um sistema artificial decorrente apenas de prestígio hierárquico do Judiciário e não da essencialidade de um verdadeiro sistema de precedentes, que jaz na análise pormenorizada dos fatos ensejadores de determinada ratio decidendi. Não pode, então, o precedente ser tomado como um instrumento de antevisão de resultados: ele tem de ser interpretado e discutido. Dessa forma, a segurança jurídica será conferida quando houver coerência na evolução da nova tradição judiciária.

5.2. A formação paulatina de um sistema de precedentes brasileiro

Por tudo o que foi exposto, é notório que houve, desde a promulgação da Constituição de 1988, uma valorização dos precedentes no ordenamento jurídico pelo que culminou, no ano de 2015, na publicação do novo Código de Processo Civil, que trouxe em seu bojo uma nova sistemática de interpretação retirando o centro gravitacional do provimento jurisdicional das leis para a própria decisão judicial. No projeto do NCPC da Câmara dos Deputados houve a intenção de instituição um sistema de precedentes: não é esta, entretanto, a conclusão a que chega este trabalho. Nesse sentido, Ataíde Jr. (2015, p. 679) afirma que no Projeto da Câmara houve a descrição de elementos essenciais a um sistema de precedentes tais como os institutos próprios (conceituação de ratio decidendi e obter dictum, de distinguishing e overruling), a obrigatoriedade de um “repositório confiável de decisões”, dentre outras prescrições mais pormenorizadas. No entanto, mesmo que tivesse entrado em vigor o Projeto da Câmara dos Deputados, mais analítico que o do Senado Federal que acabou prevalecendo no texto final, não haveria um sistema pronto e acabado de precedentes vinculantes.

A inovação legislativa é, de fato, o primeiro passo para a construção de um sistema de precedentes. No entanto, as partes integrantes do processo jurisdicional necessariamente passarão por um processo de adaptação no sentido de racionalizar a sistemática judicial. Assim como o sistema de precedentes vinculantes nos países originários do common law não surgiu, desde seus primórdios, como algo pronto, não há que se falar em tal coisa no sistema misto que atualmente existe no Brasil.

Segundo Peixoto (2015, p. 334), será um processo de lenta estabilização dos precedentes vinculantes dos tribunais superiores e de conscientização de obediência e respeito dos juízes a eles vinculados inseridos num processo de mudança da cultura judiciária. Também será um processo gradual o de uniformização e de estabilização da jurisprudência68 como preceitua a nova lei processual. Mas a principal medida diz respeito ao manejo dos precedentes em si: é essencial que os magistrados busquem as particularidades dos fatos dos precedentes e do caso em julgamento.

Dessa forma, se haverá ou não a construção de um sistema apto a gerar segurança jurídica e efetividade das decisões judiciais apenas o tempo poderá mostrar. O fator mais importante deste processo é a conscientização das partes que atuam na construção do Direito.

6. CONCLUSÃO

A conclusão do presente trabalho é a de que a inauguração legislativa trazida pelo NCPC é o início da construção de um sistema de precedentes brasileiro. O deslocamento do centro de gravidade das leis para as decisões judiciais é paradigmático, mas não no sentido de haver a transmutação da tradição civil law para common law, nem para haver uma “commonlização” do direito brasileiro. Na verdade, o aumento da carga da eficácia vinculante das decisões judiciais, como já visto, foi algo buscado a partir do marco do constitucionalismo contemporâneo no país (pós-Constituição de 1988, como visto) e se configurou como um fenômeno mundial: a importação de institutos próprios da tradição supracitada caracteriza, assim, uma remodelagem do funcionamento da prática jurídica nacional, em tudo se diferenciando do que se possa considerar o surgimento de uma nova tradição de stare decisis. A necessidade emergiu em contexto histórico e por motivos diversos.

A importação de institutos próprios do stare decisis surgiu, assim, como uma resposta à necessidade de racionalização da prestação jurisdicional, no sentido de mitigar a insegurança jurídica dos jurisdicionados. O fenômeno da jurisprudência lotérica, ou seja, aquele em que um caso pode ter provimentos diversos a depender do pensamento do julgador baseado no seu livre convencimento, surgiu, dentre outros motivos analisados, em razão da perda de prestígio da lei como conformadora do Direito. No entanto, ainda assim, mesmo com a adoção de institutos próprios do stare decisis, não há que se falar em decisão contra a lei.

Assim, a importância dos precedentes no sistema brasileiro está precipuamente na capacidade que tem de conferir segurança jurídica – previsibilidade e estabilidade dos provimentos – à sociedade, mas para tanto há que existir uma série de esforços de todos os atores do processo judicial no sentido de estruturar um sistema digno de conferir tais atributos.

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1 Por exemplo, quando da adição do julgamento liminar de demandas repetitivas (art. 285-A do CPC/73, introduzido pela Lei nº 11.277/06).

2 Entendendo nação como aquela formada por quem tem bens a defender, o que se apresenta muito pertinente aos interesses burgueses.

3 Diz-se da Constituição flexível aquela que não reclama nenhum requisito formal específico para sua alteração. Sua modificação se dá da mesma forma que as leis comuns.

4 A Constituição francesa pós-revolução só foi promulgada dois anos depois (1791) o que evidencia seu caráter secundário uma vez que muitos outros códigos e leis foram redigidos antes. Ela trazia direitos em seu bojo que, no entanto, só poderiam ser invocados se a lei os disciplinassem.

5 Lei comum.

6 O que Soares (1999, p.32) chama de direito anglo-saxônico.

7 Os writs eram ordens concedidas pelo rei às autoridades que conferiam eficácia ao direito do beneficiado determinado pelo julgamento de um caso a seu favor. Se inexistisse writ sobre determinado caso haveria a situação de denegação de justiça.

8 Utilizando o princípio da semelhança de casos.

9Leia-se continente europeu.

10 Na expressão comumente utilizada, direito “laid down by the courts, rather than by legislature” (posto pelo juiz em detrimento do legislador).

11 Statute law, ou seja, a lei.

12 Na Inglaterra, por exemplo, principalmente a partir de 1945, houve intensa produção legislativa de cunho social, fruto da influência do welfare-state no direito e na política: a common law sofreu uma crise com tal fato, pois os regulamentos adquiriram uma importância que os tribunais não estavam acostumados a enfrentar. Para lidar com essa nova realidade foram criados tribunais administrativos (não independentes da justiça comum, como acontece na França e aqui no Brasil) mas cujos procedimentos diferiam dos julgamentos dos cases tradicionais (DAVID, 2002, p.379).

13 Por esse motivo não é correto afirmar o a tradição do common law é sinônimo de precedente vinculante.

14 Segundo Porto (2006, p. 8), quando a Câmara dos Lordes, na Inglaterra, finalmente admitiu a vinculação das suas decisões, o Lorde Halsbury afirmou que seria melhor que os litígios fossem estabilizados por decisões que comportassem inadequação do que perpetuar incertezas com o uso de qualquer precedente.

15 Do latim stare decisis et non quieta movere que significa respeitar as coisas decididas e não mexer no que está estabelecido.

16 Alguns autores diferenciam igualdade e equidade na análise desses atributos: se a coerência se dá para os indivíduos a regra contém igualdade. A equidade aparece para dar coerência ao próprio sistema.

17 Treat like cases alike.

18 A origem é inglesa, contudo common law não é sinônimo de direito inglês porque alberga outros países independentes, como a República da Irlanda, a Austrália, a Nova Zelândia e muitos outros. Os EUA são considerados um sistema misto.

19 Ainda sobre esse aspecto, Gilissen (2003, p. 208) afirma que o direito inglês se afigura muito mais histórico dada a sua formação contínua do que o direito escrito. Não houve, segundo o autor, a ruptura entre passado e presente que existiu na Revolução Francesa de 1789.

20 Nesse mesmo sentido, Kempin Jr. (apud MORAES GODOY, 2004, p.2): “As colônias desenvolveram seu próprio sistema judiciário”.

21 Nas palavras de Farnsworth (1963, p. 3), “Para as colônias afluíram anglicanos, batistas, huguenotes, presbiterianos... [...] Entre a maioria inglesa, havia inúmeros holandeses, franceses, alemães, irlandeses, escoceses e suecos.

22 Como, por exemplo, os códigos de Massachusetts (1634) e da Pensilvânia (1682).

23 Além disso, buscava-se uma coesão sistêmica que permitisse uma proteção maior contra a ameaça francesa.

24 Não havia jurisprudência americana suficiente para a resolução dos casos com base em precedentes.

25 Segundo Farnsworth (1963, p. 13), “O interêsse pelo Direito inglês foi estimulado pela necessidade de lidar em matérias comerciais com os ingleses, afeitos a tôdas as particularidades, e pelo desejo de encontrar apoio em seus princípios, a fim de defender as queixas dos colonos contra a Metrópole”.

26 Ao contrário do sistema francês, em que a vontade de povo era representada pelo Parlamento, como já foi afirmado.

27 Também nesse sentido, Farnsworth (1963, p.46): “A maioria dos litígios é julgada pelos tribunais estaduais”.

28 Em contraposição ao chamado general common law, o common law declarado pela esfera federal.

29 Nas palavras do juiz Brandeis, relator do caso em comento, “there is no federal general common law”. No entanto, essa afirmação comporta exceção: nos casos de competência legislativa exclusiva federal admite-se a formação de uma common law federal, a exemplo do que ocorre com a lei federal de marcas e patentes e que se estende a matérias correlatas (DAVID, 2002, p. 468).

30 Statute law e os pronunciamentos vinculantes das cortes.

31 Entendendo-se precedente como uma decisão proferida em sede de tribunal acerca de um determinado caso cujo núcleo pode servir como direcionamento para o julgamento posterior de casos semelhantes (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA; 2013, p. 385).

32 E também, como já analisado, a vinculação se dá em relação aos tribunais federais quando precisam aplicar o precedente de um estado.

33 E esse fato é bastante significativo se tomarmos as estatísticas trazidas por David (2002, p.484): Aproximadamente 95% dos casos nos EUA são julgados unicamente pela justiça estadual.

34 No mesmo sentido, Meador (apud GODOY, 2004, p.9) afirma que as Supremas Cortes Estaduais acolhem mais as inclinações políticas de administração de justiça do que os interesses dos jurisdicionados.

35 No sentido de não ter seu mérito julgado.

36<http://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=decisoescolegiadas.>Acesso em:13.05.2018.

37 Uma vez que a aplicação do NCPC é incipiente, tendo em vista a sua vigência recente.

38 Que trouxe em seu bojo regras de processo civil, fato que ficou conhecido como constitucionalização do processo.

39 A chamada ratio decidendi.

40 Ou seja, o de um pronunciamento judicial em um caso que sirva de direcionamento para casos posteriores equivalentes (LOPES FILHO, 2014, p. 125).

41 Essa ação refere-se à súmula simples, ou de eficácia persuasiva.

42 Art. 927: Os juízes e tribunais observarão: [...] II – os enunciados de súmula vinculante; [...] IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional (BRASIL, 2015, online).

43 Art 926 §2º: Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação (BRASIL, 2015, online).

44 Art. 926 §1º: Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante (BRASIL, 2015, online).

45 O julgador, que é livre para optar pelas ‘boas razões’ (razões subjetivas), não está vinculado aos precedentes e não o dever de testar a universabilidade dos fundamentos determinantes e jurídicos de suas decisões (ZANETI JR., 2015, p. 415).

46 A jurisprudência persuasiva, sem caráter formal vinculante, orienta e não vincula o magistrado. Ela é a jurisprudência de outros tribunais não hierárquicos ou até mesmo de outro país. Dessa forma, as decisões do Tribunal de Justiça do Ceará não serão precedentes vinculantes para os juízes da Bahia.

47 Leia-se jurisprudência e súmula (DIDIER JR., 2015, p.384).

48 Diz-se rígida a Constituição que tem um processo mais difícil para a sua modificação.

49 Esse termo significa que “questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário” (BARROSO, 2012, p. 366).

50 Barroso (2012, p. 368-369) afirma que no Brasil, pelo fato de ter havido a construção de uma Constituição intensamente analítica, houve um intenso processo de judicialização do próprio debate político acerca problemas da sociedade. Para o autor, constitucionalizar é remover o debate político de todas as esferas para trazê-lo para o âmbito das “pretensões judicializáveis”. Exemplo disso são os temas já judicializados sob a nova égide constitucional: pesquisa com células tronco de embriões (ADI 3510-DF); liberdade de expressão e racismo (HD 82424- DF); a questão das cotas raciais ADI 3330-DF), dentre outras.

51 Nos outros países, essa nova perspectiva foi introduzida pelos tribunais superiores (LOPES FILHO, 2014, p. 75).

52 Há que se diferenciar, entretanto, judicialização de ativismo judicial: essa atividade é um modo escolhido de interpretar a Constituição, já a judicialização é uma escolha de funcionamento para o constitucionalismo brasileiro (BARROSO, 2012, p. 372).

53 Nesse sentido, o Enunciado 170 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art 927 são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a ele submetidos”.

54 Didier, Braga e Oliveira (2015, p. 441) afirmam ser o precedente, em sentido estrito, a própria ratio decidendi.

55 Literalmente, significa “dito de passagem”.

56 O plural de obter dictum é obter dicta.

57 Nos termos em que é usado pelo art. 489, §1º, V, in verbis: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial [...] que: V- se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

58 Nos termos em que é usado no art. 489, §1º, VI, já transcrito acima.

59 Método de superação do precedente em que a ratio decidendi é eliminada e substituída por outra.

60 In verbis, art. 927 − §2º: A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese; §3º: Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica; §4º: A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

61 Que, na verdade, já ocorria sob a égide do sistema anterior.

62 Fundamentar uma decisão, segundo Nelson Nery Jr., significa “dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira”.

63 Art.93, IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade...

64 Art. 458. São requisitos essenciais da sentença: II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito.

65 Nesse sentido, o Enunciado 459 do FPPC: “as normas sobre fundamentação adequada quanto à distinção e superação e sobre a observância somente dos argumentos submetidos ao contraditório são aplicáveis a todo o microssistema de formação dos precedentes”.

66 Art. 5º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança...”.

67 O cerne do pensamento dessa Escola é a crença de que todo o Direito deveria estar expresso em leis e que os juízes deveriam se ater a uma interpretação meramente literal destas.

68Apesar de o Brasil contar, atualmente, com um acesso muito mais facilitado aos repositórios de julgados, tanto impresso como eletrônico. Nos Estados Unidos, por exemplo, era comum nos grandes escritórios diversos volumes impressos de precedentes das Cortes. 


Publicado por: IONARA MELO DE AQUINO PEREIRA

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