HOMICÍDIO DOLOSO NOS CRIMES DE TRÂNSITO: A remessa do evento morte derivado de acidente de trânsito ao tipo penal de homicídio doloso
índice
- 1. RESUMO
- 2. INTRODUÇÃO
- 2.1 Relevância Jurídica
- 2.2 Referencial Teórico
- 2.3 Metodologia
- 3. Crescimento demográfico e consequente aumento da frota nacional
- 3.1 Os Veículos automotores no Brasil – breves considerações histórico cronológicas
- 3.2 O crescimento demográfico dos grandes centros urbanos no Brasil
- 3.3 O aumento no número de acidentes de trânsito com resultado morte, um problema de saúde pública e de impactos econômicos e sociais
- 3.4 Principais causas dos acidentes de veículos terrestres
- 3.5 O álcool e a direção
- 4. Crimes no Código de Trânsito Brasileiro e teorias penais aplicáveis
- 4.1 103 anos da legislação de trânsito brasileiro
- 4.2 Os crimes culposos previstos no Código de Trânsito Brasileiro
- 4.3 A “Lei Seca”, suas expectativas e resultados
- 4.4 Teorias do Dolo e da Culpa
- 5. REFLEXOS NO JUDICIÁRIO
- 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 7. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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1. RESUMO
Tema atual e bastante discutido dentre juristas e legisladores e ainda com grandes indagações, tem o presente trabalho por escopo analisar, em linhas gerais, os reflexos da teoria dolosa no Código de Trânsito Brasileiro. Como ponto de partida é necessária breve exposição acerca da razão de ser do fenômeno, o qual tem sua origem relacionada à percepção da insuficiência dos instrumentos do Direito Penal na tutela plena do trânsito atual, que passou a ser discutido como um problema de saúde e segurança nacional. A realidade social exigiu, portanto, a revisão dos antigos institutos do Código de Trânsito que, embora considerados já modernos em termos legislativos em face de outras codificações nacionais, mostraram-se incapazes de promover a dignidade e o respeito no tráfego terrestre diário. Neste raciocínio, é importante analisarmos a distinção entre as teorias do Direito Penal que estão presentes no Código de Trânsito Brasileiro e ainda aquelas que este pode comportar, sendo lhes, portanto, consoantes. Em face dos aspectos de transformações do Direito Penal e de Trânsito, pode-se afirmar que a sua interdisciplinaridade é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamental reguladores do poder efetivo do Estado no controle eficiente, seja educativo ou coercitivo, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais da legislação infraconstitucional de forma mais eficiente.
PALAVRAS-CHAVE: Criminalização do Código de Trânsito; Função educativa e coercitiva da Lei; Adoção da teoria do dolo eventual nos acidentes de trânsito com morte.
2. INTRODUÇÃO
Ao longo da história das civilizações quando o costume não é suficiente para conter os excessos sociais, as lideranças, na maior parte das vezes os legisladores, positivam ou regulamentam através das leis controles que buscam coibir estes excessos de forma eficiente, geralmente criminalizando-os.
O trânsito é por si uma atividade de risco. No entanto, as anomalias como a embriaguez, o “racha”, a direção perigosa não devem ser aceitas como parte deste risco genérico. Deste modo, este trabalho buscará observar e discorrer sobre a atual discussão acerca do assustador número de acidentes registrados anualmente no Brasil, principalmente aqueles com vítimas fatais, suas principais causas, consequências gerais na sociedade, especialmente nas políticas de saúde e segurança pública, buscando refletir acerca de possíveis soluções imediatas e em longo prazo para amenizar e diminuir os efeitos atuais deles advindos.
Logo, o presente trabalho partirá de uma análise histórica e cronológica do automobilismo no Brasil, seu desenvolvimento em conjunto com as necessidades nacionais e em face ao crescimento demográfico brasileiro e possíveis conflitos sociais, econômicos, de saúde pública e com a Lei.
Procura ainda analisar os dados e as pesquisas, objetivando construir um argumento sólido a justificar e embasar os novos pensamentos acerca da aplicação legal para os crimes de trânsito no país, apontando para a necessidade de se preocupar com a situação atual do trânsito brasileiro, o índice de mortalidade e uma possível solução para amenizar esses reflexos negativos em nossa realidade atual.
Sabemos que não é todo acidente de trânsito terrestre que termina em morte, mas, como a morte representa um grau máximo da violência contra o indivíduo, estando conforme demonstra estudo da UNESCO de 2004, como uma das três maiores causas de morte violenta no país, os acidentes de trânsito terrestre constituem atualmente condão de estudo do Direito Criminal.
2.1. Relevância Jurídica
Durante as ultimas décadas, inúmeros setores da sociedade e das estruturas governamentais do país tem buscado respostas quanto à situação do trânsito terrestre, suas nuances, acidentes, prejuízos aos cofres públicos, vitimização social, transtornos físicos e psíquicos derivados dos acidentes e possíveis soluções para os mesmos.
Alguns estudos foram capazes de apontar provável eficiência de legislação mais rigorosa como na entrada em vigência do Código de Trânsito Brasileiro em 1997 é o exemplo da Lei 11.705 de 2008, destacando quedas nos acidentes fatais após sua entrada em vigor, apesar de consoante aumento da frota nacional inflacionada por políticas públicas neste sentido naquele mesmo período.
Diante da incerteza e da falta de solução real para os problemas dos acidentes de trânsito terrestre, sua discussão no presente trabalho ainda possui relevância jurídica e social.
2.2. Referencial Teórico
A legislação de trânsito brasileira adota desde 1997 a teoria da culpa para tratar os acidentes com evento morte ou lesão corporal ocorridos no trânsito terrestre insculpida nos artigos 302 e 303 da Lei 9.503/97(CTN). No entanto, com o crescimento demográfico e consequente aumento da frota veicular terrestre, surgiram vários consequências entre elas o aumento do número de acidentes com vitimas fatais e lesões permanentes graves.
Observando essa realidade e as suas interferências em várias situações da vida cotidiana, viu-se o Estado brasileiro na obrigação de movimentar-se em suas políticas públicas em diversos setores afim de coibir de alguma forma estas fatalidades.
Consoante a estas políticas públicas, foi então publicada em 2008 a Lei 11.705, comumente conhecida por “lei seca”, visando “inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor” (BRASIL, 2008), conforme a própria justificativa do preâmbulo da referida lei.
Desde então, as campanhas e a atenção dos agentes de trânsito para fazer efetivar a função desta lei tem sido frequentes, incluindo as propagandas publicitárias em geral veiculadas em todos os tipos de mídias. Este movimento atinge diretamente a população no sentido da mobilização de apoio direto e através de ONGs formadas principalmente pelas vítimas e familiares de vítimas. Com esta situação fática, nem o judiciário nem os juristas não poderiam deixar de se manifestarem diante deste problema tampouco de suas consequências, principalmente aqueles que se tornaram lides e que foram trazidas ao crivo do juízo.
Quando estes eventos começaram a abarrotar o judiciário e a população sofrendo consequências graves e cobrando respostas, esbarrou-se os operadores do Direito na lei de trânsito que, taxativa, prevê apenas a forma culposa, que em suma, não possibilita os resultados jurídicos mais graves senão os já previstos no direito positivado.
No entanto, surgiram às discussões doutrinárias acerca da ineficácia da lei atual, clamando por mudanças ou extensão de entendimento sobre os casos concretos, invocando as teorias jurídicas criminais acerca do fato, abrindo a possibilidade deste estudo, baseado, então no pensamento do professor NUCCI, como segue:
As inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o risco da direção perigosa e manifestamente ousada, são suficientes para esclarecer aos motoristas da vedação legal de certas condutas, tais como o “racha”, a direção em alta velocidade sob embriagues, entre outras. Se, apesar disso, continua o condutor do veiculo a adir dessa forma nitidamente arriscada, estará demonstrando seu desapego à incolumidade alheia, podendo responder por delito doloso (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 9ª ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 202).
Partindo desse pressuposto, podemos analisar a aplicabilidade legal do dolo eventual nos delitos praticados no trânsito, inclusive sua inserção na reforma legislativa do novo código penal nacional, para os crimes desta natureza.
Nessa esteira, importante ressaltar os ensinamentos da então Ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Grace, que explica a aplicação prática do mesmo.
A questão de direito, objeto de controvérsia neste writ, consiste na eventual análise de material fático-probatório pelo Superior Tribunal de Justiça, o que eventualmente repercutirá na configuração do dolo eventual ou da culpa consciente relacionada à conduta do paciente no evento fatal relacionado à infração de trânsito que gerou a morte dos cinco ocupantes do veiculo atingido...
Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. (STF, HC 91159-5. Ministro Ellen Grace. Julgado 02.09.2008)
Cabe analisar afinal, se esta criminalização é também mecanismo eficiente no combate a esta prática e diminuição nos números de mortes no trânsito.
2.3. Metodologia
Quanto aos meios se trata de uma pesquisa exploratória, por recorrer ao uso de materiais, como livros, revistas, artigos, jurisprudências, além de pesquisas em sites especializados a cerca do tema. Já quanto aos fins é descritiva, pois visa descrever a realidade dos acidentes de trânsito e os danos socioeconômicos deles advindos no cidadão comum e nos cofres e políticas públicas, pois requer a interpretação e atribuição de significados no processo de pesquisa, não requerendo o uso de métodos e técnicas estatísticas. Neste sentido, fica compreendido que, buscamos uma pesquisa que além de descobrir e analisar fatos e situações dos acidentes de trânsito no Brasil, investigar alternativas capazes de solucionar o problema. Trata-se de um método de indução, é o raciocínio que, após considerar um número suficiente de casos particulares, conclui uma verdade geral. Buscamos como fontes primárias os casos concretos e secundárias os livros, revistas, artigos e jurisprudências nacionais acerca do tema.
3. Crescimento demográfico e consequente aumento da frota nacional
Compulsando os dados do último senso demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, o IBGE, realizado no ano de 2010, identificamos que todos os vetores que representam o crescimento demográfico nacional são positivos. Isso significa que, principalmente os centros urbanos, nos últimos 40 anos apresentaram um crescimento populacional médio de 1, 166 % em nível nacional e de 84,4% na taxa de crescimento na urbanização nacional.
Esses números significam uma população de 190.755.799 habitantes, ou seja, uma crescente importância numérica na população brasileira, desencadeando uma necessidade a adequação e desenvolvimento em inúmeras áreas, principalmente naquelas ligadas diretamente ao deslocamento e transporte destes indivíduos e essa evolução demográfica sucessiva ocorreu principalmente no período de 1991 a 2010, conforme o senso de 2010, mesmo período em que observaremos a modernização e o aumento da frota nacional.
3.1. Os Veículos automotores no Brasil – breves considerações histórico cronológicas
Conforme Fernando Rebouças (2011), a primeira fábrica da indústria automobilística brasileira foi inaugurada em 1956, na cidade de Santa Bárbara do Oeste, interior Paulista, pertencendo à montadora Vemag, iniciando aqui a montagem da camioneta F91 e mais tarde do Jipe Munga, entre outros veículos preparados para o transporte de cargas e pessoas nas difíceis estradas pelo Brasil afora.
Também se instalou no país no ano de 1959, ainda no estado de São Paulo, agora na cidade de São Bernardo do Campo a empresa Volkswagen, vindo a produzir as primeiras kombis no Brasil e posteriormente os ainda populares fuscas.
Com o crescimento do mercado automobilístico no país, surgiram também empreendedores nacionais como, por exemplo, os produtores do mini-jipe Tupi, produzido em 1953 no município de Rio Bonito, estado do Rio de Janeiro.
Já na década de sessenta vieram outras montadoras como a Ford e a Chevrolet até que no ano de 1976, a Fiat, fábrica italiana, também se instalou por aqui, vindo a dominar, juntamente com as marcas Volks, Chevrolet e Ford como as três maiores marcas do mercado automotivo brasileiro.
Estudando o momento econômico do país, verificamos que em meados da década de 90, houve um crescimento na economia brasileira e uma equiparação da moeda brasileira, o real, com o dólar americano, ocasionando no consumo de carros importados vindo a incentivar a “modernização da frota brasileira como meio de superar a concorrência estrangeira, atraindo os fabricantes de modelos importados para produzir no Brasil”, ainda de acordo com Rebouças (2011).
Após atravessar um período de quedas nas vendas registradas até o ano de 2004, o Brasil fortaleceu novamente sua economia iniciando um período de crescimentos significativo a partir de 2007, quando o país passou a ocupar a sexta posição na produção mundial de veículos, tendo em vista os investimentos atraídos por políticas econômicas do governo, apesar de ainda não possuir uma montadora genuinamente nacional.
3.2. O crescimento demográfico dos grandes centros urbanos no Brasil
O Brasil sofreu nas décadas de 60, 70 e 80 o chamado êxodo rural onde os moradores do campo migraram para os grandes centros urbanos em busca de emprego e melhoria de vida. Neste período o crescimento populacional no Brasil também foi significativo. O desenvolvimento econômico pelo qual passava o país também proporcionava aos centros urbanos a necessidade de se adequarem e de se expandirem, além, do próprio inchamento com a chegada dos migrantes. Conforme já estudamos acima, um dos crescimentos industriais ocorreu no setor automobilístico e o consequente aumento do consumo de veículos no deslocamento tanto do serviço público de transporte quanto dos carros particulares, fomentado pelas políticas nacionais de expansão de industrial e econômica per capita refletida diretamente no desenvolvidos desses grandes centros urbanos. Como o efeito dominó, o crescimento demográfico e consequente crescimento da frota nacional, presente especialmente destas cidades em expansão, fixaram segundo o DENATRAN, a ocorrência de 84 % dos acidentes nos referidos centros urbanos, pelo menos no período de 2002 a 2006.
3.3. O aumento no número de acidentes de trânsito com resultado morte, um problema de saúde pública e de impactos econômicos e sociais
Todo problema, quando se torna muito grande, desperta na sociedade e nos governos a preocupação em estudá-los, descobrir suas causas e possíveis soluções e isso não é novidade. Com os problemas do trânsito brasileiro não foi diferente tanto que o Ministério das Cidades, o Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN) em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA/MPOG) reuniram os dados referentes aos acidentes de trânsitos nas rodovias brasileiras para, segundo se transcreve de sua apresentação, buscar alternativas a este problema:
Esse esforço conjunto permitiu transformar dados avulsos e dispersos sobre os acidentes de trânsito nas rodovias brasileiras em informações articuladas e imprescindíveis a tomadas de decisões e à formulação de políticas públicas, para enfrentar o desafio da redução das mortes, das seqüelas físicas e psicológicas de pessoas, além das perdas materiais decorrentes desses acidentes. (GRIFO NOSSO)
SOARES, Luiz Henrique Proença - Presidente do IPEA e SILVA, Alfredo Peres da - Diretor do DENATRAN.
Neste estudo apresentado em Dezembro de 2006, intitulado de Impactos Sociais e Econômicos dos Acidentes de Trânsito nas rodovias Brasileiras, o IEPA conclui que o custo anual dos acidentes de trânsito só nas rodovias brasileiras alcançou o montante de R$ 22 bilhões em dezembro de 2005, naquela época, o equivalente a 1,2% do PIB nacional. Conforme o estudo, este valor está diretamente ligado as perdas da produção, à morte das pessoas ou interrupção laborativa destas, seguido dos custos com sua saúde e ainda aqueles associados aos custos dos veículos.
Sendo um levantamento muito específico aos interesses governamentais, apresentando uma preocupação dos dirigentes nacionais dos principais setores diretamente ligados a área do trânsito, salienta-se, pois, estes dados como gozadores de uma credibilidade relevante. Como um trabalho complexo, podemos considerar bem grave algumas de suas conclusões como as destacadas a seguir:
(...)
11. Os custos médios dos acidentes são fortemente influenciados pela sua gravidade. Um ileso adiciona ao acidente um custo médio de R$1.207; uma vítima classificada como ferido pela polícia rodoviária adiciona R$38.256; e um morto, R$281.216. Os acidentes registrados no Datatran, da Polícia Rodoviária Federal, no período coberto pelo plano amostral para a estimativa dos custos (jul/2004 a jun/2005), envolveram um total de 468.371 pessoas. Dessas, 84,4% foram classificadas como ilesas; 14,2%, classificadas como feridas; e 1,4%, classificadas como mortas. As estimativas mostraram que nos acidentes classificados pela Polícia Rodoviária como sem vítimas, o custo médio padrão foi de R$16.840,00 (dezesseis mil, oitocentos e quarenta reais) por acidente, em valores de dezembro de 2005. Os acidentes classificados como não-fatais, com feridos, e os acidentes classificados como fatais tiveram um custo médio padrão 5 vezes e 25 vezes maior, respectivamente.
(...)
Adicionalmente, evidencia-se a importância de programas e ações que reduzam a gravidade dos acidentes.
12. Os custos dos acidentes nas rodovias federais relativos às pessoas representam 68,5% do total — este igual a 6,5 bilhões de reais, a preços de dezembro de 2005 —, seguidos dos custos relativos aos veículos (31,1%). Os demais custos (0,4%) são aqueles decorrentes dos danos à propriedade pública e privada (sem os veículos, é claro) e os custos de atendimento
do acidente. Essa evidência — aliada à gravidade das lesões que as pessoas sofrem — dá indicativos do foco de políticas públicas voltadas para reduzir a gravidade e a quantidade dos acidentes nas rodovias brasileiras. São as pessoas que estão sofrendo os impactos dos acidentes de trânsito. É para a preservação da vida e da saúde — física e mental — das pessoas que o setor público deve atuar, prioritariamente. Ou seja, esse é um problema de Saúde Pública. (Grifo nosso)
Chama a atenção o fato de que este estudo do IPEA trabalhou com dados apenas das rodovias e ocorridos entre 2004 e 2005, apontando necessidades imediatas de interferência nacional no sistema de Trânsito a fim de amenizar aquela realidade apresentada.
Consoante a consideração que os acidentes de trânsito se tornaram um problema de saúde pública, o Departamento Nacional de Trânsito declarou que
De acordo com sucessivos relatórios da Organização Mundial de Saúde, as perdas provocadas pela violência do trânsito representam uma das maiores preocupações da entidade, caracterizando-se como um problema de saúde pública com proporções epidêmicas.
...
Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil registra um índice de 18.9 fatalidades por grupo de 100 mil habitantes. Países líderes, alguns europeus e outros asiáticos, registram uma taxa de 5 mortes por 100 mil habitantes.
Neste sentido, foi também a Assembléia da Organização das Nações Unidas, ocorrida em Março de 2010, onde proclamou oficialmente que a década 2011-2020 “Década Mundial de Ação pela Segurança no Trânsito a fim de estimular esforços em todo o mundo para conter e reverter à tendência crescente de fatalidades e ferimentos graves em acidentes no trânsito no planeta”.
3.4. Principais causas dos acidentes de veículos terrestres
Acidente segundo a definição contida no Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa é um “acontecimento casual, fortuito ou desastre.” Como vemos, é uma palavra cheia de nuances e sinônimos. Entretanto, quando tratamos de um acidente de trânsito, a maioria das pessoas tendem a compreender e interiorizar como mera fatalidade, ocorrências independentes da vontade humana ou produtos das irresponsabilidades dos usuários da via pública. Tecnicamente, o CTB traz em seu texto inúmeras referências a acidente de trânsito sem, contudo o definir. No entanto, conforme um artigo de Araujo (2009), que o define é a NBR 10.697/89, que assim prescreve: "todo evento não premeditado de que resulte dano em veículo ou na sua carga e/ou lesões em pessoas e/ou animais, em que pelo menos uma das partes esteja em movimento nas vias terrestres ou áreas abertas ao público. “Pode originar-se, terminar ou envolver veículo parcialmente na via pública”.
No entanto, quando nos deparamos com indivíduos que, conhecendo as leis de trânsito quanto à vedação a condução sob efeitos do uso de álcool ou outra substância psicoativa ao ainda promovendo rachas nas vias, não podemos considerar tal evento um “acidente”. Nestas condições fica óbvio que o condutor no mínimo, consente ou assume o risco de produzir o resultado danoso deste evento.
O que muito impressiona nos casos concretos é que segundo um estudo da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, 21 a 30 % das fatalidades de trânsito envolvem o uso de bebidas alcoólicas e este é um percentual extremamente importante e elevado quando falamos em perda da vida humana.
3.5. O álcool e a direção
O uso abusivo do álcool no Brasil se remete a questões históricas do país. Enraizado no cotidiano brasileiro, principalmente ligado às comemorações, conforme diz o Dr. Flávio Emir Adura, que completa: “- ele está arraigado a nossa cultura e o que falta é conciliar esta alegria à responsabilidade de beber e não dirigir”.
Diante desta verdade, faz-se necessário neste trabalho nosso entendimento do conceito de alcoolismo, de sua classificação e da ação do álcool sobre o sistema nervoso central, levando seus usuários que insistem em beber e dirigir a cometer infrações de trânsito, causando geralmente acidentes fatais, afetando a si e ao próximo.
Conforme a lição de Júnior (2010) em seu Manual de Medicina Legal baseada no conceito da OMS, o “Alcoolismo é termo que se designa as anomalias clínicas resultantes de intoxicação exógenas pelo consumo excessivo e prolongado de bebidas alcoólicas”.
Segundo este ele, o alcoolismo no indivíduo pode se processar por meio de quatro fases:
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A primeira, a pré-alcoólica sintomática ou fase alfa de Jellineck, quando o indivíduo inicia-se pelo uso social (bailes, festas) tendo a gratificação sentida após a bebedeira;
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A segunda fase chamada prondrômica ou beta de Jellineck, quando o indivíduo habitua-se a beber, geralmente escondido acompanhado de sentimentos de culpa, agressividade entre outros sintomas;
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A terceira, definida como fase crucial ou gama, é o momento em que o consumo de álcool já é exagerado causando ao usuário rompimento com os laços familiares, trabalho, com a própria higiene pessoal entre outras consequências fisiológicas importantes.
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E por fim, a quarta fase denominada pela OMS como crônica, levando o usuário do álcool a “uma decadência individual, física, psíquica e social”, podendo chegar à psicose e alucinações alcoólicas.
Para Júnior (2010) a ingestão imoderada de bebida alcoólica provoca na sociedade problemas gravíssimos, entre eles os de ordem policial ou judiciária. Extrai-se de sua obra que, tanto a Medicina como a Toxicologia, afirmam que o álcool é depressor do sistema nervoso central, iniciando seus efeitos diretamente nos centros corticais superiores que controlam os inferiores, causando o automatismo e consequentemente fazendo surgir no individuo os atos impulsivos, as agressões, entre outros. É, segundo seu ensinamento, este efeito depressor do álcool que torna todo o sistema motor lento e inseguro, diminuindo “também o poder de associação, atenção e concentração, dificultando, ainda, a formação do pensamento e a capacidade de raciocinar concisamente e com clareza”, habilidades indispensáveis para uma direção segura no trânsito diário.
A Medicina e a Toxicologia classificam a intoxicação alcoólica em três grandes fases:
1 – A embriaguez;
2 – Alcoolismo com ocorrência da embriagues patológica;
3 – Alcoolismo Crônico.
A priori, trataremos da primeira fase, a embriaguez, tento em vista suas características de eventualidade ser observável diretamente no conflito com a Lei, especialmente com a Legislação de Trânsito, objeto do presente estudo.
A preocupação com os efeitos do álcool sobre o condutor na legislação de trânsito é, relativamente, antiga para os especialistas brasileiros do assunto. Ela foi inserida na legislação de trânsito nacional pela Resolução n° 413/69 para estabelecer a concentração para se atestar o estado da embriagues alcoólica no condutor.
Para podermos compreender o assunto, é preciso nos apoiar nos conceitos e explicações dadas pela Medicina e Toxicologia. Para estas ciências, a embriaguez é dividida em três fases geralmente bem identificadas até mesmo por leigos. Em uma primeira fase, compreendida geralmente de excitação, chamada também de fase do macaco; a segunda, a fase da confusão, conhecida também como a fase do leão, ocorrendo geralmente um super ego, tornando o indivíduo violento ao tempo que desorientado quanto ao tempo e espaço. Nesta fase, o indivíduo é incapaz de responder perguntas simples como endereço, identificação completa e também incapaz de realizar simples exercícios de coordenação ou equilíbrio. A terceira fase da embriaguez é a mais perigosa em se tratando de sua combinação com a direção, é aquela acompanhada de alta sonolência, ou a fase do porco, quando o indivíduo apresenta entre outras características, rubor facial altamente visível, olhos avermelhados e falta de equilíbrio máximo, além é claro do sono aparente.
Conforme estudos apresentados pelo IML-SP/IOT-FMUSP, analisando o teor alcoólico contido em latas de cerveja, bebida consumida em larga escala no país, constatou-se que após o indivíduo:
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Consumir uma lata de 350 ml, o teor alcoólico varia entre 0,15 g/l a 0,41 g/l.
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Consumir três latas ou cerca de 1.050 ml, o teor alcoólico varia entre 0,65 g/l a 0,99 g/l.
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Consumir cinco latas de 1.750 ml, o teor alcoólico varia entre 0,95 g/l a 1,69 g/l.
Desde 1999 a Resolução 109 do CONTRAN introduziu no policiamento de tráfego a utilização de aparelhos para medição de alcoolemia dos condutores no momento da abordagem conhecidos como “bafômetros”. Estes aparelhos analisam instantaneamente o teor alcoólico presente no ar expelido dos pulmões. Levando em consideração que a legislação pátria atual considera infrator de trânsito o indivíduo que dirige sob efeito de qualquer nível de álcool ou substâncias psicoativas, basta apenas o consumo de uma lata de cerveja para uma possível infração ao artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro.
Além de infração de trânsito, a Lei 12.760/12 tornou crime a direção em estado de embriagues, ou seja, com concentração de teor alcoólico no organismo que ultrapasse 0,6 decigramas por litro de sangue ou 0,3 miligramas por litro de ar alveolar expelido ou que possa ser atestado por outros meios de prova. O condutor nesta situação, estará sujeito a infração gravíssima e multa de dez vezes e suspensão do direito de dirigir por doze meses. Para os mais conservadores do Direito, esse método de fiscalização fere os princípios constitucionais da não produção de prova contra si. Entretanto, para os que defendem o método, deve prevalecer o princípio da “Pro sociedade” uma vez que se o motorista não está infringindo a legislação de trânsito, este não tem que se preocupar em submeter-se ao poder de policiamento do Estado, garantindo assim a sua própria segurança na direção.
Como toda lei infraconstitucional só tem validade no ordenamento jurídico se coerente com nossa Carta Magna, os legisladores buscaram na Medicina apoio necessário para elaborar testes técnicos ou científicos capazes de melhorar as condições de fiscalização dos agentes de trânsito sem ofender os direitos constitucionais do indivíduo, mas eficientes no combate aos transgressores da legislação quanto ao uso de álcool ou outras substâncias psicoativas que cause dependência. Esta previsão se encontra no artigo 277 do CTB, inserido no ordenamento pela lei 12.760/12. Esta mesma lei trouxe ainda a possibilidade da fiscalização utilizar ainda outros meios de provas da alteração psicomotora do condutor tais como imagens, vídeos, entres outras provas em direito admitidas, sem, contudo caracterizar violação aos direitos constitucionais do condutor.
4. Crimes no Código de Trânsito Brasileiro e teorias penais aplicáveis
4.1. 103 anos da legislação de trânsito brasileiro
Em 27 de outubro de 2013 completam 103 anos da publicação do Decreto 8.324 que aprovava o regulamento para os serviços de transporte de carga e passageiros em veículos industriais, inaugurando assim a positivação da legislação de trânsito nacional.
De lá até os dias atuais, essa legislação vem se adequando a realidade política, social, econômica e tecnológica, acompanhando a transformação e as necessidades da sociedade em geral.
Compulsando a história da legislação de trânsito brasileira é possível verificarmos que desde sua inauguração no âmbito positivo em 1910, esta foi composta de inúmeras alterações legislativas com inovações legais, administrativas com suas Resoluções e Diretrizes dos órgãos responsáveis, passando desde revogações parciais até completas, visando sempre à adequação conforme as necessidades sociais, principalmente. Mas, o que se verifica de mais importante nestas alterações quanto à preocupação para com o número de acidentes decorrentes do dia a dia no tráfego foram à instituição do Código de Trânsito Brasileiro em 23 de setembro de 1997 pela Lei n ° 9.503 e as alterações alcançadas pelas Leis 11.705 em 2008 e 12.760 no ano de 2012 quando, em cada oportunidade, os legisladores endureceram as penalidades administrativas e jurídicas para com os condutores que trafegam sob influencia de álcool ou outros entorpecentes.
Apesar da maioria dos esforços se concentrarem na prevenção e na repressão aos condutores embriagados, seja por álcool ou por outras substâncias psicoativas, o estado não vem obtendo sucesso apenas com medidas e campanhas educativas e multas de valores consideravelmente elevados pelos padrões financeiros do brasileiro fazendo-se urgente a obtenção de alternativas eficientes para tal.
4.2. Os crimes culposos previstos no Código de Trânsito Brasileiro
O Código de Trânsito Brasileiro de 1997 adotou expressamente a teoria da culpa para os crimes previstos em seus artigos 302 e 303, ou seja, tanto para o homicídio quanto para a lesão corporal. No homicídio a pena máxima prevista é de 4(quatro) anos de detenção e na lesão esta não ultrapassa 2(dois) anos.
Para compreendermos a adoção de tal teoria pelo CTB/97, faz-se necessário entende-la primeiro. Partindo da lição de Oliveira (2012) temos que crime culposo aquele “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.”. De um conceito sinônimo compartilha Bitencourt (2008).
No Código de Trânsito, no artigo 302 temos:
(...)
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veiculo automotor:
Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veiculo automotor.
Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veiculo automotor, a pena e aumentada de um terço a metade, se o agente:
E no artigo 303: “Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:”.
O artigo 302 traz como agravante o aumento de um terço na pena daqueles que ao cometer a conduta nele descrita se o agente não possuir carteira ou habilitação, praticá-lo na faixa de pedestres ou calçada e ainda deixar de prestar socorro quando possível ou ser motorista profissional em serviço. Antes da Lei 11.705/08, era agravante também deste crime se o condutor estivesse embriagado ou conduzindo sob efeitos de outras drogas psicoativas. No entanto esta Lei revogou o inciso “V” do artigo 302 e o tornou um crime específico previsto no então criado artigo 306 como se lê:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veiculo automotor.”
O que se critica no engessamento causado pela adoção taxativa de apenas uma teoria em uma legislação tão importante e com reflexos sociais tão sensíveis é a dificuldade que se cria na aplicabilidade diária diante as novas necessidades sociais. Nesta esteira é o que podemos verificar no posicionamento do Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no Rese abaixo:
EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - HOMICÍDIO CONSUMADO - PRELIMINAR DE NULIDADE POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO REJEITADA - MÉRITO - PRESENÇA DE INDÍCIOS E MATERIALIDADE - PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO - DELITO OCORRIDO NO TRÂNSITO - EMBRIAGUEZ AO VOLANTE NÃO CONFIGURA AUTOMATICAMENTE O DOLO EVENTUAL - CULPA CARACTERIZADA – DESCLASSIFICAÇÃO PROCEDIDA. É absolutamente claro que, a não ser em casos excepcionalíssimos, todo crime de trânsito é culposo. (grifo nosso).
Como se aduz facilmente do texto supracitado, para buscar mudanças realmente eficazes através da legislação, talvez seja este o momento do legislador pátrio proceder a alterações significativas e desapegadas de Monismo absoluto.
E a necessidade de quebra desse paradigma pôde ser observado nas mais recentes alterações pelas quais tem passado o presente CTB, apesar de ainda insuficientes.
4.3. A “Lei Seca”, suas expectativas e resultados
Trazendo a baila algumas das opções que poderiam reduzir o número de acidentes fatais no país, os profissionais e gestores da política pública, principalmente aqueles ligados a área da saúde, sugeriram o endurecimento da legislação de trânsito. Verificou-se então que os dados indicam que a partir de 2008 começou a haver uma leve queda nos acidentes fatais, o que pode indicar os efeitos positivos da Lei 11.705/08, que endureceu as penas para os condutores que dirijam sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa. Observamos, no entanto, que ao mesmo tempo, veio ao encontro desta política de segurança no trânsito a exoneração do IPI para carros, que aumentou consideravelmente a frota de veículos nas ruas do país, o que eleva novamente os índices de acidentes. Nos países desenvolvidos vem sendo aplicada uma política contrária, que busca reduzir, a cada ano, a frota de veículos nas ruas incentivando principalmente o uso do transporte coletivo.
A Lei 11.705/08 ficou conhecida como “Lei seca” por aumentar o valor das penalidades administrativas de multa para (05 vezes) e para multa gravissima no Código de Trânsito Nacional. Objetivamente, não se trata de uma Lei seca propriamente dita tendo em vista que ela apenas alterou a legislação já vigente para majorar valores das multas e aumentar as possibilidades médico - jurídicas de provas da embriagues ou uso de entorpecentes dos condutores. Todavia, como não houve uma redução importante no número dos acidentes de terrestres, principalmente aqueles em que os condutores estivessem sob influencia de álcool ou outras substâncias entorpecentes, ao contrário, voltaram a subir, seus gastos e consequências para a política pública chegando a níveis intoleráveis, o legislativo sofreu pressão inclusive do Ministro da Saúde para endurecer ainda mais as penalidades sobre a Lei de trânsito tanto que em 20 de dezembro de 2012 foi publicada a Lei 12.760 que alterou os arts. 165, 262, 276, 277 e 306 do CTB.
Como as medidas repressivas para com estes condutores são ainda recentes, não temos dados concretos ou estudos aprofundados acerca de seus resultados. O que é possível compilar são aqueles advindos dos levantamentos locais ou regionais das campanhas educativas e fiscalizadoras promovidas principalmente pelas forças de segurança diretamente envolvidas no controle do tráfego qual sejam as Polícias Militares Rodoviárias Estaduais e Federais, a Polícia Civil, o Bombeiros Militares e as ONGs de apoio geralmente envolvidas nas campanhas de prevenção ou auxilio as vítimas e seus familiares, principalmente aos familiares quando falamos do acidentes fatais.
Estes dados posteriores a vigência da lei 11.705/08 tem se comportado positivamente como apresentou este ano a Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais. O Estado de Minas implementou há 2 anos o projeto piloto “Sou pela Vida, dirijo sem Bebida” na Capital Belo Horizonte, passando a realizar blitzes diárias repressivas e educativas visando à diminuição de acidentes. No dia 12/07/2013, Daniel Malard, Subsecretário de Integração do Sistema de Defesa Social e Minas Gerais, apresentou os dados da campanha mostrando que neste período houve na Capital Mineira uma redução de quase 30% no número de vítimas de acidentes de trânsito no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. As vítimas fatais e não fatais caíram 29,21%, passando de 8.400 para 5.946. Já o total de acidentes com vítima diminuiu 15,4% na capital mineira também no primeiro semestre (de 7.704 para 6.545).
Conforme este informe o Subsecretário, “o total de vítimas não fatais também apresentou diminuição de 29% no período analisado, passando de 8.311 para 5.883”. Ou seja, ainda que falte dados a nível nacional, ao menos em nível estadual é possível verificar alguma eficiência das políticas públicas no sentido da diminuição destes eventos com resultado fatal.
4.4. Teorias do Dolo e da Culpa
Como já buscamos uma definição para “acidentes” com a finalidade de compreendermos do que trata então a lei de trânsito atual no Brasil, podemos em tese concluir que dos eventos objetos do presente estudo, não podemos afirmar que são todos acidentes no sentido estrito da palavra.
Neste sentido tem caminhado a interpretação e a aplicabilidade real do Dolo Eventual para os casos ocorrendo os “eventos” de trânsito com vítimas fatais. Essa é uma mudança de paradigma significativo e ainda cercado de serios discursos no mundo jurídico. A doutrina majoritária inúmeras vezes já apresentadas no presente estudo dão conta de que nos casos de homicídio de trânsito a única legislação cabível é a do CTB para definir como crime culposo enquanto a sociedade e as novas correntes defendem além da mudança legislativa a interpretação dos casos concretos. Essa corrente nova ganhou força na decisão este ano do STJ de Minas Gerais, que decidiu em ultima instância, fazendo transitar em julgado a decisão do Tribunal do Júri para condenar a pena de prisão o médico Ademar Pessoa Cardoso e Ismael Keller Loth, que no dia 05 de abril de 1996, praticando ambos “racha”, atropelaram mataram 5 pessoas que trafegavam em um fusca. Denunciados nos crimes previstos no artigo 121, par. 2°, incisos III e IV c/c com o artigo 70 e 29, ambos do Código Penal, responderam efetivamente pelo delito previsto no 121, caput, matar alguém, julgados e condenados pelo Tribunal do Júri a uma pena privativa de liberdade por homídio doloso advindo da pratica de “racha” na condução de veículo automotor.
Neste momento passa a ser discutido na doutrina e nos meios judiciais se estes eventos podem ser classificados como dolo eventual ou culpa consciente. Para tanto, precisamos saber o que é o dolo. Em Bitencourt (2008) temos que dolo, puramente natural, constitui o elemento que representa a vontade consciente da ação. Ele traz ainda que a Reforma Penal de 1984 afastou do ordenamento brasileiro a intensidade do dolo, apesar de ser inegável a presença desta efetivamente na reprovabilidade da ação. Segundo este autor, um crime doloso é aquele em que o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, separando – o didaticamente em dolo direto ou dolo eventual. Neste ponto, observamos que o mesmo autor define dolo direto como sendo aquele em que o agente quer exatamente o resultado conforme a sua ação e que dolo eventual quando o agente, mesmo sem querer exatamente a realização do tipo, o aceita como provável ou possível, assumindo assim o risco de produzi-lo. Este é, até o presente momento, bem assimilado aos eventos do trânsito em que o condutor assume o volante sabendo estar embriagado ou dirige fora dos padrões normais e legais do trânsito, devendo estes condutores responderem pelos crimes dolosos contra a vida de acordo com o disposto no artigo 121, caput, c/c o art. 18 do Código Penal e conforme as regras do Código Processo Penal, ou seja, perante o Tribunal do Júri. Este é também o posicionamento do Tribunal de justiça de Minas Gerais no julgado sob exposto:
(...)
V.V.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO -HOMICÍDIO CONSUMADO - PRELIMINAR DE NULIDADE POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO REJEITADA - MÉRITO - PRESENÇA DE INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE - PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO - DOLO EVENTUAL -POSSIBILIDADE - MATÉRIA AFETA AO TRIBUNAL DO JÚRI - IN DUBIO PRO SOCIETATE - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA. –
(...)
Cumpre registrar que, em geral, os óbitos em virtude de acidentes em direção de veículo automotor devem ser considerados crimes culposos. Porém, existem situações em que essa regra deve ser analisada de maneira especial, em alusão ao caso concreto, o que ocorre no presente caso, razão pela qual justifica a apreciação pelo Tribunal do Júri.
(...)
Veja-se que, em um primeiro momento, embora o recorrente não tenha desejado a ocorrência diretamente do resultado, ao dirigir diante das circunstâncias supracitadas, extrapolando os limites da normalidade previu e aceitou como possível, ou seja, assumiu o risco de produzir o resultado, sendo plausível que tenha agido com dolo eventual. (Acórdão 0177251-, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, julgamento em 14-12-2010, 5ª Câmara Criminal, Publicado em 17-01-2011.)
No entanto, pela definição do que é dolo eventual se extrai que este muito se confunde ou se assemelha com a culpa consciente. Nesta ordem temos que a culpa é a inobservância do dever de cuidado, segundo Bitencourt (2008). Em espécie, apresenta-se a culpa consciente, no que tange o agente, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um resultado, mas confia que este não vá ocorrer. Para a doutrina majoritária, nesta modalidade de culpa o agente não quer o resultado nem assume o risco de produzi-lo. Este é o ponto, talvez único, que difere o dolo eventual em que o agente assume o risco e a culpa consciente, onde o agente não o assume, está somente desatento.
5. REFLEXOS NO JUDICIÁRIO
Como todos os eventos que ocorrem na sociedade causando litígios ou alterando a ordem social acabam desaguando no judiciário para que este restabeleça ou determine as reparações necessárias, com o aumento na ocorrência dos acidentes de trânsito não foi diferente. A sociedade começou a identificar os abusos dos motoristas principalmente no consumo de álcool e outras substâncias entorpecentes misturando os a condução e consequente ocorrência de um número infinito de mortes em decorrência destes acidentes. Insatisfeita, pressionou as autoridades até que os delegados, os promotores e até os magistrados começaram a inovar, flagranteando, denunciando e pronunciando por homicídio doloso aqueles condutores que estão matando no trânsito através de condução sob efeito de álcool e outros entorpecentes, conduzindo de forma perigosa, ou promovendo “rachas” nas vias de tráfego em geral.
Observamos inaugurar uma verdadeira mudança nos paradigmas da discursão acerca da legislação de trânsito no Brasil e suas teorias frente à realidade agora vivida pela sociedade diante da violência estampada diariamente na mídia e em todas as páginas dos veículos de comunicação. As mortes, a invalidez temporária ou permanente torna-se problemas sociais, de saúde pública e previdenciária e do judiciário.
A legislação de trânsito brasileira adota a teoria do homicídio culposo, sem nenhuma previsão para a ocorrência do dolo para nenhum dos crimes de trânsito, principalmente no que tange ao homicídio. É expressa esta teoria no artigo 302 do CTB. “Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção do veículo automotor”. Já no artigo 303, trata o código da lesão corporal, também apenas na modalidade culposa. Devemos observar então que, não se pode em regra, mediante ato do intérprete, criar figura típica, sob pena de grave e ostensiva violação ao princípio da legalidade penal.
No entanto, o judiciário é constantemente provocado e vem se manifestar, por exemplo, no HC 107.801 SP em 2011 quanto à possibilidade da aplicação do dolo eventual para os casos em estudo. É uma grande lição a apresentada pelo Ministro Luiz Fux em seu voto como relator do presente HC, como vemos sobre o princípio actio libera in causa no estudo das inovações para a classificação de homicídio nos acidentes de trânsito:
A teoria da actio libera in causa: com base no princípio de que a “causa da causa também é a causa do que foi causado”, leva-se em consideração que, no momento de se embriagar, o agente pode ter agido dolosa ou culposamente, projetando-se esse elemento subjetivo para o instante da conduta criminosa. Assim, quando o indivíduo, resolvendo encorajar-se para cometer um delito qualquer, ingere substância entorpecente para colocar-se, propositadamente, em situação de inimputabilidade, deve responder pelo que fez dolosamente – afinal, o elemento subjetivo estava presente no ato de ingerir a bebida ou a droga. Por outro lado, quando o agente, sabendo que irá dirigir um veículo, por exemplo, bebe antes de fazê-lo, precipita a sua imprudência para o momento em que atropelar e matar um passante. Responderá por homicídio culposo, pois o elemento subjetivo do crime projeta-se no momento de ingestão da bebida para o instante do delito.
(HABEAS CORPUS 107.801 SÃO PAULO. Relator Ministro Luiz Fux. Julgamento 06.09.2011. Primeira Turma.)
Como o judiciário esta recebendo uma enxurrada de denúncias da prática dolosa advindas dos acidentes de trânsito, principalmente as ocorrências de vítima fatal viu-se obrigado a buscar uma resposta adequada juridicamente, provocando uma discussão necessária acerca da possibilidade interpretativa das teorias de culpabilidade principalmente aquelas inerentes ao grau da culpa tais como a culpa consciente, a inconsciente, a possibilidade da ocorrência até mesmo do dolo eventual nestes tipos de casos fáticos. Lição neste sentido é a da então ministra Hellen Gracie no julgamento do HC 91.159 em 2008, como podemos apreciar:
O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). Das várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a qual o dolo exige que o agente consinta em causar o resultado, além de considerá-lo como possível. A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou ‘pega’ ou ‘racha’, em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas). Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente. O dolo eventual não poderia ser descartado ou julgado inadmissível na fase do iudicium accusationis.” (HC 91.159, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 2-9-2008, Segunda Turma, DJE de 24-10-2008.)
No entanto, ao longo de todo este estudo, nos deparamos com, nada mais nada menos que uma baila de opiniões doutrinárias e jurisprudenciais de cunho extremamente inteligentes, mas ainda sem um entendimento teórico ou prático satisfatório a solução do problema real. Ou seja, toda a rica e diversa jurisprudência nos diversos níveis das instâncias só reafirma a necessidade urgente de uma alternativa legal para a pacificação ou possível solução deste que hoje se apresenta como um paradigma a ser superado no ordenamento jurídico pátrio.
Se atingir um dos bens jurídicos mais importantes destes maus condutores, ou seja, a liberdade, será o meio eficaz para solucionar alguns dos problemas advindos do trânsito, não é possível afirmar de forma veemente. No entanto, que esta ação se apresenta como uma das possibilidades que, conjunta aos programas de educação, prevenção e coerção já existentes, se estabelece como uma das possibilidades a ser adotada dentro do princípio do “pro societate”, isso o presente estudo pôde verificar.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da adoção taxativa da teoria da culpa de maneira expressa em seu texto, o Código de Trânsito Brasileiro, para tratar dos demais crimes cometidos na direção dos veículos automotores, remete-se ao Código Penal e de Processo Penal no Caput do artigo 291.
É fato que o presente estudo apresenta informações concretas que nos leva a refletir a necessidade real de quebra de paradigmas. A sociedade convive atualmente com uma questão insuportável qual seja uma alta taxa de mortalidade per capita advinda dos acidentes ou eventos de trânsito além das outras consequências que eles provocam qual seja o aumento de pessoas que apesar de não terem se tornado vítimas fatais, sofreram danos irreparáveis como perdas de membros, invalidez parcial ou até total em decorrência destes acontecimentos. A saúde pública, a previdência social, a imagem do país nos órgãos internacionais está pedindo socorro e uma solução eficaz e legal para diminuir o número de acidentes e outros eventos danos advindos do tráfego diário. O Brasil necessita urgente de sadia qualidade de vida no seu Trânsito diário. Não basta a Constituição garantir o direito de ir e vir. É necessário ir e vir em segurança.
As jurisprudências abriram caminho. É possível remeter aos Tribunais do Júri a competência para analisar os eventos de trânsito em que ocorreram vítimas fatais nos casos em que se verifica não ser mero “acidente”. Estes acidentes, sem culpa, no sentido estrito da palavra, o Código de Trânsito Brasileiro em vigor desde 1998 já tratou de cuidar.
Necessário faz agora, que o legislador adéque ao que o próprio dispositivo legal existente já prevê no caput do artigo 291 do CTP, que os demais crimes sejam tratados pelo Código Penal em vigor, eliminando a taxatividade da teoria da culpa prevista nos artigos 302 e 306 deste Código, para semelhante a outras normas do direito nacional, adequar às várias nuances e necessidades dos indivíduos conforme seu tempo.
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Publicado por: MARCELO PAIVA SOARES
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