O RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DOS ANIMAIS SOB A LUZ DO DIREITO COMPARADO

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1. RESUMO

A presente monografia tem como objetivo realizar estudos dentro da seara cível, subsidiariamente à área constitucional, correspondentes aos direitos da personalidade, os direitos dos animais e o instituto do direito comparado. Para tanto, analisar-se-á um breve histórico a respeito da evolução da relação homem-animal, o positivismo desta, as formas que o restante do mundo trata essa correlação, bem como a vertente que a Suprema Corte brasileira vem seguindo sobre o tema. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de natureza qualitativa, utilizando-se do método dialético, baseando-se em aspectos sociais, políticos e culturais. Até 2002, ano do nosso Código Civil, o legislador não se ateve ao cuidado de estabelecer um tratamento próprio para os animais, vinculando estes, até hoje, ao capítulo das coisas. Mais de dezessete anos depois, não se justifica perdurar este entendimento, que vai na contramão do restante do mundo. No mais, a ciência já esclareceu e classificou os animais que não-humanos como seres sencientes, ou seja, possuem capacidade de sentir. Sendo assim, estes possuem interesses próprios e devem ser reconhecidos como sujeitos ativos de direitos, afastando a visão antropocêntrica pura que engloba objetos, coisas e animais no mesmo patamar em nosso Código Civil. Portanto, se faz necessário corrigir esta injustiça, tendo os humanos o dever de colocar seus conhecimentos aos serviços dos animais, conforme determina a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, passando finalmente a reconhecer os animais como detentores de uma personalidade jurídica própria, visando impedir que a tirania do antropocentrismo desenfreado continue prejudicando os interesses dos mesmos.

Palavras Chaves: Direito Civil. Direito Comparado. Personalidade Civil. Direito dos Animais. Antropocentrismo. Biocentrismo.

ABSTRACT

The monograph aims to carry out the studies within the crop, to subsidize the constitutional area, to correspond to the rights of the person, animal rights and the institute of comparative law. In order to do so, we should analyze a brief history about the respect of how this man-animal relationship, its positivism, as if it were the rest of the world as a person, as well as a section on the Brazilian Supreme Court has been following on the subject. It is a bibliographical research of a qualitative nature, using the dialectical method, based on social, political and cultural aspects. Until 2002, the Civil Code year, the legislator does not take care of establishing a proper programming for the animals, linking them, until today, to the chapter of things. More than seventeen years later, there is no justification, to endure this understanding, which goes against the rest of the world. In addition, science has already clarified and classified animals as human beings as human beings, that is, they have the ability to feel. Therefore, those who own are the rights that should be reserved, people and animals are not thresholds in the code. Therefore, if they did, they felt they were subject to this injustice, thus having the purpose of informing themselves about the animals, according to the determination of a universal of the Rights of the Animals, for now. The tyranny of unbridled anthropocentrism continues to undermine their interests.

Keywords: Civil Law. Comparative Law. Civil Personality. Animal Rights. Anthropocentrism. Biocentrism.

2. INTRODUÇÃO

A relação dos humanos com os demais animais é tão antiga que chega a ser retratada até mesmo nas pinturas rupestres. Esse relacionamento sempre foi observado sob uma ótica antropocêntrica pura, na qual os animais são utilizados para os fins humanísticos, de acordo com o entendimento de que seria o homem um ser superior em comparação ao restante dos animais.

Ocorre que atualmente essa visão é obsoleta. O Direito Ambiental moderno, o qual hoje possui normas elevadas ao status constitucional, rompe com as correntes jurídicas do antropocentrismo descontrolado.

Assim, pode-se afirmar que a Constituição Federal adota um antropocentrismo alargado, o qual prevê um direito ao meio ambiente equilibrado, mas ainda sobre a premissa de assegurar a sobrevivência humana.

Infelizmente, o Código Civil em vigor encontra-se defasado, pois, ainda contempla uma lógica antropocêntrica pura. Neste contexto, a pessoa (seja ela natural ou jurídica) ainda é a única capaz de possuir direitos da personalidade como o direito à vida e à integridade física. Os animais não-humanos erroneamente são classificados como meros objetos.

Em contrapartida, uma nova vertente, chamada de biocêntrica, passa a enxergar o ser humano como parte da natureza, sendo esta detentora de direitos intrínsecos, deixando o homem de ser o único sujeito de direitos.

Conforme diversas descobertas científicas, os animais são seres sencientes, ou seja, possuem sensações. Dito isto, conclui-se que estes estão mais próximos dos humanos, ao passo que sentem, dispõe de sistema nervoso, detém variados níveis de comunicação, do que de simples objetos.

Em detrimento disto, alguns países que adotam o sistema Civil Law passaram a promover alterações em seus códigos, a fim de abordar de maneira mais coerente a classificação dos animais e seus direitos, chegando a reconhecer os mesmos como detentores de certos direitos da personalidade.

Estando esses direitos dos animais inseridos no direito ao meio ambiente equilibrado, pode-se afastar algumas limitações fronteiristas e utilizar-se de suas previsões legislativas para adequar o nosso Código Civil a realidade dos fatos, com base nas diretrizes da disciplina jurídica do direito comparado.

Para tanto, primeiramente, pontuar-se-ão alguns fatos filosóficos e históricos que levaram a atual classificação disposta no Código Civil. Ainda, será explicado sobre a corrente que se contrapõe ao antropocentrismo, o biocentrismo, bem como a maneira que essas duas vertentes influenciam a Constituição Federal.

Em seguida, serão abordadas as classificações dos animais humanos e não-humanos no direito civilista brasileiro. Da mesma maneira, encontrar-se-ão demonstradas as atuais correntes acerca dos direitos dos animais.

Estarão apresentadas as mudanças legislativas dos países Alemanha, Áustria, França e Suíça que visam a reclassificação dos animais no código civil dos respectivos países, bem como seus reflexos no ordenamento jurídico.

Por fim, serão retratadas alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal acerca da pauta animal através dos anos, apontando qual corrente a Suprema Corte adota.

O propósito é propor o equilíbrio de um tripé dos direitos dos animais no ordenamento pátrio, fazendo jus aos não-humanos, protegendo-os não mais apenas nas searas criminal e constitucional, como também na cível, ao promover o reconhecimento da personalidade jurídica dos mesmos.

Para tal, a hermenêutica das normas do Código Civil deve ser interpretada não de maneira antropocêntrica pura, e sim com nuances biocêntricos, conforme uma nova tendência mundial.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de natureza qualitativa, por meio de livros, legislações nacionais e estrangeiras, dissertações de mestrado, teses de doutorado, periódicos e notícias jornalísticas, utilizando-se do método dialético, baseando-se em aspectos sociais, políticos e culturais.

3. A INFLUÊNCIA DO ANTROPOCENTRISMO NO DIREITO BRASILEIRO   

O fato do Brasil ter sido uma colônia de Portugal até a sua Independência, em 1822, nos levou a sofrer uma forte influência do direito canônico, além de ter em seu território disseminadas considerações de grandes pensadores europeus. Portanto, faz-se necessária uma breve análise sobre a influência de fontes filosóficas e históricas para assim entendermos a legislação em vigor.

3.1. UMA ANÁLISE FILOSÓFICA

Sendo a Grécia Antiga o berço da civilização ocidental, é evidente a forte influência de seus filósofos e escolas filosóficas no ordenamento jurídico brasileiro. Dentre eles, certamente se destaca Aristóteles.

Em sua teoria finalista, Aristóteles aponta a ocorrência de quatro causas para a existência das coisas: a causa material, ou seja, do que é feita a coisa; a causa formal, qual a forma da coisa; a causa eficiente, o que dá origem a coisa; e, por último, a causa final, sendo a função da coisa. Assim, todas as coisas, aqui também incluídas as pessoas, têm uma finalidade, sendo esta disposição requisito para o alcance da felicidade, que por sua vez só é possível quando todos cumprem o seu encargo. Essa teoria surgiu através do estudo da Teleologia, palavra derivada do grego telos, o qual significa "o que é perfeito".

Então, para Aristóteles, a felicidade, que deveria ser o único objetivo do homem, só é alcançada quando este modelo supracitado está em harmonia. Portanto, o mesmo acreditava que os animais, assim como os escravos, deveriam ser usados para servir ao homem, uma vez que "o uso dos escravos e dos animais é mais ou menos o mesmo e tiram-se deles os mesmos serviços para as necessidades da vida" (ARISTÓTELES, 1252a - 1260b, p. 15), pois, seria esta a sua causa final, a sua função, a qual, consequentemente, traria felicidade para a sociedade. Para Aristóteles, seria do interesse dos animais servirem de alimento aos homens, por exemplo, pois, esta seria a sua função:

Da mesma forma, a natureza proveu as suas necessidades depois  do nascimento; foi  para  os  animais  em  geral  que  ela  fez  nascerem  as  plantas;  é aos  homens  que  ela destina  os  próprios  animais,  os  domesticados  para  o serviço e para a alimentação, os selvagens, pelo menos a maior parte, para a alimentação  e  para  diversas  utilidades,  tais como  o  vestuário  e  os  outros objetos que se tiram deles. A natureza nada fez de imperfeito, nem de inútil; ela fez tudo para nós. (ARISTÓTELES, 1252a-1260b, p. 20).

Ainda, em sua filosofia da natureza, Aristóteles divide a escala da natureza em duas categorias: a das coisas inanimadas, como, por exemplo, as pedras, e das coisas animadas, as quais seriam inerentes a possibilidade de se alterarem. As coisas animadas se subdividem entre reino vegetal e os demais seres vivos, ou seja, animais e homens.

No topo dessa escala estaria o homem, o responsável por reunir toda a vida da natureza, pois "o homem cresce e alimenta-se, tal como as plantas, têm sensações e a capacidade de se mover, tal como os animais, mas, além disso tem uma característica muito particular, que só o homem possui: a capacidade de pensar racionalmente" (COSTA, 2015).

Esse tipo de mito filosófico não mais se sustenta. A escravidão de um homem por outro passou a ser vista como algo inaceitável pelas civilizações ocidentais modernas, apesar de ter sido praticada por décadas como algo comum.

Da mesma maneira, não há mais a possibilidade de basear o tratamento dado aos animais nessa teoria, pois "hoje, a ciência já não pensa assim. Dizemos que a alimentação e a umidade são condições para que os homens e os animais possam viver. Sem estas condições, nós não existiríamos. Não é de intenção das laranjas ou da água alimentarem-nos." (GAARDER, 2012).

Na mesma linha de raciocínio é necessário também levar em consideração a desconstrução da teoria de René Descartes sobre os animais não humanos. Descartes, em sua obra "O Mundo ou Tratado da Luz/O Homem", foi oposição à visão escolástica segundo a qual toda criatura viva é dotada de alma, seja vegetativa, sensitiva ou racional.

Para ele, os animais seriam criaturas dotadas de movimentos corpóreos mecânicos (autômatos), tal qual uma máquina, criados de forma artificial, não possuindo sensações. Acreditava que animais não-humanos "efetivamente não pensam e, mais que isso, não tem consciência sensorial", portanto, "não sentem prazer e nem dor" (ROCHA, 2004), não sendo, assim, seres conscientes. A teoria cartesiana sustenta a tese da ausência de pensamento nos animais, baseado na falta de linguagem dos mesmos.

Para Descartes, os animais estão limitados ao instinto, sendo essa a única razão deles desviarem de situações dolorosas, por exemplo, enquanto o homem recebe o estímulo, através da percepção envia uma resposta a esse estímulo e, por último, apresenta um juízo sobre o estímulo, ou seja, um pensamento. Ainda, as sensações humanas estariam ligadas a uma unidade misteriosa.

Hoje já sabemos que os animais possuem linguagem própria, diferente do que afirmava Descartes. Além, não é justo explicar que as sensações dos homens surgem de uma "unidade misteriosa" enquanto que as dos animais são explicadas através de estímulos fisiológicos, uma vez que os brutos, como chamava Descartes, possuem um sistema nervoso semelhante ao dos homens, principalmente os mamíferos e aves. Por último, a teoria da evolução nega a criação artificial de alguma espécie.

Consolidando ainda mais o pensamento antropocêntrico, temos o pensador Immanuel Kant. Este foi influenciado por Thomas Hobbes, o qual, com sua teoria contratualista, acreditava que só possuiriam direitos aqueles que também possuíssem deveres.

Vale frisar que, na época da teoria kantiana, Rousseau já havia alertado para os perigos do contratualismo, principalmente em relação aos governos absolutistas, determinando que os direitos morais independem da capacidade obrigacional. Portanto, sendo os animais seres sensíveis, como já eram reconhecidos à época, era obrigação do homem protegê-los.

Assim, a teoria kantiana reconhece os animais como seres sencientes, capazes de sofrer, mas que estes seriam instrumentos do homem. Não haveria nenhuma obrigação moral direta para com os animais. Caso houvesse alguma obrigação, seja moral ou legal, esta seria ligada aos homens, ou ao dono do animal, pois, estes "não possuem autoconsciência e existem meramente como meios para um fim" (FAUTH, 2015).

Em contrapartida, temos o filósofo iluminista Jeremy Bentham, o qual acreditava que a capacidade de sofrimento seria a característica vital para a concessão de direitos iguais a um ser. Por exemplo, uma cadeira não possui interesse em não ser chutada, pois, isto não lhe causa mal-estar. Já um gato possui interesse em não ser chutado, pois, isto lhe causaria sofrimento. O sofrimento determina o interesse do ser. Assim, concluiu que "independente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante" (SINGER, 2010, p. 24).

Essa capacidade de sofrimento está dentro do conceito de senciência, o qual trata de sinais comportamentais, como gemidos, contorções, demonstração de medo, etc., como resposta do sistema nervoso dos animais, que, como dito anteriormente, se assemelha muito com o dos humanos, uma vez que apresenta as mesmas respostas fisiológicas em situações que causam dor, por exemplo. Exposto à sensação de dor, os animais, humanos e não-humanos, apresentam um aumento da pressão sanguínea, pupilas dilatadas, pulso rápido, etc. Os pensamentos racionais atribuídos à espécie humana estão relacionados ao córtex cerebral mais desenvolvido, enquanto as sensações são providas pelo diencéfalo, bem desenvolvido também nos animais.

Modernamente, o filósofo Peter Singer, autor do livro "Libertação Animal", defende, em resumo, um mundo com menos sofrimento, devendo o homem parar de fazer aos animais coisas desnecessárias, longe do especismo.

Apesar de suas diferenças, Singer usa como parâmetro, mais uma vez, os argumentos daqueles que, antigamente, defendiam a escravidão dos negros. Estes acreditavam que aqueles que possuíam um grau elevado de inteligência poderiam utilizar-se dos outros humanos para os seus fins. Não sendo mais aceito esse argumento hoje nas relações humanos x humanos, inclusive o código civil preocupa-se em proteger o lado mais fraco da lide, como nas relações de consumo, por exemplo, como podemos ainda aceitá-lo até hoje quando se trata de relações humanos x animais?

Este é um exemplo de especismo, o qual se trata de "um preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies" (SINGER, 2010, p. 23).

3.2. UMA ANÁLISE HISTÓRICA

É bem verdade que a relação humana com os demais animais é tão antiga que chega a ser retratada nas artes rupestres encontradas. Ainda, deve-se notar que este vínculo é anterior a qualquer visão filosófica, política, econômica e ideológica.

Entretanto, analisaremos a partir do momento em que os humanos passaram a dominar a agricultura e pecuária, após a Idade da Pedra, e organizaram-se em sociedade.

O fato do homem exercer uma governança em detrimento aos demais seres por conta de sua racionalidade, associado ao desenvolvimento das religiões, levaram à crença de serem os humanos os representantes, a imagem e semelhança, de um deus na Terra.

Consequentemente, estariam os animais, seres sem alma imortal, intelecto e livre arbítrio, destinados a servirem os fins humanos (alimentação, locomoção, trabalho de tração animal, vestuário, diversão, etc.).

O cristianismo pregava a submissão dos demais animais ao homem, tendo seus pensamentos difundidos durante toda a Europa durante a Idade Média (séculos V — XV), por conta das grandes cruzadas.

Baseado na colonização europeia de Portugal, o catolicismo foi considerado a religião oficial do Brasil até o período do Brasil Império, em 1891, estando os princípios cristãos vividamente presente em nossas leis, como reflexo dos anseios da população brasileira, pois, até hoje somos considerados o maior país católico do mundo.

Outro momento histórico a ser considerado, até mesmo por se tratar de um divisor de águas na história mundial, foi o movimento iluminista francês, responsável por findar o teocentrismo substituindo-o de vez pelo antropocentrismo. Os pensadores e filósofos do século das luzes, XVIII, influenciaram Napoleão Bonaparte em seu Code Civil des Français (1804).

A lei posta sob o ideal humanista pressupõe um homem livre e supremo, feito no molde de barro do próprio Criador, apto a conquistar as profundezas do oceano e as geleiras antárticas, a governar todos os outros seres e lhes impor seus desígnios, a conduzir o planeta para o seu reinado soberano. E toda essa pretensiosa construção humanista se ergueu — tome-se emprestado aqui um fragmento bíblico — sobre areia e não sobre a rocha (...). (MIGLIORE, 2010, p. 72).

Assim, houve o positivismo do antropocentrismo, o qual deixava de ser uma ideal, de existir no mundo das ideias, passando a ser respaldado por lei. O que não influenciou apenas a França, ou os países Europeus, em geral, como também todos os códigos civis da América.

Não é por acaso nosso Código Civil ser tão extenso. Conforme observou Migliore (2010, p. 71), "leiam-se os artigos 1º (pessoas), 79 (bens imóveis) e 82 (bens móveis) do Código Civil em vigor e se terá́ a mais absoluta certeza de que a lei que governa o homem não excluiu de sua tutela nenhum dos seres animados ou inanimados".

Por fim, há de se analisar o contexto histórico da aprovação do Código Civil vigente. Seu projeto começou a ser escrito pelo jurista Miguel Reale ainda no período da Ditadura Militar do Brasil, mais precisamente em 1969, durante o governo Figueiredo. Por conta da aprovação da Constituição Federal de 1988, este projeto precisou ser modernizado.

Apesar das previsões constitucionais, praticamente não houve mudanças significativas entre os Códigos de 1916 e 2002 quanto ao tratamento dado aos animais não humanos. O fato do país ter passado por uma ditadura militar seguindo por um período de grande inflação e desemprego incutiu na sociedade e, consequentemente, nos políticos e juristas da época, a preocupação de termos leis que se preocupam com o desenvolvimento econômico da nação.

No que concerne ao movimento protecionista ambiental moderno, é indelegável a marca da ameaça econômica. (...) É como se houvesse o estabelecimento de uma relação pendular desequilibrada entre ambiente e desenvolvimento econômico e exploração, principalmente no que se refere à indústria. (MEDEIROS, F.; ALBUQUERQUE, L., p. 04).

Não se pode negar que os animais são fatores importantes na economia de um país. O reconhecimento destes como sujeitos de direitos, por exemplo, causa um grande impacto na produção, principalmente em um local como o Brasil, o qual tem como base da sua economia a agropecuária.

Observou Gusmão (2006, p. 23), em sua obra Filosofia do Direito, que, "no entanto, se por um lado, essas ideias, no Campo do Direito Civil, atenderam às exigências da ordem econômica, por outro, possibilitaram graves injustiças, expondo o homem a risco de toda ordem".

3.3. BIOCENTRISMO

O antropocentrismo é a ideia de que o homem está no centro de tudo, devendo todas as relações do universo serem observadas da perspectiva humana, estando a natureza, animais e tudo mais que existe ao dispor deste. Opondo-se a este ideal, temos o conceito moderno de biocentrismo, o qual consiste no entendimento de que todos os seres são igualmente importantes. Singer (1975) começa sua obra "Libertação Animal" nos lembrando que igualdade aqui se dá em sua forma material,

há importantes diferenças óbvias entre os humanos e os outros animais, e estas diferenças devem traduzir-se em algumas diferenças nos direitos que cada um tem. Todavia, o reconhecimento deste fato não constitui obstáculo à argumentação a favor da ampliação do princípio básico da igualdade aos animais não humanos. (SINGER, 2010, p. 20).

O biocentrismo tem como principal característica a rejeição de diferença no tratamento entre seres humanos e não humanos. Assim, a natureza é sujeita de direitos, possuindo esta um valor intrínseco, de acordo com as diretrizes do Direito Ambiental, o qual "impõe uma ruptura ao antropocentrismo exacerbado para se reconhecer o ser humano como parte integrante da natureza, e não como único titular de direitos" (SÉGUIN, 2006, p. 13).

Este se divide em mitigado e global. Para o biocentrismo mitigado, é sujeito de direito aquele que tem vida, ou seja, possui ponto de vista sobre a própria vida, e também tem sensações, que consiste na carga valorativa atribuída às ações.

O filósofo Tom Regan, especialista em defesa dos direitos dos animais, afirma que a expressão "ponto de vista" aqui é conferido àquele que "possuir identidade psicofísica, ter capacidade de desejos e atuar com objetivo" (JUNGES, 2001, p. 40), como, por exemplo os mamíferos com um ano de vida. Por esse motivo os animais não podem ser reduzidos a objetos, coisas, merecendo respeito por justiça, não por compaixão.

Portando, o Código Civil brasileiro revela-se ultrapassado, baseado em ideais refutados e desmentidos a anos pela ciência,

a lei passou a ser para o jurista, formado pelas Universidades pragmáticas — no sentido negativo do vocabulário — a autoridade única, o dogma. Não 'enxergam um palmo' além dos códigos. E o código é a vontade histórica do Estado ou de maiorias parlamentares, e não da sociedade. (GUSMÃO, P., 2006, p. 04).

A teoria da evolução, de Charles Darwin, autor do livro "A Origem das Espécies", se contrapôs ao criacionismo, ou seja, ao entendimento visto anteriormente que as espécies foram criadas por um ser superior, um deus, sendo elas imutáveis e tendo o homem como o ser mais evoluído, escolhido por esse criador.

Segundo Darwin, as espécies passaram por uma seleção natural, sobrevivendo os que conseguiam se adaptar às mudanças ambientais. Sendo assim, não há no que se falar que determinada espécie é superior a outra, pois, todos descendem de ancestrais em comum.

Nada pode parecer tão cedo mais difícil de crer que o que os órgãos e instintos mais complexos se formaram, não por meios superiores - ainda que análogos - à razão humana, senão pela acumulação de inúmeras pequenas variações, cada uma delas boas para o indivíduo que a possuía.

(...)

Dentro da teoria de que as espécies são só variedades muito assinaladas e permanentes, e de que cada espécie existiu primeiro como variedade, podemos compreender por que não se pode traçar uma linha de demarcação entre as espécies, que se supõe geralmente que foram produzidas por atos especiais de criação, e as variedades, que se sabe o foram por leis secundárias. (DARWIN, C., 1809-1882, p. 422-430).

Figura 01: Árvore Filogenética Provável dos Antropóides.

 

Fonte: ENEM, 1998.

Essa é a teoria em que a comunidade científica se baseia. Até mesmo no interior da Igreja Católica, defensora ferrenha do criacionismo, temos figuras que defendem os direitos dos animais, como Francisco de Assis e, mais recentemente, o Papa Bento II e o Papa Francisco, tendo o último deste declarado em 2014, durante uma audiência no Vaticano que discutia o tema vida após a morte, que todos os animais serão "recebidos no paraíso", o que acaba por derrubar o pensamento visto aqui anteriormente de que os animais são inferiores por não possuírem alma.

Entretanto, o pensamento antropológico consegue se sobressair há anos, não somente entre os leigos, como entre os juristas e demais pensadores das ciências sociais. O motivo é simples: é extremamente conveniente para os seres humanos.

Durante algum tempo também foi conveniente acreditar que as mulheres eram seres inferiores, bem como os escravos. As lutas sociais históricas conseguiram vencer esses e outros entendimentos ultrapassados.

Quando se trata de animais não humanos, não podendo estes lutar socialmente, como os exemplos citados acima, cabe aos humanos, fazendo uso de sua racionalidade, ou seja, as descobertas científicas modernas que reconhecem o animal como ser senciente, lutar pelo reconhecimento dos direitos animais.

3.4. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: BIOCÊNTRICA OU ANTROPOCÊNTRICA?

Temos uma Constituição Federal que é referência mundial, sendo uma das primeiras do mundo a incluir em seu texto uma preocupação expressa com o meio ambiente, passando as normas de direito ambiental a possuírem status constitucional.

Em seu artigo 225, § 1o, VII, nossa Carta Magna veda "as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade". Assim, o legislador preocupou-se em tutelar todos os animais, sejam domésticos, selvagens, de produção, etc., reconhecendo que estes animais são dotados de sensibilidade, devendo todos respeitar a vida, a integridade física e a liberdade corporal dos mesmos, o que é diferente da vontade deliberada do dono do animal.

Essa proteção constitucional é tão importante que é reconhecida até mesmo na esfera penal, considerada a ultima ratio do direito, na Lei 9.605 de 1998, a lei contra maus tratos. Mais uma evidência que o código civil é antiquado.

Entretanto, o caput do mesmo artigo citado anteriormente diz que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações", é evidentemente de caráter antropocêntrico, uma vez que é feito para o homem e para servir ao homem, pois, entende o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, que "meio ambiente" é uma "expressão constitucional que assiste à generalidade das pessoas".

Ora, esse entendimento é flagrantemente controverso. Apenas o ideal baseado no biocentrismo é capaz de assegurar esse direito ao meio ambiente equilibrado, como prevê literalmente a constituição. Enquanto o Supremo mantiver esse entendimento, não passará de mais uma norma de caráter programático da nossa constituição, para não dizer de caráter utópico.

4. SERES HUMANOS E ANIMAIS NO ÂMBITO DO DIREITO CIVIL

Para propormos possíveis mudanças ao nosso Código Civil, a fim de fazer justiça aos animais, ao reconhecer uma personalidade jurídica aos mesmos, ainda que parcial e limitada, a certos direitos inatos, trataremos da forma que os animados não-humanos estão inseridos no nosso ordenamento jurídico.

O homem se diferencia dos demais seres animados no código civil. Senão, vejamos:

Os racistas violam o princípio da igualdade, atribuindo maior peso aos interesses dos membros da sua própria raça quando existe um conflito entre os seus interesses e os interesses daqueles pertencentes a outra raça. Os sexistas violam o princípio da igualdade ao favorecerem os interesses do seu próprio sexo. Da mesma forma, os especistas permitem que os interesses da sua própria espécie dominem os interesses maiores dos membros de outras espécies. O padrão é, em cada caso, idêntico. (SINGER, P., 1975, p. 25).

Portanto, o homem cuida em positivar, mais uma vez, o especismo, o qual permite que o ser humano domine os seres não-humanos.

4.1. DIREITOS DA PERSONALIDADE

A personalidade jurídica é concedida à toda pessoa que nasce com vida. É definida por Pablo Stolze (2012, p. 108) como a "aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito".

O Código Civil de 2002, já em seu artigo primeiro, nos traz que "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". Essa capacidade, chamada de capacidade jurídica, trata-se justamente da aptidão para titularizar direitos. Pode ser dividida entre: capacidade de direito ou gozo, sendo a competência para aquisição de direitos, concedida a todo ser humano; e a capacidade de fato, a qual corresponde à disposição de exercer os atos a vida civil por si só.

A pessoa, chamada pela doutrina como pessoa natural, é sujeito nas relações jurídicas. Sujeitos são aqueles que "atuam, exigem, contratam, possuem e têm (no sentido de apropriação)", segundo Migliore (2012, p. 120).

Os animais não são vistos como, segundo Monteiro (Gonçalves, 2011 apud Monteiro, p. 58), "sujeitos de direitos, embora mereçam proteção. Por essa razão, não têm capacidade para adquirir direitos. Não podem, por exemplo, ser beneficiados em testamento, a não ser indiretamente, sob a forma de encargo, imposto a herdeiro testamentário, de cuidar deles".

O Código Civil vigente, influenciado pelo modelo contratualista, já citado anteriormente, exclui os animais da categoria onde são inseridos os sujeitos, uma vez que não reconhece a ideia de direitos e deveres em relação aos mesmos.

Os direitos da personalidade correspondem àqueles inerentes, sendo eles inalienáveis, possuindo origem no direito natural, como o direito à vida e à liberdade. Não obstante, a sua fonte no direito natural, os direitos da personalidade merecem proteção na ordem jurídica.

Tanto é que a própria Constituição Federal de 1988 se refere a eles e à sua proteção em seu artigo 5°, inciso X, ao prevê que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Para Amaral (Gonçalves, 2011 apud Amaral, p. 243), os direitos da personalidade são "direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual".

Os direitos da personalidade podem ser divididos entre: inatos, como, por exemplo, a vida e a integridade física e moral; e adquiridos, sendo aqueles advindos de um status individual assimilado ao decorrer da vida, como, por exemplo, o direito ao nome.

A escola positivista defende que a personalidade decorre da concepção jurídico-normativa, e não da realidade psicofísica, sendo contra a existência dos direitos da personalidade inatos. Em contrapartida, a escola naturalista defende a existência desses direitos inerentes, sendo esta última a escola acatada e reforçada pela doutrina, alertando que cabe ao Estado apenas reconhecer os direitos da personalidade inatos e sancioná-los, a fim de propiciar uma proteção contra o arbítrio do poder público e contra as invasões de particulares.

As características dos direitos da personalidade encontram-se presentes, em rol exemplificativo, no artigo 11, do Código Civil, o qual nos traz que estes são: intransmissíveis e irrenunciáveis, o que significa dizer que são indisponíveis, ao passo que não se pode dispor deles, renunciá-los, transmiti-los ou abandoná-los, a não ser que essas limitações sejam de caráter transitório e não geral, já que, de acordo com o Enunciado 4, da I Jornada de Direito Civil, a indisponibilidade aqui é relativa.

Ainda, podemos dizer que os mesmos são, em regra, ilimitados, imprescritíveis (não se extinguem), absolutos, impenhoráveis, vitalícios e inexploráveis.

O capítulo novo dedicado aos direitos da personalidade no nosso Código Civil disciplina os mesmo da seguinte forma: atos das disposições do próprio corpo (artigos 13 e 14); não submissão a tratamento médico de risco (artigo 15); direito ao nome e pseudônimo (artigos 16 a 19); proteção à palavra e à imagem (artigo 20); proteção da intimidade (artigo 21).

Já o artigo 12 do mesmo instituto protege os direitos da personalidade contra ameaças ou lesões, prevendo a possibilidade de reclamar perdas e danos, além de outras sanções previstas em lei.

O artigo 52 do capítulo em questão determina que se aplica, no que couber, os direitos da personalidade às pessoas jurídicas.

Tudo se resume em conservar a dignidade, mas apenas da pessoa humana. Mesmo por serem os atuais direitos da personalidade, frutos da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tanto é que tais direitos são divididos em três dimensões: a primeira corresponde à liberdade; a segunda à igualdade, como os direitos sociais; e, por último, a terceira à fraternidade. Tal qual o lema da Revolução Francesa: liberté, egalité, fraternité. Aqui, a vida humana é o bem supremo. Exclui-se, portanto, os animais deste contexto. E, então, prossegue a dúvida: qual a natureza jurídica dos animais?

4.2. ANIMAIS COMO OBJETOS NAS RELAÇÕES JURÍDICAS

Já os objetos são aqueles passíveis de domínio, de apropriação, pelo homem, segundo uma finalidade social, onde hoje são inseridos os animais.

Os animais são considerados bens móveis por natureza. Segundo Clóvis Beviláqua (2003, p. 166) bens móveis por natureza “são os bens que, sem deterioração na substância, podem ser transportados de um lugar para outro, por força própria ou estranha". Ainda, classificamos os animais como seres semoventes, por serem dotados de movimento próprio.

Conforme o Código Civil vigente o animal possui status de coisa, ou seja, é um bem que possui expressão econômica, portanto, passível de apropriação pelo ser humano. De acordo com o artigo 1.228 da lei civil, o direito de propriedade se exerce através da facultatividade de usar, gozar e dispor da coisa, ainda que não seja este ilimitado.

Assim, qualquer relação entre homem e animal não passará de caráter patrimonial, antes baseado em um direito divino, depois natural e, por fim, civil:

Estabelece-se, ainda hoje, entre o homem e seu labrador de nome Marley — para usar a alegoria do livro, que virou filme, e ficou famoso —, sob o ponto de vista estritamente jurídico, nada além de um vínculo de propriedade daquele sobre este, um jus in re. Ainda que seja fácil perceber que entre ambos há algo além dessa relação de ocupação, presa e apreensão, quiçá um sentimento mútuo de afeto, companheirismo, ou pouco importa o quê, o Direito — quantas e tantas vezes — ignora tal fato para, ironicamente, transformar um cão de estimação em algo similar a um tapete persa, uma escrivaninha, uma colher ou um colar de diamantes. E os objetos inanimados sequer possuem células e, por óbvio, DNA (que, em boa parte, coincide com o nosso)! (MIGLIORE, 2010, p. 122).

Demonstra-se, portanto, que a nossa lei civil, ao determinar apenas duas esferas de regularização das relações jurídicas, o de bens para objetos e o de pessoas para sujeitos, despreza os sujeitos de direitos, com previsão constitucional, que não são pessoas, ou seja, os animais.

4.3. NOVAS TEORIAS ACERCA DA PERSONALIDADE JURÍDICA DOS ANIMAIS

Tom Regan indicou três concepções pelas quais o ser humano interage com os não humanos. A teoria conservadora seria a usada pelo nosso sistema atual, flagrantemente antropocêntrica e colocando os animais como objetos nas relações jurídicas, garantindo apenas o mínimo possível de direitos aos mesmos.

Já a teoria utilitarista, defendida pelo filósofo Peter Singer, pondera um protecionismo utilitário, assim, o homem pode continuar a usar o animal, como um meio para um fim, mas de forma limitada. Portanto, o bem-estar dos animais estaria acima dos direitos e interesses individuais do homem. Para Singer deve-se levar em consideração o princípio da igual consideração dos interesses, com base numa ordem moral, fundamentado no respeito, no valor intrínseco da vida e na compaixão ao sofrimento alheio:

Preconiza o tratamento humanitário e a eliminação do sofrimento desnecessário, com certa precaução relacionada à regulamentação da exploração dos não-humanos, pois, sendo considerados como meios para alcançar os fins humanos são, por isso, passíveis de serem apropriados pelos homens, como coisas ou objetos. (RODRIGUES, 2012, p. 205-206).

Aqui o que se aprecia é o sofrimento imposto. Para a teoria do bem-estar é possível o homem utilizar o animal, por exemplo, em uma pesquisa científica, contanto que o faça da maneira que acarrete menos sofrimento ao "objeto" do estudo.

Assim, essa corrente reafirma uma ética antropocêntrica, ao mesmo tempo, que a limita, ao passo que repudia a crueldade, a fim de preservar os interesses econômicos e dar uma resposta às exigências sociais, já que o primeiro não conseguiria seguir sem uma concessão à segunda.

Podemos observar esse pensamento na Declaração Universal dos Direitos dos Animais, de 1978, por conta do período de sua edição, logo após o lançamento do livro "Libertação Animal", escrito pelo mesmo precursor desta teoria:

ARTIGO 1:

Todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência.

ARTIGO 2:

a)Cada animal tem direito ao respeito.

b)O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais, ou explorá-los, violando esse direito. Ele tem o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais.

c)Cada animal tem direito à consideração, à cura e à proteção do homem.

ARTIGO 3:

a)Nenhum animal será submetido a maustratos e a atos cruéis.

b)Se a morte de um animal é necessária, deve ser instantânea, sem dor ou angústia. (BRUXELAS, 1978).           

Em síntese, o fato dos animais serem sujeitos de direitos não leva em consideração sua capacidade de falar, como acreditava Descartes, ou pensar, mas sim sua capacidade de sofrer:

Se eu perguntar a alguém: 'Por que não devo queimar seu braço com ferro em brasa?', o que me responderia essa pessoa? Diria ela: 'Porque eu sou inteligente'? Ou diria 'Porque eu tenho grande habilidade de comunicação'? Ou ainda 'Porque existe um acordo tácito entre nós para que não causemos dano um ao outro'? Investigar essa pergunta talvez seja uma forma simples de resumir os argumentos em favor dos Direitos Animais. (MULLER, B., 2010).

Por último, temos a Teoria Reformista, defendida por Tom Regan, que retrata uma ruptura total com o antropocentrismo, se opondo totalmente ao utilitarismo, vendo a vida e a liberdade como os bens mais importantes a serem preservados.

Para esta corrente não há diferença entre as espécies que sustente uma valoração menor do conceito de vida. Portanto, os animais são possuidores de direitos de caráter absoluto, equiparando-se ao reconhecimento de concessão de direitos humanos fundamentais àqueles que detêm uma menor consciência reflexiva e gozando de um bem-estar limitado, como, por exemplo, as pessoas que se encontram em estado vegetativo, uma vez que, de acordo com Araújo (Araújo, 2003) "o respeito aos interesses dos não-humanos não pode ficar dependente de reavaliação de interesses ou de definições do que seja o bem-estar".

Há, portanto, a busca pelo reconhecimento dos direitos morais básicos dos animais. Aqui, os animais, assim como o homem, são um fim em si mesmo, não um objeto com caráter utilitário, contrariando o entendimento kantiano, visto anteriormente, sendo possuidores de certos direitos da personalidade, como a liberdade, a vida e a integridade física, prevalecendo a apreciação imparcial de interesses de ambos, ao invés dos interesses humanos pesarem mais que os interesses das demais espécies.

Lembrando que aqui a igualdade é material, por isso, os animais não devem possuir todos os direitos que um homem ou uma mulher dispõe, dada a impossibilidade de assim fazer, devido a todo o sistema que utilizamos quanto sociedade, mas são sujeitos daqueles direitos que a eles se adéquam.

Mas como os animais, impossibilitados de se representarem perante nosso sistema, exerceriam esses direitos? Ora, da mesma forma, nem todos os seres humanos possuem capacidade plena de exercício de direitos, mas nem por isso esses deixam de ser titulares de direitos, pois, aqui é conveniente aos humanos. É a prova de que, conforme Araújo (2003, p. 170), "é o reconhecimento social o fator decisivo para a atribuição de direitos", o qual ainda afirma que:

Esses interesses relevantes são igualmente detectáveis nos não-humanos: um interesse em nascer, um interesse em sobreviver (ao menos como espécie), um interesse em experimentar um grau de bem-estar consistente com o normal desenvolvimento de aptidões inatas, um interesse na proteção contra a violência. (ARAÚJO, 2003).

A corrente mais naturalmente aceita pelas pessoas no geral é a da bem-estar animal.

5. DIREITO COMPARADO

Apesar de o tema aqui debatido ser recente, esses direitos inerentes aos animais já acarretaram mudanças legislativas importantes em demais países, dentre eles, se destacam: Alemanha; Áustria; França; Suíça.

O Direito Comparado nos permite, através do estudo comparativo entre diferentes legislações, "atingir as constantes jurídicas dos diferentes sistemas de Direito Positivo, a fim de esclarecer o Direito vigente e oferecer indicações úteis e fecundas ao Direito que está em elaboração", conforme Reale (p. 309, 2014).

É possível a incidência de tal instituto uma vez que os princípios que envolvem a problematização dos direitos dos animais são de natureza geral, portanto, não há o que se falar em relação a uma limitação nacional para a sua resolução.

5.1. ALEMANHA

Pode-se dizer que a Alemanha é pioneira quando se trata de direitos dos animais. No ano de 1972, entrou em vigor no país a Lei de Proteção aos Animais, Tirschutzgesetz. Já em seu parágrafo primeiro, esta lei regula a relação existente entre o homem e animal, determinando que são os humanos os responsáveis pelo bem-estar dos não-humanos.

Inclusive, cuidou de estabelecer as cautelas a serem tomadas quanto aos animais destinados ao consumo, estabelecendo sua criação, transporte e abate, prevendo uma pena de prisão de até três anos ou multa àqueles que maltratem ou matem, injustificadamente, um animal vertebrado.

Ainda, no começo dos anos noventa, reconheceu no seu Código Civil, baseado no código austríaco, que os animais não são coisas. Determina o parágrafo 90-a, da Bürgerliches Gezetzbuch (BGB), que "os animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais."

Essa determinação levou a consequências no âmbito cível. Por exemplo, o parágrafo 903, da BGB, ao seu final, diz que "o proprietário de um animal deve cumprir as regras especiais para a proteção dos animais no exercício dos seus poderes".

O parágrafo 251, (2), BGB, traz que nos casos de perda de um animal por uma conduta de terceiro, deve-se incluir no cálculo de indenização as despesas veterinárias, mesmo que o valor flagrantemente ultrapasse o valor natural do animal:

O restitutor pode reembolsar o credor em dinheiro, se a produção só for possível com despesas desproporcionais. As despesas resultantes do tratamento de um animal ferido não são desproporcionais, mesmo que excedam significadamente seu valor. (ALEMANHA, 1900).

As consequências se estendem ao Código de Processo Executivo alemão, o Zivilprazessordnung (ZPO). O parágrafo 881-c, do ZPO, prevê a impenhorabilidade dos animais domésticos, que não sejam possuídos para fins lucrativos. O parágrafo 765-a, do mesmo código, estabelece que em caso de medida judicial que tenha animal indiretamente afetado, o tribunal deve considerar a responsabilidade perante este animal.

Finalmente, no ano de dois mil e dois, a proteção animal ganhou status constitucional na Grundgesetz Für Die Bundesrepublik Deutschland. Em seu parágrafo 20-a, determinou que o "Estado protege os fundamentos naturais da vida e dos animais". Esse tipo de previsão constitucional é semelhante a contida na nossa Carta Magna desde 1988.

Observa-se, portanto, que tanto as determinações da seara constitucionalista como da penalista equiparam-se às brasileiras, diferindo o ordenamento pátrio do alemão apenas no âmbito civil, o que aponta a falta de evolução legislativa nesse setor em questão.

5.2. ÁUSTRIA

A Áustria possui previsão civil de que os animais não são coisas desde 1988, em seu Allgemeines Bürgerliches Gezetzbuch (Código Civil austríaco):

§285-a: os animais não são coisas; eles são protegidos por leis especiais. As normas relativas às coisas são aplicáveis aos animais, na medida em que não existam disposições divergentes.

(...)

§1332-a: se um animal é ferido, os custos reais de cura ou tentativa de cura também são pagáveis se excederem o valor do animal, desde que um detentor razoável do animal na posição de pessoa lesada incorra nesses custos (ÁUSTRIA, 1988).

Em 1996 houve alterações no Exekutionsordnung (EO), o Código de Processo Executivo austríaco como consequência das previsões civilistas em vigor. Determinou-se, assim, a impenhorabilidade dos animais de companhia, sem fins lucrativos, ou seja, àqueles que correspondem a um vínculo emocional, contanto que estes não superem o valor de setecentos e cinquenta euros, o equivalente, em 03/06/2019, a três mil duzentos e setenta e um reais e quarenta e dois centavos.

Das Österreichische Tierschutzgesetz, a Lei Federal de Proteção Animal, veio em 2005, se tornando uma das legislações mais modernas no âmbito de Direitos dos animais. É importante ressaltar que essa lei foi fruto de um referendo, o qual contou com a assinatura de quatrocentos e cinquenta e nove mil e noventa e seis pessoas.

Preocupou-se em promover e garantir a vida e o bem-estar animal, além de proibir todo o maltrato injustificado e, até mesmo, a morte, fora algumas exceções:

§ 1º. O objetivo desta lei federal é a proteção da vida e bem-estar dos animais da responsabilidade especial dos seres humanos pelo animal como uma criatura semelhante.

§ 2º. A União, os estados federais e os municípios são obrigados a despertar e aprofundar a compreensão do público e em particular dos jovens para a proteção dos animais e, de acordo com suas possibilidades orçamentárias, promover sistemas de criação amigos dos animais, bem como questões de bem-estar animal.

(...)

§ 6º. (1) É proibido matar animais sem motivo razoável.

(2) É proibido matar cães ou gatos com a finalidade de obter alimentos ou outros produtos.

(3) A occisão de animais para efeitos de educação, formação e aperfeiçoamento profissional só é permitida em instituições científicas e apenas na medida em que seja indispensável para o fim a que se destina e não possa ser substituída por métodos alternativos.

(4) Sem prejuízo das proibições previstas nos n.os 1 e 2, a occisão deliberada de vertebrados só pode ser efetuada por veterinários. Isto não se aplica:

1º - para a morte profissional de animais de criação e de animais de produção (§ 32),

2º - para o abate profissional de animais no contexto da educação, formação e formação contínua, em conformidade com o n.º 3,

3º - para o controle profissional de pragas,

4º - nos casos em que a morte rápida é absolutamente necessária para poupar o animal de agonia irrecuperável,

5º - para o abate profissional de animais para efeitos de aplicação do Regulamento (UE) n.o 1143/2014 ou, nos termos da legislação nacional, a organização da autoridade competente por pessoal especialmente formado. O Ministro Federal do Trabalho, Assuntos Sociais, Saúde e Defesa do Consumidor pode emitir por decreto-lei regras mais detalhadas sobre o tipo e a evidência do conhecimento e habilidades de pessoas especialmente treinadas.

(5) É proibido o abate ritual de animais fora de matadouros aprovados em conformidade com o artigo 32.º, n.º 4, ou sem uma autorização definitiva, em conformidade com o artigo 32.º, n.º 5. (ÁUSTRIA, 2005).

Portanto, o animal é protegido como um indivíduo, tanto que a mesma, em seu parágrafo 24-a, determina a obrigatoriedade de registro do animal. Assim, a lei nos traz que o bem-estar de um animal é expresso na satisfação de suas necessidades e na ausência de dor, sofrimento, dano ou ansiedade severa. Os governos federal, estadual e local são obrigados a aumentar a conscientização pública sobre o bem-estar animal, especialmente entre os jovens, e aprofundar sua compreensão sobre o assunto.

Desde então, ficou sendo de responsabilidade do governo federal a competência legislativa, enquanto a implementação da lei é de competência dos estados federais, objetivando uma aplicação uniforme.

O significado sociopolítico do assunto, principalmente no setor pecuarista, se desenvolveu ainda mais, de modo que os regulamentos individuais serviram para adaptar o novo conceito. Um exemplo é a emenda número 61, de 2017, que teve como objetivo o esclarecimento de certos procedimentos, como ser possível, no setor da pecuária, a intervenção em si ser realizada por uma pessoa instruída, embora seja necessário que a anestesia ocorra pelo veterinário.

5.3. FRANÇA

Até o ano de 2015, a França possuía uma previsão legal semelhante à brasileira quando se tratava de animais no Código Civil. Em seu Code Civil previa que os animais são bens móveis, dada a sua natureza.

Entretanto, passou essa classificação a ser obsoleta, uma vez que ainda era a mesma prevista no Código Napoleônico, de 1804. Somente o Código Civil concedia esse status aos não-humanos, enquanto o Código Penal, o Código Rural e a lei europeia já lhes concediam o reconhecimento de serem sencientes, o que levou a uma necessidade de unificação dos textos legais.

Ademais, a vontade da sociedade precisava ser levada em consideração, uma vez que a causa animal contava com o apoio de diversos intelectuais franceses e apresentou uma petição contendo cerca de oito mil assinaturas.

Em consequência disto, em decisão histórica, o legislador, com o advento da lei de 16 de fevereiro de 2015, consagrou no Code Civil um estatuto para os animais, versando sobre a modernização e simplificação dos direitos e procedimentos, nos domínios da justiça, baseados na doutrina do bem-estar animal.

Assim, o Código Civil francês passou a fazer distinção entre le biens (os bens) e os animais, passando a reconhecer que os animais são seres sencientes e reconhecendo a incidência de leis especiais de proteção sobre eles, prevendo: "os animais são seres vivos dotados de sensibilidade. Sujeitos às leis que os protegem, os animais estão sujeitos ao regime de propriedade".

Já os interesses dos animais, ainda minimamente tutelados, já estavam presentes no Code Rural et de la Pêche Maritime (Código Rural e da Pesca Marítima) antes da alteração legislativa do Código Civil. Apesar de ainda pequena, a proteção dada aos animais não-humanos, no artigo 214, da legislação acima citada, determina que "todo animal sensível deve ser colocado pelo seu proprietário em condições compatíveis com os imperativos biológicos da sua espécie", levando a salvaguardar a dignidade do animal, um direito da personalidade, o que leva a não mais definir o animal pelo valor de mercado, mas sim pelo valor intrínseco adquirido como sujeito de direito. No mais, ainda estabelece que o animal doméstico não deve sofrer desnecessariamente e nem morrem sem justificativa.

5.4. SUÍÇA

A Suíça é referência mundial quando o assunto é proteção animal, pois, o país possui normas em diversos ramos do ordenamento jurídico. Destaque para as previsões constitucionais da Constitution Fédérale de la Confédération Suisse pautadas na doutrina do bem-estar animal.

A Carta Magna suíça preocupa-se em abranger o máximo possível da problemática animal, legislando em vários âmbitos a relação entre homens e animais não-humanos, em seu artigo 80, disposto em seis incisos, sendo eles: a guarda dos animais e modo de tratamento; a experimentação animal e atentados à integridade; a utilização de animais; a importação de animais e produtos de origem animal; o abate de animais.

Ainda, vale ressaltar os artigos: 84, nº 1, que determina a limitação de tráfego automotivo, com o propósito de proteger os animais; 104, nº 3, alínea b, disciplinando o uso responsável e respeitador de animais na agricultura; 118, nº 2, alínea b, o qual prevê o combate a doenças de animais; 120, nº 2, cuidando do uso responsável da manipulação genética animal, a fim de garantir uma proteção à presente diversidade genética das espécies de animais existentes.

Toda essa corrente protecionista, prevista desde a Constituição, culminou, no começo dos anos dois mil, em uma alteração legislativa do Código Civil: a introdução do novo artigo 641-a, o qual prevê expressamente que os animais não são coisas, além de trazer que “salvo disposição em contrário, as disposições aplicáveis às coisas são igualmente válidas para os animais”.

A grande diferença da legislação do Código Civil suíço é que esta leva em consideração os interesses do animal. Um bom exemplo pode ser encontrado no direito de sucessões no caso de um animal herdar um bem. Após a partilha dos bens, aquele que ficar com o bem em questão, fica também encarregado de cuidar do animal herdeiro, conforme o artigo 482, nº 4, do Código Civil.

Outra amostra está presente nos casos de disputa de guarda do animal, onde deve-se levar em consideração o princípio do superior interesse do animal, com base no artigo 651-a, do Código Civil, semelhante ao que se faz em ações de guarda de crianças e adolescentes no Brasil.

Ainda, o Loi Fédérale Complétant le Code Civil Suisse, conhecido como Código das Obrigações suíço, em seus artigos 42 e 43, prevê que as despesas efetuadas com um animal doméstico, mesmo que num valor excedente ao valor de mercado do próprio animal, serão sempre indenizáveis e na determinação do valor de indenização por morte do animal, deve-se levar em conta também o valor afetivo que o animal comportava para o seu detentor, ou ao próximo a este.

Esse tipo de previsão é de suma importância para a efetiva proteção animal. Nos Estados Unidos, no caso conhecido como Rabideau v. City of Racine, a Wisconsin Supreme Court, em junho de 2001, não reconheceu que o requerente, proprietário que viu seu animal de companhia ser assassinado a tiros por um policial local, sem causa ou razão, teria direito à reparação por danos morais, sob o fundamento de que a lei dá ao cachorro o status de bem de propriedade pessoal, não podendo, assim, admitir a incidência de dano moral, por falta de determinação legal.

Ainda no âmbito civilista, o Código de Execução suíço, Loi Fédérale sur la Poursuite Pour Dettes et la Faillite, tal qual os demais países estudados anteriormente, em seu artigo 92, determina a impenhorabilidade de animais domésticos criados sem fins lucrativos.

Por fim, se faz necessário citar alguns artigos do Code Pénal suíço, pois, este é tão revolucionário, inovador, que chega até mesmo, em alguns dispositivos, a colocar os animais no mesmo patamar de proteção que os humanos.

O artigo 135, do Código Penal, determina uma pena privativa de liberdade de até três anos àqueles que promovam imagens, ou algo que ilustre atos de crueldade, contra seres humanos ou animais, que firam seriamente a dignidade humana, sem apresentar qualquer valor cultural ou científico. Assim, o dispositivo passou a equiparar a dignidade da pessoa humana à dignidade animal.

Outro exemplo de equiparação é o artigo 197, que passa a igualar a divulgação de conteúdo com atos sexuais com animais à promoção de atos de violência entre adultos e atos sexuais não reais com menores, ao determinar a mesma punição para os delitos ditos acima.

Os direitos da personalidade, como vida, saúde e integridade física, são tutelados pelos artigos 232, 235 e 236, o quais, com o intuito de punir diretamente as ações de agentes que coloquem em perigo a saúde dos animais, domésticos ou não, tratam da propagação de doenças entre os animais domésticos e de quem fabrica ou distribui alimentos nocivos à saúde ou à vida de animais.

A legislação especial conta com diversas leis que garantem uma qualidade de vida aos animais, principalmente os domésticos:

Uma das mais conhecidas leis de bem-estar animal na Suíça é a que obriga a adoção de porquinhos-da-índia em pares para que um faça companhia ao outro. O mesmo vale para papagaios, periquitos e cacatuas, que podem até falecer se ficarem sozinhos. Ah, e eles não podem viver em gaiolas! Em 2008, o país também passou a exigir que gatos que vivem em ambientes fechados, como apartamentos, tenham acesso à área externa ou possa observar outros felinos pela janela. Se isso não for possível, o tutor deve pelo menos adotar outro gato para que faça companhia ao pet. (GRIZOTTO, C., 2018).

Quanto aos demais animais, estes também possuem garantias previstas em lei, como, por exemplo, uma delimitação ao uso de animais em experiências científicas, passando a permitir a prática apenas quando o sofrimento causado não for desproporcional em relação aos resultados pretendidos, a proibição de castração sem anestesia de leitões, a limitação do tempo máximo de transporte de carga viva, a vedação ao abate para rituais, com exceção das práticas de costumes judaicos e muçulmanos.

5.5. OUTROS PAÍSES

Outros países passaram por alterações legislativas ou decisões judiciais mais recentes em relação aos direitos dos animais. Em Portugal, a Lei nº 8/2017, estabeleceu um estatuto jurídico dos animais, alterando o Código Civil, o Código de Processo Civil e o Código Penal.

Assim, passou a reconhecer, já em seu artigo primeiro, os animais como seres dotados de sensibilidade, ou seja, são sencientes, conforme vem apontando a ciência. A lei também trata das obrigações dos chamados “proprietários”, os quais devem garantir o bem-estar, através do acesso à água e comida, em proporção às necessidades biológicas de cada raça, além de assegurar os cuidados veterinários.

Já na Espanha, ainda atualmente, os animais são considerados objetos no Código Civil. Acontece que recentemente o parlamento espanhol apoiou, por unanimidade, a consideração de animais como seres vivos sencientes:

O Congresso dos Deputados (Câmara Baixa do Parlamento espanhol) aprovou por unanimidade, na terça-feira, que os animais deixem de ser considerados objetos e, em vez disso, sejam reconhecidos juridicamente como seres vivos. Todos os grupos parlamentares apoiaram as mudanças do Código Civil, da Lei Hipotecária e do Código de Processo Civil, A proposta de lei impulsionada pelo Partido Popular (PP), do primeiro-ministro Mariano Rajoy, tenta eliminar a objetificação jurídica dos animais e fazer com que estes sejam considerados como ‘seres vivos dotados de sensibilidade’. (...) o apoio de todos eles permite prever que se chegará a uma nova legislação. (EL PAÍS, 2017).

A Argentina foi palco de uma decisão jurídica inédita, em 2014, que concedeu, no caso da orangotango chamada Sandra um habeas corpus para repreender seu confinamento em um zoológico localizado em Buenos Aires. Para Motta (2016), “com tal decisão, se insere na esfera jurídica uma linha jurisprudencial favorável ao reconhecimento dos direitos dos animais, ou seja, surge uma nova divisão entre o direito dos homens sobre as coisas”.

Sandra teria sido levada para o zoológico em Buenos Aires no ano de 1994, onde permaneceu confinada. Em 2014 a Asociación de Funcionarios y Abogados por el Derecho de los Animales, impetrou um habeas corpus em nome de Sandra, alegando que a mesma estava passando mal, em sofrimentos por causa do encarceramento e do exibicionismo contínuo, encontrando-se privada de sua liberdade, em prisão arbitrária, devendo ter os mesmos direitos que um ser humano.

O habeas corpus foi negado em primeiro grau, porém, foi provido em grau recursal, dado o confinamento injustificado do animal de complexa capacidade de pensamento e sentimento. Neste sentido, foi reconhecido que Sandra é sujeito na relação em questão, devendo ter seus direitos básicos reconhecidos. A sentença certamente simboliza a oportunidade de reconhecimento de direitos a animais não humanos, os quais na maioria dos ordenamentos jurídicos são considerados como objetos nas relações.

No Brasil, a última movimentação legislativa inovadora quanto aos direitos dos animais, foi a aprovação, pelo Senado, do Estatuto dos Animais, o qual objetiva determinar que os bichos como seres sencientes, de acordo com todas as atuais tendências científicas e legislativas. Ainda, o projeto pretende regular os direitos e deveres dos possuidores da guarda dos animais.

Um exemplo de obrigação é a previsão de fornecimento de comida, abrigo e espaço adequado a cada animal, conforme seus interesses individuais, para o mantimento do seu bem-estar, além de garantir a integridade física e mental do mesmo.

O próximo passo do trâmite processual é o encaminhamento e a aprovação pela Comissão Especial do Senado. Após, em caso de resultado positivo do órgão anterior, o projeto será encaminhado à Câmara de Deputados para possível aprovação e, consequentemente, entrada em vigor.

6. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DOS DIREITOS DOS ANIMAIS

De acordo com Reale (2014, p. 167), as normas jurídicas "a todo instante, exigem um esforço de superamento de entendimentos contrastantes, para que possam ser aplicadas em consonância com as exigências da sociedade em determinado momento e lugar".

Por conta disso, se faz necessário no ordenamento jurídico a existência do instituto da jurisprudência, que corresponde a reiteradas decisões harmônicas dos tribunais acerca de uma norma, mediante a interpretação desta, quando não houver, no caso concreto, uma única apreensão intelectual possível.

Portanto, para uma decisão atingir o status de precedente jurisprudencial, não é suficiente uma, duas ou três sentenças, mas sim uma série de julgados que possuam entre si coerência e continuidade.

Ainda conforme Reale (2014, p. 168), o ato de julgar "não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável margem de poder criador". Fica a cargo da jurisprudência também a missão de inovar no âmbito jurídico, podendo estabelecer normas não previstas expressamente em leis, completando o sistema objetivo das normas jurídicas.

Analisaremos alguns históricos de precedentes discutidos a fundo pela nossa Suprema Corte sobre direitos dos animais, a fim de demonstrar as interpretações dadas pelos Ministros, bem como a coerência entre elas, e qual o significado destas para a libertação animal, pois, há expressamente no ordenamento brasileiro uma abertura que possibilita e determina a integração de normas através da atividade interpretativa pelo judiciário, que deve ser levado em conta, mesmo que hoje o ativismo judicial ainda seja um assunto controverso.

6.1. HABEAS CORPUS Nº 50.343

A impetração do Habeas Corpus nº 50.343 foi um importante marco na luta a favor dos animais, pois, iniciou a apreciação pelo Supremo Tribunal Federal das causas de interesse não estritamente humanos.

Tratava da liberdade ambulatorial de pássaros que se encontrassem engaiolados, seja para fins comerciais ou de utilização, estendendo-se contra a caça e captura ilegal. Foi impetrado por Fortunato Benchimol e pela Associação Protetora de Animais, na jurisdição do extinto estado da Guanabara, atual município do Rio de Janeiro, no ano de 1972, o qual apontava como autoridade coatora qualquer um que vinha privando ilegalmente a liberdade dos animais em questão.

Vale ressaltar que essa medida se deu anteriormente ao advento da Constituição Cidadã, ou seja, ainda no contexto histórico da ditadura militar, sem haver previsão mínima de proteção animal, nem mesmo na Constituição da época.
Não é por menos que a decisão da instância de origem apontou que nesse caso não caberia a impetração de habeas corpus, haja vista que esse instituto só abrangeria causas em favor de humanos. Ainda, apontaram diversos erros processuais, como o fato de não haver um coator determinado. Assim entendeu a 4ª Vara Federal da Guanabara, a 3ª Vara Federal da Guanabara, bem como a Subprocuradoria Geral da República.

Em recurso encaminhado à Suprema Corte Constitucional, manteve-se o entendimento de que aos animais não é possibilitado serem pacientes em Habeas Corpus, uma vez que seriam tão somente objetos de direito, não sujeitos. Aqui é possível observar a teoria antropocêntrica enraizada prevalecer com, inclusive, manifestação concordante do Parquet.

A partir de então, houve diversas impetrações de Habeas Corpus em favor de animais nos últimos anos, pois, apesar de haverem outros instrumentos legais possíveis de proteger a dignidade dos animais.

Heron Santana nos mostra a importância da luta por uma causa, ainda que os resultados não sejam alcançados no momento desejado. Nos lembra o referido professor o simbolismo do habeas corpus impetrado, em 1880, pelo abolicionista e ex-escravo Luis Gama em favor do escravo Caetano Longo, que havia sido preso na cidade de São Paulo, após fugir de uma fazenda de Campinas. Promulgada em 1831, a Lei Feijó tinha por objetivo reprimir o tráfico de africanos. Com supedâneo em tal lei, Luis Gama ingressou com um habeas corpus em favor do escravo Caetano Longo, demonstrando que ele havia ingressado no Brasil em 1832, ou seja, após a edição da Lei Feijó, quando já era ilegal o comércio transatlântico de africanos. Ainda que o writ tenha sido denegado, sendo Caetano Congo devolvido ao seu proprietário, os escravagistas ficaram enfraquecidos e o movimento abolicionista acabou se promovendo politicamente.  (ROLLO, S. 2016, p. 152).

Certamente um dos primordiais objetivos dessas impetrações se dá na cobrança de se obter do Estado uma resposta expressa na lei de que os animais também podem ser sujeitos de direitos, como ocorre nos países vistos no capítulo anterior:

6.2. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 153.531-8

O recurso em questão tem origem na Ação Civil Pública promovida por certas organizações de proteção animal, quais sejam: a Associação Amigos de Petrópolis; a Proteção aos Animais; a Sociedade Zoológica Educativa; e a Associação Protetora dos Animais, no ano de 1997, em face do Estado de Santa Catarina, tendo como requerimento a proibição da chamada "Farra do Boi" e assemelhados:

A Farra do Boi é uma festa de origem cultural. É muito popular no estado de Santa Catarina, e segundo historiadores, foi trazida ao Brasil há cerca de 200 anos, por descendentes de açorianos. (...) A festa acontecia frequentemente na época da Páscoa, quando centenas de bois eram torturados e mortos, em um martírio que começa dias antes. A tortura começa alguns dias antes da festa, quando o boi é isolado e deixa de ser alimentado. Quando o animal está a dias sem comer, são colocados comida e água próximos a ele, de forma que ele possa ver, mas não possa alcançar, ficando desesperado. No dia da Farra, o boi é solto pelas ruas, onde as pessoas aguardam portando os mais variados instrumentos para ferir o boi, como, por exemplo, pedaços de pau, pedras, chicotes, facas, cordas e lanças. Algumas vezes, o boi é perseguido até encontrar o mar e atira-se, onde morre afogado. Quando isso não acontece, a tortura pode durar até três dias, mesmo porque os “farristas” tomam “cuidado” para que a farra dure mais. Somente ao perceber que o boi está próximo de morrer, os “farristas” o matam e dividem a carne. A crueldade costuma acabar com um churrasco. (PACIEVITCH, T.).

Na instância inicial, após alegação do Estado requerido de que a festa possuía caráter cultural, sendo realizada a mais de duzentos anos, o acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou improcedente a ação, por entender que a prática não caracterizava crueldade. Entretanto, reconheceu a necessidade de proteção contra abusos que poderiam vir a ocorrer na prática tradicional, baseando-se nos critérios de senciência nos animais, mas, por fim, entendeu que o Estado não era inerte aos abusos praticados, coibindo-os.

Acontece que o Estado de Santa Catarina passou por uma transformação econômica, deixando de ter por base de sua economia a pecuária, passando a ser um destino turístico com alta procura, que se tornou a principal influência de arrecadação estatal.

A partir disso, a prática se enfraqueceu, pois, deixou de ser aceita popularmente pelos turistas, consequentemente, "a desvalorização jurídica deste fenômeno se alinha com o pleno axiológico do restante da sociedade brasileira, tornando socialmente exigido que o magistrado se posicione contrariamente à sua aprovação jurídica", conforme bem observou Santos (2017, p. 90).

Assim, quando o recurso chegou ao Supremo Tribunal Federal, o Ministro relator Francisco Rezek, reconheceu que sendo os animais já protegidos pela Constituição Federal, o fato da prática ser consolidada no tempo e na cultura não a torna menos inconstitucional, baseando-se no entendimento de que os animais são seres sencientes, ou seja, dotados de sensibilidade, constituindo a prática, na realidade, em ato cruel, e não cultural.

Esse precedente foi importante, pois, caracterizou a adoção de um entendimento de desabono de práticas envolvendo animais voltadas ao entretenimento flagrantemente cruel, servindo como base para as ações que veremos a seguir.

6.3. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1.856 E Nº 3.776

Trata-se de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, em face das leis estaduais número 2.895/98, do Rio de Janeiro, e número 7.380, do Rio Grande do Norte, as quais normatizavam a preservação dos chamados "galos combatentes" e das práticas que os utilizavam, as "rinhas".

As duas ações foram promovidas pela Procuradoria-Geral da República, a qual pugnou pela declaração de inconstitucionalidade total dos respectivos atos normativos, haja vista que o Decreto nº 50.620, datado de 1961, vedava a prática das rinhas, que consiste em uma briga de galos equipados com afiadas lâminas de metal, na altura das esporas, os quais são forçados a lutar até a morte, ou quase, para satisfazer a apostadores. O galo que correr da briga, que cai por nocaute, ou quebra a pata ou a asa, perde.

Sobre o primeiro controle de constitucionalidade proposto, a decisão do Supremo Tribunal Federal acabou por ser unânime, após o relatório do Ministro Celso de Mello que, segundo bem escreveu Santos (2017, p. 93) determinou ser "inquestionável, ao ponto de não ser necessário a demonstração de provas, a submissão à crueldade das aves envolvidas nos combates de rinhas", ainda, o Supremo negou que a rinha tenha caráter desportivo.

Já ao tempo da segunda Ação de Inconstitucionalidade em questão, reconheceu-se a ofensa expressa da lei estadual ao artigo 225, parágrafo primeiro, inciso s, da Constituição Federal de 1988. Na oportunidade, também declararam já ser postura da Suprema Corte rejeitar regulamentação de atividades de entretenimento que submetam os animais a práticas violentas, cruéis e desumanas, com base nos precedentes aqui já citados.

6.4. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.983

Ao modo das demais ADIN's aqui abordadas, esta também foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República, em face da lei estadual nº 15.299/2013, do Ceará, a qual versava sobre a vaquejada, que consiste na prática que envolve um boi solto em uma arena e dois vaqueiros montados em cavalos, que tentam derrubar o boi pelo rabo.

Esta tem origem na década de quarenta, período em que o sertão nordestino passou a ser mais explorado e ocupado, e surgiu como uma solução para o manejo e criação de gado, através da entrada em locais cobertos de vegetação típica da caatinga, tarefa antes dificultada pelo fato das tentativas de laçamento do gado livre serem frustradas ao passo que era comum a corda ficar presa aos galhos secos, característicos da flora local.

Assim, surgiu a estratégia de puxar o animal pelo rabo, como forma de conduzi-lo, virando o símbolo de riqueza para o sertanejo num momento em que a terra não era propícia. Ainda no século XXI, a vaquejada repaginou-se, transformando-se em uma espécie de esporte, haja vista que se tornou um evento competitivo e com objetivo de entretenimento.

Neste momento é preciso atentar para a distinção entre vaquejada esportiva e vaquejada cultural. A primeira é espetacularizada, a fim de atender a demanda da sociedade de consumo, através de cavalos de valor de mercado elevado, por exemplo, marcada pela sua popularização após a repaginação da vaquejada cultural, se tornando, portanto, um elemento econômico de notória expressão para os estados localizados na região nordeste do país.

A diferença desta prática para as demais, como farra do boi e galo de rinha, é justamente essa popularização, a qual acarreta impactos econômicos e interesses de terceiros, uma vez que a atividade movimenta cerca de seiscentos milhões de reais por ano, gerando diversos empregos, direta e indiretamente.

Mesmo assim, o relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Ministro Marco Aurélio, votou pela inconstitucionalidade da lei estadual, tendo o entendimento do relator findado vencedor, mesmo que não unânime (6x5 votos), reconhecendo os animais como sujeitos de uma vida, sendo incisivo ao declarar que

A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente. (MELO, Marco Aurélio de, 2016, p. 13).

Após o trâmite legal, a conhecida "bancada do boi" ou "bancada ruralista", pressionou o Congresso Nacional a aprovar a Lei nº 13.364/2016, a qual versa sobre a elevação de rodeio e vaquejada a patrimônio cultural imaterial.

Em ato contínuo, como reação dos defensores dessas práticas, que visavam enfraquecer ainda mais a decisão do Supremo, através de uma manobra legislativa financiada por lobbies, a bancada ruralista conseguiu aprovar a Emenda Constitucional 96, de 2017, a qual acrescentou um parágrafo sétimo ao artigo 225, da Constituição Federal, versando sobre a elevação da vaquejada como patrimônio imaterial cultural brasileiro ao status constitucional.

A referida Emenda Constitucional ainda cuida em afirmar que as práticas desportivas que utilizam animais não configuram crueldade, contanto que as mesmas sejam manifestações culturais. É notório que o ato, na verdade, visa atender aos interesses econômicos do setor político que corresponde à bancada ruralista. A essa prática legislativa se dá o nome de “efeito backlash”: uma resposta por parte do poder legislativo ao ativismo judicial.

Essa conjuntura representou um retrocesso jurídico, pois, a situação normativa se tornou mais desfavorável aos animais do que a existente anteriormente a decisão judicial proferida. O acórdão que poderia representar o avanço em direção à fiel execução da previsão constitucional, que visa a proteção da fauna, findou em uma derrocada e deturpação do significado originário das previsões constitucionais.

Ainda assim é possível concluir, após esta análise de julgados, que o Supremo Tribunal Federal, apesar de não ter colocado em nenhuma das decisões qualquer menção à titularidade ou não dos animais como sujeitos de direitos da personalidade, preocupou-se em, principalmente, determinar que os animais experimentam dor e prazer, portanto, adotando o critério da senciência.

Finalmente, observa-se uma renúncia velada aos ensinamentos principiológicos antropocêntricos, no geral, em relação à libertação animal, com a aceitação da corrente de bem-estar animal, uma vez que até o filósofo Peter Singer chega a ser citado nas decisões da Suprema Corte, validando a tendência de mudança nos entendimentos a partir do diálogo entre julgadores e autores e defensores da corrente abolicionista animal.

6.5. RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 494601

Trata-se de um Recurso Extraordinário impetrado pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, após o Tribunal de Justiça da jurisdição negar o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Lei estadual 12.131, de 2004.

A lei em questão afastou a proibição aos sacrifícios de animais em rituais de religiões de matriz africana. O Ministério Público estadual alegava que a matéria sobre a qual versava a lei seria de competência exclusiva da União, bem como que o dispositivo restringia a exceção, devendo, assim, ser a mesma declarada inconstitucional.

O Supremo Tribunal Federal foi unânime ao decidir que a lei estadual é constitucional. O relator da ação, Ministro Marco Aurélio, considerou que é constitucional o sacrifício de animais em rituais religiosos, de qualquer natureza, desde que seja vedada a prática de maus tratos, bem como seja o ato condicionado ao consumo da carne.

Os Ministros Alexandre de Morais e Gilmar Mendes acompanharam o voto do relator, discordando apenas que os atos são constitucionais independentes do consumo da carne.

O Ministro Edson Fachin destacou que a utilização de animais é intrínseca a certos cultos, se a lei restringe a proteção aos rituais de religiões de matriz africana, dá-se pelo preconceito estrutural da sociedade para com estes.

Ainda, o Ministro Luís Roberto Barroso (2019), observou que os ritos das religiões em questão exigem que o sacrifício ocorra sem sofrimento, devendo-se aplicar técnicas que garantam uma morte rápida e indolor, pois "segundo a crença, somente quando a vida animal é extinta sem sofrimentos se estabelece a comunicação entre os mundos sagrados e temporal".

A motivação para esta decisão, que contrapõe de certa forma as resoluções citadas anteriormente, dá-se pelo fato da lide versar sobre o exercício de um direito fundamental, garantido pela constituição, que é a liberdade religiosa, divergindo das ações que tinham como fim o entretenimento às custas do sofrimento animal.

Pode-se apontar que, apesar de a decisão ter sido criticada por diversos grupos de proteção animal, o Supremo Tribunal Federal novamente consolida a corrente do bem-estar animal em sua jurisprudência, pois, a permissão ao sacrifício, em todos os votos, foi condicionada a garantia de uma morte sem sofrimento.

7. CONCLUSÃO

Os animais sempre foram importantes para o desenvolvimento da sociedade. No período pré-histórico, o animal não-humano foi caçador. Durante o surgimento das grandes religiões, o foi atribuído um grau de inferioridade em relação ao ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus. No berço da filosofia, o mesmo foi escravizado, devendo servir ao homem. No século XVII, lhes tiraram a alma e o transformaram em máquina incapaz de sentir. Por fim, o reconheceram como seres sencientes e, mesmo assim, negaram a eles a titularidade de direitos.

Esses momentos levaram à concepção de que o homem estaria no centro do universo, culminando na ascendência total do antropocentrismo. Acontece que entre a queda do teocentrismo e a atualidade, diversas descobertas científicas refutaram as teses usadas como base do antropocentrismo, destacando-se, entre elas, a evolução da espécie, a qual nega a superioridade de um ser em detrimento dos demais, uma vez que aponta um ancestral em comum entre elas.

É explícito, portanto, que o nosso Código Civil é obsoleto, baseado em um sistema que não mais se sustenta, ao classificar animais como objetos de direito e não sujeitos de direito, privando-os do reconhecimento de direitos como a vida e a dignidade, acarretando a falta de um escudo legal que impeça a opressão humana, tornando-os invisíveis aos olhos da lei, enquanto que as novas teorias acerca da personalidade jurídica dos animais garantem a salvaguarda dos direitos intrínsecos aos animais.

Observa-se que a reclassificação civil dos animais já é uma tendência no mundo, principalmente em países mais desenvolvidos que, apesar da existência de uma disparidade econômica em relação ao Brasil, nos permite oferecer indicações úteis ao nosso ordenamento jurídico, dada a natureza geral dos interesses dos animais, não devendo estes, portanto, sofrerem de nenhuma limitação fronteirista ou nacionalista. Ademais, o Supremo Tribunal Federal mostra-se, através de sua jurisprudência, tendencioso às novas vertentes protecionista e abolicionistas.

Finalmente, existe a possibilidade de defender as individualidades que os animais possuem, atribuídas de uma personalidade típica das limitações de cada espécie. Não são pessoas, no sentido literal, sentido comedido aos humanos, mas são sujeitos titulares de direitos reconhecidos na esfera constitucional e penal, faltando apenas o seu reconhecimento formal no âmbito civil, consequentemente, atribuídos de uma personalidade sui generis, transitando entre pessoa e objeto, mas não se confundindo com nenhum dos dois, ou seja, "único em seu gênero".

Ademais, nossa legislação não precisou de maneira vedada a definição e os parâmetros de pessoa, não determinando um rol taxativo, o que leva a crer que foi de intenção de o legislador deixar uma abertura à evolução social, legislativa e jurisprudencial, esclarecendo apenas que estas são passíveis de direitos e deveres na esfera civil. Cabe ao Direito preocupar-se em adequar o entendimento de quem pode ser pessoa, agora em seu sentido jurídico de detentor de direitos, como o que foi feito na concepção de pessoa jurídica, a qual é titular dos direitos da personalidade naquilo que a cabe, aos seres do reino animal.

Após tal dedução, é permitido aperfeiçoar o atual sistema, que mantém os animais sencientes na classificação de coisas, utilizando-se dos ensinamentos e previsões dos ordenamentos aqui abordados, uma vez que coisa não possui interesse ou valor intrínseco, o que certamente não é o caso dos animais, conforme foi abordado nos capítulos anteriores. Assim, a alteração de grupo resulta em um reconhecimento formal e legal de que os animais são seres sencientes, possuidores de interesses próprios e, ainda, devem ser protegidos e respeitados pelos seres humanos, por ser medida de justiça e direito.

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Publicado por: Isabella Maria Freire Monteiro

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