O Aborto Eugenésico

No Brasil, o Código Penal vigente, de 1940, autoriza a realização de aborto apenas em caso de estupro e de risco de vida para a mãe. Mesmo prevendo penas de um a três anos de prisão e acontecendo anualmente 1,4 milhão de abortos no país, há dez anos tribunais do júri como o de São Paulo não condenam ninguém em função desta prática.

Muitos assemelham o aborto à eutanásia. Religiosos como dom Rafael Cinfuentes, do Rio de Janeiro, em entrevista à Veja, retratam suas posturas radicais. “A legalização do aborto é a legalização do homicídio. O Estado deve zelar pela vida de todos, principalmente deste bebê indefeso, inocente. É como se o seio materno estivesse passando de lugar acolhedor, de proteção, para cadeira elétrica”.

Outros ponderam como pode um Estado obrigar as mulheres a ter filhos, se ele mesmo é incapaz de garantir o mínimo para essas mães e seus bebês. Há ainda as concepções de que a ameaça penal é ineficaz porque o aborto é raramente punido, que a proibição leva a mulher a entregar-se a profissionais inescrupulosos e até mesmo que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo. Ou seja, ao legislar sobre o assunto, o Estado estaria apropriando-se do corpo de um ser humano e ferindo suas liberdades individuais.

Apenas para qualificar, aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. 40% das legislações do mundo concebem à mulher optar sobre ele. Historicamente, Tomás de Aquino era favorável ao aborto. Nas concepções da igreja em sua época, pensava-se que a vida começava depois do nascimento - e não na concepção, podendo assim ser o aborto feito sem receio.

Até entre os índios brasileiros ocorria a permissão, como anotou o padre José de Anchieta. “Essas mulheres brasílicas mui facilmente movem (abortam): ou iradas contra seus maridos, ou não os têm por medo; ou por qualquer outra ocasião mui leviana bebem beberagens, ou apertam a barriga, ou tomam alguma carga grande”.

O aborto eugenésico, como requer o trabalho, é executado sob a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais ou falhas na geração ou concepção. Dá-se em casos de anencefalia, agenesia renal (ausência de rins), abertura de parede abdominal e síndrome de Patau (onde há problemas gástricos, renais e cerebrais gravíssimos).

Londrina já autorizou um aborto por má formação do feto através do juiz Dr. Miguel Kffouri. A revista Istoé trouxe recentemente matéria na qual uma gestante tendo em seu ventre um feto encefálico, por preceitos religiosos, recusava o aborto. Ela optou por gerar a criança e, após o seu nascimento, doar seus órgãos.

Mas o caso mais contundente sobre o assunto vem de São Paulo. Na 16. Vara Criminal trabalham cinco juizes chamados de “anômalos”. Desde 1993, eles concedem alvarás para interrupção médica de gravidez, o aborto feito por anomalia fetal. Mais de 130 alvarás já saíram dali.

Naquele setor, um alvará sai em três dias. Se a gravidez envolve anomalia grave, incurável e sem perspectiva de sobrevida prolongada para o bebê, nunca é recusada a autorização. Todos estes casos são resolvidos por uma justificativa padrão, pois, a rigor, não existe amparo legal para este tipo de aborto, já que o Código Penal apenas fala em casos de estupro e risco de vida para a mãe. O juiz e seus auxiliares, no entanto, consideram que, ao permitir o aborto em caso de estupro, os legisladores do Código Penal tinham por objetivo preservar a saúde mental da mãe. Raciocinam, assim, que os casos de anomalia fetal não foram incluídos no Código de 1940 porque não havia tecnologia suficiente para identificar doenças em fetos.

Mas, por analogia, eles consideram que casos de anomalia fetal são graves ameaças à saúde mental da mães, concedendo assim os alvarás para abortos eugenésicos.

Quanto a este mesmo aborto eugenésico, acredito que não deva ser punido juridicamente. Jamais uma mulher realizará um aborto com satisfação. O fará em última instância. Além disso, qualquer espécie da aborto, mesmo o eugenésico, é um atentado ao corpo humano, algo refutável por todos. Vale lembrar que num aborto, a condenação moral tem valor muito maior que uma pena imposta pelo universo jurídico.

Ao legislar sobre o aborto, o judiciário toma para si a função de dispor a respeito de algo que não lhe pertence nem concerne à sua alçada. Criminalizar o aborto só piora, ao acrescentar uma agressão emocional e física à mulher além das quais ela já vem sofrendo. Não basta também proteger a vida no ventre daquela mãe, mas o tipo de vida que o feto terá depois do nascimento, quando se transforma num bebê, num cidadão.

Permitir o aborto como mecanismo de proteção da saúde mental da mulher é algo indispensável. Aliás, o aborto deveria ser autorizado em todos os casos e repassar à mulher sua decisão. Legislando, o Estado rouba para si uma responsabilidade particular, individual. É importante ressaltar que obrigar a gestante, que quer abortar, a ter seu filho “apenas” porque a criança é fruto de um relacionamento inconseqüente, porque ela não tem condições psiquico-sócio-financeiras de sustentar um novo ser ou até mesmo por vaidade ou egoísmo feminino não é uma forma de penalizar, castigar, punir tão somente a futura mãe, mas também o futuro ser.

Em Curitiba, um formando de Direito entrou na justiça para ser indenizado por ter ficado preso sem ser culpado. Em 1973, sua mãe, detida pelo regime militar, engravidou e não foi autorizada a passar a gestação fora da prisão. Com isso, o nascituro, portador de direitos e amparado pela lei, ficou encarcerado junto com sua mãe. Em decorrência das precárias condições da prisão, ele tem seqüelas comprovadamente geradas no período de gestação, quando estava preso sem ser culpado. O processo caminha para ganho de causa em seu favor.

Analogamente, uma criança que venha a nascer porque o judiciário não autorizou um pedido de aborto feito por sua mãe e que venha a passar por problemas futuros das mais diversas naturezas, poderia requerer à justiça indenização por parte do Estado uma vez que o próprio poder público obrigou seu nascimento.

Muitos dirão que não é função do judiciário oferecer condições, obrigação esta pertinente ao Estado, mas apenas fazer cumprir a lei. Por outro lado, o mesmo judiciário ao usar desta afirmativa escusa-se de sua responsabilidade ao proibir abortos sem dar amparo para que a mãe prossiga com a gravidez. Se há um confronto entre a lei e a justiça, que largue-se a lei e faça-se a justiça. Nesse caso específico do aborto, seguir a lei nem sempre é fazer justiça.

Em síntese, sou favorável ao aborto em todas as hipóteses. Proibi-lo tendo em vista efeitos momentâneos é pior que suas conseqüências. Cabe à mulher, ao casal, de porte de seus preceitos e valores, avaliar os vários ângulos do problema e dispor sobre a melhor forma de solucioná-lo.

Eduardo F. O. Camposicq/uin: 11849316


Publicado por: Brasil Escola

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