O depoimento de policiais militares como única prova de autoria no processo penal envolvendo crime de tráfico de drogas

índice

  1. 1. RESUMO
  2. 2. INTRODUÇÃO
  3. 3. O INQUÉRITO POLICIAL E A AÇÃO PENAL
    1. 3.1 O CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E PRINCIPAIS DIPLOMAS PENAIS
    2. 3.2 A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL
    3. 3.3 A NECESSIDADE DE AUTONOMIA DOGMÁTICA DO PROCESSO PENAL
    4. 3.4 AS CARACTERÍSITICAS DO DIREITO/PROCESSO PENAL BRASILEIRO
  4. 4. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O TRÁFICO DE DROGAS
    1. 4.1 COMO ERA A APURAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS HÁ DEZ ANOS
    2. 4.2 COMO É A APURAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS ATUALMENTE
    3. 4.3 CONTRASTES E SEMELHANÇAS NOS LAPSOS TEMPORAIS
  5. 5. A FORMA DE INSTRUÇÃO DAS AÇÕES PENAIS NO TRÁFICO DE DROGAS
    1. 5.1 A PREDOMINANTE AUSÊNCIA DE INVESTIGAÇÕES PRÉVIAS E PRECARIEDADE DE PROVAS NAS AÇÕES PENAIS
    2. 5.2 A PREDOMINÂNCIA DO DEPOIMENTO DOS POLICIAIS MILITARES NOS INQUÉRITOS POLICIAIS E AÇÕES PENAIS
    3. 5.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROVA TESTEMUNHAL E AS CONSEQUÊNCIAS DO SEU USO EXACERBADO
    4. 5.4 A PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DOS DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS MILITARES EM FACE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
    5. 5.5 A REITERAÇÃO DE DEPOIMENTOS PRESTADOS NA FASE INVESTIGATIVA E A VEDAÇÃO DO ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
  6. 6. A VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO E A FALTA DE CRITÉRIOS MAIS OBJETIVOS PARA DECISÃO
  7. 7. A (IM)POSSÍVEL ALTERAÇÃO DO ATUAL PARADIGMA
    1. 7.1 O PROJETO DE LEI Nº 7.024/2017
    2. 7.2 O JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS 598.051/SP E SUAS INSTRUÇÕES
    3. 7.3 A ALTERAÇÃO DO STANDARD PROBATÓRIO ATUAL: A EXIGÊNCIA DE PROVAS MAIS ROBUSTAS NA APURAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS
  8. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
  9. 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1. RESUMO

O presente trabalho aborda a predominância da prova testemunhal no processo penal, com foco nos depoimentos dos policiais militares, que são chaves tanto para o início do inquérito policial como para a condenação do indivíduo abordado pelos agentes da lei.

Com base nisso, são feitas considerações acerca das características do processo penal atual, de forma a entender melhor como a praxe forense se desenvolve, apesar das teorias sobre o assunto e como seria o modelo ideal.

Para entender melhor a prática forense, com o método indutivo, foi apurado, por meio de pesquisas cruzadas, como era a persecução penal do tráfico de drogas na cidade de São Paulo há dez anos e como é atualmente (analisando 149 acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do último mês – de 05/07/2021 a 05/08/2021), sendo que, feito uma comparação, notou-se poucas diferenças no modus operandi do referido tribunal, apesar do avanço do tempo e das tecnologias disponíveis atualmente.

Ou seja, em ambos os casos se verificou a vital importância do papel da polícia militar no processo penal, que inicia o inquérito pela abordagem do sujeito, em juízo reitera seus depoimentos, culminando com a condenação.

A pesquisa desenvolvida foi quali-quantitaiva, uma vez que se buscou analisar em números os acórdãos do tribunal no último mês na capital paulista, desenvolvendo-se estatística com relação seu modo de agir, bem como se apurou o modus operandi nos processos penais envolvendo o tráfico de drogas e a prova de autoria.

O objetivo da pesquisa é apurar como o tribunal processa o crime de tráfico de drogas atualmente, descrever como ocorre o processo de convencimento dos magistrados, tecer críticas a respeito do sistema e estado de coisas atual, bem como buscar meio alternativos mais seguros para impor condenações criminais.

Nesta questão, foi abordada a problemática em torno da dependência do depoimento dos policiais no processo penal, a presunção de veracidade que tais depoimentos têm, bem como a reiteração do que foi dito na fase inquisitiva à luz da vedação do art. 155 do Código de Processo Penal, que proíbe o juiz de condenar com base exclusivamente nos elementos do inquérito policial.

Considerando a realização da prova, foi também abordado as formas de valoração da prova pelo juiz e como o sistema adotado no Brasil (livre convencimento motivado do juiz) faz com que se tenha pouca segurança jurídica.

Por fim, o trabalho trouxe à luz formas alternativas de mudar o paradigma atual que estão sendo debatidas, bem como entendimentos jurisprudenciais vanguardistas para melhorar a questão probatória no processo penal, garantindo mais precisão na análise dos casos judiciais envolvendo o crime de tráfico de drogas.

PALAVRAS-CHAVE: testemunha, policial militar, prova, processo penal, tráfico de drogas, presunção de inocência.

ABSTRACT

The present paper addresses the predominance of the testimonial evidence in the criminal lawsuit, focusing on the officer’s testimony, which is key to start the investigation as well as to convict the person approached by the officers of the law.

Based on this, considerations are made regarding the characteristics of the current criminal lawsuit to better understand how the usual forensic practice occurs, despite the theories about the issue and how the ideal model would be.

To better understand the forensic practice, using the inductive method, it was found through crossed searches, how it was the criminal prosecution on the drug trafficking in the City of São Paulo ten years ago and how it currently is, since it was made a comparison and it was noted few differences on the way the courtroom of State of São Paulo acts, despite the advance of time and the technologies available today.

That is to say, in both cases the vital importance of the police’s role was verified on the criminal lawsuit, which begins with the investigation through the approach of the subject, in the courtroom they repeat their testimony, culminating with the conviction.

The search made was quali-quantitative, because it was analyzed in numbers sentences from the courtroom in the last month on the São Paulo Capital, developing statistics related to the way it acts, as well as to investigate its modus operandi on the criminal lawsuits involving drug trafficking and its authorship.

The objective of the search is to investigate how the courtroom sues the drug trafficking crimes currently, to describe how occurs the convincing process of the judges, criticize the system and its status quo, as well to seek alternative methods that are more secure to impose criminal convictions.

In this issue, it was addressed the problematic around the dependence of the officer’s testimony in the criminal lawsuit, the veracity presumption that these testimonies have, as well as the reiteration of what was said during the investigation considering the prohibition on the article 155 of the Criminal Process Code, which forbids the judge to decide based only in evidence of the investigation.

Considering the production of evidence, it was also addressed the ways of the valuation of the evidence by the judge and how the adopted system in Brazil (free motivated convincing) makes that there is little legal security.

Finally, the paper brought to light alternatives to change the current paradigm that are being debated, as well as jurisprudential understandings, to improve the evidential issue in the criminal lawsuit, which guarantees more precision on the analysis of judicial cases involving drug trafficking.

KEYWORDS: witness, military officer, evidence, criminal lawsuit, drug trafficking, presumption of innocence.

2. INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda a predominância e a dependência dos depoimentos de policiais militares para comprovar a autoria no crime de tráfico de drogas, sendo que, para melhor análise, foi feita uma exposição de como o processo penal brasileiro foi desenvolvido originalmente e como se encontra atualmente, fazendo um contraste entre teoria e prática.

Foi verificado como a apuração do crime de tráfico de drogas era feita há dez anos, fazendo um contraste de como é feito atualmente na cidade de São Paulo, verificando diferenças e semelhança no modus operandi do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Com base nisso, foi possível notar a dependência da prova testemunhal no processo penal, de forma que foi avaliado as consequências do uso exacerbado desta prova e os modelos epistêmicos relacionados a ela.

Também, foi abordada a presunção de veracidade dos depoimentos dos agentes policiais, fazendo com que haja verdadeira inversão do ônus da prova no processo penal em prejuízo o réu, que acaba tendo o ônus de provar sua inocência frente a tais depoimentos.

Ainda, verificou-se a reiteração do depoimento de policiais militares colhidos na fase inquisitorial, de forma que, no processo não surge nenhuma prova nova, sendo que apenas se judicializar o testemunho dos agentes da lei como forma de evitar a violação do art. 155 do Código de Processo Penal, que estabelece que é vedada a condenação com base exclusivamente do inquérito policial.

Assim, há uma clara redundância no procedimento, vez que, na grande maioria das vezes, os policiais militares realizam a abordagem do sujeito, descrevendo ao delegado de polícia o que ocorreu, instaurando-se inquérito policial, que na grande maioria das vezes somente tem tais testemunhos como elementos informativos para subsidiar a denúncia.

E, ao chegar os autos ao Ministério Público, tal órgão de persecução penal deflagra a ação penal com base em tais testemunhos, arrolando os policiais militares como testemunhas, para que somente repitam o que foi dito na fase de inquérito e buscar a condenação.

Durante a pesquisa, observou-se como a polícia militar constrói a verdade jurídica no processo, fazendo referências com pesquisas cruzadas, que também observaram como era construída a narrativa policial no sentido de legitimar seu trabalho e garantir que este surtiria o efeito desejado, condenando os indivíduos selecionados à justiça criminal.

Esse modus operandi é típico em crimes de tráfico de drogas, nos quais não há vítima direta para que seja ouvida e corrobore o que está sendo dito, conforme se verá adiante da análise jurisprudencial do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Com base nessa problemática de procedimento redundante aceito judicialmente, foi elaborado o presente trabalho, com objetivo de descrever o procedimento que é feito atualmente na apuração de tráfico de drogas, criticar esse modo de proceder, com base em elementos epistemológicos, bem como expor formas mais democráticas de persecução penal, com base em um verdadeiro sistema acusatório.

Para a realização do estudo, foi empregado o método indutivo. Ainda, foi feito um amplo estudo na doutrina processual penal mais abalizada, bem como análise da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos últimos meses.

Como base nisso, foca-se na violação ao citado art. 155 do Código de Processo Penal, vez que tal dispositivo estabelece a vedação de condenação com provas exclusivamente nos elementos do inquérito policial sendo que, atualmente, há um mero teatro processual para dar ares de legalidade à ação penal que, no fundo, conserva sua matriz inquisitiva.

Também se justifica a pesquisa, considerando que qualquer pessoa pode ser abordada por suposto delito de tráfico de drogas, de forma que é preciso verificar e criticar o modus operandi da polícia, bem como a respectiva chancela por parte do Ministério Público e Poder Judiciário a fim de determinar formas alternativas e mais seguras de comprovação deste crime.

Assim, a pesquisa se mostra relevante para determinar quais standards probatórios são aceitos no processo penal para condenar uma pessoa, considerando que é preciso prova segura acerca da autoria do crime, a fim de que todos os cidadãos tenham a garantia de que sua presunção de inocência e todos os demais direitos serão respeitados no processo penal.

Por fim, para compreender melhor o estudo, o trabalho aborda, incialmente, os elementos do inquérito policial e processo penal, com ênfase nos procedimentos como garantias aos cidadãos. Posteriormente, é feito o estudo na jurisprudência, descrevendo e analisando como são os casos de tráfico de drogas que chegam ao Poder Judiciário e como a prova é valorada no processo penal e, por fim, são propostos meios para alterar o paradigma atual, de forma a buscar um processo penal verdadeiramente democrático e acusatório.

3. O INQUÉRITO POLICIAL E A AÇÃO PENAL

Antes de adentrar o tema especificamente, cumpre fazer breves considerações e esclarecimentos sobre o inquérito policial e a ação penal, notadamente como foram pensados originalmente, como isso impacta no processo penal de hoje, bem como contrastar a teórica com a prática, que são muito diferentes.

De início, cumpre estabelecer o contraste histórico, temporal e cultural entre a Constituição Federal de 1988 e os diplomas em matéria penal, da década de 1940, período extremamente diferente do qual se vive hoje e que impacta a matriz do sistema penal brasileiro, em que pese alterações pontuais posteriores nos diplomas legais.

3.1. O CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E PRINCIPAIS DIPLOMAS PENAIS

Como é de conhecimento notório, o direito penal e processo penal têm fundamento constitucional, consoante uma série de garantias materiais e processuais estabelecidos no rol do art. 5º da Carta Magna. Entretanto, o Código Penal e Código de Processo Penal são de 1940 e 1941, respectivamente, contraste este não só temporal, como histórico e cultural.

Isso porque, em 1940 o Brasil passava pelo Estado Novo, governo ditatorial de Getúlio Vargas, vez que em 1937 ocorreu golpe de Estado, sendo alegado que, supostamente, haveria um plano de levante comunista, chamado de “Plano Cohen”, o qual era um documento com conteúdo supostamente subversivo à ordem pública, que objetivava instaurar uma ditatura comunista no Brasil.

Tal plano fundamentou o golpe de Estado, fazendo Getúlio se manter no poder. Sobre isso, o jornalista Lira Neto, no livro “Getúlio Vargas: do Governo Provisório ao Estado novo” narra que referido plano era apenas uma manobra política:

[...] Desde o início de setembro, começara a circular nos meios militares cópias de um hipotético plano subversivo da tomada do poder, que teria sido descoberto pelo serviço de informações do Estado-Maior do Exército. O chamado Plano Cohen – o nome judaico era particularmente sugestivo – detalhava supostas ações que os comunistas estariam planejando para instituir um governo de extrema esquerda no Brasil. Ao longo de dezoito tópicos, as diretrizes de insurreição preveriam, entre outros itens, “regras para o trabalho de agitação das massas”, “organização de marchas coletivos de todo o operariado”, “incentivos a saques e depredações”, “desencadeamento de uma greve geral” e “formação de comitês de incêndio contra prédios públicos”. No caso de um fracasso do levante, o texto recomendava o fuzilamento sumário de militares e civis situados em posições de destaque na hierarquia governamental.

O Plano Cohen era flagrantemente falso. Fora escrito no final de agosto pelo então coronel Olímpo Mourão Filho, chefe do serviço secreto da Associação Integralista Brasileira. De acordo com o que admitira mais tarde o próprio Mourão, o texto teria sido redigido por ele a pedido de Plínio Salgado, mas como um exercício teórico. (NETO, 2016, p. 304).

No que tange a tal golpe, o citado jornalista estabelece com maestria suas características, que eram voltadas à repressão da população:

Ao longo dos 187 artigos redigidos por Francisco Campos, existiam influências notórias da italiana Carta del Lavoro, editada na Itália por Mussolini, particularmente no que dizia respeito à organização da economia e da política por meio de corporações profissionais. Entretanto, o corporativismo propriamente dito jamais seria implantado no Brasil, do mesmo modo que a prática nazifascista do partido único não vingaria durante o Estado Novo. [...]

A proibição dos partidos tinha por finalidade extirpar, em definitivo, a política tradicional da vida brasileira. Erradicar aquilo que nas palavras do próprio Getúlio era definido como “ranço democrático” – ou “as filigranas doutrinárias” e as falsas noções de liberdades públicas”. [...]

Getúlio, em seus pronunciamentos, reforçava a tese de que todos os males históricos do país seriam originários das lutas eleitoreiras e da ocupação do Estado pelos políticos profissionais. O novo regime, ao banir os interesses partidários, fechar o Legislativo e transformar governadores e prefeitos em simples funcionários a serviço da União, teria supostamente eliminado o mal pela origem, submetendo as resoluções da administração ao primado da razão técnica.

O Estado, segundo a ordem nova, é a Nação, e deve prescindir, por isso, dos intermediários políticos”, justificava. Grifos meus. (NETO, 2016, p. 3181).

Ou seja, o pluralismo político e a divergência de ideias caíram por terra em seu governo, vez que, segundo o Presidente, somente existiria um partido político, que seria o Brasil, sob o fundamento de que partidos políticos buscavam apenas se autofavorecem, e não procuravam melhorar o país realmente.

Sobre a referida Constituição Federal de 1937, então vigente na época de edição do Código Penal e Código de Processo Penal, o doutrinador constitucionalista Pedro Lenza também estabelece seus aspectos:

Era o início do que Vargas intitulou de “nascer da nova era”, outorgando-se a Constituição de 1937, influenciada por ideais autoritários e fascistas, instalando a ditadura “Estado Novo”, que só teria fim com a redemocratização pelo texto 1945, e se declarando, em todo o país, o Estado de emergência. [...]

Além de fechar o Parlamento, o Governo manteve amplo domínio do Judiciário. A Federação foi abalada pela nomeação dos intervententes. Os direitos fundamentais foram enfraquecidos, sobretudo em razão da atividade desenvolvida pela “Polícia Especial” e pelo “DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda”. Para piorar, pelo Decreto-lei n. 37, de 02.12.1937, os partidos políticos foram dissolvidos. [...]

O direito de manifestação do pensamento foi restringido, pois previa o art. 122, 15, “a”, que, com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia de imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão podia ser exercida, facultando-se à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação. [...]

(Ademais), foi declarado o estado de emergência (art. 186), que, suspendendo direitos e garantias individuais, só veio a ser revogado pela Lei n. 16, de 30.11.1945. (LENZA, 2014, p. 126/131).

Nesse sentido, é possível analisar que diversas garantias constitucionais são deixadas de lado, como a liberdade de expressão, para garantir a “paz, ordem e segurança pública”, conceitos extremamente vagos, que poderiam ser utilizados para censurar qualquer propaganda ou informação, legitimando-a na Constituição Federal.

De outro lado, no que concerne à legislação como um todo, também sofreram impactos, notadamente os diplomas penais, que foram editados no sentido de conferirem maior poder ao Estado e minimizar as garantias individuais. Tal fenômeno foi bem observado pelos livros de história, como pondera o jornalista:

Os Códigos de Processo Civil e Penal passaram por revisões históricas, que aprofundaram as medidas de segurança e o rigor da ação repressiva do Estado. Foram reduzidos consideravelmente os direitos individuais, sob o pretexto de “neutralizar os indesejáveis” e eliminar as “garantias” que, em tese, beneficiavam os malfeitores. No caso do Código Penal, o modelo que serviu de inspiração à reforma brasileira foi o Código Rocco, da Itália fascista. (NETO, 2016, p. 325).

Salienta-se, que os próprios Código de Processo Penal e Código Penal foram editados sob a espécie legislativa chamada de “decreto-lei”, a qual é inexistente atualmente, o que mostra a exacerbada influência do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo, demonstrando que o Estado estava bem longe de ser considerado democrático.

Sobre o Código de Processo Penal, particularmente, é possível ver em sua exposição de motivos que foi pensado justamente para impor a “lei e ordem”, sob o argumento de que o código vigente è época seria muito benéfico aos criminosos:

As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‑penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal. (CAMPOS, 1941, p. 01).

Com relação ao inquérito policial, as considerações feitas foram acertadas, considerando que tal expediente investigativo veio justamente para conferir a garantia aos cidadãos de que não serão processados sem justa causa, ainda que pese que o contraditório não é obrigatório nesta fase:

Mesmo, porém, abstraída essa consideração, há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Grifo meu (CAMPOS, 1941, p. 02).

Outra questão que foi louvada pela exposição de motivos foi o papel mais ativo que o juiz teve quando o Código foi editado, afirmando que seria extremamente salutar que o juiz não ficasse à mercê das partes:

Por outro lado, o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet. (CAMPOS, 1941, p. 04).

Conforme se verá melhor adiante, tal característica de postura ativa do juiz é típico de procedimento inquisitivo, forma marcante em governos autoritários, no qual se busca a suposta “verdade real” a qualquer custo, ao invés de criar um processo verdadeiramente acusatório e dispositivo, no qual o juiz é inerte e depende da atuação das partes, para que conserve sua posição de imparcialidade.

Por fim, com relação ao código procedimental, outra alteração louvada na exposição de motivos, foi a ampliação da possibilidade de decretação da prisão preventiva, vez que foram colocados termos extremamente vagos para seu cabimento:

A prisão preventiva, por sua vez, desprende‑se dos limites estreitos até agora traçados à sua admissibilidade. Pressuposta a existência de suficientes indícios para imputação da autoria do crime, a prisão preventiva poderá ser decretada toda vez que o reclame o interesse da ordem pública, ou da instrução criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal. Tratando‑se de crime a que seja cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a 10 (dez) anos, a decretação da prisão preventiva será obrigatória, dispensando outro requisito além da prova indiciária contra o acusado. A duração da prisão provisória continua a ser condicionada, até o encerramento da instrução criminal, à efetividade dos atos processuais dentro dos respectivos prazos; mas estes são razoavelmente dilatados. (CAMPOS, 1941, p. 04-05).

O uso exacerbado de tal medida cautelar e excepcional será melhor visto adiante, de forma que é possível verificar que a ideia de quando o código foi pensado foi, justamente, para que a prisão preventiva pudesse ser usada quando o juiz entendesse conveniente, sendo que, seu âmbito de atuação somente foi restringido após reformas democráticas pontuais.

Além disso, o Poder Judiciário ficou enfraquecido frente às leis mais restritivas que foram sendo criadas, de forma que, inclusive prefeitos e governadores tiveram seu âmbito de atuação restringido com a nomeação de interventores, que eram cargos nomeados pelo Presidente Vargas para que pudesse ter pessoas de confiança nos Estados e informar o governo federal dos pormenores da política daquelas localidades, para evitar conflitos e controlar mais de perto.

Também, nesta mesma época foi editada a Lei das Contravenções Penais, que são consideradas espécies de infrações penais, sendo que, a clássica doutrina afirma que as infrações penais em são divididas em crime e contravenção, sendo estas infrações de menor gravidade, demonstrando que o Estado buscava controlar todas as condutas sociais por meio da ameaça penal, o que demonstra como o Estado era autoritário, conforme a doutrina afirma:

Ademais, nunca é demais salientar que este período ficou marcado pela forte intervenção do Poder Executivo, o qual intervia diretamente na elaboração das leis, sobretudo com a expedição de decretos-leis, e a frequente violação de direitos fundamentais que à época ainda eram escassos.

Entre esses e outros motivos, estão as causas que findaram numa edificação de uma legislação de comportamentos tão monitorados quanto é a Lei de Contravenção Penal, ante o pensamento daquela fase de que Estado deveria gerir todos os passos da sociedade, inclusive nas mínimas maneiras de se portar perante o terceiro e, assim supostamente estariam regulamentando os comportamentos típicos de complexidade que naquela época era necessário. Grifo meu. (RODOVALHO, 2010, p. 66).

Ainda, nota-se que eram tomadas diversas medidas de cunho ditatoriais, como a instituição da Lei de Segurança Nacional, Lei nº 38/35, que foi uma forma encontrada para censurar a imprensa. Notadamente quanto sua opinião era contrária ao governo.

Salienta-se que, na época, toda a propaganda governamental era baseada na instituição da chamada “Lei e Ordem”, afirmando que o governo deveria estabelecer leis fortes para manter o país unido, principalmente livre de movimentos separatistas.

No diário de Vargas, é possível ver suas conclusões:

“O governo necessita de leis que o fortaleçam contra essa onda dissolvente de todas as forças vivas da nacionalidade”, avaliava. “A polícia sente-se vacilante na repressão aos delitos, pelas garantias dada pela Constituição à atividade dos criminosos e o rigorismo dos juízes em favor da liberdade individual.” Grifo meu. (NETO, 2016, p. 198).

Desta forma, é possível notar que o então Presidente da República considerava as garantias constitucionais estorvos à implantação da chamada ordem pública. Na mesma citada obra, é possível observar a forma de procedimento do governo:

As prisões de jornalistas e de trabalhadores suspeitos de subversão iriam se tornar frequentes. No geral, as abordagens policiais dispensariam as formalidades previstas em lei [...]. Além de que “a simples denúncia originava a prisão imediata do suspeito. Não era a certeza da prática efetiva do crime, mas a mera possibilidade de um delito vir a ser praticado que determinada o encarceramento de um indivíduo” (NETO, 2016, p. 257).

Assim, é possível perceber que quando o atual Código Penal e Código de Processo Penal foram editados, o país passava por um período autoritário, no qual as garantias constitucionais estavam sendo minimizadas e privilegiava a soberania do Estado.

Em âmbito diametralmente oposto foi promulgada a Constituição Federal de 1988. Inicialmente, a Constituição atual foi promulgada, editada em Assembleia Nacional Constituinte, ao contrário da Constituição de 1937, a qual havia sido outorgada pelo Presidente da República, sem a devida representação popular.

Ainda, a Constituição atual foi editada em um momento de redemocratização do Estado Brasileiro, que se recuperava da ditadura militar (1964-1985), sendo que, ao final desta, vários movimentos populares clamavam pelas “diretas já” para que a população escolhesse diretamente seus representantes, e não o voto indireto para o Presidente da República.

Neste sentido, como o país tinha visto como era um Estado autoritário, o povo buscou se afastar daquele modelo e exigiu um Estado democrático, que se consolidou na Constituição atual, que consagra garantias constitucionais individuais, que protegem o cidadão contra o abuso do Estado, bem como garantias sociais, no sentido de prestação de serviços públicos para a população em geral.

No que tange às principais alterações com a atual Constituição, o doutrinador Pedro Lenza sintetiza com a costumeira maestria:

Declaração de direitos:

a) os princípios democráticos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos estão consolidados no texto, consagrando direitos fundamentais de maneira inédita, por exemplo, ter tornado o racismo e tortura (que já havia sido abolida – art. 179, XIX, da Constituição de 1824) crimes inafiançáveis;

b) os direitos dos trabalhadores foram ampliados;

c) pela primeira vez se estabeleceu o controle das omissões legislativas, seja pelo mandado de injunção (controle difuso), seja pela ADI por omissão (controle concentrado), [...];

d) introduziu-se a ADPF – arguição de descumprimento de preceito fundamental [...];

e) outros remédios também foram previstos pela primeira vez no texto, quais sejam, o mandado de segurança coletivo e o habeas data;

f) há previsão específica, pela primeira vez, de um capítulo sobre o meio ambiente (art. 225);

g) nesse sentido, destacam-se, dentre as funções institucionais do Ministério Público, a de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 127, caput, e 129, III);

h) outra relevante função institucional do MP é a de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas (art. 129, V);

i) importante previsão da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. Por força das alterações promovidas pela Lei n. 11.448/2007, a Defensoria tornou-se parte legítima para a propositura de ação civil pública. [...]. (LENZA, 2014, p. 143-144).

Com isso, é possível ver, de forma nítida, as diferenças entre a Constituição Federal atual e os diplomas penais da década de 1940 que, além do grande espaço de tempo entre elas, também há filosofias e ideologias quanto à organização do Estado completamente diferentes: a Carta Magna busca tornar o país democrático e com garantias individuais, enquanto os diplomas penais convergiam no sentido de um Estado mais forte frente aos cidadãos.

Salienta-se que, com base nessa distinção, o processo penal e o direito penal devem se compatibilizar com a Constituição atual, e não o oposto. Nisso bem ponderou o doutrinador Aury Lopes Junior:

Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, a consciência de que ela constitui a ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá por meio de sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 34).

Assim, considerando que as leis infraconstitucionais devem se adequar à Constituição, os diplomas penais devem se moldar à sistemática da Constituição democrática atual, e nunca o oposto. Ou seja, o direito penal deve se adequar à dogmática constitucional e garantista do Estado atualmente ao invés de fundamentar medidas atentatórias às liberdades individuais em disposições legais anacrônicas.

3.2. A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL

Como foi visto anteriormente, o direito penal deve se adequar à nova ordem constitucional, de forma que, como em todo país de base democrática, o que necessita de legitimação é o poder de punir estatal e não a liberdade individual, que decorre da própria dignidade da pessoa humana.

Ou seja, em um país democrático, a liberdade é a regra e a prisão é a exceção, devidamente fundamentada, e nunca o oposto, como pugnam movimentos populares de lei e ordem. Sobre isso bem preleciona o mestre Aury Lopes Junior:

A perigosa viagem discursiva que nos está sendo (im)posta atualmente pelos movimentos repressivistas e as ideologias decorrentes faz com que, cada vez mais, a “liberdade” seja “provisória” (até o CPP consagra a liberdade provisória...) e a prisão cautelar (ou mesmo definitiva) uma regra. Ou, ainda, aprofundam-se a discussão e os questionamentos sobre a legitimidade da própria liberdade individual. Principalmente no âmbito processual penal, subvertendo a lógica do sistema jurídico-constitucional. [...]

Destaque-se: o que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, é a intervenção estatal e não a liberdade individual. [...]

A liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito à vida e da própria dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constitucional e tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito em que vivemos. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 35).

Desta forma, não se deve alterar o discurso, no sentido de ser necessário fundamentar do porquê um réu pode permanecer em liberdade durante o processo penal, vez que esta é a regra. Na realidade, deve sempre ser fundamentado do porquê determinado réu precisa ficar em medida cautelar prisional, vez que a liberdade é a regra e prisão é exceção.

Ainda, importante salientar que o processo penal como um todo é uma garantia ao cidadão, que, além de saber quais os procedimentos que serão feitos, com seus direitos a eles inerentes, há um tempo para que se pondere sobre o ocorrido, evitando-se verdadeiras vinganças institucionalizadas.

É que o afirma Aury Lopes Junior, continuando seu raciocínio da citação anterior:

Não podemos sacrificar a necessária maturação, reflexão e tranquilidade do ato de julgar, tão importante na esfera penal. Tampouco acelerar o ponto de atropelar os direitos e as garantias do acusado. Em última análise, o processo nasce para demorar (racionalmente, é claro), como garantia contra julgamentos imediatos, precipitados e no calor da emoção. [...]

A urgência conduz a uma inversão do eixo lógico do processo, pois, agora, primeiro prende-se para depois pensar. Antecipa-se um grave e doloroso efeito do processo (que somente poderia decorrer de uma sentença, após decorrido o tempo de reflexão que lhe é inerente), que jamais poderá ser revertido, não só porque o tempo não volta, mas também porque não voltam a dignidade e a intimidade violentadas no cárcere. [...]

Nessa linha, evidencia-se o cenário de risco e aceleração que conduz a tirania de urgência no processo penal. Essa nova carga ideológica do processo exige especial atenção diante da banalização da excepcionalidade. O contraste entre a dinâmica social e a processual exige uma gradativa mudança a partir de uma séria reflexão, obviamente incompatível com o epidérmico e simbólico tratamento de urgência. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 48-53).

Assim, deve haver um equilíbrio entre o trâmite processual e a maturação sobre os fatos que estão sendo apurados, devendo obedecer à razoável duração do processo, para que não se faça juízos precipitados e injustos, verdadeira vingança institucionalizada, mas que não fique na mora judicial e se efetive a tutela jurisdicional tardiamente.

3.3. A NECESSIDADE DE AUTONOMIA DOGMÁTICA DO PROCESSO PENAL

Além de o processo ser um fator legitimador, é também necessário, pois não existe a aplicação de pena sem o devido processo legal, ou seja, a pena não é uma consequência somente do delito, mas também do processo.

Sobre isso, afirma Aury Lopes Junior:  

Em relação ao direito penal, a autonomia obtida é suficiente, até porque, como define Carnelutti, delito e pena são como cara e coroa da mesma moeda. Como o são direito penal e processual penal, unidos pelo “princípio da necessidade” – nulla poena sine iudicio – tão bem definido por Gomez Orbaneja. [...]

Já no campo penal tudo é diferente. O direito penal não é autoexecutável e não tem a realidade concreta fora do processo. É castrado. Se alguém for vítima de um crime, a pena não cai direta e imediatamente na cabeça do agressor. O direito penal não tem eficácia imediata e precisa, necessariamente, do processo penal para se efetivar, pois o processo é um caminho necessário e inafastável para chegar na pena. (LOPES JR., 2021, p. 67),

Ainda, segundo o mesmo autor, tomando como base as lições de Carnelutti, escrito no artigo intitulado “Cenerentola”, Cinderela, da fábula infantil, afirma que o direito penal foi como a Cinderela, de forma que sempre tinha que fazer um esforço para caber nas roupas das irmãs, o direito civil e processual civil.

Neste sentido, o autor ressalta a importância da independência dogmática do processo penal, citando diversos exemplos, como: no processo penal, a forma é garantia de poder, de forma que não se pode importar o princípio do pás de nulité sans grief, pois a mera inobservância do procedimento já é um prejuízo para o réu, apesar de a ação ser autônoma ao direito material, no processo penal, não há como ter uma cisão tão nítida, vez que é preciso demonstrar o mínimo de autoria e indícios de materialidade para deflagrar a ação penal.

Também, afirma que não se deve falar nas clássicas condições da ação (notadamente interesse processual), pois o processo penal é uma necessidade para imposição da pena; tampouco deve se falar em lide penal, vez que não há propriamente uma pretensão resistida, mas sim, uma pretensão acusatória do poder condicionado de punir; a jurisdição é uma garantia ao cidadão e um limite de poder; a imparcialidade do juiz é essencial, pois está pairando sobre o réu a possibilidade de sanção criminal, com isso, o juiz não deve buscar provas ou mesmo analisar as investigações preliminares, sob pena de ficar contaminado.

Sobre a imparcialidade, o referido autor afirma que “o ativismo judicial mata o Processo Penal. Juiz ator, que vai atrás da prova, desequilibra a balança, mata o contraditório e fulmina a imparcialidade” (LOPES JR., 2021, p. 70), o que demonstra a essencialidade de um juiz que respeite sua posição e deixe a cargo das partes a produção probatória, salientando o ônus da prova do Ministério Público em provar a culpa do réu.

Tal posição contraria totalmente o que foi pensado para o Código de Processo Penal, como foi visto na exposição de motivos, vez que foi elogiada pelo autor a possibilidade de o juiz tomar medidas de ofício, típico de procedimento inquisitivo.

Enfim, diversas são as “adaptações” feitas pela teoria geral do processo para que o processo penal consiga ter parte nesta teoria geral. Entretanto, diversas peculiaridades do processo penal se perdem meio a tal teoria. Assim, por ser um ramo específico, deve ter sua autonomia dogmática e seus institutos próprios respeitados.

3.4. AS CARACTERÍSITICAS DO DIREITO/PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Como foi visto no primeiro tópico, tanto o Código Penal quanto o Código de Processo Penal são datados da década de 1940, momento em que o Brasil passava por um período de governo autoritário de Getúlio Vargas.

Nesse sentido, em que pese as diversas alterações dos diplomas legais para torná-los mais democráticos e compatíveis com a ordem social vigente atualmente, o sistema conserva suas bases e diretrizes daquele período, sem contar na prática forense que, muitas vezes, acaba dando mais valor aos diplomas penais que a própria Constituição.

Neste sentido, é ponderado pela doutrina:

O processo penal brasileiro deveria se constitucionalizar e democratizar, abrindo-se para a esfera protetiva ali estabelecida, bem como se convencionalizando. Sem embargo, a prática forense, fruto de uma forte cultura inquisitória arraigada, opera em sentido inverso: comprime a esfera de proteção constitucional e convencional para entrar na forma autoritária do código. [...]

A banalização do direito penal gera uma enxurrada diária de acusações, muitas por condutas absolutamente irrelevantes, outras por fatos que poderiam ser objeto do direito administrativo sancionador ou de outras formas de resolução de conflitos e, ainda, uma quantidade imensa de acusações por condutas aparentemente graves e relevantes, mas carentes de justa causa, sem um suporte probatório suficiente para termos um processo penal (em decorrência da má qualidade da investigação preliminar, também fruto – no mais das vezes – da incapacidade de dar conta do imenso volume de notícias-crimes). Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 92-93).

Ou seja, nota-se que atualmente o processo penal passa por sérios problemas, notadamente o número exagerado de crimes a se investigar, sem quantidades suficientes de pessoal nas polícias, de forma que há que perder tempo com condutas mínimas, como o uso de drogas, momento em que poderia focar em produzir uma investigação mais robusta para os crimes mais graves, como homicídio, latrocínio, entre outros.

A falta de investigação mais profunda dos crimes será abordado mais adiante no trabalho, momento em que será debatido a prova policial no processo penal, que assume protagonismo, em virtude de ausência de produção de outras provas mais concretas.

Outra característica marcante no processo penal é a ampla utilização das medidas cautelares, notadamente a prisão preventiva, por ser a mais grave e passa a sensação à população de que algo está sendo efetivamente feito e, quando uma pessoa é réu e um processo penal, há a sensação generalizada de impunidade e que “não vai dar em nada”, ou mesmo quando se descobre um crime e não foi imediatamente preso, a população em geral afirma que “não deu em nada”, apesar de o processo estar tramitando regularmente.

Nota-se, inclusive, que na exposição de motivos, foi justamente motivo de nota a ampliação dos casos em que seria aceita a prisão preventiva, sendo louvada tal alteração, para que o juiz pudesse analisar no caso concreto sua pertinência.

A prisão preventiva é marcante no tráfico de drogas, de forma que o discurso institucional (tanto do Ministério Público como do Poder Judiciário) é que o “Estado deve tomar posições enérgicas para combater tal crime”, que é “nefasto para a sociedade” que coloca a “saúde pública em xeque”, que é “equiparado a crime hediondo”, que “a pena mínima supera quatro anos, sendo cabível a segregação cautelar”, entre outros.

Ou seja, basta analisar as decisões que proferem as decretações de prisão preventiva, na grande maioria em conversão de flagrante em audiências de custódias e, pode-se ver claramente que a prisão preventiva acaba sendo fundamentada em expressões genéricas, que serve para motivar toda e qualquer decisão, sem se analisar detidamente o caso concreto e porque a cautelar segregacionista seria necessária naquela situação.

No estudo realizado por Maria Gorete de Jesus, no qual observou a construção da verdade jurídica a partir dos policiais militares nos casos de tráfico de drogas, foi assim concluído com relação ao uso da prisão preventiva:

Manutenção da prisão preventiva: garantia da ordem pública

Pesquisas mostram que nos casos de acusação de tráfico de drogas, a principal justificativa utilizada para manutenção da prisão provisória é a necessidade de garantir a “ordem pública” (ibidem, p.89).

Por ser um conceito vago e indefinido, são os operadores do direito que preenchem o significado deste termo, e fazem isto utilizando um “jogo discursivo extralegal”, que reúne avaliações sobre a periculosidade da pessoa acusada, os problemas sociais causados pela droga e a necessidade de defesa da sociedade (ibidem, p.130). Um dos juízes entrevistados disse que existe em torno do conceito “ordem pública” um “subjetivismo”: “existe uma coisa que opera, e é perversa, que é o subjetivismo do juiz. Na lei, há de se manter a prisão para garantir a ordem pública, mas ninguém sabe o que é ordem pública ninguém sabe o que é” (JUIZ 3).

Argumentos conjunturais – o tráfico

A defesa da sociedade representa o foco central de tais manifestações. Há avalições sobre o aumento da criminalidade, os danos sociais causados pelas drogas e outros argumentos que descrevem um cenário dramático da violência e do crime na sociedade. [...]

Durante uma audiência de custódia, o juiz disse ao acusado: “a sociedade espera de mim que eu a defenda de pessoas como você”. Ou seja, é como se este juiz dissesse que precisa prender para defender a sociedade dos riscos que a pessoa representa. A prisão é tida como importante para a manutenção da credibilidade no funcionamento da justiça criminal. E continuou “se eu te soltar, o policial que te prendeu vai se sentir desprestigiado, e a gente sempre escuta que a polícia prende, e o juiz solta, e a sociedade acredita nisto, preciso mostrar que não é assim que funciona”. Mais uma vez a sociedade é enunciada como o público ao qual o juiz precisa se manifestar, e faz isso através da prisão. Além disso, o famoso jargão “a polícia prende, o juiz solta” é descrito como um mito que precisa ser desfeito. [...]

Há uma certa “identificação” dos juízes com os policiais, (o mesmo acontece com relação aos promotores). Ambos são membros do Estado, dizem atuar em “defesa da sociedade” e pela “ordem pública”. Ambos necessitam um do outro para serem reconhecidos pela sociedade como importantes para a resolução de conflitos e para a proteção social. Este pode ser outro fator explicativo da crença dos juízes nos policiais, há uma empatia fundada no reconhecimento de semelhanças. [...]

Prisão para assegurar a conveniência da instrução criminal

Podemos dizer que a condição socioeconômica tem efeitos em três níveis: o primeiro é a incriminação, em que sua situação social será transformada em “indicio” para a definição do crime como tráfico de drogas; o segundo é o procedimento, em que o tratamento dispensado pelos operadores será diferenciado entre uma e outra pessoa a depender do status e classe social; o terceiro diz respeito à instrução criminal, em que a condição socioeconômica entra no cálculo da segurança de que a pessoa acusada responderá ao processo, sendo assim necessária a residência fixa e trabalho lícito. [...]

Os promotores e juízes não irão ao local onde ocorreu a prisão para saber, por outras pessoas, como foi a ocorrência. Não é este o papel desses operadores. Eles recebem inicialmente os relatos feitos pelos policiais, posteriormente, os relatos do acusado e eventualmente os relatos das demais testemunhas. Aliás, o sistema de justiça criminal pode ser pensado como um “sistema de crenças e práticas” (SCHRITZMEYER, 2012, p.92). Grifos meus. (DE JESUS, 2016, p. 175-176, 178, 183, 190 e 193).

Nesse sentido, não se analisa a necessidade da prisão preventiva em face das circunstâncias especiais do caso, mas sim, do crime em si que se apura, se for tráfico de drogas, a probabilidade de ficar preso preventivamente é muito grande, por ser um crime abstratamente grave.

Sobre esse fenômeno, é analisado pela doutrina:

A crise de credibilidade do processo e jurisdição conduz à ampliação dos casos de prisão preventiva, a menos liberdade no processo, menos direitos e garantias processuais e mais eficiência (leia-se: atropelamento procedimental). Em suma, conduz à ilusão de que, acelerando de forma utilitarista os processos, restringindo recursos, limitando o uso de habeas corpus e ampliando o espaço de justiça negocial, se chega o mais rápido possível a uma pena, de preferência sem precisar do processo. [...]

A prisão preventiva também tem sido distorcida para forçar acordos de delação premiada (mostrando a outra dimensão da crise a seguir tratada, da [in]eficácia da liberdade no processo penal), na seguinte (dis)função: delata para não ser preso; ou delata para ser solto, ou, ainda, é solto para delatar. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 93-94, 102).

O mesmo autor argumenta que é comum que o réu seja mantido preso sob o fundamento de garantir a ordem pública, caso em que não se trata mais do processo, mas sim, este acaba exercendo verdadeira função de polícia do Estado (LOPES JR., p. 123).

Dessa forma, percebe-se que ocorre uma verdadeira inversão de valores constitucionais, no qual a regra deveria ser a liberdade e a prisão em casos excepcionais, não sendo isso que acontece na prática, conforme se verá melhor adiante na análise jurisprudencial.

A referida pesquisa de Maria Gorete de Jesus citou um caso de um juiz de direito que ia contra a corrente de majoritária de creditar palavra aos policiais militares e converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, de forma que tal juiz sofreu denúncias na Corregedoria do Tribunal de Justiça, por intermédio dos promotores de justiça e, com isso, foi impedido de exercer sua função nas varas criminais:

As decisões deste juiz passaram a ser questionadas, sobretudo por promotores de justiça, que decidiram “representá-lo” junto à Corregedoria do Tribunal de Justiça, órgão correcional dos magistrados. A representação tinha como motivação central o fato do juiz “prender pouco e soltar muito”, sobretudo os casos de tráfico de drogas. Após tal ação, o juiz foi afastado do Fórum Criminal Central e deixou de ser designado para atuar nas varas criminais daquele Fórum, sendo colocado para atuar em uma vara da área cível.

O caso deste juiz suscitou uma série de questionamentos, sobretudo com relação à independência dos juízes. Revelou também uma pressão no interior do campo jurídico para tornar as prisões a regra, e não a exceção. E colocou em evidência o campo de imunidade da narrativa policial. (DE JESUS, 2016, p. 200).

Tal juiz foi ouvido e disse que:

No começo da minha carreira eu entendia a narrativa policial como algo central, porque você vai vendo jurisprudência no sentido de dizer que os policiais têm fé pública, que são funcionários públicos, e a própria doutrina valida muito isso [...]. Colocando na balança eu ia na corrente de acreditar na palavra do policial. Mas isso sempre me incomodou muito. Ainda mais quando a gente vai conhecendo a realidade, da lógica de guerra às drogas, é uma lógica muito polarizada. É natural que um dos lados, ao construir a sua versão da realidade faça uma narrativa que faça sentido, que dê legitimidade a sua ação. O policial é um agente da segurança pública, e existe uma lógica de guerra, ele vai apresentar uma narrativa voltada para garantir a prisão do acusado. Por isso eu passei a adotar uma jurisprudência, uma doutrina, que por mais minoritária que fosse, me subsidiava para decidir não apenas com base na palavra do policial, mas buscando outros elementos. Ou seja, a palavra do policial não é algo absoluto, é apenas um dos elementos que deve ser observado a partir de outras provas. Quando eu comecei a atuar contra a corrente, não utilizando os argumentos de senso comum, fui sendo destacado. Eu utilizava mais a jurisprudência e doutrina minoritárias que relativizavam a palavra do policial. Essas jurisprudências eram referentes a casos envolvendo pessoas com maior poder aquisitivo, que conseguiam bons advogados para fazerem seus casos chegarem aos tribunais superiores. Isso começou a chamar muito a atenção, porque não havia nenhum outro juiz que decidia na mesma linha que eu, vamos dizer assim, garantista. Os juízes garantistas não atuavam no plantão, então eu era o único, e isso começou a incomodar. Diziam que eu era o juiz que soltava. Eu estava atuando no plantão, e isso incomodou os “caras” [promotores], de ter alguém que nada contra a corrente. Daí eles se juntaram e fizeram uma representação e conseguiram me tirar de lá. Daí você vê a lógica do sistema. Eu tenho certeza que isso aconteceu especialmente por conta das minhas decisões nos casos de tráfico. E o judiciário, que deveria ser cuidadoso com a garantias fundamentais, e atuar de forma independente, funciona na lógica da guerra às drogas (JUIZ 12). Grifo meu. (DE JEUS, 2016, p. 200-201).

Para ser ter uma ideia do uso abusivo da prisão preventiva, em 2013 foi realizada pesquisa pela Associação pela Reforma Prisional (ARP) e Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Ucam (CESeC), na qual se constatou que 98% das prisões em flagrante por tráfico de drogas são mantidas no Rio de Janeiro, número quase absoluto, superior, ainda, ao do crime de homicídio, que tem taxa de 93% de manutenção das prisões.

Com base nisso, a doutrina mais abalizada afirma que é essencial a audiência de custódia, de preferência presencial, para que o juiz possa ter contato com o réu diretamente, verificar o caso e apurar a necessidade ou não da decretação da prisão preventiva.

Na oportunidade, é importante esclarecer a fundamentalidade do princípio do ne procedat iudex ex officio, o qual afirma que o juiz não deve agir de ofício, sendo que, tal expressão não deve ser considerada somente no momento de deflagração do processo penal, que deve ocorrer por meio da denúncia do Ministério Público e não de ato propriamente do juiz, de forma que o juiz deve se manter igualmente inerte durante o restante do processo.

Ou seja, a partir do momento em que o juiz começa a realizar atos de ofício, sem provocação das partes, quer dizer que tem, ao menos, uma ideia dos fatos, e quer corroborar tais ideias para que possa fundamentar sua sentença posteriormente. Sobre isso, Aury Lopes Junior estabelece que o processo penal é realmente democrático quando a gestão da prova fica exclusivamente com as partes, e não com o juiz.

Ainda, convém citar suas preciosas lições:

Esse afastamento estrutural exige que a esfera de atuação do juiz não se confunda com a esfera de atuação das partes, constituindo uma vedação a que o juiz tenha iniciativa acusatória e também probatória. [...] O ne procedat iudex ex officio deve ser levado a sério e, obviamente, demarcar a posição do juiz durante todo o processo e não apenas no início. O ativismo judicial, o condenar sem pedido, o buscar provas de ofício, tudo isso produz um deslocamento estrutural que fulmina a posição do juiz por sacrificar o princípio supremo do processo: a imparcialidade. Não se pode, repetimos, pensar a estrutura sistêmica do processo e a posição do juiz, de forma desconectada da imparcialidade. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 104).

Ainda, o mesmo autor continua em suas considerações, afirmando que, mais do que o juiz ter efetivamente a imparcialidade, deve ter uma aparência de imparcial, de forma que deve ficar estruturalmente distante das partes para que o processo penal não caia em descrédito perante a sociedade.

Para garantir o verdadeiro processo democrático e acusatório, foi inserido no Código de Processo Penal, o art. 3º-A pela Lei nº 13.964/2019 (conhecida como pacote anticrime), que estabelece “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” – grifo meu (BRASIL, 2019).

Em que pese a novel inovação legislativa, até o presente momento, o texto se encontra suspenso pela medida liminar deferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298 do Distrito Federal, promovida pela Associação dos Magistrados do Brasil, a qual tal inovação legislativa promoveria grande alteração na rotina de trabalho dos fóruns brasileiros e que daria a entender que os magistrados estariam sendo parciais em seus julgados criminais.

Na realidade, a nova lei apenas busca adequar o processo penal brasileiro à Constituição Federal brasileira e seu regime acusatório, entretanto, há movimentos de oposição, como a citada associação, o que demonstra a cultura inquisitiva no Brasil.

Ademais, não se está afirmando que os juízes agem propositalmente de má-fé e não têm imparcialidade e são sempre inclinados a condenar o réu. O que se afirma é que o juiz que atua no inquérito policial, notadamente tomando decisões quanto à quebra de sigilo bancário, decretação da prisão preventiva, entre outros incidentes, fica contaminado.

Isso porque, desde a portaria inaugural do inquérito ou auto de prisão em flagrante, os magistrados estão em contato direto com a hipótese acusatória, notadamente em longas investigações, quando se pede várias vezes a dilação do prazo para finalização do inquérito, bem como invoca a tutela jurisdicional para decidir durante o inquérito, sendo que, na grande maioria das vezes, somente terá contato com a versão defensiva após o recebimento da denúncia, na resposta acusação, que se destina principalmente à absolvição sumária.

Nisso estabelece a doutrina mais abalizada:

O juiz brasileiro – por culpa da estrutura processual adotada até então – já inicia o processo completamente contaminado e sem a necessária originalidade cognitiva, na medida em que a “prevenção” fixa a competência. [...] A reforma trazida pela Lei nº 13.964/2019 pretende exatamente romper com essa estrutura inquisitória e superar esses problemas. [...]

Daí, uma vez mais, a imprescindibilidade do sistema doble juez, ou seja, que o juiz que atua na fase investigatória não seja o mesmo que depois instrua e julga. É a evidência de que o juiz das garantias (art. 3º-B e ss.) e a prevenção como causa de exclusão da competência (nesta perspectiva de não ser o mesmo juiz) são instrumentos absolutamente necessários. Grifo meu, (LOPES JR, 2021, p. 105-106).

Ou seja, o referido autor afirma que, ao contrário do que estabelece a legislação vigente, a partir do momento em que o juiz toma decisões em determinado inquérito, ele não deve ficar prevento a ele, mas sim deve ser excluído para que o caso não seja julgado por um juiz contaminado pelos elementos de convicção inseridos no bojo da investigação.

Ainda, o autor continua o raciocínio, citando a teoria da dissonância cognitiva desenvolvida na psicologia, que explica a reação do indivíduo ao ter que tomar uma decisão decorrente de teses totalmente distintas.

Em linhas introdutórias, a teoria da ‘dissonância cognitiva’ desenvolvida na psicologia social, analisa as formas de reação de indivíduo diante de duas ideias, crenças ou opiniões antagônicas, incompatíveis, geradoras de uma situação desconfortável, bem como a forma de inserção de elementos de ‘consonância’ (mudar uma das crenças ou as duas para torna-las compatíveis, desenvolver novas crenças ou pensamentos, etc.) que reduzam a dissonância e, por consequência, a ansiedade e o estresse gerado. Pode-se afirmar que o indivíduo busca – como mecanismo de defesa do ego – encontrar um equilíbrio em seu sistema cognitivo, reduzindo o nível de contradição entre o seu conhecimento e sua opinião. É um anseio por eliminação das contradições cognitivas, explica Schünemann. [...]

É de supor – afirma Schünemann – que ‘tendencialmente o juiz a ela [a imagem já construída] se apegará de modo que ele tentará confirma-la na audiência (instrução), isto é, tendencialmente deverá superestimar as informações consoantes e menosprezar informações dissonantes.’

Para diminuir a tensão psíquica gerada pela dissonância cognitiva, haverá dois efeitos (Schünemann):

a) efeito inércia ou perseverança: mecanismo de autoconfirmação das hipóteses, superestimando as informações anteriormente consideradas corretas (como as informações fornecidas pelo inquérito ou denúncia, tanto que ele as acolhe para aceitar a acusação, pedido de medida cautelar, etc.);

b) busca seletiva de informações: onde se procuram, predominantemente, informações que confirmam a hipótese que em algum momento prévio foi aceita (acolhida pelo ego), gerando o efeito confirmador-tranquilizador.

A partir disso, Schünemann desenvolve uma interessante pesquisa de campo que acaba confirmando várias hipóteses, entre elas, a já sabida – ainda que empiricamente – por todos: quanto maior for o nível de conhecimento/envolvimento do juiz com a investigação preliminar e o próprio recebimento da acusação, menor é o interesse dele pelas perguntas que a defesa faz para a testemunha e (muito) mais provável é a frequência com que ele condenará.

Por tudo isso, representa um avanço gigantesco a inserção dos arts. 3º-A a 3º-F pela Lei nº 13.964/2019, que finalmente consagra expressamente: o sistema acusatório no CPP; o juiz das garantias, que não atua de ofício e que, posteriormente, não será o mesmo a instruir e julgar; e, ainda, o sistema de exclusão (ou não inclusão) das peças do inquérito no processo. Grifo meu. (LOPES JR, 2021, p. 107-109 e 116).

Assim, considerando a teoria da dissonância cognitiva, bem como considerando a forma como o inquérito policial e o processo penal é feito no Brasil, o juiz fica a todo momento em contato com a versão acusatória, passando a criar uma imagem mental sobre o ocorrido, de forma que, ao tomar conhecimento da versão defensiva, via de regra, somente na resposta à acusação, momento em que a versão acusatória já está maturada no âmago do juiz.

Além do mais, outro fator importante para que o juiz possa conservar a sua versão de imparcialidade, é necessário que a gestão da prova seja eminentemente das partes, não do juiz, uma vez que todos os processos de países democráticos, o juiz conserva sua posição inerte e não prejudica sua posição distante das partes:

A imparcialidade cai por terra quando se atribuem poderes instrutórios (ou investigatórios ao juiz, pois a gestão ou iniciativa probatória é característica essencial do princípio inquisitivo, que leva, por consequência, a fundar um sistema inquisitório. A gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz conduz à figura do juiz-ator (e não espectador), núcleo do sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por derradeiro, a imparcialidade, sempre recordando que não se pode pensar o sistema acusatório desconectado do princípio da imparcialidade e do contraditório, sob pena de incorrer em grave reducionismo. A imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória. Grifo meu. (LOPES JR, p. 117, 2021).

Desta feita, outra característica marcante do direito processual penal brasileiro é a gestão da prova eminentemente com o juiz, sempre sob o argumento de que o juiz é o destinatário final da prova e, com isso, ele deveria verificar quais provas são pertinentes, podendo, inclusive, realizar determinadas provas de ofício, como oitiva de testemunhas, entre outros.

Isso macula o sistema acusatório, como foi bem ponderado pelo doutrinador, uma vez que se o juiz está buscando determinada prova, quer dizer que ele já tem o seu convencimento firmado sobre os fatos, querendo corroborá-los com as provas que busca.

O protagonismo judicial pode ser observado também nas oitivas de testemunhas, que, apesar de o Código de Processo Penal estabelecer claramente em seu art. 212 que as partes perguntarão diretamente às testemunhas, devendo o juiz questionar somente pontos complementares. Entretanto, em muitas audiências, nota-se que o juiz inicia a inquirição da testemunha, de forma que as partes perguntam após as perguntas formuladas pelo magistrado, invertendo totalmente a ordem que o estatuto processual penal previu.

No mesmo sentido, é comum ver na praxe é a formulação de perguntas indiretas, passando pelo juiz, para que este então questione a testemunha, quando na realidade o código estabelece de forma nítida que o questionamento será feito diretamente, com protagonismo das partes, não do juiz, devendo obedecer ao sistema do chamado cross examination.

Sobre isso, afirmam Flaviane Baldasso e Gustavo N. Ávila, em seu trabalho denominado “a repercussão do fenômeno das falsas memórias na prova testemunhal: uma análise a partir dos julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul”:

[...] Não basta que a lei trate da matéria. Se isso fosse suficiente para se tomar consciência a respeito de temáticas tão importantes ao processo penal, que podem culminar na restrição de um direito fundamental do cidadão tal qual é a liberdade, não se teria ainda hoje, passados nove anos da alteração legislativa que implantou o sistema de cross-examination no Código de Processo Penal, juízes presidindo a tomada de depoimento, como se num sistema presidencialista inquisitivo ainda estivessem. (BALDASSO, Ávila, 2018, p. 36).

Desta feita, temos mais um exemplo de sistemática do código que busca torná-lo mais acusatório, com a gestão probatória das partes, mas os juízes em geral, arraigados na cultura inquisitiva, acabam tomando para si a gestão, sempre sob o argumento de que eles são o destinatário da prova, voltando ao modelo inquisitivo dos Estados autoritários.

Outro caso que costumeiramente ocorre nas cortes brasileiras é o juiz querer assumir papel de vingador social, atuando de forma exacerbada, praticando atos que são verdadeiramente das partes, como determinar a juntada de determinada prova, bem como praticar atos de ofício, o que não deveria ocorrer, seja para beneficiar a acusação ou o réu. Tal ativismo judicial é claramente heranças do sistema inquisitório brasileiro.

Como claro exemplo, há o então juiz Sérgio Moro, que era o juiz responsável pelos casos da operação lava-jato, quebrou sua imparcialidade ao passar a discutir as teses com os procuradores, bem como ter uma curiosa proximidade entre eles, informando quando ocorreria os atos processuais, informalmente, fora da intimação do Diário Oficial.

Nesta feita, em pouco tempo tal juiz proferiu inúmeras condenações e virou herói nacional, notadamente pelas condenações serem vinculadas a membros de determinado partido e, quando o partido de oposição chegou ao poder, Moro foi convidado para ser Ministro da Justiça, aceitando tal convite, demonstrando clara posição político-partidária.

Ainda, em referidas operações policiais sobre corrupção, considerando que as pessoas investigadas são políticos ou conhecidos, é comum a espetacularização do trabalho tanto da polícia, como do juiz. Ou seja, o processo penal ou a investigação ficam sob o holofote, sendo que, a qualquer ato praticado ou prisão decretada, a mídia noticia rapidamente os fatos.

E, com base na narrativa da mídia, cria-se a opinião pública, as pessoas passam a debater fervorosamente se as decisões e os trâmites estão acertados, apesar da grande maioria ser leigo no assunto. Usualmente, quando se decreta uma prisão, é louvado, entretanto, quando se concede habeas corpus ou outra medida que não é constritiva, vem à tona bordões como “o Brasil é país de impunidade”, “o crime compensa”, entre outros, sem sequer entender qual foi a fundamentação jurídica utilizada naquele caso.

Além disso, qualquer pessoa que tenta explicar a decisão e os fundamentos utilizados em caso de uma concessão de habeas corpus ou expedição de alvará de soltura, poucas são as pessoas que se dispõem a realmente buscar entender, de forma que, a grande massa usualmente critica o juiz/desembargador, afirmando que ele não sabe tomar decisões ou que possivelmente ele teria sido corrompido.

Assim, a espetacularização do processo penal é uma constante, principalmente em casos famosos, como o caso Isabella Nardoni, de Suzane Richthofen, Tatiane Spitzner, etc., os quais são noticiados a todo momento, a qualquer ato processual. No caso de Suzane, por exemplo, todo ano em ela é agraciada com o direito de saída temporária, inerente ao regime semiaberto e aqueles que ostentam bom comportamento carcerário, a população em geral critica o Poder Judiciário, de forma que, apesar de ser salutar que as pessoas passem a se interessar pelo direito ou pela política, é necessário compreender além do senso comum, e buscar entender os fundamentos de tais ramos, que são autênticas ciências.

Desta feita, feitas breves considerações acerca de como o processo penal foi pensado em contraste com sua situação atual, bem como a explicitação de algumas teorias a ele relacionadas, passa-se a analisar como são feitas as apurações dos crimes de tráfico de drogas no Brasil, com foco no depoimento dos policiais militares como sendo única prova para comprovar a autoria do crime do acusado.

4. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O TRÁFICO DE DROGAS

Atualmente, é de conhecimento notório que a questão das drogas é tratada na Lei nº 11.343/2006, a qual institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção de usuários e dependentes de drogas, e estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito, além de definir os tipos penais, regulamenta o procedimento específico.

A lei é considerada uma troca de paradigma, ao não punir com pena privativa de liberdade o usuário de drogas, que teve viés médico, ao contrário da lei antiga, de forma que, no art. 28 que trata da matéria o crime de uso de drogas é punido com advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviço à comunidade, bem como medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

De outro lado, as penas do tráfico de droga e seus crimes relacionados foi fixada em patamar alto, com pena de reclusão de 5 a 15 anos, além do pagamento de quinhentos a mil dias-multa. Ainda, o tipo penal prevê 19 condutas típicas, punindo todas as condutas relacionadas à cadeia produtiva e comercial dos tóxicos, sendo que, por ser um tipo misto alternativo, basta que o agente pratique uma das condutas para que incorra no crime.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, sendo crime comum, sendo a pena aumentada de um sexto a dois terços no caso do agente se prevalecer de função pública ou no desempenho de função de educação, poder familiar, guarda ou vigilância, dada à maior gravidade. O sujeito passivo será a coletividade, de forma que o bem jurídico tutelado é claramente a saúde pública.

A consumação pode variar de acordo com o verbo previsto, podendo ser instantânea (vender, adquirir, oferecer, etc.) ou permanente (transportar, trazer consigo, ter em depósito, etc.) sendo que, neste último caso, a prisão em flagrante pode ocorrer em qualquer momento, inclusive podendo entrar no domicílio por estar configurado o estado flagrancial, conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp 1.398.920/RS, HC 307.779/SP).

A tentativa, por sua vez, é possível, porém difícil de ocorrer na prática, vez que diversos atos preparatórios do crime foram tipificados como infração autônoma, vez que a lei foi criada com claro intuito de forte repressão ao tráfico de tóxicos.

Para que o esteja presente o elemento subjetivo do crime, é necessário que o dolo do agente seja de entregar a outrem, seja a título oneroso ou gratuito, de forma que a lei não fixa critérios objetivos para determinar se a droga era destinada ao comércio ou ao uso, para que seja possível que o juiz verifique o caso concretamente.

Nisso o art. 28, § 2º da lei de drogas estabelece que, para determinar se a droga se destinava ao consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e a quantidade de substância apreendida, ao local e as condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente.

Desta forma, as informações serão obtidas no momento da abordagem, havendo casos em que a diferença entre o uso e o tráfico pode ser tênue e depende somente da interpretação do magistrado.

Sobre isso, estabelece os doutrinadores Victor Eduardo Rios Gonçalves e José Paulo Baltazar Junior:

Todas as figuras relacionadas ao tráfico de entorpecentes são dolosas. Pressupõem, também, prova de que a intenção do agente é a entrega da droga a outrem, a título gratuito ou oneroso. Essa prova pode ser feita pela quantidade de entorpecente, pela forma de acondicionamento (em várias porções individuais prontas para entrega ao consumo alheio), pela variedade da droga (o mero usuário não traz consigo diversos tipos de drogas), pelo comportamento do acusado (parado em via pública aguardando compradores), por interceptações telefônicas, pela apreensão de listas de clientes etc. É evidente que, quando o sujeito é flagrado durante a própria venda, a questão é muito mais facilmente solucionada no âmbito probatório. (GONÇALVES, JUNIOR, p. 95, 2020).

Além do mais, conforme se verá melhor adiante, quem fará o relato de como ocorreu o flagrante ou a investigação será o policial, de forma que o agente público dará as informações que considera relevante para formar o convencimento do juiz, podendo frisar aspectos que se inclinam para que seja caracterizado o crime mais gravoso.

A lei não define o que é droga especificamente, sendo que definiu como “substâncias ou produtos capazes de causar dependência, especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União” (BRASIL, 2006) de forma que o crime de tráfico de drogas se trata de norma penal em branco, vez que precisa de complemento em outro diploma legal, que se encontra na Portaria SVS 344/1998.

Por fim, o elemento normativo do tipo consiste na falta de autorização ou estar em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de forma que as pessoas em geral não têm autorização para realizar atos ligados às drogas, sendo que, caso haja autorização expressa, como em casos de pesquisas, obviamente não se caracterizará o crime.

Visto o tratamento legal do tráfico de drogas atualmente, mister se faz verificar qual a praxe forense de apuração e processamento do crime na prática.

4.1. COMO ERA A APURAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS HÁ DEZ ANOS

Antes de adentrar a valoração do depoimento do policial militar no âmbito, é essencial analisar e compreender como ocorrem os casos que chegam ao conhecimento do Poder Judiciário no âmbito de atuação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, notadamente na capital, onde, obviamente, há maior incidência deste crime.

Sobre isso, foi feito um estudo do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), intitulado “prisão provisória e Lei de Drogas – um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo”, no qual foi analisado 667 autos de detenção por porte de entorpecentes na capital paulista de novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011, apesar do grande lapso temporal, foram analisados processos mais recentes, confrontando-se os dados.

No que tange ao perfil das ocorrências, foi analisada a abordagem, apreensão, testemunhas e provas, bem como o enquadramento feito. Da abordagem, nota-se que 85,63% delas foram feitas por policiais militares, 9,58% da polícia civil, 1,8% de agente penitenciário, 1,5% por guarda civil municipal e 0,6% pela polícia federal.

Nas abordagens, 82,28% foram realizadas na via pública, 12,46% na residência, 2,25% em estabelecimento comercial, 1,95% em estabelecimento prisional e 1,05% outros. Da motivação da abordagem, 62,28% foram decorrentes de patrulhamento, 24,10% de denúncia, 4,19 para averiguar outro crime, 2,25 outros, 1,80 revista na penitenciária.

Nos casos de patrulhamento, a abordagem comumente é justificada por estar o sujeito em “atitude suspeita”, de forma que os policiais afirmam que há diversas formas de identificar possíveis suspeitos. Já as denúncias anônimas, que representaram porção significativa, ocorrem quando pessoa não identificada afirma que um indivíduo com determinadas características está realizando o tráfico de drogas em determinado local.

Tais abordagens e denúncias foram questionadas por defensores, que afirmaram que elas podem ser utilizadas para justificar arbitrariedades em face dos cidadãos, principalmente os mais pobres, moradores de bairros periféricos.

Como se verá melhor mais adiante, na esmagadora maioria dos casos, não há uma investigação duradoura para colher informações sobre o tráfico, tanto que, conforme demonstrou a pesquisa, a maioria dos casos se dá mediante abordagem de patrulhamento, sendo que, um fator que contribui para essa falta de investigação é a precariedade da polícia civil. Sobre isso, foi bem ponderado no estudo:

Os delegados apontaram uma série de precariedades na estrutura da Polícia Civil, tais como: falta de plano de carreira, estrutura e condições de trabalho, que deixam o policial civil desmotivado para realizar atividades que exigem uma atenção e dedicação maior desse profissional. Além disso, há falta de investimento em inteligência e tecnologias de investigações, que tem como consequência as dificuldades da polícia em apreender os grandes traficantes. De acordo com o delegado, o policial civil não tem um efetivo como o da Polícia Militar, e nem a estrutura dela. O entrevistado questionou o fato de o Brasil, em pleno Estado Democrático de Direito, ainda apresentar uma polícia militarizada, sendo isso um paradoxo. Acrescentou que o próprio fato de existirem duas polícias, subordinadas a dois comandos distintos, atrapalha a tentativa de se efetivar uma política de segurança pública adequada à realidade atual do país, pois ambas apresentam tensões e conflitos que prejudicam o cidadão. No caso de tráfico de drogas o conflito é constante, especialmente quando o assunto diz respeito ao tipo de enquadramento do delito, se porte para uso ou se tráfico. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 43, 2011).

Foi analisado, também, a região da cidade de São Paulo em que os flagrantes ocorreram, sendo que 38,54% ocorreram na zona leste, 21,18% na zona sul, 13,39% na zona norte, 12,20% no centro e 9,08% na zona oeste, além de 5,51% sem informação.

Apurou-se que 69,21% das abordagens a pessoa foi abordada sozinha, 22,49% foram abordadas duas pessoas e 8,40% três ou mais pessoas. Sobre a predominante ausência de demais pessoas foi ponderado no estudo:

Se a pessoa estava traficando seria lógico, em razão da natureza do crime de tráfico de drogas, que o usuário, ou qualquer outra pessoa que presenciasse o fato, fosse conduzido ao Distrito Policial (DP) para constar como testemunha. O Capítulo 3.2. demonstrará que este fato não é motivo de questionamento dos operadores, ao contrário, raramente há algum tipo de menção ao fato de a pessoa ter sido presa sozinha e o processo contar apenas com a versão dos policiais que efetuaram o flagrante. Grifo meu. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 44, 2011).

Analisou-se que em 82,48% dos casos não houve entrada na casa e 17,52% houve entrada, sendo que alguns ocorreram por meio da “entrada franqueada”, no qual o acusado teria permitido a entrada de policiais militares e a minoria se deu decorrente de abordagem em via pública e posteriormente entrada na casa. Sobre isso, houve muita discussão se a entrada na residência sem o consentimento do morador seria ilegal, sendo que a jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal é que o tráfico, na modalidade ter em depósito, é crime permanente e, como estaria em flagrante delito, a entrada seria permitida.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça realizou uma alteração de paradigma no HC 598.051/SP, ao ser proposto o prazo de um ano para que a polícia seja aparelhada com equipamentos de gravação para que possa saber exatamente como foi que ocorreu a abordagem, sob pena de continuar a fragilizar a inviolabilidade de domicílio.

O acórdão teve as seguintes conclusões:

As considerações e os argumentos expostos neste voto facilitam responder aos questionamentos feitos de início, de modo a concluir que:

1. Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.

2. O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.

3. O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.

4. A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.

5. A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência. Grifos meus. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus 598.051/SP, rel. min. Rogerio Schietti Cruz).

Com base no apurado, ainda, é possível notar que os agentes responsáveis pela persecução penal entendem as garantias penais e processuais penais como um estorvo para a realização do trabalho, sendo que é dito por um promotor de justiça “o excesso de garantismo e excesso de direitos das pessoas tá inviabilizando o direito penal, processo penal, que hoje nada pode fazer”.

Em âmbito oposto, os defensores criticam a posição do Ministério Público e juízes que sequer criticam a suposta “entrada franqueada” dos cidadãos, sem buscar avaliar melhor se realmente estavam de um consentimento voluntário do morador, in verbis:

Parece que ninguém quer se envolver, ninguém questiona, simplesmente confiam na polícia e ninguém se preocupa com isto. A acusação utiliza bastante assim ‘foi encontrado com tantas quantidades de drogas, foi flagrado por policial, e confessou informalmente que estava praticando venda de drogas’, seria natural qualquer pessoa questionar isto, mas nada é feito. Pra somar tudo isto, chega no DP a pessoa se mantém calada, como se houvesse um ‘ritual garantista’, quando na verdade isto é usado contra o próprio acusado. Muitas vezes o delegado nem colhe o depoimento do acusado e só fala pra ele assinar. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 47, 2011).

Da pesquisa de 2011, é possível concluir que 74% das prisões por tráfico de drogas têm apenas depoimento de policiais como testemunho para embasar, usualmente ratificado pelo delegado de polícia e posteriormente convertido em prisão preventiva na audiência de custódia. Desses casos, 91% terminaram em condenação. Ainda, a pesquisa observou que 86,64% dos casos acompanhados, o acusado respondeu à processo criminal.

Outro dado relevante analisado é a quantidade de droga apreendida em cada ocorrência, sobre isso, constatou-se que 62,13% das ocorrências foram apreendidas 100 gramas e 33,83% foram apreendidos mais de 100 gramas, demonstrando que é comum que traficantes andem com menos quantidade para evitar a caracterização do tráfico.

Importante ressaltar que a polícia militar realizou mais apreensões e, consequentemente, apreendeu mais drogas que a polícia civil, em comparação, ou seja, a PM realizou 85,63% das apreensões, somando um total de 1.802.825 gramas de cocaína e maconha, enquanto a polícia civil, responsável por 9,58% dos flagrantes, apreendeu 904.294 gramas das drogas. Desta forma, nota-se que a polícia civil teve atuação mais incisiva em grandes apreensões, vez que realizaram investigações prévias, enquanto a polícia militar comumente apreende pequenas porções, vez que não realizam investigações profundas.

Sobre a prisão em flagrante, apesar de o art. 304 do Código de Processo Penal autorizar a lavratura do auto de prisão em flagrante sem testemunhas civis em situações excepcionais, como quando não for possível encontrá-las, entretanto, a exceção se tornou uma regra, de forma que a esmagadora maioria dos autos analisados somente os policiais eram as testemunhas do caso, mesmo que o flagrante ocorresse em situação que poderia haver outras testemunhas.

Sobre isso, foi ponderado no estudo:

A fala deste promotor revela que alguns operadores já consideram como “natural” o fato de o crime de tráfico de drogas não apresentar testemunhas que possam de fato afirmar se o acusado estava ou não traficando. O caso acaba ficando quase que inteiramente com a versão daquele que realizou a prisão, o que pode enviesar completamente o julgamento do caso. Para o promotor (3), um caso que seja todo construído a partir do testemunho de policiais não contaminaria o flagrante. Já para defensor (1) isso é um problema. [...]

A palavra do policial também acaba sendo valorizada nos casos em que é alegado que o acusado realizou uma “confissão informal” à autoridade que efetuou o flagrante. De acordo com os dados, em cerca de 44% dos casos, os policiais que realizaram a prisão em flagrante disseram que o acusado teria confessado o crime no momento da prisão. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 60, 2011).

O estudo descreve as estratégias utilizadas pela polícia militar para obter uma confissão, como afirmar ao abordado que se ele confessar, será liberado, ou muitas vezes, o acusado confessa para tentar se eximir da culpa, como que só estava vendendo a droga a mando de outra pessoa, como se estivesse apenas cumprindo ordens.

Ainda, a pesquisa apontou que 85% dos autos não têm foto, sendo a droga apreendida exibida em auto de exibição e apreensão, no sentido que a destinação da droga – tráfico ou uso – acaba sendo delimitada exclusivamente pela palavra dos agentes públicos.

Outra pesquisa realizada foi a realizada por Luiz Carlos Valois, em 2015, o qual analisou 250 documentos, sendo 50 de cada uma das cidades: São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília, sendo que, sua tese de doutorado virou o livro “o direito penal da guerra às drogas”, de forma que, tal pesquisa também chegou ao mesmo número de 74% dos autos de prisão em flagrante contaram com apenas o depoimento dos policiais militares.

Nota-se que, quando há a prisão em flagrante, o inquérito policial é apenas os autos da prisão, sem a realização de maiores investigações, sendo admitido, inclusive por promotor de justiça, que o ideal seria a realização de outras diligências:

Com relação às provas, os entrevistados alegaram que raramente são produzidas outras provas além do que foi produzido durante a lavratura do flagrante. Para o promotor (4), quando o flagrante chega à delegacia raramente é iniciada uma investigação, “a Polícia Civil não faz este trabalho, os inquéritos nada mais são do que os autos de prisão em flagrante”. O entrevistado acrescentou que isso acontece porque grande parte das prisões é realizada pela PM, que não tem poder investigativo‐ “os PMs não precisam se preocupar em reunir testemunhas, produzir provas porque isto é competência da Polícia Civil”, alegou o promotor.

De acordo com o promotor, há uma deficiência na colheita, o “ideal seria um trabalho de investigação, em que se reunissem mais provas, fossem ouvidas outras testemunhas, inclusive os parentes da pessoa apreendida”, completou o entrevistado. Grifo meu. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 64, 2011).

Com isso, novamente, surge a sugestão de filmagem da abordagem, como determinou recentemente o Superior Tribunal de Justiça, para que haja prova mais robusta de como ocorreu o desenrolar dos fatos. Na esmagadora maioria dos casos, ficam apenas os relatos em virtude da precariedade das investigações, sendo os policiais credibilizados porque seus depoimentos têm fé pública, incumbindo o réu de fazer a prova em contrário, em uma verdadeira distorção da presunção de inocência e ônus da prova.

Questão relevante foi a análise se havia menção à organização criminosa no flagrante, sendo que 94,31% não fazia menção, 3,89% sem informação e 1,80% sem informação, que mostra que a atuação da polícia acaba sendo de somente prender as pessoas que estão na “ponta da pirâmide”, vez que raramente as pessoas atuam sozinhas no tráfico e há outros envolvidos.

Isso ocorre porque as pessoas que estão em posições superiores não se expõem tanto, além de ter mais recursos para se blindarem de investigação, necessitando de investigações mais profundas e prolongadas para poderem chegar a essas pessoas, além de que, muitas vezes, há muita corrupção envolvida, justamente para que não se chegue a essas pessoas.

Com relação ao resultado dos processos analisados, constatou-se que em 91% dos casos foi proferida sentença condenatória, 3% absolutória e 6% desclassificatória, o que demonstra a prevalência de condenações nos processos do tráfico de drogas. Ainda, foi observado que nas audiências de instrução e julgamento, na maioria dos casos, basta que os policiais militares repitam o que foi colhido na fase investigativa para que haja a condenação.

O estudo concluiu da seguinte maneira:

Nas audiências acompanhadas, foi possível verificar que a audiência de instrução e julgamento é, comumente, a repetição da colheita de depoimentos e do interrogatório realizados pela autoridade policial. Participam as mesmas partes, geralmente a defesa arrola uma ou duas testemunhas, que pouco tem a acrescentar sobre o fato em si. Salvo situações em que os policiais que efetuaram a prisão não se lembram do fato, o que não é raro até mesmo em virtude do tempo entre a ocorrência e a audiência, a confirmação dos fatos descritos no inquérito, sem maiores detalhes, basta para que haja uma condenação.

Durante o acompanhamento das audiências, a equipe de pesquisa pôde perceber poucas manifestações, tanto da defesa como da acusação, deixando a impressão de que a regra são audiências rápidas, curtas, objetivas e sem o confronto entre defesa e acusação. Houve audiências com debates entre as partes, mas foram poucos os casos.

Em relação à oitiva dos policiais que realizaram a prisão, cumpre destacar que foi dito pelos próprios policiais militares entrevistados, e confirmado por alguns juízes, promotores e defensores públicos, que, tendo em vista o decurso do tempo e o fato de que eles realizam diversas abordagens por dia e diversas prisões no mês, é difícil lembrar com precisão os fatos e detalhes das ocorrências que precisam testemunhar. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 83, 2011).

Como foi dito, é comum que os agentes da lei não se recordem exatamente como se deram os fatos, em virtude do tempo e que realizam diversas abordagens. Para que se possam lembrar melhor do caso, é comum que se leia o boletim de ocorrência e as declarações prestadas no momento do flagrante, para que se repita no momento da audiência.

Tais provas testemunhais, geralmente as únicas do processo, são aceitas normalmente pela praxe forense, sempre sob o argumento de que foram os policias que prenderam e realizaram toda a abordagem e que não há testemunha civil que quer se comprometer com o processo com medo de sofrer represálias.

Ou seja, como não há questionamento sobre essas provas por parte do judiciário como um todo, a praxe se repete, de forma que somente poderia se pensar em aumentar o standard probatório, a quantidade de provas mínimas para a condenação, quando o poder judiciário parasse de aceitar somente tais depoimentos como prova suficiente para condenação, o que, conforme mostra a prática, está longe de ocorrer.

Questão interessante foi que os pesquisadores, como qualquer operador do direito tem a sensação, é que a audiência de instrução e julgamento acabou se tornando uma mera formalidade jurídica do que realmente o momento processual para se colher provas e analisar melhor a questão, a massificação dos processos fez com que o judiciário fique engessado, com pouco interesse na apuração das demandas.

Como foi abordado anteriormente, insta ressaltar a exacerbação do uso de prisão preventiva na apuração deste crime. Isso porque, na pesquisa foi apurado que 88,64% dos processos apurados o réu permaneceu preso durante a tramitação e apenas 11,36% solto e, número similar quanto ao direito de recorrer em liberdade, sendo identificado que somente 7% teve este direito, frente a 93% dos que tiveram que apelar preso.

Nisso pode-se observar que, em que pese a prisão preventiva seja constitucional e se coaduna com o Estado Democrático de Direito, ela deve ser usada para casos excepcionais, devidamente fundamentada, sendo que, não é isto que é visto na prática, vez que as decisões de decretação da prisão são demasiadamente genéricas, e não fazem uma referência individualizada ao caso concreto que está sendo analisado.

Por fim, é concluído que há o seguinte padrão nos inquéritos e processos de tráfico de drogas, in fine:

A partir dos resultados da pesquisa, nota‐se um certo padrão nos flagrantes de tráfico de drogas, sendo que, em sua maioria:

a) Os flagrantes são realizados pela Polícia Militar, em via pública e em patrulhamento de rotina;

b) Apreende‐se apenas uma pessoa presa por ocorrência e há apenas a testemunha da autoridade policial que efetuou a prisão;

c) A média das apreensões comuns foi de 66,5 gramas de droga;

d) Os acusados não tem defesa na fase policial;

e) A pessoa apreendida não estava portando consigo a droga;

f) As ocorrências de flagrantes de tráfico de drogas não envolvem violência;

g) Os acusados representam uma parcela específica da população: homens, jovens entre 18 e 29 anos, pardos e negros, com escolaridade até o primeiro grau completo e sem antecedentes criminais;

h) Os réus são defendidos pela Defensoria Pública;

i) Respondem ao processo privados de liberdade;

j) Os acusados são condenados à pena inferior a 5 anos;

k) Aos condenados não é dado o direito de recorrer em liberdade. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 126, 2011).

Neste sentido, nota-se as conclusões da referida pesquisa, que será confrontada com dados mais recentes no próximo capítulo a fim de apurar se tal prática continua.

4.2. COMO É A APURAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS ATUALMENTE

Para se fazer um contraste de como a apuração do crime de tráfico de drogas está ocorrendo atualmente, em comparação com a pesquisa anterior, foi realizada uma pesquisa de jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Optou-se por também verificar como estava sendo o modus operandi na cidade de São Paulo para que diferenças regionais não interferissem na comparação, considerando que a pesquisa anterior também analisou a forma de persecução na cidade de São Paulo.

Assim, no sítio eletrônico do tribunal, realizou-se a pesquisa “tráfico de drogas” na ementa de acórdãos de segunda instância, filtrando-se os acórdãos do último mês em que a pesquisa foi feita (de 05/07/2021 a 05/08/2021) para os casos da comarca de São Paulo/SP, selecionando somente as apelações criminais, excluindo-se os habeas corpus, vez que nesses casos o processo poderia não ter finalizado ainda.

Com base nisso, a pesquisa resultou 149 acórdãos exibidos, de forma que, com a numeração dos processos, consultou-se os autos na íntegra para coletar as informações necessárias à pesquisa.

Para fazer a coleta de dados e verificar as estatísticas, foi utilizado o formulário do “Google Forms”, respondendo às perguntas do formulário e computando quantitativamente. Inicialmente, foi descrita o motivo e como ocorreu a abordagem, com informações relativas a ela, como se houve prisão em flagrante, quantas pessoas estavam envolvidas, se os agentes entraram na residência do abordado, a quantidade de drogas flagrada, qual a espécie desta, se portava consigo, bem como se houve menção à organização criminosa.

A seguir, foi apurado qual foi o resultado da audiência de custódia, se a prisão foi relaxada por ser ilegal, se houve a concessão de liberdade provisória ou se foi convertida em prisão preventiva e sob qual fundamento.

Na fase processual, foi verificado se houve o oferecimento de denúncia, quais foram as testemunhas do processo, se eram exclusivamente de policiais militares ou havia outras. Foi apurado se houve condenação e qual seu embasamento, bem como se houve recurso, se foi provido ou não e no que consistia sua fundamentação.

Desta forma, analisando-se os dados, foi possível perceber que a grande maioria dos casos ocorreram em virtude de abordagem na rua, na qual os policiais militares se encontram em patrulhamento de rotina e avistaram determinado indivíduo em “atitude suspeita”, procedendo então à abordagem e questionamentos.

Foi observado de que a maioria dos autos continha a expressão “atitude suspeita”, mas poucos especificavam no que esta realmente consistia, sendo que, em alguns casos foi dito que o indivíduo correu quando avistou a viatura, outros afirmaram que este estava em local conhecido por ser ponto de venda de tráfico de drogas.

Com relação à quantidade de pessoas nas ocorrências, verificou-se que 70,3% dos casos houve abordagem sozinho, 20,3% foram duas pessoas abordadas e em 9,5% dos casos foram abordadas três ou mais pessoas, podendo-se concluir que na maioria dos casos ocorre o flagrante com o indivíduo desacompanhado.

Durante a abordagem policial, verificou-se que em 72,1% dos casos os agentes entraram na residência do indivíduo, comparado a 27,9% que não entrou ou não houve menção especifica no processo. Insta salientar que nos autos que constam que houve entrada na casa, a maioria dos policiais dizem que o abordado confessou informalmente que tinha mais drogas na casa e que a entrada foi franqueada, apesar de que em muitos dos casos em interrogatório o réu se mantém em silêncio ou nega que permitiu a entrada dos policiais.

Foi analisado a quantidade de drogas encontrada com os abordados, sendo em que 32,4% dos casos foi encontrada até 100 gramas, em 20,9% entre 100 e 200 gramas, em 10,8% de 200 a 500 gramas e em 35,5% mais que 500 gramas, demonstrando que a quantidade de drogas era bem variada nas abordagens.

Para facilitar a visualização, tem-se o gráfico abaixo:

Figura 1

Fonte: formulário google forms.

Com relação à espécie da droga, em 10,8% dos casos foi apreendida maconha, em 12,2% cocaína, em 4,7% crack e em 29,1% maconha e cocaína, 4,7% maconha e crack, 6,1% crack e cocaína e 32,4% maconha, cocaína e crack. O gráfico abaixo demonstra a questão:

Figura 2

Fonte: formulário google forms.

Buscou-se analisar se a pessoa abordada portava a droga consigo ou não, sendo verificado que em 75% o indivíduo portava consigo, contrastado com 25% que não portava. Ainda, apurou-se que em somente 2,1% dos casos havia menção à organização criminosa e 97,7% não havia esta informação especificamente nos autos.

Com relação à forma de abordagem, verificou que em 99,3% dos casos analisados a pessoa abordada foi presa em flagrante, comparado a 0,7% que não foi. Em ato subsequente, verificou que 94,6% das prisões em flagrante foram convertidas em prisão preventiva, não houve nenhum caso de relaxamento da prisão em flagrante e em 3,4% foi concedida a liberdade provisória, demonstrando a ampla utilização da prisão processual.

Nas decisões de decretação da prisão preventiva, a fundamentação era quase idêntica: justificava-se a necessidade da medida sob o fundamento de que o crime é grave, equipado à hediondo, que atenta contra a saúde pública e precisa de uma resposta estatal urgente, de forma que, em poucas decisões houve uma fundamentação concreta a respeito da necessidade da prisão preventiva no caso específico, de forma que a maioria utilizava-se da gravidade abstrata do delito para justificar a medida, podendo tais decisões fundamentar qualquer caso.

Após a finalização do inquérito policial, que na grande maioria dos casos somente continha as informações a respeito do flagrante, os autos eram enviados ao Ministério Público, que em todos os casos ofereceu denúncia, deflagrando a ação penal. Na fase de instrução, foi apurado que em 93,2% dos casos somente havia os policiais militares como testemunha, arroladas na denúncia, em 4,1% dos casos havia policiais militares e policiais civis que participaram da apuração do ocorrido e em 2,7% dos casos também havia testemunhas civis.

Ao final dos processos analisados, 95,9% foi condenado e em 4,1% foi absolvido ou desclassificado para usuário, demonstrando o alto número de condenações proferidas pelos juízes de primeira instância. Tais sentenças utilizavam como fundamentação que a materialidade do crime de tráfico estava demonstrada pela apreensão da droga, comprovando estas realmente existem e que eram drogas realmente, por meio de laudos periciais, e a autoria era fundamentada, na esmagadora maioria, pelos depoimentos dos policiais militares que participaram da ocorrência.

Ou seja, nas sentenças constavam que “ouvidos em juízos, os policiais disseram que”, que era o mesmo que havia dito em fase inquisitiva, fundamentando a condenação em seus depoimentos “uníssonos” e “em consonância com os demais elementos dos autos”, sem, entretanto, especificar quais eram estes outros elementos que estavam sendo ponderados.

Das sentenças, em todos os casos houve recurso, a grande maioria das defesas, de forma que 47% foram providos ou parcialmente providos e 53% foram providos.

Assim, analisando todos os dados coletados, nota-se a grande semelhança nos processos de apuração de tráfico de drogas, de forma que a maioria dos autos se iniciam com o auto de prisão em flagrante, que o indivíduo foi abordado em local conhecido por ser ponto de tráfico de drogas, conclui-se que o inquérito, há denúncia, na instrução os policiais repetem o que disseram em fase inquisitiva e as condenações são embasadas em tais depoimentos e, posteriormente, os recursos defensivos raramente são providos.

Sobre a interpretação do vocabulário policial e a manifestação dos demais operadores do direito, a pesquisadora Maria Gorete de Jesus, em sua já citada pesquisa de doutorado, faz as seguintes conclusões a respeito do modus operandi das agências oficiais de controle, demonstrando como são recebidas as informações dos autos, sendo o mesmo padrão observado na pesquisa de jurisprudência:

Manifestações dos promotores

Com base nas análises das manifestações dos promotores nessa fase processual, identificamos o seguinte padrão de argumentos utilizados: 1) Narram os fatos conforme os relatos policiais, causando a impressão de que a versão dos agentes corresponde exatamente ao que aconteceu. (...) 2) Expõem como prova de “materialidade” do crime o laudo de constatação e o laudo de exame químico-toxicológico; 3) Narram os testemunhos policiais apresentados em audiência como prova da autoria, destacando o vocabulário policial que colabora para a definição do crime como tráfico de drogas: “o local era conhecido como ponto de venda de drogas”, “houve confissão informal”, “silêncio na delegacia”, “o réu estava na posse de X quantidade de droga, a qual tentou se desfazer quando da chegada dos policiais”, “estava com dinheiro”, entre outros; 4) Argumentam sobre o testemunho policial, de que ele deve ser acolhido e valorizado, em detrimento da versão dos réus e de possíveis testemunhas de defesa. Além disso, são vistos como agentes públicos no “cumprimento do dever legal”, “não tendo motivos para saírem por aí forjando tráfico”, “apresentam suas técnicas para realizarem os flagrantes”, e de que é necessário “crer” na palavra dos policiais (...). 5) Argumentam sobre a “gravidade” do crime imputado ao réu, que “equipara-se a crime hediondo”, “conduta que coloca em efetivo risco a comunidade ordeira”, “desagregando a família”, coloca “pais e filhos em conflito”, “sustenta atividades criminosas de maior envergadura”, dentre outros argumentos; 6) Descrevem o réu como alguém “perigoso”, especialmente nos casos em que há antecedentes criminais. Diante dos argumentos descritos acima, nota-se o uso do vocabulário policial nas manifestações dos promotores, assim como a necessidade de assegurarem o testemunho policial (“crer” na palavra do policial) para o pedido de condenação do réu. Esses operadores adotam a versão dos policiais como a verdadeira, e a partir dela realizam suas manifestações. [...]

Manifestações defensivas

Identificamos alguns padrões nas manifestações de defensores e advogados em suas defesas preliminares: 1) Problematizam as narrativas policiais sobre os fatos, alegando que as testemunhas eram os próprios policiais que efetuaram a prisão do acusado e, portanto, teriam “interesse em legitimar a prisão efetuada por eles”, não sendo, portanto, isentas e neutras; 2) Alegam insuficiência de provas para “ensejar a ação penal”, cabendo ser “rejeitada”; 3) Pedem a desclassificação de comercio ilícito de drogas para o porte para uso. Os defensores também solicitavam a liberdade provisória, alegando que “gravidade do crime de tráfico de drogas” ou “a intranquilidade social” não poderiam ser enunciadas como “argumentos no sentido de se impossibilitar a concessão de liberdade provisória”. [...]

Assim como os promotores, raramente vimos os defensores realizarem “sustentação oral” nas audiências de instrução e julgamento acompanhadas. Eles entregam ao escrevente um pen drive contendo as manifestações da defesa a respeito do caso. Ao analisar as peças da defesa, percebemos que muitas vezes a estratégia é ressaltar a falta de determinados elementos considerados centrais para a definição do delito como crime de tráfico de drogas. Por exemplo: a) a inexistência da menção à “confissão informal” do acusado sobre a traficância, o que confirmaria que o réu não estava vendendo drogas, b) a “ausência de dinheiro” no flagrante, o que poderia ser interpretado como um caso de porte para uso e não de venda, c) presença de apenas um tipo de droga; d) os policiais não terem mencionado que o réu foi preso em local conhecido como ponto de venda de drogas, e) os policiais não terem mencionado atos de compra ou venda de drogas pelo réu em seus depoimentos.

Recepção pelos juízes

Há uma tendência por parte dos juízes em acolherem as denúncias apresentadas pelos promotores, com a adoção de argumentos da própria acusação, tais como a “gravidade do delito”, a “necessidade do Poder Judiciário defender a sociedade” e a legitimidade dos depoimentos apresentados pelos policiais que efetuaram o flagrante de tráfico de drogas. A narrativa policial não passa por qualquer tipo de crivo relacionado à forma como a abordagem foi realizada, se houve abuso policial, se há suspeitas de tentativa de extorsão. Os juízes, assim como os promotores, na maioria das vezes, não questionam as narrativas policiais. O juiz recebe a denúncia e designa dia e horário para a audiência de instrução e julgamento, conforme o artigo 56º da Lei 11.343/2006.

Na audiência de instrução e julgamento o juiz ouve, primeiramente, as testemunhas de acusação. Em seguida, as testemunhas de defesa (se houver) e, por fim, o réu. O magistrado direciona uma série de perguntas às partes e, em seguida, passa a palavra ao promotor e à defesa (que pode ser representada pelo defensor público ou advogado particular). Ao fazer tais questionamentos, o juiz tem como referência o que foi produzido na fase policial, as narrativas das testemunhas e do réu. No caso de haver divergência entre as narrativas dos autos e da audiência, existe uma desconfiança com relação à verdade do que está sendo dito, a depender do depoente. Se os relatos forem considerados idênticos às narrativas iniciais, o juiz vai utilizar tal semelhança para considerar o que foi dito como verdadeiro. O trecho de uma das audiências acompanhadas exemplifica esta questão: “Observe-se que os depoimentos prestados em juízo por estes policiais estão plenamente coerentes e harmônicos, compatibilizando-se, com aqueles por eles prestados perante a autoridade policial”.

A partir das observações de campo, foi possível identificar quatro tipos de condução de inquirição das testemunhas policiais pelos juízes: a) uma em que os magistrados liam a denúncia e as narrativas dos policiais sobre os fatos e perguntavam a eles se eram verdadeiras aquelas informações, se as confirmavam285; b) outra em que os juízes faziam uma série de questionamentos, mas “corrigiam” algumas das respostas dos policiais, para que seus interrogatórios estivessem semelhantes ao que estava no autos286; c) outra em que os juízes faziam as perguntas, os policiais não se lembravam, mas isso não era considerado relevante pelos magistrados; d) por fim, outro tipo de condução identificada era a dos juízes que faziam perguntas, sem citar as narrativas presentes nos autos e sem corrigir as falas dos policiais. [...]

Nas audiências de custódia houve várias situações em que os juízes questionavam os acusados sobre os motivos pelos quais teriam “preferido” ficar em silêncio na delegacia. O mesmo questionamento é realizado na audiência de instrução e julgamento. O silêncio na delegacia é interpretado pelos juízes como um “indício” de que o acusado é culpado pelo crime que lhe é imputado. O questionamento feito aos réus evidencia essa associação entre o silêncio e a culpa. Os juízes perguntam “por que você não disse nada na delegacia?” Semelhante ao que foi visto nas audiências de custódia, as respostas dos réus não convencem os juízes. Alguns dizem que nada lhes foi perguntado na delegacia, que apenas lhe passaram um papel para assinar. Outros alegam medo de falar. Nenhum deles mencionou o silêncio como uma opção, fruto do direito constitucional de permanecerem calados e poderem se manifestar diante do juiz. P. [...]

Os juízes não perguntam ao réu como foi tratado na delegacia, se ele teve oportunidade de dar sua versão no momento do registro dos autos de prisão em flagrante. Este é um dos pontos ocultos aos operadores do direito na condução das audiências. Não há, nesta fase, nenhum questionamento em relação ao procedimento, nem sobre a condução do caso pela polícia. O campo de imunidade da narrativa policial, e do próprio policial. Possíveis ilegalidades, abusos e práticas de violência não fazem parte do interesse dos juízes, que focam sua observação apenas nos elementos que incriminam os acusados. Os contextos da prisão, da economia da droga, da política de segurança pública focada no aprisionamento e do papel central do policial na gestão dos ilegalismos permanecem ocultados aos juízes, que se restringem a observar apenas os “indícios” que vão contribuir para o seu convencimento na formulação da sentença. Grifo meu. (DE JESUS, 2016 p. 209-210, 211-212, 214-216, 227 e 229).

Com base nisso, nota-se que a depender do ator processual que se aborda, haverá uma recepção diferente do depoimento dos policiais militares. No caso da acusação, os relatos dos policiais são tidos como verdadeiros e integram suas manifestações, como a denúncia, alegações finais, etc. Já a defesa busca por em xeque as declarações, afirmando no sentido de que não há outras provas além da testemunhal e que não são suficientes para a condenação. Por fim, nota-se que a grande maioria dos juízes acolhem a verdade policial, de forma que foi possível notar as consequências sancionatórias quando o juiz vai contra o entendimento majoritário, sofrendo, inclusive, representação na Corregedoria de Justiça.

A seguir será analisado as diferenças e semelhanças das conclusões do estudo de referência, há dez anos e o atual, a fim de se verificar a evolução (ou não) da apuração no crime de tráfico de drogas.

4.3. CONTRASTES E SEMELHANÇAS NOS LAPSOS TEMPORAIS

Confrontando as pesquisas e considerando a diferença de tempo entre elas, nota-se claramente que houve pouca alteração no modus operandi das agências estatais envolvidas na repressão do crime, como a polícia militar, polícia judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário como um todo.

Fazendo a comparação entre as pesquisas, é possível observar que os mesmos padrões seguem repetidos, ainda que houve vários avanços tecnológicos que pudessem auxiliar na produção de provas cabais de autoria do crime, como gravações audiovisuais, entre outros.

Desta feita, a grande maioria dos casos de tráfico de drogas que chegam ao Judiciário continuam sendo os casos de prisão em flagrante, que ocorre no momento em que policiais militares estão fazendo patrulhamento de rotina em local conhecido por ser ponto de tráfico de drogas, avistam um indivíduo em “atitude suspeita”, fazem a abordagem e constatam drogas com ele ou nas proximidades e se lavra a ocorrência.

Na delegacia, ratifica-se o flagrante e o delegado opina pela prisão preventiva, que envia ao Ministério Público, o qual também se manifesta favorável à conversão em prisão preventiva na esmagadora maioria das vezes, culminando com a decisão de conversão do flagrante em preventiva, que é fundamentada por ser o crime grave, equiparado à hediondo, extremamente nocivo à sociedade, entre outros, decisões com certo grau genérico, que podem ser usadas para fundamentar qualquer decisão de prisão preventiva envolvendo tráfico de drogas.

Posteriormente, a ação é deflagrada pela denúncia, não ocorre a absolvição sumária e muito raramente é aceita a desclassificação do tráfico para usuário de drogas, sendo designada audiência de instrução e julgamento, na maioria das vezes somente para ouvir os policiais militares arrolados pela acusação, que repetem o que foi dito na fase inquisitiva, culminando com a condenação, embasando a materialidade do crime na apreensão e autoria nos depoimentos “uníssonos” e “compatível com os outros elementos dos autos” (até porque o processo só se iniciou em primeiro lugar por causa desses depoimentos).

Em que pese haja recursos, dificilmente se consegue a reforma da sentença quanto ao delito em si, logrando êxito a defesa em alguns casos a redução de pena aplicada, consoante o entendimento da câmara que julga a apelação.

Ou seja, nota-se que na grande maioria dos casos não há uma investigação mais a fundo a fim de desmantelar organizações criminosas ou buscar outros envolvidos que não ficam expostos na rua vendendo diretamente, o que demonstra a falta de preparo dos órgãos estatais de repressão a combater o crime organizado e desconstituir relações complexas do crime, conforme se verá melhor adiante.

5. A FORMA DE INSTRUÇÃO DAS AÇÕES PENAIS NO TRÁFICO DE DROGAS

O presente capítulo se destina a analisar melhor os dados coletados, tanto nas pesquisas referenciadas mais antigas, como nos dados coletados recentemente, a fim de apurar como ocorre a elaboração do inquérito policial para subsidiar a denúncia e como se dá a instrução durante a fase processual, com o seu resultado, ao final.

5.1. A PREDOMINANTE AUSÊNCIA DE INVESTIGAÇÕES PRÉVIAS E PRECARIEDADE DE PROVAS NAS AÇÕES PENAIS

Como foi visto na análise de dados anteriormente, tanto há dez anos como atualmente, na esmagadora maioria dos casos, o inquérito policial se inicia pela prisão em flagrante, notadamente no momento em que a polícia militar se encontra fazendo patrulhamento de rotina e avista indivíduo com “atitude suspeita”, procedendo então à abordagem.

Nota-se que pouquíssimos inquéritos foram abertos por portarias e determinada a realização de diligências pelo delegado de polícia a fim de ter uma investigação mais a longo prazo, com elementos informativos mais robustos para subsidiar a denúncia.

Isso ocorre por diversos fatores, notadamente a falta de estrutura da polícia judiciária, que tem quadro de pessoal defasado e deve priorizar as tarefas e, quando há a prisão em flagrante, há o senso comum de que não se faz mais necessário a realização de investigações mais a fundo.

Nesse sentido, constatou Maria Gorete de Jesus em sua pesquisa de campo:

O inquérito policial (IP) já é iniciado no mesmo dia dos fatos ou após a apresentação da ocorrência na delegacia, segundo os delegados entrevistados. Não há investigações posteriores. Assim, a instauração do inquérito policial não corresponde a um investimento investigativo do caso, mas apenas a um tramite burocrático que precisa ser encaminhado ao judiciário. O delegado mantém a descrição dos fatos realizada pelos policiais e o IP nada mais é do que a cópia dos autos da prisão em flagrante. “Já está tudo pronto, não precisa fazer investigação. Claro que se aparecer uma nova testemunha a gente inclui, mas raramente isto acontece”, disse o delegado 8. De acordo com esta fala, o inquérito policial ratifica tudo o que foi produzido nos autos de prisão em flagrante. (DE JESUS, 2016, p. 112/113).

Neste sentido, ante ao déficit da polícia judiciária de fazer tais investigações mais profundas, a apreensão de traficantes e a posterior prisão em flagrante ocorre, de forma majoritária, pela polícia militar, usualmente no patrulhamento ostensivo, no qual tem a importante função de manter a ordem pública.

E, como a polícia militar é a primeira instituição estatal a ter contato com o crime, ela que passará às demais autoridades, como o delegado de polícia, promotor de justiça e juiz de direito, a sua ótica sobre o ocorrido, de forma que, como se verá melhor adiante, a sua versão dos fatos é a que terá maior credibilidade, notadamente por suas palavras terem o condão de “fé pública” enquanto a versão do investigado/réu é desacreditada.

É o que estabelece o estudo realizado pelo Núcleo de Estudo de Violência da USP:

A prova da traficância se sustenta apenas na palavra dos policiais que efetuaram a prisão. Por mais experiente que seja o policial e levando em conta todo o conhecimento adquirido por ele, este policial é parte na ação e adota um posicionamento, sendo que seu testemunho sempre será no sentido de validar sua ação. Conforme já apontado por Raupp (2005), o policial, em seu depoimento, sempre vai buscar legitimar a própria conduta. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 59, 2011).

Nesse sentido, a forma como realiza a abordagem e repassa às demais instituições tem forte influência na forma que será definido o crime, principalmente nas questões para que seja distinguido o usuário do traficante, por ser uma linha tênue e subjetiva de apreciação, como demonstrado no capítulo anterior.

Ou seja, o objetivo do art. 28, § 2º da Lei nº 11.343/2006, que determina que o juiz que deve analisar a finalidade das drogas, analisando à natureza a e a quantidade da substância apreendida, local e condições em que desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e os antecedentes do agente é fazer com que não haja critério pré definido para verificar se se trata de usuário ou traficante.

Isso porque, caso houvesse substância, quantidade ou outro critério rígido em lei, o traficante poderia se beneficiar disso e sempre estar dentro dessas circunstâncias para se enquadrar como usuário. Entretanto, o alto grau subjetivo, por vezes, faz com que os critérios sejam usados de forma discriminatória, como foi visto na análise dos dados.

E, com a abordagem é feita pelos policiais militares, eles que farão a primeira leitura dos fatos e repassarão aos demais a sua ótica dos fatos, tendenciando se acredita que o indivíduo abordado é usuário de drogas ou traficante.

Sobre isso, afirma Jenyffer Félix Santana do Nascimento em seu trabalho sobre a palavra dos policiais militares:

Inobstante a regra seja de que os relatórios e demais documentos sejam produzidos de forma neutra, isenta, sem juízos de valor e sem que se permita influenciar ou expor opiniões pessoais dos agentes envolvidos, na prática, sabe-se que essa isenção, apesar de muitas vezes de fato buscada, não é alcançada em sua plenitude. Beira a utopia imaginar que um indivíduo possa produzir um documento ou relatório de determinada situação, sem expor ali, ainda que de forma indireta, suas impressões.

Isso porque as palavras usadas podem imprimir juízos de valor sem que isso esteja claramente explícito, influenciando, assim, aqueles que irão ter conhecimento do fato através daquela narrativa.

Ademais, o inquérito tem como finalidade precípua servir de base para a formação da convicção do Ministério Público, que os doutrinadores denominam opinio delicti. Com base nessa convicção, o parquet vai se posicionar no sentido de requerer o arquivamento ou apresentar a denúncia, que, como sabemos, é, em regra, a peça inicial da ação penal, podendo ser esta no sentido de inocentar ou acusar o futuro réu. Grifo meu. (NASCIMENTO, p. 19-20, 2018).

Também, o já citado estudo realizado pelo Núcleo de Estudo de Violência da USP também analisa a questão de a polícia ser a fonte primária que entra em contato com o delito, de forma a passar suas impressões às demais autoridades de repressão criminal:

A importância dessa declaração do policial ser bem fundamentada repousa no fato dela ser fonte primordial tanto para tipificação/enquadramento da conduta do acusado como traficante ou não na delegacia, como para o promotor oferecer a denúncia, já que a maioria dos casos em flagrante delito não apresenta investigação. Acrescenta‐se a isso o fato de, em 74% dos casos, a única testemunha da ocorrência ser um policial – aumentando aí o peso deste depoimento. Por fim, ressalta‐se que estas mesmas informações seguem para o DIPO e servem de base para o juiz dessa instância decidir sobre a manutenção ou não da prisão. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 98, 2011).

Ainda, no mesmo estudo, o próprio promotor de justiça entrevistado fala sobre a fragilidade da prova no processo:

“A grande maioria dos inquéritos que chegam para nós é precariamente instruída, por exemplo, se a gente avaliar as últimas instruções que realizamos no último ano vamos verificar que o que fundamenta toda a prova nestes casos é o depoimento dos policiais e a apreensão da droga. O réu nega, diz que não era ele, que a droga não lhe pertencia, que puseram na mão dele, os casos parecem replica um do outro, é sempre a mesma coisa, e já passou da hora de avançar nisto.” Grifo meu. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 119, 2011).

A pesquisadora Maria Gorete de Jesus analisou a questão e ponderou que:

Os critérios estabelecidos pela legislação para a definição do crime, se porte para uso ou para venda, são considerados genéricos, dependendo de “indícios” que lhes deem sentido de prova para se diferenciar o uso da venda. O 2º parágrafo, do artigo 28, descreve que para definir se a droga se destina para o consumo pessoal ou para o tráfico “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (BRASIL, 2006). Mas quais são as provas consideradas pelos juízes e que lhes permitem decidir pela condenação das pessoas acusadas por “tráfico”? Majoritariamente, aquelas produzidas pelos policiais do flagrante. Mas em que consistem tais provas? Em suas narrativas e nas substâncias apreendidas. No limite, é a polícia que define quem é “usuário” e quem é “traficante”. É esse agente que vai narrar os fatos como crime e oferecer à justiça criminal os “indícios” de “materialidade” e “autoria”, elementos fundamentais para o início de uma ação penal. Importante destacar também que são os policiais do flagrante que figuram majoritariamente como testemunhas nos casos de tráfico de drogas. Eles são, ao mesmo tempo, a ponta e o desfecho de todo o processo de incriminação na política de drogas. Grifo meu. (DE JESUS, 2016, p. 21).

Ainda, referida pesquisadora buscou analisar as circunstâncias sob a ótica das autoridades competentes, traçando as seguintes conclusões:

Quantidade da droga

Os entrevistados disseram que nem sempre a quantidade era um fator relevante para a definição do delito, mas correspondia a um ponto levado em consideração. “O traficante anda com pouca droga, justamente para não ser preso. Então, a quantidade não necessariamente é um bom indicativo” (PM8). Outro fator levado em consideração com relação à quantidade de drogas é a condição social do acusado. “Se a pessoa não tem condições financeiras para adquirir certa quantidade de drogas, é mais fácil enquadrar como traficante” (DELEGADO 8).

Tipos de drogas apreendidas

Quando há dois ou mais tipos de drogas diferentes, os policiais tendem a classificar como tráfico, “o comerciante vai ter uma variedade de drogas para vender, isso é um indicativo de comércio” (PM5). “O cara tem crack, cocaína e maconha, dividido em porções, é um bom indício de tráfico” (PM11).

A forma como a droga está dividida

“Se estão divididas, isso indica o tráfico. O usuário não vai sair por aí com vários saquinhos de drogas divididas” (PM3). “Se está dividida em porções, você ‘saca’ que é pra venda” (PM9).

Dinheiro

A presença de dinheiro, especialmente trocado, foi apontada como indício de comércio. “O vendedor precisa de dinheiro trocado para realizar a venda” (PM11). “O cara tá desempregado, mas tem dinheiro e droga, isso pra mim já é indício de que ele ganha a vida no tráfico” (PM5).

Local

O local é outro ponto apontando pelos policiais como relevante para a definição do crime. “Sabemos onde há ponto de venda de drogas, isso é um indício pra gente” (PM7). “Tráfico ocorre mais nas áreas conhecidas por venda de entorpecente, favelas. Caracteriza tráfico o local, a atitude das pessoas” (PM9).

Antecedentes criminais

Os antecedentes criminais são entendidos como indícios para a classificação do apreendido como traficante. “A gente puxa os antecedentes da pessoa, ele tem passagem por tráfico ele é traficante. A gente tem que saber com quem a gente está lidando” (PM3).

[...] então um indivíduo que está num local conhecido como ponto de venda de drogas, a famosa biqueira, tá lá a noite com dez pinos e um monte de dinheiro trocado no bolso, essa é uma circunstância que leva a crer que se trata de um traficante. Agora um indivíduo que está, sei lá, andando de carro e tem dois pinos, pode ser usuário [...]. Se o cara tem trabalho, residência fixa, isso tudo, então você analisa pelo contexto. Por exemplo, o traficante pode estar com um pino e um real no bolso, e o usuário pode ter um tijolo de maconha em casa, mas ser usuário. Normalmente quando chega aqui [delegacia] você consegue definir com certa facilidade, mas assim, se você imaginar sem um caso concreto, as vezes é difícil. Essa questão do traficante e do usuário é muito circunstancial (DELEGADO 5). Grifos meus. (DE JESUS, 2016, p. 106).

Outro fator que deve ser considerado é a corrupção que, apesar não ser a ênfase do presente trabalho, deve ser levado em consideração na análise dos dados, pois é comum ouvir que policiais forjam o flagrante com drogas, por ser de fácil produção, para que possa incriminar alguém, notadamente quando não conseguem fazer provas por meios lícitos admitidos em direito, pensando-se no brocado “os fins justificam os meios”.

Com base nisso, a citada pesquisadora acima afirma:

A indistinção entre “usuário” e “traficante” ampliou ainda mais o poder da polícia em definir o tipo de crime. Para Verissimo (2010), a Lei 11.343/2006 alargou a margem de poder de barganha e negociação da polícia - especialmente do policial militar que faz o trabalho repressivo e ostensivo de rua - ao mesmo tempo em que lhe conferiu um poder discricionário ainda maior. “O abismo entre as penas para uso e tráfico de drogas soma-se a imprecisão dos critérios para distinguir entre esses crimes, podendo favorecer práticas de extorsão” (VERISSIMO et al., 2011, p.141). A lei ampliou a margem de arbitrariedade policial, transformando a definição do delito em mercadorias políticas (ibidem, p.146). P. 29. (...)

Para Teixeira, a extorsão e a violência institucional são partes de um princípio organizador da gestão dos ilegalismos, cujo papel da polícia é central, sobretudo da Polícia Militar (PM). Cada vez mais a PM vem assumindo funções na gestão dos ilegalismos em São Paulo, processo que a autora chama de “militarização” (TEIXEIRA, 2012, p. 322). Na entrevista que realizou com 19 adolescentes da Fundação Casa, Teixeira teve acesso a narrativas das mais variadas situações de extorsão praticada por policiais. Como não apresentam muitos meios para “negociar” sua liberdade, muitos adolescentes acabam sendo presos por tráfico de drogas.

Sintia Soares Helpes (2014) também ouviu relatos de extorsão e violência policiais nas entrevistas que realizou com mulheres presas por tráfico de drogas. Foram comuns entre elas a narrativa de “flagrantes forjados”, em que eram acusadas sem terem cometido o crime (HELPES, 2014). (...)

A própria proibição legal cria “um campo de práticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer o controle e a tirar um lucro ilícito por meio de elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização em delinquência. Este é um instrumento para gerir e explorar ilegalidades” (FOUCAULT, 1987, p.232). Os lucros gerados pelo comércio de drogas provêm justamente da própria ilegalidade do empreendimento, cuja soma em dinheiro acumulada torna fácil corromper policiais (ZALUAR, 1999a). (...)

Desse modo, somente vai ser visível à justiça criminal aquilo que a polícia leva ao seu conhecimento, sendo desconhecido o tráfico de grande porte, que segundo a literatura é organizado em bases empresariais (RAUPP, 2009; PERALVA et al 2010, 2012; PERALVA, 2015). Também ficarão ocultos ao sistema de justiça criminal os “acertos”, as violências policiais e tudo aquilo que é mobilizado por esses agentes na economia criminal das drogas. (TEIXEIRA, 2012). Grifos meus. (DE JESUS, 2016, p. 29, 34 E 38).

A diferenciação entre usuário e traficante é de suma importância, pois como é de conhecimento notório, o usuário é visto como questão de saúde, enquanto o traficante é visto como caso de polícia.

Além da corrupção, podem ocorrer casos de verdadeiros erros, nos quais os agentes da lei se enganam com a abordagem, que pode culminar com a condenação de um inocente, uma vez que os policias são chave para o desfecho do processo no qual atuam, sendo a prova predominante para a condenação, conforme será visto melhor a seguir.

5.2. A PREDOMINÂNCIA DO DEPOIMENTO DOS POLICIAIS MILITARES NOS INQUÉRITOS POLICIAIS E AÇÕES PENAIS

Conforme os dados mostram, tanto há dez anos como atualmente, os inquéritos policiais e ações penais têm o protagonismo dos policiais militares, principalmente nos casos em que o traficante é abordado e preso em flagrante, sendo justificada sua oitiva e predominância por ter sido tais agentes que participaram diretamente da ocorrência.

Ainda, justifica-se que o tráfico de drogas ocorre às margens da sociedade, em locais pouco movimentados, sendo difícil a produção de outras provas, notadamente conseguir outras testemunhas, pois as pessoas não querem depor contra um traficante, temendo eventual represália.

Dessa forma, nota-se que na esmagadora maioria dos casos analisados, a materialidade do crime é comprovada por autos de exibição e apreensão de drogas juntadas aos autos, com laudo de constatação provisória e posterior laudo pericial definitivo. Para constatar a autoria, ligando a droga ao réu, bem como a finalidade comercial, é a palavra dos policiais que vai ser considerada, notadamente como descreve a ocorrência.

Assim, como na maioria dos casos não há investigações mais a fundo da ocorrência, é comum que o depoimento de tais agentes sejam a única prova no processo penal. Nisso, a jurisprudência tem sedimentado entendimento que, mesmo que tal depoimento seja o único elemento probatório no processo, a condenação será plenamente válida, como Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, cuja súmula 70 estabelece “o fato de restringir-se a prova oral a depoimento de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação” (BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 2019).

Sobre referida súmula, a pesquisadora Paola Fernandes de Castro estabelece em seu trabalho intitulado “presunção de culpa: uma análise da valoração do depoimento policial na abordagem jurídica no Rio de Janeiro”:

Outro ponto a ser destacado é que a súmula não se atenta às peculiaridades da prova policial e acaba por ser um instrumento de legitimação da valoração excessiva da autoridade policial.

Note que o verbete não dispõe que a prova policial possa ser utilizada como meio de prova, porém afirma que a sentença condenatória poderá ser baseada apenas em depoimento policial. Embora não fiquem claras as motivações da edição da súmula, uma hipótese se estrutura no presente estudo: a mesma possa ter sido editada na crença de o policial, por ser um servidor público e um agente da lei, não mentiria em juízo. No entanto, esta visão é frágil e dissonante com a realidade.

Portanto, observa-se que não foi pontuada a fragilidade do depoimento do policial, uma vez que se torna imprescindível considerar o contexto e intenções sociais, tomando como pauta as relações de poder, as estratégias de legitimação e sociabilidades durante e após a operação. Ao não considerar o cenário social em que as ações estão situadas e posicionadas, a prova se torna, assim, precária. (CASTRO, 2015, p. 57).

Ainda, a autora continua em sua análise, demonstrando a ampla utilização da referida súmula para legitimar condenações:

Não obstante, em que pese tal súmula, violar preceitos penais trata-se de um verbete que é utilizado com frequência pelos magistrados para motivar sentenças condenatórias meramente com depoimento policial. Em consulta à jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça foi verificado que, desde o período da sua edição até os dias atuais, a súmula 70 já foi referenciada em 4.927 (quatro mil novecentos e vinte sete) processos, na qual, a maioria das vezes, o magistrado faz referência da súmula para fundamentar sua sentença condenatória baseada unicamente no depoimento policial. (CASTRO, 2015, p. 58).

Por fim, realiza a seguinte conclusão:

Assim, diante do exposto, com fulcro no § 3º, do art. 122 do Regimento Interno do Tribunal do Rio de Janeiro, é certo que tal súmula deve ser revogada. Uma vez que as provas apresentadas são hierarquizadas e o depoimento policial é valorizado em detrimento das demais, abre-se uma margem de possibilidades de julgamentos frágeis e, assim, um inocente pode ser encaminhado para detenção. (CASTRO, 2015, p. 59).

O Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco também tem entendimento sumulado, conforme súmula 75 “é válido o depoimento policial como meio de prova”, (BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, 2009), sendo mais razoável, vez que não menciona sobre tal depoimento ser a única prova do processo.

Tais súmulas colidem frontalmente com o que diz a doutrina clássica do direito processual, como Fernando da Costa Tourinho Filho, que afirma que o valor probatório da testemunha é como qualquer outra, ou seja, relativa (TOURINHO FILHO, 2017, p. 614).

Ainda, o renomado autor afirma:

Depoimento de policiais. Dispondo o art. 202 do CPP que qualquer pessoa pode ser testemunha, obviamente não há nem pode haver nenhum impedimento de os policiais servirem de testemunha. Todavia se depuserem sobre os fatos que foram objeto de diligências que contaram com a sua participação, é natural que suas palavras devam ser recebidas com certa reserva, em face do manifesto interesse em demonstra que o trabalho realizado surtiu efeito e que a ação por eles desenvolvida foi legítima. Essa reserva deve ser ainda maior se por acaso houver outras pessoas que possam servir de testemunhas. [...]

Se por acaso um cinegrafista amador não houvesse registrado aquelas cenas de brutalidade em Diadema provocadas por policiais, se por acaso o Ministério Público de São Paulo não houvesse registrado, com filmes, o tráfico de drogas na “Cracolândia”, envolvendo diretamente policiais, ninguém teria acreditado no que a televisão mostrou... Os maus policiais infiltram-se na Corporação, denegrindo a sua imagem. Dar crédito aos seus depoimentos quando eles têm interesse em demonstrar um pseudoêxito em suas diligências é temerário... Não são incomuns os flagrantes forjados, em que policiais colocam entorpecentes no veículo do investigado. – Grifos meus. (TOURINHO FILHO, 2017, p. 616).

Também, outros pesquisadores insistem na parcialidade dos depoimentos dos policiais militares:

[...] Diante disso, o mesmo ocorre com os depoimentos policiais, já que estes também estão submetidos a pressões psicológicas inerentes à atividade policial e fruto de suas experiências diárias, além de possuírem o interesse de legitimar sua atuação.

Nesse contexto, esses agentes de aplicação da lei, mesmo estando na figura de agentes do Estado não podem ser tomados como depoimentos eivados de neutralidade ou imparcialidade, até mesmo porque isso é condição impossível ao ser humano em geral, visto que sempre será influenciado, ainda que minimamente, por suas impressões e suas experiências enquanto ser social.

Por estas razões, o depoimento prestado por esse aplicador da lei deve ser observado e analisado levando-se em consideração o valor relativo de suas palavras, haja vista que possuem total interesse em legitimar e concretizar os trabalhos desenvolvidos em meio a sua atuação como policial. Soma-se a isso o receio desses profissionais de que um possível erro nessa atuação possa culminar em alguma responsabilização administrativa, por exemplo, aumentando ainda mais seu desejo em legitimar sua versão. Grifo meu. (NASCIMENTO, p. 29, 2018).

A pesquisadora Maria Gorete de Jesus também estabelece que:

Os policiais são agentes da lei, servidores públicos e homens com a dita “fé pública”, mas são antes de tudo homens que estão sujeitos a vaidades e pressões externas como qualquer outro depoente. Os seus depoimentos podem ser verdadeiros ou falaciosos. Portanto, dificilmente teremos a certeza plena da veracidade das alegações prestadas em sede de audiência por um policial, pois haverá uma dúvida no tocante as afirmações proferidas. [...]

Em contrapartida, o depoimento do policial, ainda que esteja sob o dever legal de falar a verdade, também é suscetível a pressões psicológicas inerentes a sua atividade. Segundo esta ótica, dificilmente um policial que forjou provas para incriminar o réu diria a verdade tanto na abertura da ação penal como na audiência de instrução e julgamento.

A questão em foco não é fazer um juízo moral dos policiais, mas explicitar que os agentes de segurança em muitas vezes terão interesse de que o réu seja condenado para legitimar a sua atuação. Pois, em última análise, é por meio de seu depoimento que os policiais legitimarão a prisão por eles efetuada e afastarão qualquer responsabilização por abuso de autoridade. Sendo assim, as declarações revelam-se frágeis. Por isto, a importância de buscar outros meios de provas para basear uma sentença penal condenatória.

Por outro lado, convém fazermos a ressalva de que o nosso objetivo não é desqualificar o depoimento do policial enquanto meio de prova. Ao contrário, os policiais podem e devem ser ouvidos como testemunhas até porque, se participaram da investigação do crime, são capazes de informar com detalhamento o fato criminoso. Porém, pode ser perigosa a valoração excessiva do depoimento prestado por um policial, pois poderá servir de instrumento inclusive para acobertar uma injustiça contra o réu. Grifo meu. (DE JESUS, 2016, p. 85 e 88).

Assim, em que pese a praxe forense é no sentido de credibilizar o depoimento dos agentes da lei, sob o argumento de que a repressão do crime é justamente sua função e seria um contrassenso desacreditá-los em juízo, a doutrina mais abalizada faz diversas ressalvas quanto à aceitação desmedida desses depoimentos, vez que os policiais estão diretamente envolvidos na ocorrência.

Ou seja, apesar da jurisprudência considerar tais depoimentos como imparciais e dotados de fé pública, estes devem ser vistos com reservas, uma vez que, como ponderam diversos pesquisadores, obviamente tais policiais, por serem seres humanos, passarão suas impressões pessoais no processo, notadamente a forte cultura autoritária que é presente na corporação militar, no sentido de que as garantias individuais, por vezes, dificultariam seu trabalho.

Sobre a suspeita que os policiais têm dos indivíduos, o ministro relator do habeas corpus 598.051/SP, que será analisado melhor a frente, assim ponderou:

Ainda me valho da pesquisa de Gisela Aguiar – apoiada em trabalhos paralelos de igual temática – que evidencia o componente racial e social das abordagens policiais em grandes centros urbanos. Confira-se o seguinte excerto: Batitucci et al. (2014, p. 14) notam então que a suspeição policial se ampara em dois tipos de indicadores interligados entre si: “características do indivíduo (roupas, atitudes, reação à aproximação da polícia), bem como características relacionadas aos lugares ou territórios (alta criminalidade, grande disponibilidade de alvos, horário, etc.)”. Nenhum dos dois indicadores possui correlação com as condutas criminalizadas ou proibidas na ordem jurídica. Nesse contexto, não há impedimento a critérios preconceituosos para a abordagem, embasada não no “uso da informação investigativa livre de preconceitos”, mas no “consenso de que determinadas características humanas se apresentam incompatíveis com alguns ambientes específicos” (COSTA, 2013, p. 42). [...]

Nesse cenário, em um país marcado por alta desigualdade social e racial, a construção da suspeita com base em critérios subjetivos e no senso comum tende a se amparar na estigmatização de grupos e tipos marginalizados como potenciais criminosos, cristalizados como tipos ideais de suspeitos. A suspeição repousa assim sobre uma conjunção de fatores subjetivos considerados de risco, tais “como idade, gênero, cor, classe social, geografia, vestimenta, comportamento e situação de policiamento” (TERRA, 2010, p. 78). Por isso, as abordagens tendem a voltar-se contra grupos já objetos de exclusão, a qual é então reproduzida pela repressão policial.

Contudo, ainda que a prática da filtragem racial seja negada entre os interlocutores, muitos dos elementos que compõem a chamada fundada suspeita remetem a um grupo social específico, caracterizado pela faixa etária, pertença territorial e que exibe signos de um estilo de vestir, andar e falar que reivindica aspectos da cultura negra, e que é, em muitos casos, também constituinte de uma cultura “da periferia”. Conforme atestam os depoimentos, a vestimenta e a postura corporal são consideradas indícios empíricos a fundamentar a suspeita policial (MOTA; SILVA; OVALLE, 2014, p. 9). (WANDERLEY, Gisela Aguiar. Filtragem racial na abordagem policial: a “estratégia de suspeição generalizada” e o (des)controle judicial da busca pessoal no Brasil e nos Estados Unidos. RBCCRIM, v. 135, set. 2017, p. 189- 229, destaquei). BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

E, como foi visto no levantamento da jurisprudência, a grande maioria dos casos teve somente os policiais como testemunha do caso e somente tais depoimentos foram utilizados para comprovar a autoria, ou seja, que a droga era do réu e que seria destinado ao comércio ilícito, embasando a condenação.

Na já citada pesquisada de Maria Gorete de Jesus, que avalia o depoimento do policial e a construção da verdade jurídica com base nele, é feita uma análise do “vocabulário oficial”, que consta nos autos e o que realmente o policial ou o operador do direito quis dizer com aquilo, consoante entrevistas realizadas no estudo.

“Estava em atitude suspeita”.

“Quem não deve não teme”; “não tem por que ficar nervosa”; “é atitude suspeita você abordar um negro num [automóvel da marca] Audi? Depende do local, das circunstâncias. É uma reunião de fatores”; “a história da vida criminal de cada um dos indivíduos envolvidos também é relevante no momento da abordagem”; “agora, um menino ‘da favela’ com dez papelotes de cocaína, aí não dá né. Onde ele arrumou dinheiro pra comprar a droga? Certeza que tá vendendo. É mais fácil enquadrá-lo como traficante”; “se está desempregada, como conseguiu droga e dinheiro? Tá na cara que é traficante”; “se o cara tá desempregado, ele vive do que? Ele vive do tráfico”.

“Recebemos denúncia anônima”.

Os policiais do P2 fazem “denúncia anônima”, porque não pode aparecer no B.O. que o flagrante foi motivado por investigação da PM, isso é uma ilegalidade”.

“Ao avistar a viatura, jogou a droga fora”.

“É muito comum os policiais falarem na delegacia que viram o acusado jogando o pacote de drogas no chão na medida em que ele corria, mesmo quando isto não acontece”; “O advogado tem as estratégias dele, a gente tem que ter a nossa”.

“Entrada Franqueada”,

“Esse é o preço que a população tem que pensar se vale a pena pagar”; “se o policial entrar num lugar e não achar a droga, ele será responsabilizado por abuso de autoridade [...] porque se o policial não achar nada, colocou sua profissão e sua liberdade em risco”; “durante a abordagem a pessoa é pega com entorpecente, mas eles [presos] não andam com documentação. Então, conduzimos a pessoa até a sua residência pra pegar a documentação. Normalmente a família não sabe do envolvimento do indivíduo com o tráfico e a família se surpreende”; “peguei o cara com 30 trouxinhas e falei: ‘vou lá na sua casa, fala onde está a droga porque se eu achar vou escrachar sua família’, e ele disse ‘não senhor, tenho dois irmãos pequenos’, eu falei ‘então fala’. Fui lá e achei 3kg”.

“Local conhecido como ponto de venda de drogas”.

“Tráfico ocorre mais nas áreas conhecidas por venda de entorpecente, como nas favelas”; “geralmente a gente sabe o local de maior incidência de tráfico”.

“O acusado confessou informalmente que estava traficando”.

“O policial faz um trabalho psicológico no cara. Esse trabalho psicológico a gente usa muito. O policial não pode ser santo. Ele tem que saber conversar com o promotor e com o ladrão. Negocia pra ele [traficante] trazer a droga grande. O cara é ligeiro”. (DE JESUS, 2016, p. 101-102).

Dessa forma, verifica-se que o discurso oficial dos autos não é exatamente condizente com a realidade, de forma que, obviamente os agentes da lei buscarão narrar os fatos de maneira que seja eximido de qualquer responsabilização administrativa ou criminal de como ocorreu a abordagem, focando na droga e o suposto traficante apreendido.

A seguir será visto justamente como a prova testemunhal é usada no processo penal, notadamente os policiais militares e quais as consequências da dependência desta prova frágil para embasar condenações.

5.3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROVA TESTEMUNHAL E AS CONSEQUÊNCIAS DO SEU USO EXACERBADO

Como foi visto anteriormente, a prova testemunhal é a mais usada nos casos de tráfico de drogas para demonstrar a autoria do crime, sendo que, os policiais que participaram da abordagem têm função chave no desenrolar do processo. Entretanto, é preciso salientar que o uso indevido ou exacerbado da prova testemunhal pode ter consequências nefastas, considerando a possibilidade de falso testemunho ou falsas memórias.

Ainda, a prova testemunhal é mais maleável que as demais, vez que é possível direcionar as perguntas e a forma como elas são feitas, de forma que o depoimento pode variar muito a depender da forma como é conduzido, ao contrário de uma prova documental, que não é possível manipular dentro dos limites legais.

Sobre isso, preleciona Vitor de Paula Ramos, em sua obra “prova testemunhal: do subjetivismo ao objetivismo, do isolamento cientifico ao diálogo com a psicologia e epistemologia”:

Justamente por isso, diz-se que, enquanto o documento é vox mortua, o testemunho é vox viva: a testemunha, ao contrário do documento, não é imediatamente representativa, ou mesmo permanente, sendo mais flexível e, por isso, estando mais sujeita a influências. [...]

O principal ponto que poderia gerar certo “medo” da prova testemunhal seria o fato de ser essa “maleável”, “flexível” ou “adaptável”. Afinal, o testemunho acaba passando “através do prisma da nossa personalidade”, de modo que, um prisma diferente pode “colorir [a narrativa] de modo diferente, dependendo das cores que possui [...] nosso eu, somando-se a “falhas naturais da memória” e à interferência de outros elementos externos que turbam a lembrança. (RAMOS, 2021, p. 54 e 56).

 Ou seja, é possível perceber que tal prova, por ser um depoimento de uma pessoa, que contém sua própria personalidade e características, pode ser influenciada, sendo utopia considerar que esta será imparcial e nada tendenciosa, até porque uma das partes a arrolou.

Sobre isso, o citado autor lançou o questionamento em sua obra se a testemunha seria da parte ou do processo, sendo comum ouvir no ambiente forense “testemunha da acusação” ou “testemunha da defesa”, demonstrando clara parcialidade, ao contrário do que se espera de uma testemunha. Nisso o autor pondera que a parte nunca chamará uma testemunha que não lhe favorecerá no processo, sem saber de antemão o que dirá (RAMOS, 2021 p. 68).

Sobre sua parcialidade, comenta:

Não obstante, é certo que o fato de a testemunha ser (mesmo que somente “formalmente”, se assim se pretender) “de uma parte” ou “de outra” é justamente parte da “flexibilidade” mencionada dessa prova; isto é, ao fato de que a testemunha, consciente ou inconscientemente pode justamente “adaptar-se” segundo as necessidades da “sua” parte, dando ênfase maior a algumas partes da representação que interessa e/ou excluindo ou minimizando outras.

Assim, por um lado, quando a testemunha declara não ter interesse no litígio, o sistema parecer crer na sua imparcialidade absoluta (no sentido de que ele não é considerada de uma parte ou de outra); por outro, o sistema não leva em conta o que as partes, as testemunhas e o juízes sabem, isto é, que a testemunha haverá, em geral, consciente ou inconscientemente, de usar a “maleabilidade” de tal tipo de prova em favor da parte que a indicou. (RAMOS, 2021, p. 69).

E, no caso do presente trabalho, que se analisa a postura e depoimento dos policiais militares, no dia-a-dia forense sequer é perguntado se estes têm interesse na causa em questão, que, por serem “agentes da lei” já há uma presunção de que agirão pelo certo, bem como seus depoimentos gozam de status de “fé pública”, conforme se verá melhor adiante.

Como foi ponderado pelo autor, em que pesem certas presunções, como a da imparcialidade, aplicada também para testemunhas civis, é óbvio que a testemunha tendenciará para a parte pela qual foi arrolada (no caso dos policiais – a acusação). Ainda, estes darão seu depoimento no sentido de afirmar que a abordagem se deu dentro dos ditames da lei, justamente para legitimar seu trabalho e evitar processos administrativos e punições criminais.

Acerca desta tendência da testemunha, a pesquisadora Paola Fernandes de Castro, em sua obra intitulada “presunção de culpa: uma análise da valoração do depoimento do policial na abordagem jurídica no Rio de Janeiro” assim afirma:

Malgrado o art. 213 do Código de Processo Penal determine que as testemunhas não se manifestem sobre as apreciações pessoais, desassociando do mundo teórico e aproximando da realidade, verificamos que tal pretensão torna-se improvável. A testemunha dificilmente livrar-se-á de sua subjetividade, afinal, somos sujeitos de valores, decorrente de nossa própria natureza humana. (CASTRO, 2015, p. 33).

Basta ver na praxe forense que os policiais são chamados de testemunhas de acusação, o que mostra clara vinculação da parte que a arrolou, que já sabe de antemão o que será dito, vez que na maioria das vezes o depoimento em juízo é mera repetição do que foi dito na fase inquisitiva do procedimento.

Desta forma, há um contrassenso, pois se rotula a testemunha como sendo de uma parte, e não do processo como um todo, e ainda impõe a presunção de que a testemunha será completamente imparcial e despida de impressões pessoais sobre o ocorrido.

Sobre isso, o autor ressalta que o modo como as testemunhas são ouvidas atualmente deve ser alterado, notadamente para que não sejam contaminadas com perguntas impertinentes das partes e somente ouça aquilo que é para ser ouvido, salientando que é necessário que a testemunha seja ouvida por profissional treinado, que formularia as perguntas de forma mais aberta e menos sugestiva.

Ainda, na concepção de modelo ideal, segundo o autor e doutrina especializada, a testemunha deveria ficar em uma sala isolada com o profissional e o juiz e as partes em outras, de forma que seria formulada a pergunta, verificada sua admissibilidade e somente então feita a pergunta à testemunha, de forma que esta somente ouvisse as perguntas deferidas e também não poderia saber com certeza quem formulou aquela pergunta para não “ajudar” a parte que a arrolou (RAMOS, 2021, p. 213).

Entretanto, tal modelo, considerado ideal para alguns, está longe de ser o que ocorre na prática, de forma que a testemunha fica na mesma sala que o juiz que, segundo o pensamento clássico, é fundamental que o juiz tenha contato visual com a testemunha como uma forma de demonstrar a sua autoridade e ressaltar as penas do crime de falso testemunho.

No que tange ao depoimento de policiais militares, isso não é algo tão relevante, considerando que estes já estão acostumado com o ambiente forense e a depor perante juízes, de modo que não se intimidam facilmente.

Sobre a formulação das perguntas, tanto o Código de Processo Civil como o Código de Processo Penal estabelecem que as perguntas serão feitas diretamente pelas partes às testemunhas, cabendo ao juiz indeferir as perguntas que considerar impertinentes ou explicitamente sugestivas, bem como complementar com perguntas ao final da inquirição.

Em que pese tal previsão legal, ainda é comum ver na praxe forense o viés presidencialista e inquisitivo do magistrado, no qual ele inicia fazendo as perguntas às testemunhas que entende pertinentes, somente então dando a palavra às partes manifestarem, invertendo a ordem legal estabelecida.

Nesses casos, é fundamental que ambas as partes ressaltem o caráter dispositivo e acusatório do processo, cabendo às partes produzirem as provas e o juiz analisar, e não o magistrado buscar provas para fundamentar uma decisão que já está tomada.

Sobre o questionamento das testemunhas, a doutrina estabelece:

O fato de as perguntas serem feitas diretamente à testemunha não implica, necessariamente, induzimento à resposta [...] – haverá eventual induzimento a depender da pergunta feia ou da forma como foi elaborada; é o caso concreto que vai dizer. (DIDIER JR, BRAGA E OLIVEIRA, 2015, p. 103-104).

Ou seja, o simples fato de as partes perguntarem não quer dizer, necessariamente, que suas respostas serão induzidas, de forma que o sistema brasileiro consagrou o modelo de exame cruzado (cross examination), no qual as partes fazem a inquirição da testemunha, consagrando papel mais ativo na produção de prova e papel mais passivo ao juiz.

Tal modelo é de suma importância para garantir um processo verdadeiramente acusatório, no qual as partes detêm a gestão da prova, entretanto, o ideal seria a testemunha não saber de qual parte veio a pergunta, para que ela não possa “ajudar” a parte que a arrolou.

No caso dos policiais militares, obviamente tendenciarão para a acusação para corroborar seus depoimentos prestados anteriormente e buscar garantir que o averiguado seja condenado e que seu trabalho na rua tenha surtido efeito e, não saber quem está formulando a pergunta, ajuda que os agentes tenham respostas neutras, sem buscar corroborar as perguntas da acusação e descredibilizar as perguntas da defesa.

Assim, é possível notar que a oitiva da testemunha no modelo sugerido pela doutrina especializada evitaria tais vícios, entretanto, a doutrina clássica afirma que é fundamental que o juiz tenha contato direto com a testemunha a fim de detectar eventuais mentiras, havendo autores que afirmam que “ele (juiz), com sua capacidade, sagacidade e sensibilidade será dado corrigir as falhas dos depoimentos, perceber perturbação, as vacilações, a segurança e o acento sincero” (FARINELLI, 2010), como se o juiz tivesse o superpoder de saber quando a testemunha está realmente mentindo.

Com base nisso, parte da doutrina afirma que seria possível ao magistrado verificar sinais que poderiam indiciar que está mentindo, como dito cima – perturbação, vacilação e segurança – como se apenas com base nisso fosse possível detectar indícios de falso testemunho.

Conforme já foi exposto anteriormente, tal estratégia somente poderia ser aplicada com testemunhas civis, vez que os policiais estão a todo momento no fórum, de forma que o ambiente forense não mais os intimida, de forma que sempre passarão depoimentos seguros e convincentes por estarem à vontade no ambiente, ao contrário de uma testemunha que nunca esteve no fórum, muito menos diante do juiz.

Sobre a confiança no testemunho e a credibilidade da testemunha, estabelece Vitor de Paula Ramos:

O que a ciência demonstra é que, quando alguém imagina estar detectando mentiras, está, em verdade, avaliando a presença de alguns fatores que, quando presentes, fazem com que a testemunha seja percebida como tendo mais credibilidade (o que não tem qualquer relação com a sinceridade e muito menos com a veracidade reais do testemunho).

O primeiro desses fatores é a confiança que o sujeito demonstra, que tem “um forte e persuasivo efeito nos julgamentos dos jurados simulados”, independentemente do fato de o testemunho ser “consistente ou inconsistente”. [...]

Uma testemunha que fala com maior confiança, ou que narra ter maior grau de certeza a respeito dos fatos relatados, portanto, independentemente da veracidade dos seus relatos, tende a ser considerada mais confiável que uma testemunha que fala com maior insegurança, ou que afirma não ter muita certeza. Isso, repita-se, nada diz a respeito da veracidade ou falsidade dos fatos narrados. [...]

Por mais duro que possa parecer, o que o estado atual da ciência demonstra é que a ideia de que o juiz possa olhar para uma testemunha e “saber” se ela está mentindo ou se está cometendo erros honestos não tem mais valor epistêmico do que quando na idade média se “verificava” que alguém era culpado de um crime de bruxaria mediante a prova do ferro incandescente, ou do duelo. É, isso sim, uma forma de “obtenção” de “conhecimento” tão irracional quanto. Grifo meu. (RAMOS, 2021, p. 159-160 e 229).

Ou seja, em que pese haja a crença geral de que os agentes públicos envolvidos na persecução penal teriam maior experiência em detectar eventuais mentiras, de forma que, em diversos estudos realizados sobre o tema, em nenhum foi constatado que é possível verificar sinais de mentira numa testemunha.

No que tange à epistemologia do testemunho, há vários vieses a serem considerados, como o adotado judicialmente, conhecido como presuntivismo (não reducionismo), o qual pressupõe que os depoimentos prestados por testemunhas são verdadeiros (notadamente os de policiais militares), salvo prova em contrário.

Um dos expoentes desta corrente é Reid, que assim estabelece:

O sábio e beneficente Autor da Natureza [...] implantara em nossas naturezas dois princípios que se complementam [...] O primeiro desses princípios é a propensão a dizer a verdade, e a usar os signos da linguagem de modo a passar nossos reais sentimentos. [...] Outro princípio original implantado em nós pelo Ser Supremo é a disposição a confiar na veracidade dos outros, e a acreditar naquilo que eles nos dizem. Esse último é a outra face do primeiro, e, uma vez que o primeiro pode ser chamado de princípio da veracidade, podemos, querendo dar um nome adequado, chamar o segundo de princípio da credulidade. Grifo meu. (REID apud RAMOS, 2021, p. 122).

Ou seja, o principal autor da referida corrente acreditava que os seres humanos já teriam uma predisposição a falar a verdade e acreditar nos testemunhos de outros, sendo este o viés adotado judicialmente, considerando a presunção de veracidade de depoimentos, notadamente no caso de agentes estatais.

Obviamente que tal corrente sofreu inúmeras críticas, notadamente o aceite ingênuo de que todas as testemunhas falariam a verdade, sem buscar meios de confirmação do que ela disse é realmente verdade, podendo ter resultados desastrosos e injustiças no processo penal (RAMOS, 2021, p. 127).

Outros autores, como Fricker, defendia de que seria necessário que se fizesse uma avaliação da testemunha, segundo provas que tivesse disponíveis para verificar se o testemunho era verdadeiramente sincero (FRICKER apud RAMOS, 2021, p. 127).

Mesmo assim, como foi dito anteriormente, o juiz não ostenta superpoderes para verificar se alguém está mentindo ou não, podendo somente avaliar certos indícios, que nem sempre quer dizer que está mentindo, como nervosismo e vacilação, podendo realmente a testemunha só estar nervosa por estar no ambiente forense.

Fosse avaliar somente por isso, os policiais militares nunca cometeriam o crime de falso testemunho, vez que estão acostumados com o ambiente forense, não se intimidando com o juiz e outros atores processuais, de forma que sempre passam depoimentos consistentes e seguros, por estarem à vontade no ambiente.

Superada a questão do presuntivismo, surgiu a corrente não presuntivista que, segundo a doutrina, para a corrente “possuir crenças justificadas a partir de testemunho pressupõe não somente que inexistam razões negativas, mas também que existam razões positivas que façam com que se possa crer justificadamente naquilo que foi comunicado” (RAMOS, 2021, p. 132).

Ou seja, não quer dizer que se trata de uma corrente diametralmente oposta à anterior, que seria a descrença em qualquer testemunho, mas sim, que deve haver outras provas para corroborar um depoimento prestado, notadamente em processos judiciais criminais, que está em jogo a liberdade do indivíduo, bem como sua reputação perante a sociedade.

Obviamente que tal corrente também sofreu críticas, no sentido de que muito no conhecimento humano é passado por meio de testemunhos, que nem tudo é possível checar a fonte do conhecimento, de forma que isso tornaria inviável, pois seria necessário buscar concretamente em fontes científicas a veracidade de tais informações (FRICKER, 2004:8 apud RAMOS, 2021, p. 132).

O que ocorre é que se buscará mais informações embasadas concretamente em contextos no qual a verdade importa mais, como era de esperar em processos judiciais, entretanto, as pesquisas feitas demonstram a confiança plena no depoimento dos agentes policiais para a prisão em flagrante e condenação posteriormente.

Por fim, há corrente mais recente, conhecida como dualismo, que afirma que deveria se considerar a mensagem, independentemente do emissor ou receptor desta, apesar de ainda não estar verdadeiramente consolidada.

Sobre isso, estabelece a doutrina:

Teria, ademais, muito a ganhar com adoção de uma versão objetiva de testemunho, que não seja tão voltada para a pessoa que fornece o testemunho, mas para mensagem que por ela é passada. Em outras palavras, mais com o testemunho do que com a testemunha. (RAMOS, 2021, p. 140).

Ou seja, nota-se que a prova testemunhal tem várias teorias a ela relacionada, sendo que, é possível observar que o Poder Judiciário brasileiro adota claramente a teoria presuntivista, no sentido de que se presume ser verdadeiro tudo que a testemunha afirma, notadamente no caso de policiais militares, salvo prova em contrário.

Tal teoria é adotada em prejuízo do réu o qual tem a hercúlea tarefa de provar que o que os policiais estão dizendo não condiz com a verdade, vez que sua palavra em confronto com a dos agentes estatais não terá valor algum. Isso também cria prejuízo para presunção de inocência, ocorrendo verdadeira inversão do ônus da prova, como se verá melhor adiante.

Ainda, é possível observar que não há estudos científicos que apontam para a possibilidade de o juiz conseguir aferir se a testemunha está dizendo a verdade ou não, de forma que, tal teoria foi colocada à prova por diversos meios, e em todos os estudos a teoria sobre a verificação de mentiras foi rechaçada, no sentido de que, em que pese a experiência dos juízes e todos os servidores ligados à persecução penal, estes somente conseguem observar se credibilidade da testemunha, mas não se esta realmente está falando a verdade.

Conforme também foi exposto anteriormente, a prova testemunhal é facilmente maleável, de forma que sua produção depende muito dos atores processuais e a forma como é conduzida, além de que pode ocorrer confusões, falsas memórias ou a repetição mecânica do que foi dito na fase inquisitiva, sendo que não é confiável nem aconselhável embasar uma condenação criminal somente com tais provas, havendo o grande risco de condenações de inocentes.

Sobre as consequências da utilização exacerbada da prova testemunhal, preleciona a doutrina:

O que deve ser percebido é que, diante de uma situação em que a prova de um fato é difícil, do ponto de vista epistêmico, na falta de provas, não se poderá afirmar nem que sim nem que não, uma vez que sem provas não a possibilidade corroboração de hipóteses fáticas. O “normal”, portanto, seria que em um processo com standard probatório alto (como o criminal) de beyond any reasonable doubt, a ausência de probas determinasse a insuficiente corroboração das hipóteses fáticas descritas pela acusação, com a consequente absolvição do réu. Portanto, a fim de supostamente evitar impunidade, ou nome de outras missões, muitos tribunais de civil law acabam considerando provados fatos com uma corroboração muito baixa (inclusive em casos que, por sua natureza lógica e potencial, deveriam demandar a utilização de standards altos, como é o caso do direto penal), por considerar a dificuldade da obtenção de prova.

O ponto pode parecer apenas teórico, mas tem consequências práticas imensas: a prova de algo ser fácil ou difícil não tem qualquer relação com a existência ou não do próprio ato, de modo que, na prática, a diminuição da exigência probatória para que determinados fatos possam ser considerados provados faz, necessariamente, com que se aumenta, na mesma proporção, o potencial de erro da busca epistêmica procedida. [...]

As fragilidades inúmeras de prova testemunhal encontram-se amplamente documentadas: inúmeras possibilidades de erros de percepção, de erro de recuperação de memória e de erros causados por mentiras. A prova testemunhal sozinha, portanto, tem baixíssimo grau de confiabilidade, conferindo, sem corroboração, praticamente nenhum grau de corroboração das hipóteses fáticas. [...]

Em casos criminais em que a prova testemunhal, sozinha é utilizada como elemento suficiente, por si só, para a comprovação de fatos delituosos, o que se tem, em verdade, é um sujeito condenado com um conjunto probatório com um grau de corroboração epistêmica extremamente baixa; muitíssimo abaixo do standard que seria normal para casos criminais, então, é que, nesses casos penais, independentemente da facilidade ou dificuldade de obtenção de provas, pelo que as estatísticas indicam, muitos sujeitos que foram condenados com provas testemunhais devem ser inocentes. Grifo meu. (RAMOS, 2021, p. 236-237).

Neste sentido, é preciso que os tribunais pátrios façam jus ao standard probatório alto que o Código de Processo Penal verdadeiramente exige e rechacem provas fracas, fazendo com que a acusação seja mais aparelhada com provas mais robustas para a condenação, podendo utilizar-se de testemunhas para corroborar outras provas, e não ser a única no processo sobre a autoria do tráfico de drogas.

5.4. A PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DOS DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS MILITARES EM FACE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Conforme foi visto anteriormente, a prova testemunhal tem muitas peculiaridades, notadamente no caso de policiais militares, os quais gozam de presunção de veracidade, cabendo ao réu fazer prova em contrário, ocorrendo uma verdadeira inversão do ônus da prova em prejuízo deste, maculando de morte o princípio da presunção de inocência.

Somente na jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do estado de São Paulo há o consolidado entendimento de que os policiais foram incumbidos justamente para a função de reprimir o crime e não faria sentido desacreditá-los posteriormente, in fine:

Iterativa é a jurisprudência que considera idôneo o depoimento de policial, quando se encontra com outros elementos de convicção. Não há razão para refutá-lo. Como é cediço, 'os funcionários da Polícia merecem, em seus relatos, a normal credibilidade dos testemunhos em geral, a não ser quando se apresentem razão concreta de suspeição' (Ap. Crim. nº 153.983-3, Santos, j. em 07.07.94). Em outro julgado desta Augusta Corte ficou destacado que 'não há descrer, aprioristicamente, do relato de policial, somente porque são policiais. Se, naturalmente, são policiais que abordam um suspeito e procedem à apreensão de droga, é intuitivo que eles irão depor e relatar o que fizeram. Seria verdadeiro contrassenso negar veracidade aos relatos somente porque efetuados por policiais, sob a surrada e inconsistente alegação de que assim agem para dar validade à apuração desenvolvida' (TJSP, Ap. Crim. nº 234.718-3, 3ª Câm. Crim., Rel. o Des. WALTER GUILHERME, in RJTJSP, 208/273-277); e, dessarte, 'como todo e qualquer testemunho, deve ser avaliado no contexto de um exame global do quadro probatório' (in RT 730/569)” – (BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Criminal nº 0077713-44.2012.8.26.0224, Comarca de Guarulhos, Relator Desembargador Cardoso Perpétuo, julgado em 19.03.2015)

Tráfico ilícito de entorpecentes – Autoria e materialidade delitivas comprovadas pelos elementos constantes dos autos – Preliminar rechaçada - Absolvição descabida – Circunstâncias que demonstram a dedicação ao comércio espúrio – Condições incompatíveis, ademais, com o mero porte de drogas para o uso próprio – Penas impostas com correção – Fixação do regime semiaberto para o início do desconto da corporal – Penas alternativas que se mostram ineficazes para a ressocialização do condenado – Recurso improvido.

E o depoimento prestado por policial, urge alvitrar, porque agente público forçado a obrar no estreito campo da legalidade, goza de inequívocas presunções de veracidade e legitimidade, e não pode ser infirmado por meras ilações suscitadas pelo prejudicado. A dúvida deve vir calcada em elementos sólidos, ausentes na espécie. (BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Criminal 0022765-80.2015.8.26.0602; Relator (a): Marcelo Gordo; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Sorocaba - 3ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 24/11/2016; Data de Registro: 28/11/2016).

PENAL. APELAÇÃO. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. CONDENAÇÃO. RECURSO DEFENSIVO. Absolvição por falta de provas. Descabimento. Acervo seguro de provas. Versão do réu destronada pelas provas orais e sem respaldo probatório. Condenação legítima. Materialidade e autoria induvidosas ante a prova técnica e três testemunhos idôneos de que o acusado trazia visíveis sinais de embriaguez. Comprovação adequada com espeque no art. 306, § 1°, II, do CTB, além da própria confissão extrajudicial, válida por sua sinceridade e convergência com provas produzidas sob o pálio do contraditório. Negado provimento.

Vale ressaltar que os depoimentos dos milicianos, gozando de presunção de veracidade, como em indicou a sentença a fls. 62-v, são provas idôneas, não cabendo firmar qualquer descrimen preconceituoso contra eles pela mera condição de policiais. (BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo; Apelação Criminal 0003527-78.2014.8.26.0095; Relator (a): Alcides Malossi Junior; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Brotas - 1ª Vara; Data do Julgamento: 24/11/2016; Data de Registro: 28/11/2016).

CAPITULAÇÃO – aplicação do redutor – correção da capitulação para o artigo 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06. MATERIALIDADE – auto de apreensão e laudo toxicológico que restou positivo para a presença do elemento ativo – comprovação que o material apreendido é droga. AUTORIA – depoimento de policiais militares que indica a abordagem do réu em local apontado como ponto de tráfico de drogas, bem como a apreensão de drogas em seu poder e o encontro de mais entorpecentes na mureta, local indicado pelo réu na mensagem telefônica como lugar onde estariam escondidas mais drogas – validade – depoimento de policiais só deve ser visto com reservas quando a imputação ao réu visa justificar eventual abuso praticado – inocorrência no caso em tela. TRÁFICO – destinação a terceiros – indícios tais como variedade e quantidade incompatível com a figura de usuário; forma de acondicionamento, próprio para a venda a varejo; encontro de mensagens telefônicas que indicavam o envolvimento do réu com o comércio ilícito de drogas; apreensão de dinheiro; e o fato de que o réu não teria condições econômicas para possuir a droga para seu uso pessoal – desclassificação da conduta para porte de entorpecentes para uso pessoal – impossibilidade – negado provimento. PENA – base exasperada em 1/6 - natureza que autoriza a exasperação – redução ao patamar mínimo – impossibilidade – negado provimento para este fim – ausentes circunstâncias atenuantes e agravantes – diminuição da pena em 1/2 em face do redutor previsto no artigo 33, §4º, da Lei nº 11.343/06 - reconhecimento do redutor – mantença ante a ausência de inconformismo ministerial – caso em que seria necessário afastar a causa de diminuição – quantidade de drogas indicativa de profissionalização – dedicação a atividades criminosas – aumento da fração redutora – impossibilidade – negado provimento para este fim. REGIME – réu que se encontrava em poder de grande quantidade de droga – quantidade que poderia facilmente alcançar um elevado número de pessoas – apreensão de porções de cocaína e crack – natureza dos entorpecentes que possui alto potencial lesivo – alta reprovabilidade e periculosidade - conduta social inadequada e personalidade desajustada - o regime deve ser o necessário para dissuadir o réu de retornar a delinquir (Beccaria) - regime fechado – necessidade – regime mais brando – impossibilidade – negado provimento – inviável a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em face da alta reprovabilidade – negado provimento.

Aliás, como servidor público que é, tem na prática dos atos funcionais a presunção de veracidade, nos termos do artigo 37 da Constituição Federal, como assinala HELY LOPES MEIRELLES:

Desta forma os funcionários públicos, gozam de maior presunção de credibilidade que as testemunhas comuns, conforme ressalta FRAMARINO DE MALATESTA ao afirmar que “não é só por estas considerações que [...] tem um maior valor quando prestada por funcionário público competente que quando por uma testemunha ordinária, mas também pela maior fé que inspira subjetivamente aquele funcionário público como testemunha de segundo grau. Supõe-se que desempenhando um dever de ofício, um funcionário público quererá sempre prestar mais atenção que um particular, munido somente do estímulo da curiosidade; portanto, menor facilidade de engano na testemunha oficial. Sabe-se que, além do senso moral que ordena a verdade de todos, existe no espírito da testemunha oficial o sentimento de um dever particular e uma particular responsabilidade, que se opõem à mentira; por isso menor facilidade de vontade de enganar no funcionário público”.   (BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo; Apelação Criminal 0000777-06.2015.8.26.0116; Relator (a): Lauro Mens de Mello; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Campos do Jordão - 1ª Vara; Data do Julgamento: 24/11/2016; Data de Registro: 28/11/2016). Grifos meus.

Sobre a confiança depositada nos policiais militares, o autor Vitor de Paula Ramos:

Outros fatores usados no Direito para “avaliar” a credibilidade de uma testemunha – como a posição que a testemunha ocupa, sua religião, sua boa fama dentro de uma comunidade, sua condição de ser ou não pai/mãe de família, estar ou não empregado – nada dizem de seguro a respeito da indicação de alguma condição mora, no sentido de uma tendência de dizer a verdade.

O que ocorre em contextos de testemunho em sentido amplo, cotidiano, é que as pessoas acabam por “baixar a guarda” epistêmica quando diante de terceiros em que confiam. Entretanto, tal “baixa de guarda”, apesar de natural do ser humano, será aceitável somente em determinadas posições e contextos epistêmicos; em geral, naqueles em que a verdade importa menos. – Grifo meu. (RAMOS, 2021, p. 116).

Ou seja, considerando que os magistrados confiam nos policiais militares, seus depoimentos são aceitos com poucas ressalvas, partindo-se do pressuposto que estão falando a verdade e querem auxiliar a proporcionar uma sociedade mais segura, “baixando a guarda” nesses depoimentos, ao contrário de uma oitiva de testemunha civil desconhecida.

De outro lado, a doutrina mais abalizada afirma que os policiais estão envolvidos na ocorrência e estão longe de ser imparciais:

[...] Diante disso, o mesmo ocorre com os depoimentos policiais, já que estes também estão submetidos a pressões psicológicas inerentes à atividade policial e fruto de suas experiências diárias, além de possuírem o interesse de legitimar sua atuação.

Nesse contexto, esses agentes de aplicação da lei, mesmo estando na figura de agentes do Estado não podem ser tomados como depoimentos eivados de neutralidade ou imparcialidade, até mesmo porque isso é condição impossível ao ser humano em geral, visto que sempre será influenciado, ainda que minimamente, por suas impressões e suas experiências enquanto ser social.

Por estas razões, o depoimento prestado por esse aplicador da lei deve ser observado e analisado levando-se em consideração o valor relativo de suas palavras, haja vista que possuem total interesse em legitimar e concretizar os trabalhos desenvolvidos em meio a sua atuação como policial. Soma-se a isso o receio desses profissionais de que um possível erro nessa atuação possa culminar em alguma responsabilização administrativa, por exemplo, aumentando ainda mais seu desejo em legitimar sua versão. (NASCIMENTO, p. 29, 2018).

Ainda:

De modo geral, o argumento utilizado para legitimar a utilização do testemunho de policiais militares que diligenciaram o injusto objeto de julgamento, como fundamento de uma decisão condenatória, circundam duas assertivas: (a) a não delimitação, por parte do CPP, de quem pode ou não ser testemunha; e (b) o fato de gozarem, as declarações das autoridades, de presunção de veracidade. [...]

Há uma relação de interesse evidente entre o policial e a causa para a qual serve de testemunha. Ao mesmo tempo, há a influência sofrida pelo modus operandi das polícias (e o papel que estas cumprem no sistema punitivo), que atuam reproduzindo as distorções do tecido político que lhe dão causa, abdicando da legalidade que formata a criminalização secundária, o que leva à necessidade de um discurso que distorça os fatos para que se adequem à racionalidade que os tornariam legítimos. Não por outro motivo a realidade nos informa sobre a atuação arbitrária destes órgãos repressivos, com altos índices de abusos de poder e violação dos direitos individuais. Entre a farda e a toga: as contradições da utilização dos testemunhos policiais como elemento justificador da criminalização da pobreza. Grifo meu. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Também, a imparcialidade de tais agentes da lei pode ficar comprometida com as metas que têm que cumprir, além de ganhar bonificações de acordo com o número de flagrantes que realizam, sendo assim bem ponderado pela pesquisadora Maria Gorete de Jesus:

Outro ponto ocultado diz respeito à produtividade policial. Para cumprir suas metas, os policiais podem recorrer à prisão de pessoas mais vulneráveis à sua ação. Tem-se assim um maior contingente de pessoas sendo presas, com fundamento na lógica do resultado. Políticas de segurança pública orientadas pela “guerra ao crime” e de “guerra às drogas” estabelecem “como critério de produtividade policial o número de prisões, inclusive com a atribuição de prêmios” (COELHO, 2014, p.115), o que pode resultar em prisões arbitrárias, flagrantes forjados, condução sistemática ao cárcere de pessoas com antecedentes criminais, ou segmentos mais vigiados pelas forças policiais.

A polícia tem suas metas, a justiça criminal também tem. De acordo com Sapori (1995), esse sistema pode ser chamado de “justiça linha de montagem”, em que os operadores do direito estão empenhados em uma meta de eficiência. Segundo o autor, a prioridade da máxima produção acaba gerando uma série de consequências, dentre elas violações de determinados preceitos processuais, arranjos informais e que não “são assumidas publicamente, de modo a evitar a crítica moral do público externo” (SAPORI, 1995, p.147). Como afirmado pelo juiz 4, os magistrados trabalham “para responder ao que chega”, e o que chega, em sua maioria, são casos referentes a prisões em flagrante. (DE JESUS, 2016, p. 247).

Assim, é possível notar que com a presunção de veracidade dos depoimentos dos agentes policiais ocorre uma verdadeira inversão do ônus da prova em desfavor do réu, sendo que, tudo que o policial disser será presumidamente verdadeiro e o réu tem que buscar meios para contrapor tais versões.

Sobre isso, a referida pesquisadora Maria Gorete de Jesus afirma:

O réu é inocente até que se prove o contrário. Ademais, não incumbe ao réu provar sua inocência, já que a carga da prova está nas mãos do acusador (LOPES JÚNIOR, 2014). À luz destas discursões é preciso refletir se seria possível o réu comprovar sua inocência, afastando a fé pública dos policiais. Isto porque se trata de uma prova quase que impossível de ser produzida pela defesa. Por isto não caberia ao réu afastar a presunção de veracidade e legalidades do ato do agente público que o prendeu, caso contrário estaríamos invertendo o ônus da prova para o réu. (DE JESUS, 2016, p. 71).

Ainda, a autora continua a estabelecer o modelo de crenças do Poder Judiciário ao verificar o que era dito por juízes em audiências:

CRENÇA NA CONDUTA DO POLICIAL: “os policiais não têm motivos ou interesses para saírem por aí prendendo pessoas inocentes que não conhecem”; “a gente tem que partir do ponto de vista que a palavra do policial é legitima”; “por que, sem qualquer motivação, os policiais imputariam a pessoas que não conhecem, um crime como este?”; “por qual razão os policiais estariam querendo te prejudicar?”; “então policiais agrediram os senhores sem que tivessem feito nada?”; “o acusado pode mentir, mas o policial tem o compromisso com a verdade”.

CRENÇA DE QUE O ACUSADO VAI MENTIR: “réu pode mentir”; “por que manteve silêncio na delegacia? Inocentes nunca se calam”; “você conhece o policial que te prendeu? Por que ele iria te bater? Você tentou fugir?”; “onde estão as marcas das agressões”; “por que policiais teriam o interesse de fazer isso com você se eles não te conheciam?”; “se você não cometeu o crime, por que ficou em silêncio na delegacia? Por que vem negar aqui no momento da audiência? Você deveria ter falado isso na delegacia, e não aqui.”; “apesar de negar em juízo, a pessoa confessou informalmente que estava traficando, o que demonstra a prática do crime”; “o acusado pode mentir, mas o policial tem o compromisso com a verdade”. (DE JESUS, 2016, p. 195.

Convém ressaltar que a fé pública está presente quando os policiais desempenham papéis administrativos, e não como testemunhas. Sobre isso, estabelece o pesquisador Plínio Antonio Brito Gentil:

Argumenta-se insistentemente com a prestabilidade dos depoimentos de policiais e com a ausência de proibição para que prestem depoimento. Ocasionalmente se chega até mesmo ao ponto de afirmar que o agente público goza de uma espécie de fé pública, que deve ser aproveitada para legitimar o conteúdo de seu depoimento. [...]

Neste passo fica absolutamente esquecido que a dita fé pública do agente estatal se refere aos seus atos de ofício como funcionário, mas não aos que pratica na qualidade de testemunha. Este o único sentido de fé pública – e não o que se lhe dá em arestos como o acima transcrito. Grifo meu. (GENTIL, 2017, p. 07).

Insta salientar que não se busca desqualificar a prova testemunhal, mas tal prova deve ser vista com reservas, como estabelece a doutrina mais abalizada, notadamente quando se trata de agentes estatais incumbidos da repressão ao crime, que tendenciarão para a versão da acusação.

O que se busca é o aumento do standard probatório para a condenação, de forma que haja outras provas para subsidiar a condenação, que podem ser corroboradas pelos depoimentos de tais agentes, mas que haja outras provas a respeito da autoria e destino das drogas apreendidas.

Ainda, outro ponto observado é que a tarefa da acusação ficou extremamente fácil no que tange ao tráfico de drogas, vez que as drogas já foram apreendidas e basta que se arrole o policial militar para que repita o que foi dito durante o inquérito policial para que se diga que o depoimento ocorreu sob o crivo do contraditório (como se tais agentes iriam dizer algo que beneficiasse a defesa) e driblar a vedação de condenação com base exclusivamente em elementos do inquérito, conforme se verá melhor adiante.

Ou seja, a presunção de veracidade foi atribuída como forma de contornar a fragilidade de provas no processo, além da testemunhal, facilitando proferir sentença condenatória com base no entendimento jurisprudencial atual, sendo que, caso as cortes pátrias não aceitassem a condenação com base exclusivamente na prova testemunhal dos policiais que participaram da abordagem tanto a polícia como o Ministério Público teriam que buscar outros meios mais concretos para conseguir a condenação.

Sobre a forma de depoimento dos policias e sua acolhida judicial, são feitas as seguintes considerações pela pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus, em sua pesquisa “verdade policial como verdade jurídica – narrativas do tráfico de drogas no sistema de justiça”:

Os promotores tendem a acolher, sem muitos questionamentos, as narrativas policiais das prisões em flagrante, e utilizam os vocabulários policiais na elaboração das denúncias. Em nenhum dos casos analisados os promotores chegaram a solicitar novas diligências, ou a busca de novas testemunhas, ou mesmo qualquer procedimento adicional aos que foram produzidos pela polícia. Ao exercer seu papel de autoridade interpretativa (Figueira, 2007), o promotor valida a narrativa policial como verdade dos fatos, atualizando o vocabulário policial e tornando-o real para o direito. Ao fazer isto, esse operador exclui de sua observação qualquer outra narrativa possível do caso.

Percebemos o mesmo quando observamos os juízes. O juiz confere aos policiais, testemunhas do caso, uma credibilidade inquestionável, ressaltando em suas manifestações que esses agentes gozam de “presunção de legitimidade dos seus atos”. Em suas decisões vão aparecer a “confissão informal”, “entrada franqueada”, “denúncia anônima”, “atitude suspeita”, “local conhecido como ponto de venda de drogas”, “presença de dinheiro”, entre outros termos que fazem parte do vocabulário policial. [...]

Os argumentos baseados na crença da conduta policial encontrados nos autos, nas audiências (de custódia e de instrução e julgamento) e nas entrevistas foram os seguintes: “os policiais não têm motivos ou interesses para saírem por aí prendendo pessoas inocentes que não conhecem”; “por que, sem qualquer motivação, os policiais imputariam a pessoas que não conhecem um crime como este?”; “por qual razão os policiais estariam querendo te prejudicar?”; “funcionários públicos no exercício de suas funções não apresentam nenhum interesse em prender inocentes.” (DE JESUS, 2020, p. 04-05).

Entretanto, ao invés de se forçar o aumento do standard probatório como garantia aos cidadãos de que serão condenados com base em provas seguras, optou-se por importar a presunção de veracidade e legitimidade do direito administrativo ao direito penal para facilitar o processamento dos casos e proferir condenações.

Em âmbito diametralmente oposto, as versões dos réus e da defesa sequer são levadas em consideração, sendo que, mesmo que se afirme que houve abusos e violência na ação policial, tal afirmação sequer será considerada ou mesmo averiguada, usualmente justificados pelos magistrados de que não há provas acerca de tais alegações.

Ou seja, a palavra dos policiais não precisa ser provada, pois ostenta caráter de fé pública e o que tais agentes dizem são incorporados nas denúncias, decisões e sentenças. Entretanto, o que os acusados dizem praticamente têm uma “presunção de mentira”, de forma que nunca são levados em consideração e descartados sob o fundamentado de que o réu tem o “direito de mentir” e não provou suas alegações.

Esse modus operandi das agências de controle estatal e do Poder Judiciário como um todo pode ser comprovado e representado em números pelo já citado estudo da pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus:

Relatos de violência policial também foram recorrentes nos depoimentos de pessoas presas em flagrante e conduzidas às audiências de custódia. O relatório do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) apresentou 277 de casos com indícios de torturas, entre fevereiro e setembro de 2015, e em quase 80% dos casos os agentes eram policiais militares (Resk, 2015). Por tais situações não estarem descritas nos autos, juízes e promotores questionavam as pessoas sobre os “motivos pelos quais policiais agiriam com violência”. Perguntavam se a pessoa havia “resistido à prisão” e “onde estariam as marcas das agressões”. [...]

Segundo Egon Bittner (2003), os juízes apresentam certa resistência em fiscalizar o trabalho da polícia, talvez porque precisem acolher o trabalho policial para que seu próprio seja realizado. Não se questiona também a forma como os agentes policiais conseguem confissões e provas, pois os juízes precisam desses elementos no processo. A crença de que policiais cumprem suas funções no estrito limite da lei é compatível com o pressuposto de que somente em alguns casos individualizados há sinais de sua “má conduta”, estes sim, reprováveis. Grifo meu. (JESUS, 2020, p. 06).

Ou seja, além de comprovar a inércia do Poder Judiciário frente aos relatos de abusos de violações de direito por parte dos averiguados, demonstrando uma verdadeira cegueira deliberada por parte das instituições, vez que, como ponderou outros autores, o Poder Judiciário precisa da polícia para proferir suas condenações e, caso verificasse ilegalidade no seu modo de agir, a única prova do processo penal seria prejudicada e a absolvição seria a medida a ser tomada, o que raramente ocorre, conforme mostram as estatísticas.

Salienta-se, também, que o presente trabalho não é uma crítica à corporação da polícia militar e seu trabalho desempenhado, mas sim, de analisar e expor as falhas no modus operandi dos tribunais pátrios atualmente, notadamente no caso do Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual foi analisado diversos precedentes sobre o assunto.

Com isso, percebe-se a fragilidade da questão probatória no direito processual penal brasileiro, sendo que é necessário que o processo penal siga standards probatórios altos e rígidos para verdadeiramente fazer jus ao princípio do in dubio pro reo e assegurar que as garantias constitucionais e legais sejam respeitadas.

Sobre o assunto, conclui a citada pesquisadora que “ao recepcionar o vocabulário policial de maneira inquestionável, os operadores do direito legitimam ações policiais que podem ser, na verdade, ilegais e violentas” (DE JESUS, 2020, p. 11) de forma que, como suas ações sequer são questionadas pelas instituições, o modo de agir da polícia não irá mudar.

A seguir será verificada outra problemática em torno do depoimento dos policiais militares, que é a mera repetição em juízo do que foi dito no inquérito, conforme também se pode verificar na pesquisa jurisprudencial do trabalho.

5.5. A REITERAÇÃO DE DEPOIMENTOS PRESTADOS NA FASE INVESTIGATIVA E A VEDAÇÃO DO ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

No ordenamento jurídico atual, o artigo 155 do Código de Processo Penal estabelece que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” (Brasil, 1941).

Tal regra foi inserida porque os elementos informativos do inquérito são usualmente fracos, que servem para tão somente subsidiar a denúncia e deflagrar a ação penal, e não embasar a condenação propriamente dita, além de que são produzidas sem o contraditório e ampla defesa.

Neste sentido, observa-se que foi adotado o sistema de apreciação do livre convencimento do magistrado, que é livre em seu convencimento, desde que faça de forma fundamentada para que os jurisdicionados entendam porque se chegou àquela conclusão. Tal sistema é o oposto do sistema tarifado de provas, no qual cada prova já tem seu valor pré definido em lei, cabendo ao juiz somente realizar a soma de valores para chegar à decisão judicial.

Entretanto, em que pese haja tal vedação expressa no código procedimental, na prática forense não é bem assim que ocorre, de forma que o magistrado se utiliza indiscriminadamente de elementos informativos do inquérito policial para formar seu convencimento.

Sobre isso, no estudo realizado pelo Doutor André Rocha Sampaio, intitulado “a influência dos elementos de informação do inquérito policial na fundamentação da sentença penal condenatória: uma análise das sentenças prolatadas pelas varas criminais de Maceió/AL” mostrou que em torno de 90% das sentenças se utilizam de elementos de informativos do inquérito policial para fundamentar a condenação. Veja:

A partir da experiência profissional e acadêmica dos pesquisadores face às Varas Criminais supra aludidas, ventilou-se a hipótese de que um índice superior a 90% das sentenças penais condenatórias utiliza-se, direta ou indiretamente, dos elementos informativos oriundos da fase investigativa, muitos dos quais não são repetidos no curso do processo penal, de tal sorte que o convencimento judicial se consubstancia fundamentalmente a partir de elementos produzidos em um expediente inquisitório, discricionário e, via de regra, unilateral — sem a observância, portanto, das garantias constitutivas de um processo penal acusatório e legitimamente democrático. (SAMPAIO, p. 5, 2020).

Ou seja, em que pese o presente trabalho tem como foco o modus operandi e decisões no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nota-se que a utilização dos elementos informativos para embasar a condenação é praxe não só neste tribunal, mas em outros da federação.

Nota-se que o inquérito policial, apesar de desprovido de contraditório e ampla defesa em sua essência, é uma importante garantia aos cidadãos, vez que previne que seja deflagrada ação penal sem qualquer indício mínimo que aponte para a materialidade e autoria da prática de uma infração penal, evitando-se acusações infundamentadas.

Em que pese ser eminentemente uma garantia, uma forma de subsidiar tão somente a denúncia para início do processo, na prática o que se percebe é que o inquérito policial tem suas funções exacerbadas, sendo utilizado para o convencimento do magistrado e fundamentação de posterior condenação.

Ou seja, como a figura do juiz das garantias ainda não foi implantada, conforme explicitado no primeiro capítulo, o juiz que atua no inquérito policial é o mesmo que atua durante o processo, de forma que, segundo a já exposta teoria da dissonância cognitiva, o juiz forma seu convencimento enquanto acompanha o inquérito policial, que na esmagadora maioria contém somente a versão acusatória e, durante a ação penal, busca apenas a produção de provas para fundamentar a condenação.

Nisso veio em boa hora alterações promovidas pelo pacote anticrime, que estabelece que o juiz que atua na fase de investigação não pode ser o mesmo da ação penal para não comprometer sua imparcialidade, de forma que os autos do inquérito policial devem ser excluídos do processo, tendo acesso a ele somente às partes, vez que sua função é somente para subsidiar a denúncia, e não a sentença.

Tal medida é extremamente salutar, pois mesmo que não declarado na sentença ou em alguma decisão, é nítido a influência que o inquérito policial tem para o convencimento do magistrado, que deve atuar de forma imparcial e se basear nos elementos probatórios que foram produzidos durante a ação penal, sob o crivo do contraditório e ampla defesa.

Sobre isso, para que se diga que a produção de provas ocorreu no curso da ação penal, é comum que a acusação apenas faça a “judicialização” de elementos do inquérito para driblar a vedação do artigo 155 do Código de Processo Penal.

A “judicialização”, conforme explica Aury Lopes Junior, ocorre quando a parte arrola testemunha para que em juízo apenas repita o que se está nos elementos informativos do inquérito (LOPES JR, p. 480, 2016), que é o que ocorre quando a acusação arrola os policiais militares que participaram da ocorrência, para repetir o que foi dito na fase investigativa.

Nisso afirma o autor:

A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgado para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada; e assim todo um exercício imunizatório (ou, melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação, que, na verdade, está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O processo acaba por converter-se em uma repetição ou encenação da primeira fase. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 234).

Sobre a coleta de provas, o já citado estudo de Jenyffer Félix Santana Nascimento, estabeleceu com precisão:

Diante dessa dificuldade já exposta, muitos magistrados acabam se atendo quase que unicamente ao depoimento policial, normalmente do agente condutor da prisão em flagrante do acusado. Essa prática tem prejudicado a plena aplicação do princípio do contraditório em juízo, limitando-o meramente ao âmbito formal, sem a eficácia devida na prática, restando fortemente prejudicada a defesa do acusado, além de colocar este em posição de vulnerabilidade frente a toda uma instituição que se utiliza da fé pública de seus agentes para impor suas versões dos fatos com os quais se deparam em meio as suas atuações, o que implica dar extremo poder à atividade policial prévia, ostensiva. (NASCIMENTO, p. 32, 2018). 

Ainda, é de se ressaltar que os policiais militares enfrentam diversas ocorrências por dia, de forma que é difícil saber em detalhes a ocorrência no momento da audiência, notadamente por decorrer grande lapso temporal entre a abordagem e a instrução processual. Assim, muitos agentes têm a estratégia de chegar alguns minutos antes da audiência, reler o boletim de ocorrência para lembrar do ocorrido e repetir o que consta no processo. Isso também ocorre por medo de falar alguma informação divergente e comprometer a prova oral, prejudicando o conjunto probatório dos autos.

Além do mais, prefere-se ater ao que consta no processo, sempre no sentido de legitimar a conduta adotada a fim de se evitar qualquer punição na esfera administrativa ou mesmo criminal.

Isso é confirmado em entrevista direta com policial militar no estudo realizado pelo Núcleo de Estudo de Violência da USP, já citado anteriormente:

Em relação à oitiva dos policiais que realizaram a prisão, cumpre destacar que foi dito pelos próprios policiais militares entrevistados, e confirmado por alguns juízes, promotores e defensores públicos, que, tendo em vista o decurso do tempo e o fato de que eles realizam diversas abordagens por dia e diversas prisões no mês, é difícil lembrar com precisão os fatos e detalhes das ocorrências que precisam testemunhar

Os juízes e promotores fazem sempre as mesmas perguntas. Geralmente a gente guarda o BO da polícia civil ou lê o BOPM. É difícil lembrar os fatos, ‘você prende tanta gente que não vai lembrar’

Outro policial, PM (15), afirmou que costuma chegar uma hora antes da audiência no fórum para ler o processo e lembrar o que ocorreu. E um terceiro policial, PM (12), revelou que nem sempre lembra e, nesses casos, segundo ele, diz ao juiz que não se lembra.

Segundo os policiais, eles preenchem um documento chamado BOPM (boletim de ocorrência 80 da polícia militar), onde anotam informações e detalhes sobre a ocorrência. Segundo informaram, muitos deles se preparam para as audiências relendo o próprio BOPM, que vez ou outra é solicitado pelos juízes e promotores para integrar os autos do processo. Grifo meu. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 79, 2011).

Desta forma, é admitido pelos próprios policiais que não é possível lembrar de todas as ocorrências que atendem, tendo que revisar o processo, notadamente o boletim de ocorrência, para relembrar o que ocorreu e, quando a leitura não desencadear a memória exata de como ocorreu, repetir o que consta no processo, sem acrescentar nada novo para a instrução processual.

Com isso, o processo penal, na fase de instrução, perde a sua essência, que é chegar à verdade dos fatos, não a “verdade real”, que muitos pretendem atingir, apesar de ser praticamente impossível, mas à reconstituição mais próxima de como ocorreram os fatos, passando a ser o processo uma mera formalidade, sendo a audiência de instrução e julgamento um teatro, que se finge que está apurando os fatos, quando, na verdade, só se está cumprindo burocracias previstas na lei.

É muito comum que se observe que o magistrado somente presta atenção enquanto os policiais estão depondo, fazendo as perguntas que entendem necessárias para fundamentar a sua decisão, na grande maioria das vezes condenatória e, enquanto as partes estão realizando os debates, é comum observar que o magistrado já está prolatando a sentença, sem mesmo ouvir o que as partes têm a dizer.

Sobre a repetição mecânica estabelece o Dr. André Rocha Sampaio:

Questão assaz problemática, no entanto, diz respeito à mera ratificação dos atos de prova repetíveis. Como se afirmou inicialmente, tratando-se de ato de prova cuja repetição seja obrigatória — v.g, nos casos de testemunhas não enfermas ou nas hipóteses de reconhecimento de pessoas ou coisas —, ainda que o ato tenha sido produzido durante o inquérito policial, sua repetição se afigura como requisito de validade à utilização do conteúdo em eventual sentença condenatória.

Todavia, o que comumente se observa na práxis forense é a simples ratificação do depoimento previamente colhido, isto é, a mera leitura do testemunho anteriormente realizado, quer seja pelo juiz quer seja pelas partes. Nessas hipóteses, tem-se que as garantias inerentes à produção da prova no processo — especialmente a oralidade, a imediação e a contradição — quedam-se largamente infirmadas e, não raras vezes, inteiramente excluídas. (SAMPAIO, p. 14, 2020). – Grifo meu.

Assim, a forma como o processo penal é feito atualmente precisa ser repensada, uma vez que, como se tem visto na prática, o processo acaba sendo uma mera formalidade para impor uma condenação, repetindo elementos informativos do inquérito, que deveriam servir para tão somente subsidiar a denúncia, não havendo uma real produção de provas.

Disso decorreu a necessidade de o inquérito ser desmembrado do processo, para evitar a contaminação desses elementos pelo juiz, apesar de a medida ainda estar suspensa pela liminar do STF, conforme exposto no início do trabalho.

Na citada pesquisa de André Rocha do Nascimento, foi feito um levantamento de sentenças, buscando analisar a fundamentação, de forma que, conforme se verificou, mais de 90% continham utilização explícita de elementos informativos do inquérito, sem contar as que tinham menções indiretas. Foi analisado, ainda, que 62% dos elementos de informação poderiam ter sido repetidos no curso do processo, enquanto 38% seriam irrepetíveis.

A vedação da utilização de somente elementos informativos foi bem ponderada pelo pesquisador:

Em uma espécie de “pseudosolução salomônica”, nem vingou a proposta original, de impedimento do uso dos elementos informativos para fundamentar a sentença, e nem a proposta alternativa que envolvia seu acesso ilimitado, irrompeu-se assim sua redação atual, que possibilita que o juiz use, mas não exclusivamente, os atos investigativos em sua fundamentação.

Ocorre que, diante da mentalidade inquisitória instaurada nas engrenagens da máquina processual penal tupiniquim, impedir meramente uma fundamentação exclusiva com base no fascículo inquisitorial é cinicamente menosprezar o potencial perversor do sistema de justiça criminal nacional; é a verdadeira construção de veios de contaminação que possibilitam a utilização de 99,9% do que fora colhido inquisitorialmente, legitimados por eventuais 0,1% de provas, no sentido forte do termo, ou seja, elementos produzidos em contraditório judicial. Grifo meu (NASCIMENTO, p. 27. 2020).

Desta feita, é possível perceber que a praxe forense, não apenas no âmbito paulista, tem mentalidade predominantemente inquisitória, de forma que, nos processos, principalmente nos de tráfico de drogas, acabam sendo privilegiados os elementos informativos do inquérito policial às provas produzidas regularmente no crivo do contraditório.

Assim, ocorre a mera reiteração de depoimentos prestados anteriormente, tendo o processo a função de mera formalidade para imposição de pena, ficando longe de sua verdadeira função constitucional de apurar o ocorrido, garantindo-se a ativa participação da defesa.

Sobre o assunto, convém ressaltar que o Código de Processo Penal Militar estabelece em seu artigo 352:

Art. 352. A testemunha deve declarar seu nome, idade, estado civil, residência, profissão e lugar onde exerce atividade, se é parente, e em que grau, do acusado e do ofendido, quais as suas relações com qualquer deles, e relatar o que sabe ou tem razão de saber, a respeito do fato delituoso narrado na denúncia e circunstâncias que com o mesmo tenham pertinência, não podendo limitar o seu depoimento à simples declaração de que confirma o que prestou no inquérito. Sendo numerária ou referida, prestará o compromisso de dizer a verdade sobre o que souber e lhe for perguntado. Grifo meu. (BRASIL, 1969).

Ou seja, ao menos no procedimento militar houve preocupação em estabelecer uma vedação expressa de mera confirmação do que foi dito no inquérito, de forma que, ao menos deve declarar novamente o que disse perante o juiz para que apure melhor o ocorrido. Seria salutar que o Código de Processo Penal comum contivesse também tal vedação expressa para espancar qualquer dúvida no sentido de mera repetição do que foi dito no inquérito.

Analisando a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo notou que, em que pese os agentes policiais não somente confirmassem o que foi dito em sede policial, observou-se que os depoimentos prestados em juízo eram somente a repetição do que constava no termo de depoimento do inquérito policial, ocorrendo a judicialização de tais depoimentos somente para driblar a vedação do art. 155 do Código de Processo Penal.

Ou seja, formaliza-se o depoimento em juízo somente para se afirmar que a sentença foi embasada em elementos colhidos durante a instrução processual e evitar nulidade, quando o que ocorreu, na verdade, foi uma mera repetição em audiência, cumprindo apenas a formalidade, para poder proferir a condenação.

Notou-se, também, que diversos magistrados afirmaram em suas sentenças que os policiais foram ouvidos em juízo “sob o crivo do contraditório”, como se tais agentes fossem declarar alguma nulidade ou falha no procedimento para beneficiar a defesa.

Desta feita, o que se percebe é que a praxe forense ainda está muito distante de ocorrer o que foi pensado para o processo penal verdadeiramente democrático e acusatório, no sentido de que o inquérito policial deveria servir única e exclusivamente para subsidiar a denúncia e, para embasar a condenação, deveria se utilizar somente os elementos de prova colhidos na fase de instrução, salvo eventual prova irrepetível produzida na fase inquisitiva.

Entretanto, o que se nota na prática é que o processo, ao invés de apuração dos fatos, se converte em mera formalidade, com repetição mecânica de depoimentos, com alegações finais escritas e lidas em voz alta, sendo que, em várias audiências percebe-se que, enquanto se faz as alegações finais, ao invés do magistrado estar prestando atenção para formar seu convencimento, já se encontra prolatando a sentença.

Disso advém a necessidade de exclusão física dos autos do inquérito com o processo, como já foi falado anteriormente, para evitar eventual contaminação do juiz com elementos inquisitivos e garantir um processo verdadeiramente acusatório.

Considerando a questão probatória tratada no presente trabalho, a seguir será verificada a forma de valoração da prova, convencimento do magistrado e a forma de fundamentação das decisões, contrastando a praxe forense com o modelo teórico ideal pensado ao processo penal brasileiro.

6. A VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO E A FALTA DE CRITÉRIOS MAIS OBJETIVOS PARA DECISÃO

É de conhecimento notório da comunidade acadêmica que o Brasil utiliza o sistema de livre convencimento motivado do juiz, considerando que o próprio art. 155 do Código de Processo Penal estabelece que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial.

Tal sistema é considerado uma evolução aos sistemas anteriores, como o sistema de tarifação das provas, no qual o valor de cada prova já era pré definida em lei, de forma que o juiz se tornava mero aplicador da lei, sem qualquer função hermenêutica.

Sobre tais sistemas, ensina o mestre Fernando da Costa Tourinho Filho:

Sistema das provas legais. Abolido o sistema da íntima convicção, surgiu o das provas legais, que suprimia ou restringia a faculdade de apreciação das provas. Trata-se de sistema diametralmente oposto ao da íntima convicção. Enquanto naquele o legislador demonstra sua desconfiança no juiz, neste (íntima convicção) há inteira e absoluta confiança.

O juiz devia decidir segundo as provas existente nos autos, e a lei exigia que tais ou quais fatos se provassem dessa ou daquela maneira, sendo que, às vezes, previa-se o valor dos meios probatórios se satisfeitas certas condições ou pressupostos. O conhecido brocado testis unus testis nullus (um só testemunho não tem valor), tinha, no sistema das provas legais, inteira aplicação. [...]

Sistema da livre convicção ou persuasão racional. Sem o perigo do despotismo judicial que o sistema da íntima convicção ensejava e sem coarctar os movimentos do juiz no sentido de investigar a verdade, como acontecia com o sistema das provas legais, está o sistema da livre convicção ou de livre convencimento. De modo geral, admitem-se todos os meios de prova. O juiz pode desprezar a palavra de duas testemunhas e proferir sua decisão com base em depoimento de uma só. Inteira liberdade tem ele na valoração das provas. Não pode julgar de acordo com conhecimentos que possa ter extra autos. (TOURINHO FILHO, 2017, p. 584-585).

Entretanto, o sistema atual apresenta diversas falhas, uma vez que, como atualmente não há qualquer critério de ordem objetiva no que tange às provas, como disse o professor Tourinho acima “inteira liberdade tem ele (juiz) na valoração da prova”, bastando que o juiz fundamente o motivo de sua decisão, fazendo com que haja decisões conflitantes a respeito da mesma matéria e, com isso, insegurança jurídica ao jurisdicionado.

Sobre isso estabelece a doutrina:

Há pouca clareza a respeito de quais fatores deveriam ser levados em conta na valoração da testemunha para que a apreciação do juiz pudesse ser, de fato, considerada prudente (sana e/ou motivada). Diz-se que o juiz “não [pode] se deixar influenciar por coisas que não podem ser objeto de prova e que, portanto, não podem ser utilizadas para afirmar que um fato restou demonstrado.” (RAMOS, 2021, p. 87).

Ainda, a falta de critérios objetivos para valorar a prova também tem sido objeto de artigos científicos, vez que há uma ampla discricionariedade na lei:

A importância de trabalhos como este vai justamente ao encontro da necessidade do estabelecimento de adequados critérios jurisprudências para valoração da prova, sobretudo, da prova oral. Ora, não se olvida da necessidade de conferência de ampla liberdade ao magistrado quando da valoração da prova dos autos, contudo, é imprescindível que tal liberdade seja exercida frente a critérios básicos previamente estabelecidos, com fins de se garantir a segurança jurídica e um julgamento isonômico a todos que venham a ser submetidos ao crivo da jurisdição penal.

A produção doutrinária cada vez mais caminha para o abandono da tese da busca da verdade real e a aceitação da realidade posta de que mesmo no processo penal se estará diante de uma verdade processual, isso frente à impossibilidade dos elementos de prova reproduzir em absoluta exatidão os fatos em apreciação, tal qual exatamente se deram. Destarte, indispensável à construção de um balizamento jurisprudencial que permita ao julgador valorar a prova dos autos, de forma a respeitar a presunção de inocência e a vedação da proteção deficiente. Grifo meu. (FURLAN, 2020, p. 09).

Com isso, considerando também que na lei não há indicação expressa o qual seria o standard probatório mínimo para proferir uma sentença condenatória, o que se entende por comprovação devida da autoria pode variar muito a depender do juiz que está sentenciando, sendo que, caso seja um juiz mais direcionado para o movimento lei e ordem, a tendência é abaixar o padrão mínimo, enquanto um juiz mais tendente para as garantias individuais, a tendência é aumentar o padrão probatório para condenar.

E, no caso do processo penal, ocorreu uma verdadeira inversão, sendo que, ao invés de manter o padrão rígido de provas sólidas e robustas para a condenação, fazendo com que a acusação reunisse mais elementos para conseguir a condenação, houve um verdadeiro afrouxamento do que se esperava para condenar, diminuindo o padrão de provas para que se pudesse fundamentar as condenações.

Também, é fundamental que a condenação seja baseada em provas, que, de acordo com o Código de Processo Penal pátrio, são aquelas produzidas no processo, na fase do processo, sob o crivo do contraditório, de forma que os elementos do inquérito são somente elementos informativos que servem para subsidiar a denúncia, nada mais.

Sobre tal diferenciação, bem preleciona o pesquisador Plínio Antonio Brito Gentil, em seu artigo “atos de persecução como prova criminal em face do processo penal brasileiro”:

Assim é que a nova redação do artigo 155 dignifica certas diretrizes visivelmente relevantes: primeiro prestigia o princípio do contraditório; depois estabelece que prova a ser considerada como tal é apenas aquela que for obtida em juízo, o que flui da expressão “em contraditório judicial”; além disso e como consequência, que somente os elementos produzidos diante do juiz devem ser qualificados como prova; e mais ainda, que a decisão não pode se apoiar unicamente no quanto obtido na fase de inquérito, que identifica com o termo “investigação”; e, por fim, que esses dados obtidos durante a investigação devem ser interpretados tão somente como “elementos informativos”, em reforço à ideia de que não podem, por si sós, constituir prova. (GENTIL, 2017, p. 06).

Ainda, seguindo o raciocínio, o autor estabelece com a devida precisão que, mesmo que os agentes da fase inquisitiva, ainda que sejam ouvidos em juízo “sob o crivo do contraditório”, não farão prova, realmente, de forma que somente repetirão sobre a fase que participaram, que foi o flagrante ou a apuração preliminar, fase esta que somente existe para dar justa causa à ação penal e embasar a denúncia do Ministério Público.

Convém citar suas lições:

Relevante neste passo é considerar que a fonte da prova, situada no agente administrativo, ou o policial, constitui obstáculo a que os depoimentos, sozinhos e sem qualquer outro apoio, sejam empregados como meio para a formação do convencimento do juiz e sustentáculo de uma decisão condenatória. Isto porque é ao Estado-Administração, no caso específico à polícia, que competem as ações de persecução na sua fase inicial, quando se buscam elementos tendentes a municiar o titular da ação penal para a instauração do processo.

Nesta hipótese, ante depoimentos de policiais, o que aí se tem não é propriamente prova judicial, mas uma assertiva que faz referência àquela atividade de persecução por eles desenvolvida na fase pré-processual e cuja função é apenas possibilitar o exercício da ação penal por parte do Ministério Público. Já que atuaram nessa atividade de persecução, os policiais em questão ficam de certa forma vinculados àquilo que conheceram em virtude de terem sido os primeiros protagonistas dessa persecução. Resulta que seus depoimentos serão, forçosamente, mera referência aos atos que praticaram na atividade investigativa, mas nunca prova judicial, naquele sentido exigido pela norma processual.

Tem valor esses depoimentos? Sim. Deve-se duvidar, em princípio de sua veracidade? Não. Os funcionários da administração e os policiais podem prestar depoimento? Claro que sim. Todavia não é isto que importa. É que, quando prestam depoimento, seja em que lugar for, esses agentes estatais que agiram na fase de persecução, ou investigação, forçosamente se reportarão àquilo que fizeram no curso dessas diligências. Significa que falarão sobre uma coisa que já esgotou a sua função: servir de base para a instauração da ação penal pelo Ministério Público. Sempre serão elementos informativos, jamais prova. Grifos meus. (GENTIL, 2017, p. 11).

Assim, os depoimentos de agentes da persecução penal, notadamente dos policiais militares, que geralmente participam da abordagem do réu na rua, serão somente elementos informativos para subsidiar a denúncia, vez que atuaram nesta fase, ainda que seus depoimentos sejam prestados em juízo, reportarão à fase inquisitiva, fase esta já concretizada e passada, de forma que na fase de instrução processual deve-se produzir novas provas para poder embasar a condenação, ônus este que incumbe à acusação.

Sobre este quadro, preleciona Aury Lopes Junior:

Logo, antes da produção de prova em juízo, recordando-se da diferença entre os atos de prova e os atos de investigação e, principalmente, que os atos da investigação preliminar não servem para justificar um juízo condenatório, pois seu valor é limitado. Isso acarreta uma supervalorização da investigação preliminar, do superado, híbrido e malformado inquérito policial, pois o acordo é feito exclusivamente com base nele, já que nenhuma prova é produzida (LOPES JR, 2021, p. 156).

Ou seja, é possível verificar que a investigação preliminar está super valorizada, de forma que há somente uma aparência de legalidade ao processo penal, ao judicializar o depoimento dos policiais militares para se afirmar que eles foram ouvidos “sob o crivo do contraditório”.

Ainda, com relação ao ônus da prova e a valoração desta no processo penal, conclui o citado autor:

Tampouco incumbem às partes obrigações, mas sim, cargas processuais, entendidas como a realização de atos com a finalidade de prevenir um prejuízo processual e, consequentemente, uma sentença desfavorável. Tais atos se traduzem, essencialmente, na prova de suas afirmações.

É importante recordar que, no processo penal, a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência.

Infelizmente, é comum nos depararmos com sentenças e acórdãos que fazem uma absurda distribuição de cargas no processo penal, tratando a questão da mesma forma que no processo civil. Não raras são as sentenças condenatórias fundamentadas na “falta de provas da tese defensiva” como se o réu tivesse de provar sua versão de negativa de autoria ou de presença de uma excludente (LOPES JR, 2021, p. 283).

Desta forma, considerando que o ônus da prova se impõe à acusação de provar a autoria e materialidade do crime, não deve o réu ser obrigado a provar sua inocência obviamente, vez que ele tem a presunção de inocência, a qual é a presunção que deve prevalecer no processo penal. Entretanto, o que a realidade demonstra é que ocorre a presunção de veracidade dos depoimentos dos policiais militares, que milita contrariamente a tal presunção do réu, invertendo o ônus da prova em seu desfavor.

Ou seja, considerando o sistema atual, o juiz é extremamente livre para valorar a prova, bastando que fundamente sua decisão, sendo que, obviamente não se deseja a volta do sistema de provas tarifas, engessando o sistema, mas é essencial que o Código de Processo Penal defina critérios mais objetivos do standard probatório para conferir uma condenação e que este seja em consonância com a presunção de inocência do réu e garantir maior segurança aos jurisdicionados em geral.

7. A (IM)POSSÍVEL ALTERAÇÃO DO ATUAL PARADIGMA

Durante o trabalho, foram expostas diversas falhas no procedimento penal brasileiro, realizando diversas críticas do modus operandi das cortes brasileiras. Assim, sabendo quais problemas ocorrem na seara criminal, notadamente no aspecto de prova, principalmente no tráfico de drogas, é preciso buscar soluções para melhorar a situação.

Ou seja, é preciso conciliar a garantia da ordem pública, de forma a evitar que criminosos sejam absolvidos com base em formalidades processuais obsoletas e também é necessário garantir aos jurisdicionados e os réus do processo penal a garantia de que serão condenados com base em provas sólidas, diminuindo as chances de condenar um inocente.

A seguir serão expostas duas possíveis soluções, não a erradicar o problema sistêmico o caso em questão, mas a melhorar a situação atual, um na questão legislativa e outro na seara jurisprudencial.

7.1. O PROJETO DE LEI Nº 7.024/2017

Tal projeto foi instituído pelo então deputado Wadih Damous, do Partido dos Trabalhadores, que é assim ementado:

Acrescenta parágrafo único ao art. 58 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção de uso indevido, atenção a reinserção social de usuários e dependente de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências (BRASIL, 2017).

No que tange ao projeto propriamente dito:

O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. Acrescenta parágrafo único ao art. 58 da Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.

“Art. 58…………………………………………………….......

Parágrafo único. Serão nulas as sentenças condenatórias fundamentadas exclusivamente no depoimento de policiais.

Art. 2º Esta lei entra em vigor imediatamente após a data da sua publicação. – Grifo meu. (BRASIL, 2017),

Tal projeto de lei está em total consonância com os estudos de referência e o estudo realizado no presente trabalho, demonstrando a utilização exacerbada da prova testemunhal, notadamente os policiais militares que participam das ocorrências.

Com base nisso, o deputado federal justifica a necessidade da lei:

Para tentar corrigir essa anomalia do sistema de justiça criminal, a presente proposta estabelece que serão nulas as sentenças condenatórias que se fundamentarem exclusivamente em depoimentos de policiais.

Os depoimentos de policiais ou de qualquer agente público não podem ser analisados de forma isolada e servir de único meio para lastrear uma condenação.

Ademais, o depoimento prestado pelos agentes envolvidos diretamente na prisão em flagrante traz em seu bojo um evidente juízo prévio condenatório em relação ao réu, até mesmo para não ver questionada a legalidade do seu ato.

A condenação exclusivamente com base no testemunho de policiais dificulta o exercício do contraditório por parte do acusado, vez que será a sua palavra contra a do agente público.

Nesses casos, o juiz tende a dar maior credibilidade à palavra do policial, invertendo o ônus da prova e obrigando o acusado a ter que provar sua inocência em situação amplamente desfavorável.

A proposta é motivada, ainda, pela situação carcerária brasileira e compõe uma série de projetos de lei que elaborei com foco na racionalização e humanização o sistema de justiça criminal. [...]

A proposta visa, portanto, contribuir para redução dos absurdos números do encarceramento em massa pela Lei de Drogas e, como consequência, conferir maior efetividade às garantias constitucionais, como o direito ao contraditório, ampla defesa e da presunção de inocência. Grifo meu. (BRASIL, 2017).

Em que pese tal projeto de lei teve parecer favorável pelo relator Deputado Delegado Edson Moreira, da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, houve diversos votos apartados de outros membros da comissão contrários ao projeto (deputados Subtenente Gonzaga e Laudivio Carvalho), sendo que, no voto deste último deputado é possível notar a utilização de princípios do direito administrativo para justificar a presunção de legalidade e veracidade:

Fazer prosperar o projeto de lei em pauta é negar a validade de alguns dos princípios que regem a Administração Pública, sabendo-se que os princípios precedem e regem a formulação das normas constitucionais e legais que os seguem. Em outros termos, tanto a Carta Magna como as leis, ao serem elaboradas, estão subordinadas aos princípios, deles não podendo fugir. Assim, todos os atos da Administração Pública e, por consequência, dos seus agentes, são revestidos do princípio da legalidade e o princípio da veracidade. Em razão disso, presume-se que todos os atos praticados pelos policiais, salvo prova em contrário, foram praticados dentro da lei e que as suas assertivas são verdadeiras. [...]

Acresça-se que a sua aprovação resultaria em mais uma etapa na destruição da autoridade, que já vem tão combalida, do Estado e dos seus agentes, aumentando a vulnerabilidade dos cidadãos de bem à ação impune da delinquência. (BRASIL, 2017).

Ou seja, fundamenta-se a rejeição do projeto de lei com base nos princípios da Administração Pública, sendo que, no âmbito criminal devem ser aplicados os princípios do direito penal e processual penal, de forma que ônus da prova incumbe à acusação. Ainda, afirma-se que a aprovação do projeto representaria um avanço para impunidade, o que demonstra o quão dependente deste tipo de prova o Poder Judiciário é.

Curioso que o relator Deputado Edson Moreira, apesar de votar a favor do projeto inicialmente, voltou atrás em seu segundo parecer, afirmando que:

Da inteligência de tudo o quanto foi exposto, é evidente que os depoimentos dos policiais não devem ser tomados de forma absoluta e estão sujeitos ao crivo do contraditório, mas presume-se que suas falas são verdadeiras, restando ao acusado o ônus da prova em contrário. Não o fazendo, estará sujeito à condenação. Grifo meu. (BRASIL, 2017).

Ou seja, nota-se a mentalidade inquisitória dos legisladores, ao afirmar que as palavras dos agentes policiais são presumidamente verdadeiras e cabe ao réu fazer prova em contrário, em uma verdadeira inversão do ônus da prova e mutilando de morte o princípio da presunção de inocência.

Com base nisso, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado rejeitou o projeto em reunião ordinária realizada em 23/05/2018.

Para corroborar a proposta, houve parecer favorável do Instituto dos Advogados Brasileiros, citando no parecer:

Nestes casos de tráfico, a polícia judiciária deveria, no mínimo, apresentar os compradores, mas isso só ocorre excepcionalmente. Em casos reiterados envolvendo drogas, a polícia prende em flagrante por tráfico um vendedor sem comprador. Os fatos narrados são quase sempre os mesmos: a polícia vai atender uma denúncia anônima, diz ter visto alguém comprando, que normalmente consegue se evadir e, sob a alegação de que o foco da ação era no vendedor, prende somente o suposto traficante. Assim, milhares de pessoas são condenadas como traficantes, sem prova de comprador, sozinhas, desarmadas e com pequenas quantidades. O que vale é a versão da polícia e não as provas do fato. A função da polícia é buscar a prova. A versão da polícia sem prova do fato é nada. E ninguém pode se defender do nada. Por isso, cabe à acusação apresentar a prova do fato e não uma mera versão sem prova. [...]

Assim, os fatos não importam, o que vale é a versão dos policiais militares que basta para condenar uma pessoa por tráfico de drogas. Quer dizer, se o policial declarar ter visto alguém vender, entregar ou fornecer, sem a detenção do comprador e com pequena quantidade de drogas, isso é suficiente para uma condenação de 5 a 15 anos de reclusão em regime fechado.

Trata-se de uma aberração jurídica altamente temerária pois todos nós estamos passíveis de sofrer condenação criminal altíssima. Basta o policial forjar uma pequena quantidade de droga e dizer que viu o suposto autor entregar a substância para um comprador, que está no processo. Grifo meu (BRASIL, 2017).

Da simples leitura do trecho do parecer se percebe que o modus operandi da polícia e do Poder Judiciário é o mesmo em outros estados da federação, considerando que tal entidade é do Rio de Janeiro e tece duras críticas à citada súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, demonstrando que o problema da prova no tráfico de drogas está longe de ser um problema da corte paulista, que foi analisada no presente estudo.

Tal projeto de lei foi controverso vez que, apesar de ter apoio da citada entidade, a Câmara de Vereadores de Piracicaba emitiu nota de repúdio ao projeto, sob o fundamento de que a força policial é altamente qualificada e que os criminosos envolvidos com o tráfico de drogas são muito violentos, havendo vários crimes envolvidos com o tráfico ilícito. Afirma ainda, que todo o trabalho dos policiais será desacreditado e toda a operação será perdida:

Considerando que se aprovada essa lei, mesmo com prova nos autos, o contexto que se deu a prisão e a quantidade de droga apreendida com o traficante, mas não houver uma testemunha civil, de nada valerá toda a ação realizada pela polícia e o traficante será solto, já que essa lei vai contra o agente que realiza operações de combate ao tráfico, dizendo que não há qualquer presunção de boa fé e de legitimidade por parte dos policiais, preferindo acreditar na palavra do criminoso. (BRASIL, 2017).

Com base nisso, é possível ver a reação dos órgãos oficiais frente ao projeto de lei, tendo conclusões totalmente infundadas e dissociadas da mens legis. Ou seja, com base no projeto de lei, não passaria a ser obrigatório que houvesse testemunha civil, sendo necessário que houvesse outras provas para corroborar a ação policial, como gravações audiovisuais, entre outros.

Ainda, nota-se conclusões precipitadas da nota, afirmando que “se preferiria acreditar no criminoso”, sendo que o processo seria justamente para apurar se tal pessoa seria realmente uma pessoa envolvida com a criminalidade, não podendo deixar impressões pessoais e pré-julgamentos passar por cima do devido processo legal.

No caso do projeto de lei, em que pese a controvérsia em torno da matéria, como decorreu a legislatura sem que houvesse a aprovação de todas as comissões, notadamente da Comissão de Constituição e Justiça, o projeto foi arquivado em 31/01/2019, nos termos do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados Federais.

Neste sentido, apesar de eventual nova proposta no mesmo sentido, é possível notar a dificuldade de se alterar o status quo, de forma que, considerando que a jurisprudência tem endossado a presunção de veracidade e legitimidade dos atos da polícia militar no processo penal, buscou-se a alteração do modus operandi pela via legislativa, que restou frustrada.

Não só foi arquivado como teve repúdio de câmara municipal, conforme exposto acima, sendo que, caso houvesse maior divulgação do projeto de lei, haveria mais controvérsia e debate em torno do tema, sendo que, os argumentos contrários ao projeto são sempre no sentido de que o tráfico de drogas é nefasto e violento, de forma que o Estado não pode medir esforços para combatê-lo, olvidando-se de determinadas garantias constitucionais e processuais.

De qualquer forma, a mera apresentação do projeto na câmara dos deputados representa um pequeno avanço vez que, ainda que não foi apreciado, é possível notar que há deputados preocupados com as garantias individuais, notadamente a proteção contra eventuais abusos de autoridade, bem como o devido processo penal, mesmo que sendo a minoria no órgão colegiado.

Também é possível verificar a falta de apoio que tal tipo de projeto recebe, considerando que o senso comum é que o Brasil é país de impunidade, e que o processo penal serve apenas para retardar a imposição de pena e buscar a prescrição, sendo popularmente rechaçada qualquer alteração para conferir um processo em consonância com os princípios basilares do direito penal e direito processual penal, notadamente o ônus da prova e a presunção de inocência.

Ou seja, considerando os deputados federais precisam de apoio popular para continuar em seus respectivos cargos, dificilmente a classe desafiaria a população e fulminaria sua carreira, principalmente deputados que também têm carreiras ligadas à investigação e repercussão penal, como foi o caso do deputado relator, que também é delegado de polícia.

Desta forma, como a alteração do paradigma atual pela via legislativa é pouco provável, a mudança no status quo tende a vir do Poder Judiciário, como ocorreu no caso da legalização do casamento homoafetivo, conforme se verá melhor no próximo o tópico.

7.2. O JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS 598.051/SP E SUAS INSTRUÇÕES

Em 02/03/2021 foi julgado o Habeas Corpus nº 598.051/SP no Superior Tribunal de Justiça que tem como enfoque a entrada de policiais nas residências quando não há mandado específico expedido pela autoridade judiciária competente, de forma que, foi debatida a controvérsia da suposta “entrada franqueada” pelo morador, bem como a jurisprudência consolidada de que o tráfico de drogas na modalidade “ter em depósito” é crime permanente e que, com isso, não precisaria de mandado judicial.

O acórdão está assim ementado:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INGRESSO NO DOMICÍLIO. EXIGÊNCIA DE JUSTA CAUSA (FUNDADA SUSPEITA). CONSENTIMENTO DO MORADOR. REQUISITOS DE VALIDADE. ÔNUS ESTATAL DE COMPROVAR A VOLUNTARIEDADE DO CONSENTIMENTO. NECESSIDADE DE DOCUMENTAÇÃO E REGISTRO AUDIOVISUAL DA DILIGÊNCIA. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. PROVA NULA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.

1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". [...]

2. O ingresso regular em domicílio alheio, na linha de inúmeros precedentes dos Tribunais Superiores, depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, apenas quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência – cuja urgência em sua cessação demande ação imediata – é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio. 2.1. Somente o flagrante delito que traduza verdadeira urgência legitima o ingresso em domicílio alheio, como se infere da própria Lei de Drogas (L. 11.343/2006, art. 53, II) e da Lei 12.850/2013 (art. 8º), que autorizam o retardamento da atuação policial na investigação dos crimes de tráfico de entorpecentes, a denotar que nem sempre o caráter permanente do crime impõe sua interrupção imediata a fim de proteger bem jurídico e evitar danos; é dizer, mesmo diante de situação de flagrância delitiva, a maior segurança e a melhor instrumentalização da investigação – e, no que interessa a este caso, a proteção do direito à inviolabilidade do domicílio – justificam o retardo da cessação da prática delitiva. 2.2. A autorização judicial para a busca domiciliar, mediante mandado, é o caminho mais acertado a tomar, de sorte a se evitarem situações que possam, a depender das circunstâncias, comprometer a licitude da prova e, por sua vez, ensejar possível responsabilização administrativa, civil e penal do agente da segurança pública autor da ilegalidade, além, é claro, da anulação – amiúde irreversível – de todo o processo, em prejuízo da sociedade.

3. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), a tese de que: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori” (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). Em conclusão a seu voto, o relator salientou que a interpretação jurisprudencial sobre o tema precisa evoluir, de sorte a trazer mais segurança tanto para os indivíduos sujeitos a tal medida invasiva quanto para os policiais, que deixariam de assumir o risco de cometer crime de invasão de domicílio ou de abuso de autoridade, principalmente quando a diligência não tiver alcançado o resultado esperado.

4. As circunstâncias que antecederem a violação do domicílio devem evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as fundadas razões que justifiquem tal diligência e a eventual prisão em flagrante do suspeito, as quais, portanto, não podem derivar de simples desconfiança policial, apoiada, v. g., em mera atitude “suspeita”, ou na fuga do indivíduo em direção a sua casa diante de uma ronda ostensiva, comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não, necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando substância entorpecente.

5. Se, por um lado, práticas ilícitas graves autorizam eventualmente o sacrifício de direitos fundamentais, por outro, a coletividade, sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente, excluídas do usufruto pleno de sua cidadania, também precisa sentir-se segura e ver preservados seus mínimos direitos e garantias constitucionais, em especial o de não ter a residência invadida e devassada, a qualquer hora do dia ou da noite, por agentes do Estado, sem as cautelas devidas e sob a única justificativa, não amparada em elementos concretos de convicção, de que o local supostamente seria, por exemplo, um ponto de tráfico de drogas, ou de que o suspeito do tráfico ali se homiziou. 5.1. Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. 5.2. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos – diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à inviolabilidade domiciliar, a qual protege não apenas o suspeito, mas todos os moradores do local. 5.3. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em cercear a necessária ação das forças de segurança pública no combate ao tráfico de entorpecentes, muito menos em transformar o domicílio em salvaguarda de criminosos ou em espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso policial no domicílio alheio a situação de ocorrência de um crime cuja urgência na sua cessação desautorize o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial – meio ordinário e seguro para o afastamento do direito à inviolabilidade da morada – legitimar a entrada em residência ou local de abrigo.

6. Já no que toca ao consentimento do morador para o ingresso em sua residência – uma das hipóteses autorizadas pela Constituição da República para o afastamento da inviolabilidade do domicílio – outros países trilharam caminho judicial mais assertivo, ainda que, como aqui, não haja normatização detalhada nas respectivas Constituições e leis, geralmente limitadas a anunciar o direito à inviolabilidade da intimidade domiciliar e as possíveis autorizações para o ingresso alheio. [...]

7. São frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais, quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados responsáveis pelos atos abusivos. E, em um país conhecido por suas práticas autoritárias – não apenas históricas, mas atuais –, a aceitação desse comportamento compromete a necessária aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos fundamentais de todos, independentemente de posição social, condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça. 7.1. Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso em domicílio alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto Maior, há de se aceitar com muita reserva a usual afirmação – como ocorreu no caso ora em julgamento – de que o morador anuiu livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime quando a diligência não é acompanhada de documentação que a imunize contra suspeitas e dúvidas sobre sua legalidade. 7.2. Por isso, avulta de importância que, além da documentação escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), seja ela totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo e, particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar. Semelhante providência resultará na diminuição da criminalidade em geral – pela maior eficácia probatória, bem como pela intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra policiais, por outro – e permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa causa para o ingresso e, quando indicado ter havido consentimento do morador, se foi ele livremente prestado.

8. Ao Poder Judiciário, ante a lacuna da lei para melhor regulamentação do tema, cabe responder, na moldura do Direito, às situações que, trazidas por provocação do interessado, se mostrem violadoras de direitos fundamentais do indivíduo. E, especialmente, ao Superior Tribunal de Justiça compete, na sua função judicante, buscar a melhor interpretação possível da lei federal, de sorte a não apenas responder ao pedido da parte, mas também formar precedentes que orientem o julgamento de casos futuros similares. [...]

9. Na espécie, não havia elementos objetivos, seguros e racionais que justificassem a invasão de domicílio do suspeito, porquanto a simples avaliação subjetiva dos policiais era insuficiente para conduzir a diligência de ingresso na residência, visto que não foi encontrado nenhum entorpecente na busca pessoa realizada em via pública.

10. A seu turno, as regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes castrenses de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor.

11. Assim, como decorrência da proibição das provas ilícitas por derivação (art. 5º, LVI, da Constituição da República), é nula a prova derivada de conduta ilícita – no caso, a apreensão, após invasão desautorizada da residência do paciente, de 109 g de maconha –, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas.

12. Habeas Corpus concedido, com a anulação da prova decorrente do ingresso desautorizado no domicílio e consequente absolvição do paciente, dando-se ciência do inteiro teor do acórdão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como às Defensorias Públicas dos Estados e da União, ao Procurador-Geral da República e aos Procuradores-Gerais dos Estados, aos Conselhos Nacionais da Justiça e do Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que deem conhecimento do teor do julgado a todos os órgãos e agentes da segurança pública federal, estadual e distrital.

13. Estabelece-se o prazo de um ano para permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Para contextualizar, o paciente foi denunciado como incurso no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/06, vez que teriam sido encontradas drogas em sua residência, constando na denúncia que o paciente teria franqueado a entrada nos policiais em sua casa, sendo que, na sentença de primeiro grau, o juiz afastou a suposta ilicitude de prova, sob o conhecido argumento que a palavras dos agentes policiais gozam de fé pública e o paciente não teria juntado aos autos prova de sua ilicitude. Com base nisso, o paciente foi condenado e, interposto recurso de apelação, o qual não foi provido, de forma que a ilicitude da prova também foi rechaçada.

Do acórdão da corte estadual, foi impetrado habeas corpus em favor do paciente na corte superior, a qual chegou a analisar a matéria e proferir a decisão acima ementada.

Tal acórdão pode ser considerado uma quebra de paradigma, vez que foi de encontro com toda a jurisprudência pacificada das cortes superiores, no sentido de que o crime de tráfico de drogas na modalidade “ter em depósito” é permanente e não seria necessário mandado judicial para entrar na residência, bem como estabelece o prazo de um ano para o aparelhamento das policiais, contendo câmeras e microfones para gravar a ocorrência e verificar como esta verdadeiramente ocorreu.

Isso é uma garantia tanto para o cidadão, vez que os agentes policias não abusarão de sua autoridade com os aparelhos ligados e também garantia para tais agentes que, se forem falsamente acusados de qualquer crime durante sua função, terão como provar o que verdadeiramente ocorreu.

Neste sentido, pondera o ministro relator:

Não se tem externado, porém, particular preocupação em exigir, na investigação iniciada por denúncia anônima, outros elementos que poderiam conferir maior segurança ao órgão acusador (Ministério Público) e ao julgador, como, de forma exemplificativa, os metadados da chamada telefônica da central da Polícia (dia, horário, origem e duração do chamado), ou outras circunstâncias que possam conferir mais credibilidade à licitude do encontro de droga no endereço objeto da denúncia, de sorte a não macular a própria materialidade delitiva. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Ainda, o ministro relator cita os casos da Polícia Militar de Santa Catarina e de São Paulo, que já se encontram implementando câmeras, e afirma:

Essas iniciativas devem ser elogiadas e, mais do que isso, seguidas por todos os governos estaduais, de modo a tornar parte do uniforme de todo policial um equipamento de registro de suas operações, o que, seguramente, resultará na diminuição da criminalidade em geral – pela maior eficiência probatória, bem como pela intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra policiais, por outro – e, especialmente no que diz respeito a autuações em flagrante delito e ingresso no domicílio do suspeito, permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa causa para o ingresso e se, quando houver sido apontado o consentimento do morador, foi ele livremente prestado.

Até que se ultime tal providência em todas as unidades federativas, não haverá óbice algum a que a guarnição policial, com um aparelho celular dotado de câmera fotográfica, registre a diligência, para sua segurança e para a segurança dos moradores da residência em que se realizou a operação, e muito menos se poderá opor qualquer obstáculo a que os próprios moradores registrem a diligência. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Assim, convém ressaltar e elogiar a preocupação da corte de que os outros estados da federação sigam o bom exemplo dos estados que já estão implementando as tecnologias, sendo, inclusive, determinado a utilização de celulares para poder registrar as ocorrências enquanto as câmeras não são incorporadas aos uniformes.

Ainda, é ressaltada a fragilidade dos depoimentos isolados dos policiais:

Tal providência, já implementada em algumas unidades federativas – ainda que em pequena parcela dos agentes – também é um sinal de que, em plena Era da Informação, na qual os registros históricos passam a contar com o auxílio da tecnologia e em que a maior parte dos habitantes do Planeta está interligada e conectada à internet, o processo penal também necessita acompanhar essa evolução e progressivamente ir reconhecendo a importância de outros meios probatórios, muito mais fidedignos em relação aos fatos e mais confiáveis do que a mera reprodução de testemunhas, que, como enfatizado linhas atrás, possuem alta dose de subjetividade e de interferências tanto cognitivas quanto mnemônicas.

Daí por que – mormente em atuação que envolve o afastamento de um direito tão caro quanto a inviolabilidade do domicílio – é indispensável, para a própria credibilidade e idoneidade da prova colhida na cena do crime, e para a maior segurança do Ministério Público (para acusar) e do Judiciário (para julgar) que a atuação estatal seja devidamente registrada e testemunhada por pessoas que não apenas os próprios responsáveis pela diligência da qual resulta a prisão em flagrante do suspeito.

A esse respeito, trago à baila o Relatório Final da Pesquisa Sobre as Sentenças Judiciais por Tráfico de Drogas, realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a partir do exame de um total de 2.591 sentenças prolatadas pelos juízos da Capital e Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no período entre agosto de 2014 e janeiro de 2016, relacionadas ao cometimento de crimes de tráfico de entorpecentes em geral. A pesquisa permitiu concluir, no tocante à prova oral produzida, que, em 62,33% dos casos o agente de segurança foi o único a prestar testemunho nos autos.

E, tendo em vista a expressiva quantidade de sentenças em que a única testemunha ouvida foi o agente de segurança, apurou-se que, em 53,79% dos casos, o depoimento do agente de segurança foi a principal prova valorada pelo juiz para alcançar sua conclusão. E com base em um universo de 1.979 casos em que a condenação foi baseada principalmente no depoimento dos agentes de segurança, foi possível observar que em 71,14% as únicas testemunhas ouvidas na instrução penal foram os próprios agentes de segurança. (Disponível em http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d0913 fa8a96.pdf. Acesso em 8/10/2020). Grifos meus. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Assim, é possível verificar que no julgado há a preocupação de se buscar fontes de provas mais fidedignas para documentar as ocorrências. Isso ocorre por inúmeros motivos, como foi mostrado, para garantir ao cidadão de que eventual abuso de autoridade será documentado em gravação, para garantir o agente policial no caso de ser falsamente acusado de algum crime durante ou seu trabalho e para que o juiz, que é o destinatário da prova, possa ver o que realmente ocorreu.

Ou seja, com as gravações é possível ver na íntegra o modus operandi dos agentes estatais, como a forma de abordagem dos cidadãos, a realização do flagrante, entre outros, de forma que caberá aos outros órgãos, como o Ministério Público e o Poder Judiciário verificar se estas estão realmente em consonância com a lei.

Ainda, conforme ponderado pelo eminente ministro relator, os depoimentos das testemunhas, ainda que narre o que realmente ocorreu, nunca terá mais precisão que uma gravação, vez que os depoimentos são dotados de impressões pessoais das pessoas que estão narrando, notadamente no caso dos policiais, que estão envolvidos com a ocorrência.

Com base nisso, não só o ministro elogiou os estados que implementaram sistemas de gravação, como determinou que fosse dado ciência do acórdão nos tribunais estaduais e que fosse concedido o prazo de 1 ano para o aparelhamento das demais polícias:

Sob essa perspectiva, preventiva de futuros atos de violação a direito de terceiros, mostra-se necessária e urgente a comunicação imediata desta decisão colegiada aos governos estaduais, para que providenciem treinamento e condições materiais a seus agentes de segurança pública, de modo a que possam observar as regras constitucionais densificadas no presente julgado. [...]

Com o objetivo, portanto, de evitar a repetição das narradas práticas violadoras de direitos fundamentais e, também, uma possível condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, é mister a comunicação da presente decisão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que deem conhecimento da decisão a todos os órgãos e agentes da segurança pública federal, estadual e distrital, respectivamente. [...]

Proponho se fixe o prazo de 1 (um) ano para permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a evitar situações de ilicitude, que, entre outros efeitos, poderá implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal, à luz da legislação vigente (art. 22 da Lei 13.869/2019), sem prejuízo do eventual reconhecimento, no exame de casos a serem julgados, da ilegalidade de diligências pretéritas. Grifo meu. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Assim, em que pese não houve sucesso na tentativa de alteração do status quo pela via legislativa, ante a mentalidade conservadora da maioria dos deputados e legisladores no geral, na seara jurisprudencial já há diversos avanços, como o precedente citado no presente trabalho, que não só rompe o paradigma atual em relação à entrada de policiais sem mandado judicial a fim de apurar o tráfico de drogas, bem como tangencia o depoimento dos agentes da lei como única prova no processo, bem como determina o aparelhamento das policias com tecnologias a fim de melhor elucidar como se deu a ocorrência.

Tal precedente é de suma importância a fim de se alterar a forma como a polícia opera e como o Ministério Público e o Poder Judiciário chancela tal atuação a fim de garantir a observação do devido processo legal e respeito às garantias individuais.

7.3. A ALTERAÇÃO DO STANDARD PROBATÓRIO ATUAL: A EXIGÊNCIA DE PROVAS MAIS ROBUSTAS NA APURAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS

Com base em todo o exposto, é preciso que haja maiores debates, como ocorreu no habeas corpus anteriormente citado, a fim de alterar o standard de prova no processo penal. Com relação a esse padrão de pobre, estabelece Guilherme Badaró:

Standards de prova são critérios que estabelecem o grau de confirmação probatória necessário para que o julgador considere um enunciado fático como provado” (BADARÓ, 2019, p. 236).

E, no caso do processo penal, considerando a teoria exposta no início do trabalho, confrontada com a prática forense, é possível perceber que o padrão de provas se encontra muito abaixo do que era esperado para proferir uma condenação criminal, vez que basta que os policiais que participaram da ocorrência sejam arrolados como testemunha para repetir o que foi dito durante a fase inquisitiva para que a pessoa seja condenada.

Nisso o ministro relator do habeas corpus acima citado bem ponderou:

Existe, assim, uma expectativa legítima de que o julgador, especialmente quando venha a restringir direitos fundamentais, atue mediante parâmetros objetivos de justificação, dos quais se possa extrair a firme convicção de que a decisão derivou de uma atuação independente, imparcial, justa e racionalmente demonstrável quanto aos recursos mentalmente empregados na argumentação, aos dados fáticos e probatórios considerados e à conformidade do direito aplicável à espécie.

E mesmo quando se trata de outros agentes estatais – como, no caso, de órgãos da segurança pública – tais critérios legais e axiológicos devem ser considerados, pois disso dependerá a licitude ou não do afastamento do direito individual sob tutela. Grifo meu. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Dessa forma, o processo penal deve atender não somente às expectativas sociais criadas em cima do que seria prova razoável para condenação, mas também, em consonância com os princípios basilares desta ciência autônoma, a fim de garantir maior segurança aos cidadãos.

Com relação à questão, em que pese a dificuldade de se alterar o padrão pela via legislativa, houve avanço jurisprudencial sobre o tema, conforme o acórdão citado, que, inclusive, propôs o prazo de um ano para o aparelhamento das polícias com câmeras e microfones para produzir conteúdo audiovisual acerca das ocorrências.

Nisso conclui o eminente ministro relator:

O Poder Judiciário, ante a lacuna da lei ou a omissão do Poder Legislativo, não pode deixar sem resposta situações que, trazidas por provocação do interessado, se mostrem violadoras de direitos fundamentais do indivíduo. E ao Superior Tribunal de Justiça cabe, precipuamente, a função de, ao prestar jurisdição, buscar a melhor interpretação possível da lei federal, de sorte a não apenas responder ao pedido da parte, mas também a formar precedentes que orientem o julgamento de casos futuros similares.

Deveras, estabelecer os parâmetros de aplicação das regras probatórias do processo penal requer do STJ a clara compreensão sobre sua razão de ser: conferir unidade ao sistema jurídico, projetando a aplicação do Direito para o futuro, mediante sua adequada interpretação, a partir do julgamento dos casos de sua competência. Como acuradamente assere Daniel Mitidiero (Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do Controle à Interpretação, da Jurisprudência ao Precedente. São Paulo: Editora RT, 2013, passim), a decisão recorrida deve ser entendida como meio de que se vale a Corte Superior para, com base na interpretação adequada do Direito, alcançar o máximo possível da unidade do direito aplicado em todo o território nacional, sem renunciar, por óbvio, ao controle de juridicidade das decisões recorridas. Grifo meu. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 598.051/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021).

Assim, é fundamental que tais diretrizes sejam seguidas para que o processo penal acompanhe as evoluções tecnológicas e garanta mais segurança e certeza ao proferir uma condenação criminal de um indivíduo.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi exposto no início do trabalho, o processo penal atual surgiu de um contexto no qual o Estado buscava restringir direitos em prol da suposta “garantia da ordem pública”, de forma que foi editado em momento de governo autoritário, enquanto a Constituição Federal foi promulgada em um momento de redemocratização do país, após o período da ditadura militar.

Ainda, o processo penal tem certos princípios que devem ser seguidos, como o ônus da prova com a acusação, a presunção de inocência, devido processo legal, entre outros. Entretanto, o que se tem visto na prática é o desrespeito a tais garantias constitucionais e processuais chanceladas pelo Poder Judiciário.

Ou seja, tanto em pesquisas anteriores como no presente caso, notou-se uma verdadeira inversão do ônus da prova em desfavor do réu e sua presunção de inocência, uma vez que ao depoimento dos policiais militares é conferida a presunção de veracidade e legitimidade, cabendo ao réu demonstrar que a ocorrência não se deu da maneira narrada pelos agentes.

Desta feita, foi imposto uma hercúlea tarefa ao réu nos processos penais, cabendo a ele fazer praticamente o impossível – ir contra e provar que os depoimentos foram falsos ou estão em desacordo com o ocorrido em determinadas partes.

E, como tal tarefa é demasiadamente difícil, nota-se que a grande maioria dos réus são condenados, conforme mostrou estudos anteriores e o presente, de forma que na grande maioria dos casos em que houve condenações, houve somente os policiais militares como testemunhas de provas da autoria do tráfico de drogas para embasar a condenação.

Assim, as medidas, sejam elas legislativas ou jurisprudenciais, para aumentar o standard probatório no processo penal são sempre salutares a fim garantir maior lisura e segurança ao procedimento, diminuindo as chances de erros e condenações de inocentes.

No caso, notou-se que medidas legislativas a fim de alterar a lei de drogas não surtiram o efeito desejado, notadamente pelos movimentos conservadores e de lei em ordem que estão presente na Câmara dos Deputados e Senado Federal.

De outro lado, a jurisprudência tem avançado para assegurar que as garantias constitucionais sejam respeitadas, como no habeas corpus comentado, no qual se buscou dar maior efetividade à garantia da inviolabilidade de domicílio, propondo que as polícias sejam equipadas com instrumentos de filmagens e gravação de áudio em seus uniformes para realizar provas mais fidedignas de como se deu a abordagem.

Tais tecnologias possibilitam tanto garantias aos cidadãos, de forma a diminuir abusos de autoridade, bem como garantias aos agentes policiais, de forma que caso sejam falsamente acusados de crimes durante a sua função, têm como provar o que realmente ocorreu.

Portanto, em que pese seja sempre difícil alterar o estado de coisas atual, notadamente o modus operandi da polícia e a respectiva chancela do Ministério Público e Poder Judiciário, é possível perceber que tal forma de atuação atual descrita neste trabalho e em outros demonstram as mazelas de tais formas de operação, embasando críticas em estudos e trabalhos acadêmicos de alta confiança, notadamente em relação à epistemologia da prova testemunhal, de forma a significar possível alteração da forma de proceder a longo prazo.

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARP e CESeC, “Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro: avaliação do impacto da Lei 12.403/2011”. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2014/01/PresosProvLivro.pdf acessado em 18/07/2021 às 19h25min.

BADARÓ, Gustavo H. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019, p. 236.

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Publicado por: Mateus Cacheta

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