Criminalização do Bullying
índice
- 1. RESUMO
- 2. INTRODUÇÃO
- 3. A ATUAÇÃO DO SISTEMA PENAL
- 4. O INSTITUTO DENOMINADO BULLYING
- 4.1 OS PROTAGONISTAS DA TRAGÉDIA
- 4.1.1 Vítimas ou alvos
- 4.1.2 Os espectadores
- 4.2 SURGIMENTO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO
- 4.3 O BULLYING E SUAS VARIAÇÕES
- 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 6. REFERÊNCIAS
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1. RESUMO
Este trabalho tem como enfoque a discussão crescente acerca da possibilidade de criminalização do instituto correspondente ao fenômeno mundial denominado Bullying. Conforme se passará a expor, há no ordenamento pátrio um anteprojeto sujeito à aprovação e modificação de um novel Código Penal, no qual se imputará à determinadas condutas a punição pela prática denominada Bullying.
Nesse sentido, analisaremos se tal conduta configura-se ensejadora de um novo tipo penal passível de ser incluído no Código Penal, e se justifica a intervenção Estatal para a resolução de conflitos provenientes de sua prática, primeiramente, a partir de uma análise acerca dos preceitos da ciência criminal e da teoria do delito, para que se possa aduzir se a conduta enquadra-se no conceito denominado por “tipo penal incriminador” (crime).
ABSTRACT
These studies aims the crescent discussion about the criminal possibility of the named institute inherit to the global phenomenon so called “Bullying”. According to what will expose, there’s in the paternal planning some kind of draft bound to approval and modification from a new Penal Code, this one imputing some sorts of behaviors the retribution by the practice of this so called “Bullying”.
In this way, we are about to analyze if these behaviors are lacking a new penal type liable to be included in the new Penal Code, and if it’s necessary the State intervention for conflicts resolve that are born by that kind of practices, firstly, starting from a study about the precepts of the criminal science and the offense theory, so it can be concluded if the behavior fits in the concept so called “incriminating penal type” (crime).
2. INTRODUÇÃO
O Direito, determinado por um conjunto de regras ordenadas em uma unidade entendida por sistema, surgiu na sociedade como instrumento disciplinador de condutas interpessoais. Isso porque cabe ao direito estabelecer regras e condutas a serem observadas e cumpridas, sob pena de aplicação de sanção por parte do Estado, visando à paz social e tutelar, o bem comum no convívio entre os indivíduos de uma mesma comunidade.
Depreendendo-se dos ensinamentos de Beccaria (2003, p. 17), a ciência acima definida se fez importante no conceito histórico-social, pois a simples moral política, sozinha, não configuraria um alicerce perdurável para uma sociedade, exceto se baseada em sentimentos indeléveis do coração humano, de tal sorte que, com prioridade, explica que é inerente ao homem apenas estar ligado às diversas combinações políticas deste globo quando presentes os interesses pessoais. A essência dos seres humanos seria, se possível, a de não estar preso pelas convenções que os obrigam.
Tal fato se justifica com a ideia de que, somente em estado de necessidade, vê-se o homem na obrigação de ceder parcela de sua liberdade, pois apesar de o sentimento de liberdade primar na sociedade, juntamente com ele sempre haverá o sentimento de insegurança e medo, além da desconfiança de encontrar inimigos em toda parte. A História comprova essa sensação: Enquanto algumas sociedades formaram-se de pronto, outras se construíram pela necessidade surgida de se resistir a uma anterior, que podia ser inimiga.
Assim, sabendo-se que o crescimento do gênero humano, apesar de lento, configuraria fator inevitável, para que se pudesse chegar à harmonia entre os sujeitos de uma mesma sociedade, com si mesmos, e com a natureza em geral, houve necessidade da criação de um conjunto de normas para regularizarem tal relação, visando ao bem geral.
Leciona Beccaria que tais normas “foram as condições que agruparam os homens, no início independentes e isolados, às superfícies da terra” (Ibid.,p. 18), de tal sorte que foi exatamente o somatório dessas partes de liberdade sacrificadas ao bem geral a base para a construção de um conceito de soberania da nação, frente aos valores predominantemente individuais.
No entanto, a notória natureza despótica humana levou as sociedades a entenderem haver a necessidade de uma proteção a esse depósito de liberdades individuais. Por isso, haveria de ter um poder para sufocar esse espírito de despotismo que poderia levar as sociedades ao caos. Tal proteção estabeleceria penas contra os que infringissem condutas esperadas.
Nesse sentido, conforme se depreende dos ensinamentos de Reale Jr., surgiu na sociedade a necessidade de uma ordenação dessas vontades individuais, a qual implicaria no senso do proibido e do permitido. No entanto, o conceito do que se denominaria justo configurar-se-ia por uma natureza predominantemente histórico-cultural, de tal sorte que, nas palavras do autor, para cada época corresponde, um conceito diverso, pois “há uma antijuridicidade genérica, pré-normativa, parte dessa atmosfera que constitui o mundo circunstante, que está presente na consciência jurídica dos indivíduos e que irá presidir e inspirar o ordenamento” (REALE JR, 2000, p. 19).
Assim, a complexidade mostra-se quando há a necessidade de se criminalizar uma determinada conduta, haja vista o conceito histórico no qual a sociedade se encontra, pois certas condutas, com o passar do tempo, integram-se ao meio social, por sua criminalização não alcançar a eficácia.
Para isso, uma ciência desenvolveu-se no estudo denominado “Teoria do Delito”, para que se pudesse inserir, nos contextos histórico-sociais de uma sociedade, toda antijuridicidade de sua época, a fim de que nova conduta seja esperada do cidadão, sob pena de sanção.
Embora conceituada de inúmeras formas, sem perder seu objeto, uma vez definida a ciência do direito e observada sua necessidade para gerir os conflitos advindos do convívio social, verificou-se a necessidade do desdobramento de tal ciência em várias searas, de modo que cada uma se faria responsável por disciplinar determinado grupo de condutas externas do indivíduo.
Dentre essas searas, uma, em particular, foi criada com o intuito de disciplinar e proteger os bens jurídicos fundamentais, bem como tornar efetivo o dever de garantir os direitos do indivíduo frente ao poder punitivo do Estado, através da formulação de normas penais, qual seja o Direito Penal.
Ao legislador foi atribuído o poder de discriminar, em um Código Penal, quais seriam os fatos infringentes aos bens jurídicos fundamentais, caracterizados como crime, os quais seriam disciplinados pelo Código, de tal modo que a cada crime caberia uma sanção correspondente ao descumprimento da conduta esperada, as quais seriam impostas por políticas criminais estatais.
Este trabalho tem como enfoque a discussão crescente acerca da possibilidade de criminalização do instituto correspondente ao fenômeno mundial denominado Bullying. Conforme se passará a expor, há, no ordenamento pátrio, um anteprojeto sujeito à aprovação e modificação de um novel Código Penal, no qual imputar-se-á a determinadas condutas a punição pela prática denominada Bullying.
Nesse sentido, analisaremos se tal conduta configura-se ensejadora de um novo tipo penal passível de ser incluído no Código Penal, e se justifica a intervenção Estatal para a resolução de conflitos provenientes de sua prática, primeiramente, a partir de uma análise acerca dos preceitos da ciência criminal e da Teoria do Delito, para que se possa aduzir se a conduta enquadra-se no conceito denominado por “tipo penal incriminador” (crime).
Ademais, analisaremos, a fundo, o instituto do Bullying e suas formas de exteriorização, para que se possa verificar se tais condutas são passíveis de serem enquadradas como novo tipo penal, ou se já se encontram previstas em nosso ordenamento, ainda que tratadas por institutos diversos, de tal sorte que perpassaremos uma análise pelo ordenamento pátrio vigente e suas previsões.
Isso porque, segundo Reale Jr., “verificada a existência de uma antijuridicidade genérica, como aspecto e reflexo de um momento cultural, cabe analisar o processo de canalização normativo do juízo de proibido e permitido” (REALE JR., 2000, p. 31). Para tal, explica ser necessário que se examine “o modo pelo qual se instaura o delito, como construção normativa, que se origina da atmosfera espiritual circundante do proibido e do permitido e dela é inseparável” (REALE JR., 2000, p. 31), conforme será exposto nesse trabalho.
Assim, o que se passa a verificar este trabalho é se a ação denominada Bullying, em sua concretude, demonstra-se ínsita e revela antijuridicidade, ao ponto de flagrar a real necessidade de intervenção do poder punitivo estatal, por meio do direito penal.
3. A ATUAÇÃO DO SISTEMA PENAL
Objeto deste trabalho, a criminalização do bullying perpassa todo um estudo anterior pautado primordialmente nas características e nas atribuições do sistema penal, de tal sorte que a esse sistema foi concedido o denominado controle social punitivo institucionalizado, o qual observa requisitos para que se enseje a aplicação de suas normas.
Isso porque ao sistema penal é conferida a atribuição de detectar suspeitas de delito e prosseguir suas devidas persecuções até que se imponha e se execute uma pena devida ao autor do delito, pois o que se busca no presente trabalho é demonstrar se há a necessidade de intervenção do sistema penal no tocante às praticas denominadas por bullying.
Na lição de Zaffaroni e Pierangeli,
Com efeito: “punição” é ação e efeito sancionatório que pretende responder a outra conduta, ainda que nem sempre a conduta correspondente seja uma conduta prevista na lei penal, podendo ser ações que denotem qualidades pessoais, posto que o sistema penal, dada sua seletividade, parece indicar mais qualidades pessoais do que ações, porque a ação filtradora o leva a funcionar desta maneira (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 64).
Assim, passaremos a analisar os fundamentos do sistema penal, nos quais se encontram a teoria do delito, como ensejadora dos critérios para a definição de um novo tipo penal, e as políticas criminais estatais, as quais dizem respeito à aplicabilidade da sanção às condutas tidas como repugnantes pela sociedade, para que se possa aferir se há a necessidade de “punição” aos atos de bullying por parte do Direito Penal.
3.1. A TEORIA DO DELITO
O primeiro ponto importante a ser analisado, quando da verificação de compatibilidade entre uma conduta e sua criminalização, refere-se à forma como a criminologia denota o conceito de delito e as ações que se podem enquadrar em sua definição.
Na lição de Zaffaroni, chama-se Teoria do Delito
A parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é delito em geral, quer dizer, quais sãos as características que devem ter qualquer delito. Esta explicação não é um mero discorrer sobre o delito como interesse puramente especulativo, senão que atende à função essencialmente prática, consistente na facilitação da averiguação da presença ou ausência de delito em cada caso concreto (ZAFFARONI, 1991, p. 317).
No entanto, apesar de competir ao direito penal a proteção dos bens determinados mais importantes para a vida em sociedade, como a vida e a liberdade, ressalte-se que o mesmo se pauta pela mínima intervenção, apenas atuando em última instância, de forma que somente haverá intervenção do direito penal quando outros ramos do Direito demonstrarem-se ineficazes ou insuficientes à defesa dos bens jurídicos tutelados.
Explicam Rocha e Greco que
Além de o bem ser importante, para que se possa merecer a proteção do direito penal é preciso que a conduta que, em tese, venha a ofender esse bem não seja considerada socialmente adequada, em virtude da sua aceitação pela sociedade (DA ROCHA; GRECO, 1999, p. 23).
Com esse raciocínio, ao legislador é dada uma orientação quando da criação de tipos penais incriminadores e, também, ao interprete, quando da análise da lei penal e da aplicação das políticas criminais, de tal sorte que se dá o surgimento da denominada teoria da adequação social, com a consequente criação do princípio da adequação social.
Segundo explica Luiz Regis Prado,
A teoria da adequação social, concebida por Hans Welzel, significa que, apesar de uma conduta se subsumir formalmente ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada [...] (PRADO, 2011, p. 178).
Não se pode permitir que uma conduta considerada socialmente adequada sofra os rigores do direito penal. Segundo Rocha e Greco (1999, p. 24), “quando da seleção das condutas que se quer proibir, o legislador deve ficar atento àquelas que já foram assimiladas e aceitas pela sociedade, e por ela consideradas socialmente adequadas”.
Tal princípio serve não somente para orientar o legislador, quando da criação de novos tipos penais, mas para, inclusive, fundamentar a retirada de uma norma vigente no ordenamento jurídico a qual não é adequada às necessidades da sociedade atual.
Nesse sentido, dá-se a criação dos tipos penais incriminadores após a seleção dos bens determinados mais importantes e necessários para o convívio em sociedade, de tal sorte que tais condutas serão tidas como proibidas, sob pena de sanção, caracterizando-se as denominadas infrações penais, que abrangem os crimes e as contravenções penais.
Os antecedentes da Teoria do Delito
Em síntese, a evolução da moderna Teoria do Delito desenvolveu-se em três fases: o conceito clássico do delito; o conceito neoclássico de delito; e o conceito finalista de delito. Entre essas, observa-se certa integração, na medida em que, segundo Bitencourt e Conde (2000, p. 15), “nenhuma delas estabeleceu um marco de interrupção completo, afastando as demais concepções”.
A concepção tripartida, construção recente, mais precisamente do final do século XIX, recepcionada pelo sistema criminal vigente, denomina o delito como a integração dos institutos da ação típica, da antijuridicidade e da culpabilidade, de tal sorte que anteriormente, segundo os autores, “o direito comum conheceu somente a distinção entre imputatio facti e imputatio iuris” (BETENCOURT; CONDE, 2000, p. 15).
Isso, porque
A dogmática do Direito Penal tentou compreender, primeiro (desde 1884), o conceito de injusto, partindo da distinção: objetivo-subjetivo. Ao injusto deviam pertencer, exclusivamente, os caracteres externos objetivos da ação, enquanto que os elementos anímicos subjetivos deviam constituir a culpabilidade (Ibid., 2000, p. 16).
Foi no ano de 1867, que Ihering desenvolveu o conceito de antijuridicidade objetiva para o Direito Civil, de tal sorte que a adequação do referido instituto ao Direito Penal se deu por parte de Liszt e Beling, através do abandono da antiga teoria da imputação. A elaboração dos primeiros contornos do conceito de culpabilidade coube, no entanto, a Merkel, quem, segundo Bitencourt e Conde, “conseguiu reunir dolo e culpa sob o conceito de determinação de vontade contrária ao dever” (BETENCOURT; CONDE, 2000, p. 16).
Por fim, como último fundamento da teoria tripartida recepcionada pelo sistema criminal vigente, foi que a tipicidade se somou como último predicado, permitindo a Beling, segundo Bitecourt e Conde, formular a seguinte definição: “Delito é a ação típica, antijurídica, culpável, submetida a uma cominação penal adequada ajustada às condições de dita penalidade” (Ibid., p. 16).
A definição de delito poderia então, para os autores, ser caracterizada como:
o produto da elaboração inicial da doutrina alemã, a partir da segunda metade do século XIX, que, sob influência do método analítico, próprio do moderno ensinamento cientifico, foi trabalhando no aperfeiçoamento dos diversos elementos que compõem o delito, com a contribuição de outros países, como Itália, Espanha, Portugal, Grécia, Áustria e Suíça (Ibid., p. 17).
Para Rocha e Greco, o que se observa é que o crime, como o todo unitário, configura a junção de três elementos fundamentais, quais sejam: o fato típico, a antijuridicidade e a culpabilidade, os quais devem ser analisados com extrema cautela quando da análise da criação de novo tipo penal, de tal sorte que cada um representa o antecedente lógico e necessário à apreciação do seguinte (DA ROCHA; GRECO, 1999, p. 24).
Welzel, segundo Rocha e Greco, corroborando tal entendimento, aduz que
a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são três elementos que convertem uma ação em delito. A culpabilidade – a responsabilidade pessoal por um fato antijurídico – pressupõe a antijuridicidade do fato, do mesmo modo que a antijuricidade, por sua vez, tem de estar concretizada em tipos legais. A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupõe o anterior (Ibid., p. 24).
Logo, depreende-se de tais entendimentos que somente quando comprovado que o agente atuou culposa ou dolosamente e que o resultado adveio determinantemente de seu comportamento abstrato previsto em lei, é que se falará em fato típico, podendo-se discutir a culpabilidade do agente. Da mesma forma, segundo os autores, “somente iniciaremos a análise da culpabilidade se já tivermos esgotado o estudo do fato típico e da antijuridicidade” (ROCHA; GRECO, 1999, p. 25).
3.1.1. A evolução do conceito de delito e sua definição legal no ordenamento jurídico brasileiro
No âmbito estritamente conceitual, delito apresenta-se sob três aspectos,: o formal, o material e o analítico.
Segundo Erika Fontes de Almeida e Daniel Ribeiro Vaz,
O primeiro refere-se ao conceito social, pois a sociedade tende a caracterizar como “crime” algo que considera grave; conceito este por óbvio profano ao Direito, mas norteia o Poder Legislativo para que este, após utilizar os princípios como “filtros” ou limites, legisle, com fundamento e à luz do princípio da reserva legal com todos os seus desdobramentos, nascendo, portanto, o conceito formal de crime.
O conceito formal de crime fragmentado em elementos origina o conceito analítico, oriundo da ciência do Direito Penal, cujo aspecto científico é notório. Os elementos oriundos da fragmentação analítica do conceito formal são quatro: Fato Típico ou Tipicidade; Fato Antijurídico, Antijuridicidade ou Ilicitude; Fato Culpável ou Culpabilidade; Fato Punível ou Punibilidade (ALMEIDA; VAZ, 2013).
À luz desses elementos fragmentados do conceito formal, a ciência criminal desencadeou, ao longo da história, a conceituação do instituto do delito, conforme se passa a expor.
O conceito clássico de delito, desenvolvido por Von Liszt e Beling, é representado, segundo Bitencourt e Conde (2000, p. 17), “por um movimento corporal (ação) produzindo uma modificação no mundo exterior (resultado)”, o qual configura uma estrutura simples e didática que vincula a conduta ao resultado, por meio do instituto do nexo de causalidade.
Segundo Vanderson Roberto Vieira e José Carlos de Oliveira Robaldo (2013),
o sistema em questão refletia a situação da dogmática alemã no período entre 1890 a 1910. O movimento filosófico corrente era o positivismo científico, que utilizava no Direito Penal o método causal-explicativo, método este típico das ciências naturais, dando importância ao juízo de realidade e não a juízos de valor.1
Essa estrutura clássica do delito foi a responsável por evidenciar, claramente, a separação entre a antijuridicidade e a culpabilidade, conforme critérios objetivos e subjetivos, que figuram como critérios objetivos a tipicidade e a antijuridicidade e, subjetivamente, a culpabilidade.
Nesse sentido, explicam Bitencourt e Conde (2000, p. 17) o seguinte:
O conceito clássico de delito foi produto do pensamento jurídico característico do positivismo científico, que afastava completamente qualquer contribuição das valorações filosóficas, psicológicas e sociológicas.
Corroborando tal entendimento, Luís Greco expõe que
o sistema naturalista, também chamado sistema clássico do delito, foi construído sobre a influência do positivismo, para o qual ciência é somente aquilo que se pode apreender através dos sentidos, o mensurável. Valores são emoções, meramente subjetivos, inexistindo conhecimento científico de valores (GRECO, 2000, p. 122).
No entanto, tal orientação veio a tratar o comportamento humano, a ser definido como delituoso de forma exageradamente formal, por pretender resolver todos os problemas jurídicos nos limites do direito positivo e de sua interpretação.
Isso porque, explicam Bitencourt e Conde,
a ação, concebida de forma puramente naturalística, estruturava-se como um tipo objetivo-descritivo, a antijuridicidade era puramente objetivo-normativa e a culpabilidade, por sua vez, apresentava-se subjetivo-descritiva (BETENCOURT; CONDE, 2000, p. 17).
Assim, quatro elementos estruturais compreendiam o conceito clássico de delito, quais sejam: a ação; a tipicidade; a antijuridicidade; e a culpabilidade. O primeiro, segundo os autores, foi definido por Von Liszt como “a inervação muscular produzida por energias de um impulso cerebral, que, comandadas pelas leis da natureza, provoca uma transformação no mundo exterior (Ibid., p. 18).
A tipicidade, por sua vez, compreendia somente os aspectos objetivos do fato descrito na lei, configurando-se como um indício de antijuridicidade. Esta, configurada objetivamente, valorativa e formalmente, definiu-se, conforme explica Bitencourt e Conde, como “um juízo valorativo puramente formal: basta a comprovação de que a conduta é típica e de que não concorre nenhuma causa de justificação” (BETENCOUR; CONDE, 2000, p. 18).
Por fim, a culpabilidade, caracterizada como o aspecto subjetivo do crime limitava-se essencialmente a comprovar a existência de um vínculo subjetivo entre o autor e o fato, sendo que da intensidade desse nexo psicológico, desmembrou-se tal instituto nas formas dolosa e culposa.
Nesse sentido, segundo Erika Fontes de Almeida e Daniel Ribeiro Vaz, o que se observa é que “no causalismo, a conduta é tida como uma ação ou omissão voluntária e consciente que provoca movimentos corpóreos, ou seja, neutralidade da conduta, desprovida de finalidade, pois a conduta é naturalista” (ALMEIDA; VAZ, 2013).
Ainda, Luís Régis Prado explica que “na concepção positivista essencialmente naturalista reside o fundamento epistemológico da teoria causal-normativa da ação e do conceito clássico de delito” (PRADO, 2005, p. 100).
Assim,
A ideia de que a norma penal é neutra, desprovida de demais aspectos analíticos não condiz com a realidade hodierna, pois esta é sempre reflexo de determinado momento político-social. Atendendo o Direito Penal, portanto, a um conjunto de ideologias épicas ( ALMEIDA; VAZ, 2013).
O conceito neoclássico de Delito, explicam Bitencourt e Conde, “corresponde à influência no campo jurídico da filosofia neokantiana, dando-se especial atenção ao normativo axiológico” (BETENCOURT; CONDE, 2000, p. 19).
Segundo Erika Fontes de Almeida e Daniel Ribeiro Vaz,
Immanuel Kant faz na valoração kantista uma junção do racionalismo com o empirismo, ou seja, parte da premissa de que o conhecimento se apresenta por razões racionais (racionalismo de Berkeley), onde todo conhecimento do homem nasce de sua consciência assim como deriva-se de aspectos sensoriais (Hume), mesclando assim duas correntes filosóficas aparentemente antagônicas; portanto, translúcido o aspecto valorativo kantiano, estendendo o mesmo pela moral e demais valores éticos (ALMEIDA; VAZ, 2013).
Nesse sentido, a denominada coerência formal foi substituída por um conceito de delito voltado para os fins pretendidos pelo Direito Penal e pelas teorias teleológicas do delito que o fundamentam.
Segundo esses autores,
a tipicidade não seria mais neutra, como no causalismo, e sim valorativa. Assim, como a antijuridicidade não mais seria apenas a contrariedade do fato à norma, mas sim acrescentar-se-ia a lesão ou ameaça de lesão (dano social) ao bem jurídico tutelado.2
Ainda, explicam os mesmos o seguinte:
O Neokantismo alterou também a concepção causalista de culpabilidade, onde não mais seria um vínculo psicológico (Teoria Psicológica) estabelecido pelo dolo ou pela culpa entre o agente e o fato praticado, mas sim algo além dessa concepção física: inserindo a exigibilidade de conduta diversa, fundamentando esta linha de raciocínio jurídico na coação moral irresistível, onde mesmo com a verificação de dolo (elemento subjetivo), inexiste punição (ALMEIDA; VAZ, 2013).
Assim, o que se observa é que todos os elementos do conceito clássico de delito passaram por um processo de transformação, pois a corrente neokantiana não pretendeu negar o Positivismo Jurídico, mas superá-lo, de tal sorte que nova atribuição foi dada à função do tipo, segundo Bitencourt e Conde, “pela transformação material da antijuridicade e redefinição da culpabilidade, sem alterar, contudo, o conceito de crime, como a ação típica, antijurídica e culpável” (BETENCOURT; CONDE, 2000, p. 20).
A denominada Teoria Final da Ação, elaborada por Welzel, teve, conforme explica Bitencourt e Conde, o condão de “eliminar a injustificável separação dos aspectos objetivos e subjetivos da ação e do próprio injusto, transformando, assim, o injusto naturalístico em injusto pessoal (BETENCOURT; CONDE, 2000, p. 21).”
Segundo Erika Fontes de Almeida e Daniel Ribeiro Vaz,
Após o Nazismo – período fundamentado na Escola de Kiel, onde prevalecia o Direito do Autor – e influenciada pelo horror do holocausto, surge a Teoria Finalista de Hans Welzel, admitindo que o Direito Penal deva fixar limites ao Legislador, não deixando a este o livre arbítrio, e sim o respeito a duas Estruturas Lógicas Objetivas: a) toda conduta é finalista, i.e., exige-se finalidade ao se realizar qualquer conduta comissiva ou omissiva; b) o homem é dotado de autodeterminação – livre e culpável – tendo por fundamento da pena a culpabilidade (ALMEIDA; VAZ, 2013).
Foi com o advento do finalismo que a teoria do delito encontrou um de seus mais importantes marcos de evolução. Consagrava-se em seu bojo a retirada de todos os elementos subjetivos que integravam a culpabilidade. Dessa forma, nascia a denominada concepção puramente normativa.
Segundo Bitencourt e Conde (2000, p. 21),
o finalismo deslocou o dolo e a culpa para o injusto, retirando-os de sua tradicional localização – a culpabilidade -, levando, dessa forma, a finalidade para o centro do injusto. Concentrou na culpabilidade somente aquelas circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da conduta contraria ao Direito, e o objeto da reprovação situa-se no injusto.
Com o advento dessa nova estrutura do delito, deixou claro Welzel que o crime apenas poderia ser definido com a presença do elemento culpabilidade, de tal forma que, para o finalismo, a estrutura do crime continua sendo a junção dos elementos: ação típica, antijurídica e culpável, fundamentando-se, então, a determinação do crime como um conceito analítico, o qual abarca não somente a sua concepção formal e material, por serem insuficientes para permitirem à dogmática penal a realização de uma análise dos elementos estruturais do conceito de crime.
Nesse sentido, preleciona Assis Toledo que
substancialmente, o crime é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos (jurídico-penais) protegidos. Essa definição é, porém, insuficiente para a dogmática penal, que necessita de outra mais analítica, apta a por à mostra os aspectos essenciais ou os elementos estruturais do conceito de crime. E dentre as várias definições analíticas que têm sido propostas por importantes penalistas, parece-nos mais aceitável a que considera as três notas fundamentais do fato-crime, a saber: ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpável (culpabilidade). O crime, nessa concepção que adotamos, é, pois, ação típica, ilícita e culpável (TOLEDO, 1991, p. 80).
Assim, o que se observa é o seguinte:
O finalismo nada mais fez do que deslocar a finalidade, ou seja, o dolo e a culpa que se encontravam na culpabilidade, para o fato típico, agregando, portanto, mais um elemento ao fato típico que passa a ser: formal (causalismo), valorativo (neokantismo) e subjetivo (finalismo). Mesmo com esta evolução, o finalismo ainda parte da premissa de um fato típico formal, embora subjetivo (ALMEIDA; VAZ, 2013).
Apesar das várias classificações existentes de delito, o atual Código Penal mostrou-se omisso no tocante à conceituação do instituto, de tal sorte que ao não definir o que vem a ser crime, deixou, a cargo da doutrina nacional, a elaboração de tal conceito.
No entanto, o que se observa é que a doutrina pátria encontra-se dividida, no que tange à conceituação analítica de crime, admitindo-se cinco posições a respeito, conforme explica Erika Fontes de Almeida e Daniel Ribeiro Vaz, depreendendo-se do ensinamento de Nucci (2011, p. 173):
1º entendimento: crime é fato típico e antijurídico, onde a culpabilidade é mero pressuposto de aplicação da pena, a chamada Teoria Bipartida do Delito, adeptos Damásio E. de Jesus, Julio F. Mirabete, Rene Ariel Dotti, Celso Delmanto, Flavio Augusto Monteiro de Barros, dentre outros;
2º entendimento: crime é fato típico, antijurídico, culpável e punível, Teoria Quadripartida do delito, admitindo como seguidores Hassemer, Munõs Con-de na Espanha, Giorgio Marinucci, Emilio Dolcini, Battaglini na Itália e o falecido Basileu Garcia no Brasil;
3º entendimento: crime é fato típico e culpável, onde a antijuridicidade está inserida no fato típico, defendida por Miguel Reale Jr. ao adotar a Teoria dos Elementos Negativos do Tipo;
4º entendimento: crime é fato típico, antijurídico e punível, onde a culpabilidade é mero pressuposto de aplicação da pena, a chamada Teoria Constitucionalista do Delito de Luiz Flávio Gomes;
5º entendimento: crime é fato típico, antijurídico e culpável, Teoria Tripartida do Delito a qual pode ser analisada sob duas óticas: a) a ótica da Teoria Causalista ou Clássica (Nélson Hungria, Magalhães Noronha, dentre outros); b) ou sob a ótica da Teoria Finalista de Hans Welzel (Francisco Assis Toledo, Heleno Fragoso, Juarez Tavares, Cezar Roberto Bittencourt, Guilherme de Souza Nucci, Eugênio Raúl Zaffaroni, José Enrique Pierangeli, Luis Régis Prado, Rogério Greco, dentre outros (ALMEIDA; VAZ, 2013).
Predomina, no entanto, majoritariamente, o 5º entendimento acerca da conceituação analítica do delito, como sendo o crime a junção dos elementos fato típico, antijuridicidade e culpabilidade, de tal sorte que não se admite como conceito do crime o elemento punibilidade, pois, conforme explica Luiz Regis Prado,
[...] cabe dizer que a punibilidade, como a possibilidade de imposição da pena, não faz parte do conceito analítico de delito, que, aliás, não se confunde com a figura delitiva. Esta última envolve o conjunto de todos os elementos antepostos à consequência jurídica do delito. De cunho mais abrangente, vai além do delito (=injusto específico), compreendendo também outros pressupostos da pena que não lhe servem de fundamento, como, por exemplo, as condições objetivas de punibilidade, elementos relativos à magnitude da culpabilidade (PRADO, 2011, p. 298).
Assim, observada a forma como o ordenamento pátrio classifica o instituto do delito, pode-se observar, a partir de uma análise detalhada, a (in)compatibilidade quando da criação de um novo delito para gerir as ações denominadas por bullying, a serem expostas posteriormente.
3.2. O CONTROLE DE CRIMINALIDADE E AS POLÍTICAS CRIMINAIS
Observados os aspectos intrínsecos ao delito e a forma como o mesmo se classifica, ressalta-se a necessidade de uma abordagem branda acerca das denominadas políticas criminais, para que se possa dar prosseguimento à temática da criminalização do instituto do bullying. A partir das exposições das características que são necessárias para que se configure tal instituto como delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), perpassa-se aos aspectos políticos, a fim de dirimir a forma como o instituto seria tratado, caso criminalizado, haja vista o fato de que toda norma jurídica surge de uma decisão política.
Nesse sentido, Política Criminal é, nas palavras de Juarez Cirino dos Santos,
o programa do Estado para controlar a criminalidade. O núcleo do programa de política criminal do Estado para controle da criminalidade é representado pelo Código Penal. O instrumental básico de política criminal de qualquer código penal é constituído pelas penas criminais – em menor extensão, sob outro ponto de vista, pelas medidas de segurança para inimputáveis. (grifo nosso) (SANTOS, 2013)
Corroborando tal entendimento, Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 116) explicam que
Podemos afirmar que a política criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos.
Nesse programa de Políticas Criminais, encontram-se as penas criminais, as quais configuram instrumento principal de política criminal da lei penal brasileira. Segundo Luiz Regis Prado,
A pena é a mais importante das consequências jurídicas do delito. Consiste na privação ou restrição de bens jurídicos, com lastro na lei, imposta pelos órgãos jurisdicionais competentes ao agente de uma infração penal (PRADO, 2011, p. 627).
Nesse sentido, explica José Antonio Veloso, a pena parece ser um dado inerente a todas as culturas humanas, “ainda que a dificuldade de definir conceitos transculturais e as inúmeras variantes históricas reduzam a muito pouco o conteúdo empírico de uma afirmação com este grau de generalidade” (VELOSO, 2013).
Conforme se pode observar de uma análise das sociedades conhecidas, todas dispõem de um sistema de controle social o qual se destina a suprimir eventuais condutas desviantes, de tal sorte que o controle se assimila ao que, em nossa cultura, define-se como: penas privativas de liberdade, penas restritivas de direito e penas de multa, estando tal previsão expressa no artigo 32 do Código Penal Brasileiro.
O conceito de pena estaria então, diretamente vinculado a outros conceitos de linguagem ética e jurídica, tal como os de responsabilidade e culpa, sanção, reparação e vingança.
De acordo com isso, depreende José António Veloso que
punir é atribuir responsabilidade por um facto culpável e censurar ou reprovar com fundamento nessa responsabilidade: é essencial ao sentido da pena [...] que a pessoa punida seja considerada responsável pelo facto pelo qual se pune e que esse facto constitua violação de uma norma (VELOSO, 2013).
Contudo, segundo Juarez Cirino dos Santos, “o programa estatal de política criminal não pode ser compreendido pelo estudo das penas criminais em espécie, mas pelo exame das funções atribuídas às penas criminais” (SANTOS, 2013), quais sejam: as funções de retribuição da culpabilidade, de prevenção especial e de prevenção geral da criminalidade.
3.2.1. A teoria da pena como retribuição da culpabilidade
Absoluta, a teoria retribucionista entende o fundamento da pena como um fundamento em si mesmo, de modo que configuraria uma reação ao delito praticado. Seria a retribuição do dano causado, figurando-se tal retribuição como um castigo para que se alcance a justiça.
Citando Ferrajolli, explica Alexandre Cordeiro:
Na teoria retribucionista, a imposição de pena tem exclusiva tarefa de realizar justiça, devendo a culpabilidade do autor ser compensada com a imposição de um mal proporcional, a pena, como consequência jurídico-penal do delito, encontrando fundamento no livre arbítrio como capacidade do homem de decidir entre o justo e o injusto. O crime é negado e expiado pelo sofrimento da pena que compensa a culpa, voltando-se para o passado (quiapeccatum), pois seria justo devolver um mal com outro mal.3
Depreendendo-se do entendimento de Roxim, explica Juarez Cirino dos Santos que
A longevidade ou capacidade de sobrevivência da função de retribuição de culpabilidade – a mais antiga e, de certo modo, a mais popular função atribuída à pena criminal – poderia ser explicada, talvez, pela psicologia popular: o talião, expresso na fórmula olho por olho, dente por dente, parece constituir traço marcante da psicologia humana (SANTOS, 2013).
Segundo o autor, a grande influência que recaiu sobre as sociedades adveio diretamente das Igrejas e de suas religiões postulantes de uma justiça divina retaliatória, onde “a pena justa seria um mandamento de Deus e, assim, a aplicação e execução de uma pena criminal retributiva seria realização da justiça divina” (SANTOS, 2013). Por outro lado, o discurso retributivo se enraíza no pensamento dos maiores filósofos idealistas da história humana e principais defensores desta teoria: Kant e Hegel.
Para Kant a lei configuraria um imperativo categórico, de modo que, em sua doutrina, Methaphysik der Sitten, explica que todo aquele que mata deve morrer. Essa teoria encontra-se presente na hipótese da dissolução da sociedade promovida por Kant, qual seja: “se um povo abandonasse sua ilha para se dispersar, o último assassino encontrado na prisão deveria ser previamente executado, para que imperasse justiça” (SANTOS, 2013).
Tem-se, para Kant, a destituição da função utilitária da pena, aplicando-se a mesma pelo simples fato de a lei ter sido infringida, para que se efetive a busca pela justiça. Para ele, a justiça retributiva configura “lei inviolável, um imperativo categórico pelo qual todo aquele que mata deve morrer, para que cada um receba o valor de seu fato e a culpa de sangue não recaia sobre o povo que não puniu os culpados” (SANTOS, 2013), conforme explica Juarez Cirino dos Santos.
Nesse sentido, Salo de Carvalho aduz, segundo Alexandre Cordeiro, que
O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa básica de que a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem, ou seja, o fim utilitário ilegítimo. Se o direito utilizasse a pena como instrumento de dissuasão, acabaria por mediatizar o homem, tornando imoral. Logo, a penalidade teria como thelos a imposição de um mal decorrente da violação do dever jurídico, encontrando neste mal (violação do direito) sua devida proporção. Muito embora utilize critérios de medida e proporção da pena, Kant rememorará modelos primitivos de vingança privada. A teoria absoluta da pena sob o viés Kantiano recupera o principio taliônico, encobrindo-o, no entanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade [...].4
Corroborando tal entendimento, Hegel entendia que o crime seria a negação do direito, assim sendo que teríamos a pena como a negação dessa negação anterior, portanto, reafirmando-se o direito. Hegel, segundo Juarez Cirino dos Santos, “exclui toda e qualquer função preventiva da pena, cujo emprego seria equivalente a “erguer um bastão contra um cão” e, assim, tratar “o homem como um cão, sem honra, nem liberdade” (SANTOS, 2013)”.
Para Hegel, conforme explica Alexandre Cordeiro,
a pena encontraria justificação na necessidade de restabelecer a vigência da vontade geral representada na ordem jurídica, e que foi negada pela vontade do delinquente, devendo esta ser negada por meio do castigo penal, para que renasça a afirmação da vontade geral e se restabeleça o direito, sendo que, conforme o grau de intensidade da negação ao direito, também será o quantum ou intensidade da negação representada pela pena.5
Assim, segundo o professor Salo de Carvalho, extrai-se que
o princípio fundamental da teoria hegeliana da pena é centrado na ideia de que a violência destrói a si mesma com outra violência: a supressão do crime é a remissão, quer segundo o conceito, pois ela constitui uma violência contra violência, quer segundo a existência, quando o crime possui uma certa grandeza qualitativa e quantitativa que se pode também encontrar na sua negação como existência.6
No entanto, diversas são as críticas que se fazem ao discurso retributivo e a essa função social da pena, por considerar-se que tal retribuição constitui por si só um fundamento metafísico da punição, qual seja o de retribuir um mal com outro mal. No entanto, tal retribuição poderia ser considerada uma crença, constituindo-se um ato de fé e não um argumento científico ou democrático, haja vista que o direito penal tem por objetivo a proteção de bens jurídicos e não a realização de atos de vingança.
Critica, Juarez Cirino dos Santos, o discurso retributivista, ao explicar que
retribuir, como método de expiar ou de compensar um mal (o crime ) com outro mal (a pena), pode corresponder a uma crença – e, nessa medida, constituir um ato de fé - , mas não é democrático, nem cientifico. Não é democrático porque, no Estado democrático de Direito, o poder é exercido em nome do povo – e não em nome de Deus – além disso, o direito penal não tem por objetivo realizar vinganças, mas proteger bens jurídicos. Por outro lado, não é cientifico porque a retribuição do crime pressupõe um dado indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano, pressuposta no juízo de culpabilidade – e presente em fórmulas famosas como por exemplo, o poder agir de outro modo de WELZEL, ou a falha de motivação jurídica de JAKOBS, ou mesmo a moderna dirigibilidade normativa de ROXIN-, não admite prova empírica. Assim, a pena como retribuição do crime se fundamenta num dado indemonstrável: o mito da liberdade pressuposta da na culpabilidade do autor. A impossibilidade de demonstrar a liberdade pressuposta na culpabilidade determinou uma mudança na função atribuída à culpabilidade no moderno direito penal: a culpabilidade perde a antiga função de fundamento da pena, que legitima o poder punitivo do Estado em face do indivíduo, para assumir a função atual de limitação da pena, que garante o indivíduo contra o poder punitivo do Estado – uma mudança de sinal dotada de óbvio significado político. (grifo nosso)7
O reconhecimento de que a culpabilidade não pode servir de fundamento da pena, por caracterizar, a liberdade de vontade, um mito indemonstrável, segundo Juarez Cirino dos Santos, serviu para que se desse origem à teoria da culpabilidade como limitação da pena, pois
a culpabilidade como fundamento da pena legitima o poder de punir e, portanto, assume o ponto de vista do Estado contra o indivíduo; a culpabilidade como limitação da pena garante a liberdade individual, protegendo o indivíduo contra o poder do Estado, porque sem culpabilidade não pode existir pena, nem excesso de punição com finalidades exclusivamente preventivas (SANTOS, 2013).
Corroborando com tal entendimento crítico, Luigi Ferrajoli entende que
A ideia da pena como restauração ou reafirmação de ordem violada demonstra um equívoco derivado da confusão entre direito e natureza. Tanto a purificação do delito através do castigo como negação do direito por parte do ilícito e sua simétrica reparação seriam insustentáveis, dado ao fato de crerem erroneamente haver relação de causalidade necessária entre culpa e castigo. Além de representarem concepções substancialistas de delito, veem na pena função de restauração de uma ordem (jurídica e/ou moral) natural violada.8
Ademais, no tocante à impossibilidade de o Estado personificar o ensejo de vingança do povo, explica Roxim, segundo Alexandre Cordeiro, que
[...] considerando-o racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal, sofrer a pena. É claro que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança humana, e que a retribuição tome a seu cargo a culpa de sangue do povo, expie o delinquente etc. Tudo isto é concebível apenas por um ato de fé que, segundo nossa constituição,não pode ser imposto a ninguém, e não é valido para uma fundamentação,vinculante para todos, de uma pena Estatal.9
Ressalte-se que, segundo Luiz Regis Prado,
Na atualidade, a ideia de retribuição jurídica significa que a pena deve ser proporcional ao injusto culpável, de acordo com o princípio de justiça distributiva. Logo, essa concepção moderna não corresponde a um sentimento de vingança social, mas antes equivale a um princípio limitativo, segundo o qual o delito perpetrado deve operar como fundamento e limite da pena, que deve ser proporcional à magnitude do injusto e da culpabilidade (PRADO, 2011, p. 629).
Assim, configuradas as notórias deficiências presentes no caráter retributivo da pena, surgiram as teorias preventivas a ponto de que tais falhas fossem supridas.
3.2.2. A teoria preventiva da pena
Conforme anteriormente exposto, o que se observou no contexto histórico-social da época, é que a teoria retributivista, por si só, não se configuraria válida como caráter funcional da pena, no sentido de que, com a discordância dos fundamentos apresentados por tal teoria, a ciência criminal buscou outros elementos científicos para que se pudesse alcançar a efetividade do instituto da pena.
Alexandre Cordeiro, mencionando Feuerbach, um dos principais idealizadores da teoria preventiva da pena, explica ter havido “a necessidade de ser reconhecida a função de segurança do Estado”10, pois a finalidade do mesmo está ligada diretamente à convivência humana, de modo que, sendo o crime a representação da violação de um direito,
consequentemente, o Estado o impede por meio da coação psíquica (intimidação) ou física (segregação), onde a pena é intimidação para todos, ao ser cominada abstratamente, e para o criminoso, ao ser imposta no caso concreto.11
Segundo Salo de Carvalho,
[...] o fundamento intimidatório da pena estaria condicionado à eficácia dos aparelhos judiciários e executivos. Se o objetivo da pena é a coação psicológica aos pretendentes de ações ilícitas, sua execução deveria ser certa perante os sujeitos passivos primários (infrator) e secundários (sociedade), sob pena de perda do seu caráter essencial: o simbolismo.12
Nesse sentido, tal teoria buscou fundamentar a finalidade da pena na preservação e/ou sobrevivência do grupo social, configurando-se a pena como um instituto preventivo da prática do delito, configurando assim um viés utilitarista.
Nas palavras de Cezar Roberto Bittencourt,
as teorias relativas da pena apresentam considerável diferença em relação às teorias absolutas, na medida em que buscam fins preventivos posteriores e fundamentam-se na sua necessidade para a sobrevivência do grupo social. Para as teorias preventivas, a pena não visa retribuir o fato delitivo cometido e sim prevenir a sua comissão. Se o castigo ao autor do delito se impõe, segundo a lógica das teorias absolutas, quiapeccatum est, somente por que delinquiu nas teorias relativas à pena se impõe ut nepeccetur, isto é para que não volte a delinquir.13
Assim, dividindo-se em duas direções bem definidas, a teoria preventiva da pena ramificou-se no estudo da questão da prevenção geral da culpabilidade e no estudo de sua prevenção especial.
Prevenção geral
No tocante ao surgimento do ideal preventivo, temos o seguinte ensinamento de Cezar Bitencourt. Ele, explica que
essas ideias prevencionistas desenvolveram-se no período do Iluminismo. São teorias que surgem na transição do Estado absoluto ao Estado liberal. Segundo Bustos Ramirez e Hormazabal Malarée, tais ideias tiveram como consequência levar o Estado a fundamentar a pena utilizando os princípios que os filósofos do iluminismo opuseram ao absolutismo, isto é, de direito natural ou de estrito laicismo: livre arbítrio ou medo (racionalidade). Em ambos, substitui o poder físico, poder sobre o corpo, pelo poder sobre a alma, sobre a psique. O pressuposto antropológico supõe um individuo que a todo momento pode comparar, calculadamente, vantagens e desvantagens da realização do delito e da imposição da pena. A pena, conclui-se, apoia a razão do sujeito na luta contra os impulsos ou motivos que o pressionam a favor do delito e exerce coerção psicológica perante os motivos contrários ao ditame do direito.14
Primitivamente, a prevenção geral possuía apenas forma negativa, pela qual a intimidação da pena criminal desestimularia pessoas de praticarem crimes. Nesse sentido, explica Alexandre Cordeiro que:
a pena é a ameaça da lei contra cidadãos para que se abstenham de cometer crimes, uma coação psicológica que pretende evitar o fenômeno delitivo, pois diante da ameaça estatal e, ponderando a racionalidade do indivíduo, pode ser persuadido a pensar que não vale a pena praticar o crime porque poderá ser castigado. Em resumo, esta concepção encontra-se centrada na ideia de intimidação coletiva por meio da cominação abstrata da pena, que produziria uma contra-motivação aos comportamentos ilegais.15
No entanto, tal desestímulo poderia ocorrer em crimes que implicam reflexão (crimes econômicos, ecológicos, etc.), mas não em crimes espontâneos (crimes violentos, por exemplo), o que configuraria uma falha em tal teoria preventiva.
A crítica à função negativa de intimidação destaca, segundo Juarez Cirino dos Santos, por um lado, “que a prevenção geral não possui critério limitador da pena, degenerando em puro terrorismo estatal” (SANTOS, 2013), enquanto que por outro lado, assinala que “a intimidacão atribuída à função de prevenção geral negativa da pena criminal constitui violação da dignidade humana” (SANTOS, 2013), pois tal punição imposta ao condenado configuraria simples exemplo para intimidar outras pessoas.
Corroborando tal entendimento, Alexandre Cordeiro explica que tal teoria seria ineficaz, pois “não é a gravidade da pena ou rigor da execução penal que desestimularia o autor de praticar crimes, mas sim a certeza ou a probabilidade e/ou risco da punição.”16
Modernamente, no entanto, atribui-se também uma forma positiva à prevenção geral, determinada por integração-prevenção, de modo que, segundo Juarez Cirino dos Santos, “a execução da pena no caso concreto cumpriria função de estabilização social normativa, porque demonstraria tanto a necessidade como a utilidade do controle social penal” (SANTOS, 2013).
A primeira configurar-se-ia pela necessidade do controle social penal para proteção da sociedade, enquanto que a segunda mostraria a utilidade do controle social penal, pois, nas palavras do autor,
na medida em que a punição do criminoso elevaria a fidelidade jurídica do povo, enquanto a não-punição do criminoso, além do repúdio do sentimento jurídico da coletividade, reduziria a confiança da população na inquebrantabilidade do Direito (SANTOS, 2013).
No entanto, segundo Alexandre Cordeiro, “existem divergências quanto à existência de outras finalidades da pena, que não simplesmente a de confirmar a vigência da norma”17, o que resultou em uma subdivisão nesta teoria, sendo uma corrente determinada como fundamentadora e a outra como limitadora.
Para a teoria preventiva positiva fundamentadora, defendida por Welzel e Jakobs, ensina Juarez Cirino dos Santos que
JAKOBS absolutiza a função de prevenção geral positiva, concebida como teoria totalizadora da pena criminal, que concentra as funções declaradas ou manifestas de intimidação, de correção, de neutralização e de retribuição atribuídas a pena criminal pelo discurso punitivo. Nesse sentido, a pena criminal, definida como prevenção geral positiva, realiza a função de afirmar a validade da norma penal violada; por outro lado, a norma penal reafirmada pela pena criminal, é definida como bem jurídico, um conceito que substitui o conceito de bem jurídico, considerado inútil pelo autor. Assim ,define prevenção geral positiva como demonstração da validade da norma, manifestada através de reação contra violação da norma realizada as custas do competente/responsável, necessária para reafirmar as expectativas normativa frustradas pelo comportamento criminoso. A função positiva de prevenção geral seria dirigida a todos os seres humanos, como exercício (a) de confiança na norma, necessário para saber o que esperar na interação social,(b) de fidelidade jurídica pelo reconhecimento da pena como efeito da contradição da norma e, finalmente,(c) de aceitação das consequências respectivas, pela conexão do comportamento criminoso com o dever de suportar a pena – na verdade, postulados do contrato social do século XVIII, com a aceitação das normas sociais na qualidade de membro da sociedade e aceitação da punição na qualidade de infrator de normas sociais.18
Quanto à teoria da prevenção geral limitadora, defendida por Hassemer e Roxin, a pena seria, segundo Alexandre Cordeiro,
a reação estatal perante fatos puníveis, para proteger a consciência social da norma. Hassemer acredita que essa proteção consistiria na ajuda prestada ao delinquente na medida do possível, bem como, na limitação desta ajuda, imposta por meios de critérios da proporcionalidade e de consideração a vítima, espécie de prevenção geral que somente poderá ser alcançada se o direito penal conseguir a formalização do controle social.19
Roxin teve suas premissas fundadas em três superposições a respeito da prevenção geral positiva limitadora, sendo a primeira referente ao efeito sócio pedagógico da pena; a segunda referente ao efeito do aumento da confiança do cidadão frente ao Estado; e a terceira referente à pacificação social.
Nesse sentido, Gustavo Junqueira aduz:
[...] a função de informação e confiança acerca da vigência da norma serve não como fundamento único, mas como outro mecanismo de limite em uma dialética com ideia retributivista da pena proporcional e com as necessidades de reintegração social. A atuação serviria para efeito de aprendizagem, para manter e reforçar a confiança da comunidade na inquebrantabilidade do ordenamento jurídico penal, com que se atinge um efeito de pacificação concluindo que foi pacificado o conflito com o autor. Assim, é possível perceber presente a ideia do exercício de confiança da vigência da norma, mas não de forma diretamente reitora da necessidade, da medida ou espécie de pena. Assume tal corrente que o fim da pena no Estado democrático de direito não pode ser outro que não a tutela necessária dos bens jurídicos – penais no caso concreto, e que tal tutela não deve se referir ao passado, mas ao futuro, buscando o restabelecimento da paz jurídica abalada, reforçando a confiança da sociedade na guarda de seus interesses por parte do Estado. Seria também a necessidade de prevenção geral positiva o alicerce capaz de legitimar a necessidade a necessidade da pena, verdadeiro princípio do qual não pode se afastar o Estado sob pena de afronta aos princípios democráticos.20
Nesse sentido, temos que, enquanto a teoria limitadora define a finalidade da pena e empresta um sentido limitador ao direito de punir do Estado, a teoria fundamentadora define que o fim pretendido com a imposição da pena é, especificadamente, a confirmação das normas e seus valores.
A crítica que se faz a tal teoria seria referente à ausência de eficácia da mesma, pois não há estudos que demonstrem o poder da pena no sentido de motivar a fidelidade ao Direito. Isto se dá pelo fato de que, segundo Alexandre Cordeiro, a consequência clara é a de que se estaria emprestando à pena criminal um denominado caráter de instrumentalização de opressão social, “legitimando a seletividade do sistema, uma vez que a resposta penal depende estreitamente do grau de visibilidade social dos conflitos de desviação existentes numa sociedade.”21
A teoria da prevenção especial, explica Alexandre Cordeiro, tem por objetivo que o delinquente não volte a praticar novos delitos. Todavia, segundo o autor, “o fim da pena passa a conter seu viés utilitarista, ou seja, é uma atribuição legal dos sujeitos da aplicação e da execução penal.”22
Corroborando tal entendimento, explica o professor Juarez Cirino dos Santos que
o Estado espera que a função de prevenção especial atribuída à pena criminal realize o objetivo de evitar crimes futuros, mediante a ação positiva de correção do autor através da execução da pena, que prenderia a conduzir uma vida futura em responsabilidade social e sem fatos puníveis, e mediante a ação negativa de proteção da comunidade pela neutralização do autor através da prisão, que não poderia praticar novos fatos puníveis contra a coletividade social – segundo outra fórmula antiga: punitur, ne peccetur (SANTOS, 2013).
Nesse ínterim, temos que tal discurso preventivo pressupõe, segundo o autor, a “capacidade da psicologia, da sociologia, da assistência social etc., de transformar a personalidade do preso mediante trabalhos técnico-corretivos realizados no interior da prisão, segundo previsão legal” (SANTOS, 2013).
Vislumbra-se, assim, que, quando da aplicação da lei penal, o que se deve observar é que a pena deve ser, além de individualizada, necessária e suficiente para prevenir o crime, e deve ser executada para permitir harmônica integração social do condenado, nos termos dos Artigos 59 do Código Penal e 1º da Lei de Execução Penal:
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Art. 1º - A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
Tratada sob dois primas distintos, a prevenção especial tanto se dá de forma positiva, quanto de forma negativa: a primeira representa, nas palavras de Alexandre Cordeiro, o intento ressocializador, determinado pela “reeducação e a correção do delinquente [...] visando, com a aplicação da pena, à readaptação do sujeito à vida em sociedade”23, enquanto que a segunda refere-se à intimidação do delinquente - sua “inocuização” - para que não volte a delinquir, conforme explica o Alberto Zacharias Toron:
[...] trata de evitar que o agente criminoso expresse sua maior ou menor periculosidade nas relações sociais. Fala-se em maior ou menor grau numa espécie de neutralização ou inocuização absoluta ou relativa. Esta pode ter um caráter temporal, quando com pena se aparta o sentenciado de forma perpetua, ou por um determinado período da vida social, custodiando-o. Mas a inocuização pode ter um caráter absoluto (definitivo) quando se trata da pena de morte (não se conhece nesta hipótese nenhum caso de reincidência) ou relativo quando destrói parcialmente a pessoa a pessoa e, por exemplo, castra-se o estuprador ou cortam-se as mãos do assaltante ou, ainda, as pernas do trombadinha etc.24
No entanto, no tocante à prevenção positiva, o que se percebe é a dificuldade de conjugação de valores, haja vista a necessidade de se ponderar entre uma pseudo- reestruturação moral do delinquente, e os ideais de uma sociedade democrática e pluralista.
Nas palavras de Gustavo Junqueira,
[...]. na ideia de conformação íntima que por mais um motivo tal ideia não pode ser aceita, ou seja, em uma democracia, que exige uma participação ativa e potencial pluralismo, a pretensão de conformar a esfera intima do sujeito ao talante do que entende conveniente o Estado não pode ser imposta.25
Quanto à prevenção negativa, a crítica feita pela doutrina é no sentido de que, quanto à inocuização, temos potencialmente um dano ao pluralismo ínsito na democracia prevista pela Carta de 1988, haja vista a irracionalidade entre o fato e a sanção, o que faz sucumbir o próprio Estado democrático de direito. Ainda, quanto à intimidação, temos um rompimento claro com o ideal de garantismo do direito penal, pois a suposta prevenção apenas ocorreria após a prática de um ato criminal.
Para o Professor Juarez Cirino dos Santos, no entanto, a comprovação do fracasso da prevenção especial adveio com o fracasso histórico do projeto técnico-corretivo da prisão, caracterizado pelo chamado “isomorfismo reformista”, o qual se distribui em relação à execução e à aplicação da pena, conforme expõe:
1. Ao nível da execução da pena, em geral admitida como última ratio da política social, a introdução do condenado na prisão inicia um duplo processo de transformação pessoal: um processo de desculturação progressiva, consistente no desaprendizado dos valores e normas próprios da convivência social; um processo de aculturação simultâneo, consistente no aprendizado forçado dos valores e normas próprios da vida na prisão: os valores e normas da violência e da corrupção – ou seja, a prisão só ensina a viver na prisão. Após o cumprimento da pena, esse processo de recíproca desestruturação e reestruturação da personalidade, atualmente conhecido como prisionalização do condenado, é agravado pelo retorno do egresso às mesmas condições sociais adversas que estavam na origem da criminalização anterior.
2. Ao nível da aplicação da pena existe grave tensão entre a aparência do processo legal devido e a realidade do exercício seletivo do poder de punir: a) o discurso jurídico destaca o processo legal devido, regido pela dogmática penal e processual penal como critério de racionalidade, define o crime como realidade ontológica preconstituída e apresenta o sistema de justiça criminal como instituição neutra que realiza uma atividade imparcial; b) a criminologia crítica revela o processo legal devido como exercício seletivo do poder de punir, mostra o crime como qualidade atribuída a determinados fatos, a criminalização como um bem social negativo distribuído desigualmente e, finalmente, o sistema de justiça criminal como instituição ativa na transformação do cidadão em criminoso, segundo a lógica menos ou mais inconsciente das chamadas meta-regras (ou basicrules), definidas por SACK como o momento decisivo do processo de criminalização: mecanismos psíquicos emocionais atuantes no cérebro do operador do direito, constituídos de preconceitos, estereótipos, traumas e outras idiossincrasias pessoais, que explicariam porque a repressão penal se concentra nas drogas e na área patrimonial, por exemplo, e não nos crimes contra a economia, a ordem tributária, a ecologia etc (SANTOS, 2013).
3.2.3. As Teorias Unificadoras
A denominada Teoria da União configura a interseção entre as teorias anteriormente expostas: retributivista e preventiva, com o intuito de se suprir as deficiências advindas do estudo de cada uma, para que alcance uma pena que, segundo Alexandre Cordeiro, “resulte ao mesmo tempo ser útil e justa, convertendo a reação penal estatal em meio utilizável para sanar qualquer infração a norma.”26
Preconizada no Art. 59 do Código Penal, tal teoria foi consagrada no direito brasileiro e hoje, de forma prática, incide nos critérios adotados por legisladores, juízes e tribunais para a fixação de penas, conforme se observa da leitura do dispositivo em questão:
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
Ressalte-se que a Teoria da União, observada sistematicamente com a exigência de justiça e de prevenção, apresenta duas vertentes distintas, quais sejam: a teoria da união aditiva e a teoria da união dialética.
No tocante à primeira, temos que a mesma possui como propósito a compatibilização entre justiça e utilidade, de modo que prioriza as exigências da primeira sobre a segunda. Segundo Alexandre Cordeiro, essa teoria
tem como premissa que o magistrado deve buscar uma fixação de pena justa e adequada à gravidade da culpabilidade do agente pela prática do delito, verifica-se neste entendimento a carga ínsita das teorias absolutas como o fundamento da pena.27
No que tange à teoria dialética unificadora, formulada por Claus Roxin, percebe-se que a mesma se refere, a uma imposição para que o magistrado determine até onde pode chegar com a pena que reputa justa e/ou adequada à responsabilidade do autor. Segundo Alexandre Cordeiro,
a recusa à retribuição como fim da imposição da pena tem com função da pena a proteção subsidiária de bens jurídicos, mediante a prevenção geral negativa na cominação da pena; prevenção geral e especial na aplicação da pena, limitada pela culpabilidade; e prevenção especial na execução da pena.28
Dentre as críticas feitas a essas teorias, alega-se que o raio de aplicação da resposta penal estatal foi ampliado, de sorte a quebrar a ideia de um direito penal concebido como mínimo.
Visto isso, o moderno direito penal, no tocante às políticas criminais, enxergou a legitimação da pena partindo-se da culpabilidade do agente causador do delito, não se observando a culpabilidade como fundamento da pena, mas como uma limitação imposta a esta, no sentido de que ao magistrado caberá a individualização judicial da pena após cotejar os valores humanísticos e proporcionais intrínsecos a cada indivíduo, determinantes numa correta prestação jurisdicional.
4. O INSTITUTO DENOMINADO BULLYING
O que é bullying? Muito se tem ouvido falar desse tema nos tempos recentes das sociedades, tal como o Brasil, no entanto, qual seria sua clara definição?
A primeira observação recai sobre o fato de que não existe uma tradução exata para este termo de origem inglesa, por isso que pelas vias da definição perpassa todo um estudo acerca das ações que o caracterizam.
Para Jose Augusto Pedra e Cleo Fante, “é um termo utilizado na literatura psicológica anglo-saxônica, nos estudos sobre o problema da violência escolar, para designar comportamentos agressivos e antissociais” (FANTE; PEDRA, 2008, p. 33).
Nesse sentido, explica Cléo Fante, que “bullying é uma palavra de origem inglesa adotada em muitos países para definir o desejo consciente e deliberado de maltratar uma outra pessoa e colocá-la sob tensão” (FANTE, 2005, p. 27).
Corroborando esse entendimento, Gustavo Teixeira explica que
o bullying pode ser definido como o comportamento agressivo entre estudantes. São atos de agressão física, verbal, moral ou psicológica que ocorrem de modo repetitivo, sem motivação evidente, praticados por um ou vários estudantes contra outro indivíduo, em uma relação desigual de poder, normalmente dentro da escola (TEIXEIRA, 2011, p. 19).
Ainda nesse sentido, Lélio Braga Calhau aduz que
Bullying é um assédio moral, são atos de desprezar, denegrir, violentar, agredir, destruir a estrutura psíquica de outra pessoa sem motivação alguma e de forma repetida. [...] é um “cerco”, tal qual o realizado em uma guerra, onde o inimigo vai sendo atacado continuamente até se render ou morrer (CALHAU, 2009, p. 6).
A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA) não delimitou um termo capaz de expressar, na língua portuguesa, todas as situações abarcadas pelo instituto, de sorte que o que se deve é fazer um crivo acerca do suposto comportamento perpetrado, para que se possa diferenciá-lo de uma “simples brincadeira”.
Assim, depreende-se que o instituto não compreende um único significado, uma única definição, no entanto, relaciona-se qualquer que seja sua conceituação, com: a) ações repetitivas contra uma mesma vítima por um período de tempo prolongado; b) desequilíbrio de poder; e c) ausência de motivos que justifiquem as ações perpetradas.
Desse modo, explica Gustavo Teixeira que o comportamento do agressor sempre segue um padrão consistente numa relação desigual de poder, a qual “determina a repetição e a manutenção do comportamento agressivo de estudantes que tentam a todo custo dominar e humilhar o outro aluno” (TEIXEIRA, 2011, p. 20-21).
Assim determinado o instituto, explica o autor que “os sintomas do bullying podem ser divididos em quatro categorias: física, verbal, moral ou psicológica e sexual” (Ibid., p. 24), incluindo-se nessa classificação o bullying virtual, modalidade crescente nos estudos dos pesquisadores desse instituto, caracterizado pelos atos provenientes do ambiente virtual, qual seja, a internet.
No tocante aos “sintomas físicos” temos as agressões relacionadas com atos violentos, como chutes, empurrões e perseguições, enquanto que no caso dos sintomas verbais, caracterizam-se pelos xingamentos, pelas ameaças e pelas intimidações.
Quanto à violência moral, relaciona-se a mesma aos atos violentos que agridem diretamente a integridade psíquica da vítima e, por fim, quanto às intimidações sexuais, têm-se os assédios, as tentativas de abuso e as insinuações.
Caracteriza-se, inclusive, o instituto, conforme explica Lélio Braga Calhau, por “ocorrer tanto na direção horizontal (entre pessoas do mesmo nível, como estudantes) e na direção vertical (entre pessoas de níveis diferentes, como professores e alunos)” (CALHAU, 2009, p. 8).
Ademais, ensina Gustavo Teixeira que
podemos também dividir o bullying – pela forma como as agressões são dirigidas às vítimas – em duas categorias: o bullying direto e o bullying indireto. No bullying direto presenciamos ataques deliberados. [...] No bullying indireto presenciamos atos velados, escondidos, em que o agressor ataca sua vítima de forma subliminar (TEIXEIRA, 2011, p. 25).
Desse modo, percebe-se que os atos de bullying podem ocorrer a qualquer tempo e em qualquer ambiente, desde que assim se configura a dificuldade em se perceber tais atos, muitas vezes ocorridos de forma silenciosa e diuturna em nosso meio.
4.1. OS PROTAGONISTAS DA TRAGÉDIA
Denominados protagonistas, a identificação de cada um dos personagens dessa triste história perpassa todo um estudo sobre o comportamento bullying. Desse estudo, resultou a classificação dos protagonistas em três pequenos grupos: os agressores ou bullies; as vítimas ou alvos; e os espectadores.
Agressores ou bullies
Os autores do bullying, também chamados de bullies ou agressores, denominam-se por apresentarem características singulares de comportamento, conforme aduz Teixeira (2011, p. 31), “como uma agressividade e impulsividade mais exacerbada do que a maioria dos outros estudantes e um desejo por dominar, humilhar e subjugar os demais”.
Corroborando esse entendimento, explica desta forma Ana Beatriz Barbosa Silva:
Eles podem ser de ambos os sexos. Possuem em sua personalidade traços de desrespeito e maldade e, na maioria das vezes, essas características estão associadas a um perigoso poder de liderança que, em geral, é obtido ou legitimado através da força física ou de intenso assédio psicológico (SILVA, 2010, p. 43).
Os agressores são aqueles que possuem dificuldades em se adaptar às normas, pois não aceitam ser contrariados ou frustrados. São aqueles que gostam de poder e de controle, de tal sorte que, muitas vezes, em grupo menor, conseguem dominar grupos muito maiores, pois beneficiam-se da força física e da pouca simpatia em desfavor das vítimas.
O agressor configura-se, então, como sendo aquele que vitimiza os mais fracos, de modo que Gustavo Teixeira explica que para o bullie “existe um desejo pelo domínio dos outros alunos, uma necessidade de poder e afirmação através da violência física, verbal ou moral” (TEIXEIRA, 2011, p. 32).
Nesse sentido, o que se observa é que o perfil do agressor configura-se por ser opositivo e desafiador. Os bullies parecem acreditar que nunca serão punidos por seus atos, por considerarem-se superiores aos demais, perpetuando-se, por isso, as agressões e humilhações.
Nesse sentido, ensina Teixeira (2011, p. 32) que “os agressores mantêm seu status social à custa da violência e da opressão de suas vítimas e se sentem mais poderosos cada vez que agridem e maltratam outros estudantes”.
4.1.1. Vítimas ou alvos
As vítimas ou alvos são aqueles que recebem as agressões perpetradas pelos integrantes do grupo anterior, normalmente representadas pelas crianças tímidas, retraídas, introspectivas e fisicamente mais fracas.
Segundo Gustavo Teixeira,
Outra característica comumente observada é que eles apresentam um rendimento acadêmico ruim e não se dão bem nos esportes. Esse é um padrão que costumamos encontrar na maioria das vezes, entretanto vale a pena enfatizar que nem sempre os alvos de bullying apresentam essa característica (TEIXEIRA, 2011, p. 34).
Nessa mesma ótica, explica Lélio Braga Calhau que as vítimas são eleitas: “Elas não precisam fazer nada para serem escolhidas. Os agressores simplesmente as elegem no meio de um grupo para serem alvos de seus ataques. Essas agressões, então, não têm um motivo especial, uma origem” (CALHAU, 2009, p. 9).
Denominadas “vítimas típicas” por Ana Beatriz Barbosa Silva, explica a autora que as vítimas são aquelas que
normalmente são mais frágeis fisicamente ou apresentam alguma ‘marca’ que as destaca da maioria dos alunos: são gordinhas ou magras demais, altas ou baixas demais; usam óculos; são ‘caxias’, deficientes físicos; apresentam sardas ou manchas na pele, orelhas ou nariz um pouco mais destacados; usam roupas fora da moda; são de raça, credo, condição socioeconômica ou orientação sexual diferentes... (SILVA, 2010, p. 37-38).
No entanto, o grupo composto pelas vítimas não se configura simplesmente por essas denominações. São classificadas por não apresentarem reação ou envidarem esforços para tal, por isso, é possível observar, inclusive, a presença de dois grupos menores, compostos pelas denominadas vítimas provocadoras e pelas vítimas agressoras.
A vítima provocadora representa, segundo Gustavo Teixeira,
aquele estudante que deliberadamente provoca e irrita os colegas de sala de aula, despertando o desejo de ataque dos bullies. [...] Eles apresentam uma reação agressiva diante dos assédios de seus agressores e a irritabilidade é encarada como um convite a esses agressores para continuar com o bullying (TEIXEIRA, 2011, p. 37).
Em consonância com esse entendimento, aduz Ana Beatriz Barbosa Silva que
nesse grupo geralmente encontramos as crianças ou adolescentes hiperativos e impulsivos e/ou imaturos, que criam, sem intenção explícita, um ambiente tenso na escola. Sem perceberem, as vítimas provocadoras acabam ‘dando tiro nos próprios pés’, chamando a atenção dos agressores genuínos (SILVA, 2010, p. 40).
No tocante às denominadas vítimas agressoras, explica Lélio Braga Calhau que nesse grupo encontram-se as
pessoas que foram vitimizadas pelo bullying e passaram a ser agressoras de outras pessoas. Aprenderam o comportamento do bullying e, por algum motivo (ex: deixarem de serem alvos) passaram a reproduzir o comportamento e atacar outras pessoas (CALHAU, 2009, p. 11).
Nesse sentindo, observa-se que a vítima agressora reproduz os maus-tratos sofridos como forma de compensação, ocasionando-se o denominado “efeito cascata”, transformando-se cada vez mais o instituto em um problema de difícil controle e que ganha proporções avassaladoras. Conforme explicam Cleo Fante e Jose Augusto Pedra, “em casos extremos, são aqueles que se munem de armas e explosivos e vão até à escola em busca de justiça. Matam e ferem o maior número possível de pessoas e dão fim à própria existência” (FANTE; PEDRA, 2008, p. 60).
4.1.2. Os espectadores
Também denominados testemunhas, compõem o grupo de alunos que não se enquadra nem entre os autores, nem entre os alvos do bullying, ou seja, são aqueles que diariamente convivem com as situações de constrangimento vivenciadas pelas vítimas.
Segundo Cleo Fante e Jose Augusto Pedra,
Muitos espectadores repudiam as ações dos agressores, mas nada fazem para intervir. Outros as apoiam e incentivam dando risadas, consentido com as agressões. Outros fingem se divertir com o sofrimento das vítimas, como estratégia de defesa. Esse comportamento é adotado como forma de proteção, pois temem tornarem-se as próximas vítimas (FANTE; PEDRA, 2008, p. 61).
Na mesma vertente, explica Gustavo Teixeira que:
Geralmente esses alunos demonstram muita ansiedade, preocupações e angústia, e podem se sentir com vergonha de fazer perguntas e esclarecer suas dúvidas com os professores por medo de serem alvos do bullying. Até mesmo a participação em eventos sociais escolares, como festas, reuniões e jogos esportivos, pode ser comprometida (TEIXEIRA, 2011, p. 37).
Nesse sentido, observa-se que os espectadores configuram a grande maioria dos alunos, que figuram como testemunhas de toda a violência escolar, de tal sorte que o comportamento do espectador influencia de forma direta o comportamento dos agressores, haja vista na mente destes o comportamento passivo daqueles configurar a legitimação às agressões, pois nada poderia intimidá-los.
Assim, configura-se, segundo Lélio Braga Calhau, a formação do grupo responsável pela maior parte do bullying: os espectadores passivos ou testemunhas silenciosas, pois “as testemunhas, em geral, não denunciam os fatos para seus pais e professores, no ambiente escolar, e supervisores, quando no ambiente de trabalho, pois a pecha de ‘dedo duro’ é terrível” (CALHAU, 2009, p. 10).
Ademais, explica o autor que “as crianças têm muito mais medo ainda e não ‘entregam’ os colegas, mesmo não concordando com o bullying”, de modo que muitas das vezes o ato definido por bullying, o qual poderia chegar à supervisão por parte de uma ‘queixa amiga’, deixa de ser combatido, pelo medo de o ‘dedo duro’ ser eleito também como uma das próximas vítimas dos bullies.
4.2. SURGIMENTO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO
A primeira importante observação recai sobre o fato de que o instituto denominado bullying configura-se por ser um fenômeno tão antigo quanto a criação da própria instituição denominada escola. No entanto, apenas tornou-se objeto de estudos científicos a partir do início dos anos 70, na Suécia, por ter a sociedade manifestando-se preocupada com a violência predominante no âmbito escolar entre estudantes.
Tal estudo difundiu-se pelos países escandinavos pouco tempo após a manifestação sueca, tendo repercutido de forma mais forte na Noruega, haja vista ter sido o bullying considerado, durante muitos anos, segundo Ana Beatriz Barbosa Silva, “motivo de apreensão entre pais e professores que se utilizavam dos meios de comunicação para expressar seus temores e angústias sobre os acontecimentos” (SILVA, 2010, p. 111).
Segundo a autora, no final de 1982, um acontecimento dramático foi responsável por reescrever a história do instituto bullying na Noruega: Três crianças, com idade entre 10 e 14 anos, suicidaram-se no norte do país.
Explica a autora que
As investigações do caso apontaram, como principal motivação da tragédia, as situações de maus-tratos a que tais jovens foram submetidos por seus colegas de escola. Em resposta à grande mobilização nacional diante dos fatos, o Ministério da Educação da Noruega realizou, em 1983, uma campanha em larga escala, visando ao combate efetivo do bullying escolar (Ibid., p. 111).
Foi então que Dan Olweus, pesquisador da Universidade de Berger, Noruega, ao realizar um estudo envolvendo cerca de 84 mil estudantes constatou que um em cada sete estudantes do ensino básico ao médio encontrava-se envolvido com casos de bullying, fosse na condição de agressor ou na condição de vítima.
Esse estudo mobilizou a sociedade norueguesa dando origem a uma campanha nacional antibullying, a qual recebeu amplo amparo governamental e, pouco tempo após sua instituição, configurou-se fator determinante para uma redução de cerca de 50% dos casos de bullying no âmbito escolar do país.
Os estudos de Dan Olweus deram origem à promoção de campanhas antibullying em outros países, de tal sorte que o próprio pesquisador destacava em seus estudos que as condutas do instituto bullying faziam-se presentes, até mesmo em maior relevância, em outros países, tais como Suécia, Finlândia, Inglaterra e Estados Unidos.
Neste último, o bullying foi considerado motivo de grande tensão e interesse, haja vista o fato de o crescimento das práticas relacionadas ao instituto se dar de forma exponencial, a ponto de ser classificado, por pesquisadores, como um conflito global.
Ressalte-se que as pesquisas relacionadas ao instituto apenas incluem os jovens que se classificam como vítimas ou agressoras, não se incluindo aqueles denominados espectadores, o que, para Ana Beatriz Barbosa Silva faz configurar “que a população de jovens indiretamente envolvidos no bullying é ainda mais expressiva” (SILVA, 2010, p. 112).
No Brasil, o que se observa é que não existe uma atenção especial voltada ao tema, de forma que as pesquisas ainda se dão de forma incipiente, não havendo relevante contribuição por parte do país no que diz respeito à criação de institutos para resolverem a problemática do bullying, que também ocorre com frequência no país.
Segundo Ana Beatriz Babosa Silva,
A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) se dedica a estudar, pesquisar e divulgar o fenômeno bullying desde 2001. No período compreendido entre novembro e dezembro de 2002 e março de 2003, a Abrapia realizou uma pesquisa, por meio de questionários distribuídos a alunos de 5ª a 8ª série de 11 escolas (nove públicas e duas particulares), no estado do Rio de Janeiro. Os resultados SEGUNDO A AUTORA apontaram alguns dados bastante significativos:
- dos 5.842 alunos participantes, 40,5% (2.217) admitiram ter tido algum tipo de envolvimento direto na pratica do bullying, seja como alvo (vítima), seja como autor (agressor).
- houve um pequeno predomínio do sexo masculino (50,5%) sobre o sexo feminino (49,5%) na participação ativa das condutas de bullying.
- As agressões ocorrem principalmente na própria sala de aula (60,2%), durante o recreio (16,1%) e no portão das escolas (15,9%).
- Em torno de 50% dos alvos (vítimas) admitem que não relataram o fato aos professores, tampouco aos pais (SILVA, 2010, p. 113).
Nesse sentido, observa-se, em primeiro lugar, que a prática dos atos denominados bullying partem tanto do sexo feminino quanto do sexo masculino, não havendo predomínio de um determinado grupo.
Ademais, observa-se que a grande maioria das agressões que ocorrem no âmbito escolar encontra-se especialmente nas salas de aula, de tal sorte que se pode fazer uma análise crítica, segundo Ana Beatriz Barbosa Silva, de que “os professores e as demais autoridades da instituição educacional estão falhando na identificação do problema” (Ibid., p. 116).
Assim, o que se observa, segundo a autora, é que
As vítimas se tornam reféns do jogo de poder instituído pelos líderes dos agressores. Raramente elas pedem ajuda às autoridades escolares ou aos pais. Agem assim, dominadas pela falsa crença de que essa postura é capaz de evitar possíveis retaliações dos agressores e por acreditarem que, ao sofrerem sozinhos e calados, pouparão seus pais da decepção de ter um filho frágil, covarde e não popular na escola (SILVA, 2010, p. 116).
No Brasil, a prática do bullying ocorre em todas as escolas, independentemente da tradição da mesma, sua localização ou o poder aquisitivo dos alunos. Segundo a autora, “pode-se afirmar que está presente, de forma democrática, em 100% das escolas em todo o mundo, públicas ou particulares” (Ibid., p. 117), de tal sorte que o que apenas considera-se variável é o índice com o qual tal prática é ocasionada.
Ressalte-se, que a grande maioria das denúncias relacionadas à pratica do instituto, ora analisado, relacionam-se com alunos do ensino público, no qual observa-se incidência direta da tutela Estatal. Isso aponta para a realidade de que as escolas particulares muitas vezes mascaram as ocorrências da prática de bullying para que não se comprometa a relação com a clientela.
Tal omissão pode vir a gerar danos, pois a partir do momento em que se impossibilitam ações preventivas que poderiam coibir o crescimento do número de ocorrências da prática do bullying, pode vir a acarretar maiores problemas. Não se pode esquecer que o bullying é uma via de mão dupla, de forma que a agressão, muitas vezes, iniciada no ambiente escolar, poderá continuar fora desse ambiente, onde o controle é ainda menos eficiente.
Foi pautado nesse aspecto protetivo que, no Brasil, se observou a primeira iniciativa do combate ao bullying, por parte do Deputado Estadual Paulo Alexandre Barbosa (PSDB-SP). Ele implementou o Projeto de Lei nº 350/2007, no qual o poder Executivo ficava autorizado a instituir o denominado Programa de Combate ao Bullying, pautado em ações de natureza interdisciplinar e de participação comunitária nas escolas públicas e privadas do estado de São Paulo.
No entanto, conforme se pode observar da realidade pátria, não há, como nos países supracitados, um grande envolvimento, classificado pela forte luta social contra a prática de bullying e pela preocupação da situação dos estudantes nas escolas. Como diz Ana Beatriz Barbosa Silva, “já está mais do que na hora de políticos de todos os estados brasileiros tomarem consciência da importância do combate ao bullying” (SILVA, 2010, p. 119).
Segundo a autora,
Leis que tratem do problema não se destinarão a mudar a realidade escolar do país; elas terão a missão de transformar a mentalidade de nossas crianças e adolescentes diante da violência que consome os melhores anos de sua vida (SILVA, 2010, p. 120).
Nesse sentido, o que se observa é que o mais importante não diz respeito à criminalização ou à criação de leis que versem sobre o tema, pois conforme alude a autora, não será isso o suficiente para alterar a realidade escolar.
Assim, entende-se que a imprensa e os grandes veículos de comunicação, que disseminam as informações no país, devem divulgar o assunto, no sentido de gerar maior conscientização na sociedade, para que o poder público responsabilize-se pela criação de políticas capazes de prevenir a prática do bullying e minimizar seus efeitos individuais e coletivos.
4.3. O BULLYING E SUAS VARIAÇÕES
A primeira observação importante recai sobre o fato de que, conforme explicado anteriormente, o instituto, apesar de ter começado a ser objeto de estudo em meados dos anos 70, configura fenômeno muito mais antigo que essa data.
Assim, explica Ana Beatriz Barbosa Silva:
Dentro de um conceito mais amplo, podemos afirmar que todos nós já fomos ou seremos vítimas de bullying em algum momento de nossas vidas. Isso ocorre em função da própria natureza humana: somos seres essencialmente sociais, e onde há relações interpessoais sempre haverá disputa por liderança e poder. Esse é o poder exercido pelo e para o bem da humanidade (SILVA, 2010, p. 145).
Nesse sentido, podemos observar os grandes desafios das sociedades frente às diferenças interpessoais, sendo, as guerras, talvez, o exemplo mais fidedigno dessa dificuldade.
Conforme já demonstrado, desse comportamento próprio da natureza humana, seja por reconhecimento ou por qualquer outra finalidade, surgiu o instituto denominado bullying, cujo predomínio está no âmbito escolar, mas, também, é observado em outros ambientes, como, por exemplo, no ambiente de trabalho. Em algumas circunstâncias, os comportamentos diferenciados são tratados por denominações específicas, conforme será estudado a seguir.
4.3.1. Bullying no ambiente escolar
Comum nas escolas, o instituto passou a ganhar maior visibilidade, por ocorrer com vítimas crianças e adolescentes, apesar de existir em qualquer outro ambiente, como no local de trabalho, no regime militar e nas prisões.
Segundo Lélio Braga Calhau,
Outro ponto que contribui para a visibilidade do bullying escolar é a exploração do assunto na mídia e no cinema. Recentemente, foram produzidos filmes com a temática, inclusive com a participação e atores muito conhecidos, o que deu mais abertura para as discussões, mas o bullying não ocorre apenas no meio escolar (CALHAU, 2009, p. 23).
O que se observa é que há, entre os alunos de uma mesma classe, ou de classes distintas, a existência de diversos conflitos e tensões, sejam eles gerados pela diferença de classe social, pelo credo, pela cor ou por qualquer outro motivo, como o simples fato de considerar-se “veterano” frente a um aluno que acabou de ingressar na rede de ensino.
Desses conflitos surge a intenção, por parte de alguns alunos, de intimidarem ou dominarem os demais, seja para se autoafirmarem, seja para comprovar a superioridade em relação aos demais. De qualquer forma, o que se observa é que o bullie o fará para demonstrar seu status e comprovar seu poder.
Nessa esteira, surgem as figuras anteriormente expostas, denominadas “agressores, vítimas e espectadores”. Nesse grupo, podem se enquadrar tanto os alunos, quanto os professores, supervisores, coordenadores e diretores, representantes da figura administrativa da escola.
De acordo com uma pesquisa realizada pela ABRAPIA29, os locais mais comuns onde há a incidência da pratica do bullying escolar são: 60,2% na sala de aula; 16,1% no recreio; 15,9% no portão da escola e 7,8% nos corredores.
Nesse sentido, observa-se que não importa qual seja o local onde os alunos se encontrem, pois sempre haverá a possibilidade de perpetração de uma agressão por parte de algum deles, em desfavor de uma vítima eleita, sem qualquer premissa justificável. A responsabilidade em controlar a prática do bullying recai sobre a direção da escola, porém essa nem sempre possui os meios necessários para evitar que as agressões sejam efetuadas.
4.3.2. Os professores e a violência escolar
O que se observa da atualidade das escolas de nosso país é que muitos dos professores são humilhados, ameaçados, perseguidos e até mesmo, em certas situações, ridicularizados por seus alunos. Sendo assim, o profissional fica fragilizado frente a uma situação desconfortável, por temer ser considerado incompetente, caso procure a direção escolar, ou até mesmo temer fragilizar-se ainda mais, caso recorra aos próprios alunos.
Nesse sentido, o profissional acaba sujeito ao assédio moral, anteriormente exposto neste trabalho, pois passa a sofrer pressões e ameaças dos funcionários que lhe são hierarquicamente superiores, os quais o enxergam como incompetente no trato com os estudantes.
Nesse sentido, explica Ana Beatriz Barbosa:
Em ambas as situações, é comum nos depararmos com professores adoecidos, com sintomas psicossomáticos (como dor de cabeça, diarréia, vômitos, sudorese, taquicardia, tonturas, insônia), diante da possibilidade de se defrontarem com seus agressores, seja em sala de aula, seja em reuniões com os demais profissionais da escola. Em casos mais graves, alguns professores evoluem para um adoecimento mais incapactante, como os transtornos psíquicos (pânico, depressão etc.), ou até mesmo para doenças autoimunes, como a tireoidite de Hashimoto, vitiligo, doença de Crohn ou colite ulcerativa. Muitos deles acabam por abandonar a profissão ou tentam assumir outra função em que não haja um contato mais estreito com o aluno (SILVA, 2010, p. 148).
Logo, o que se observa é que muitos dos professores, com receio de serem vítimas da violência escolar, passam a se tornar agressores, coagindo, humilhando e até mesmo perseguindo os alunos. Num sentido adverso, quem deveria educar passaria a figurar como agente gerador de insegurança e intimidação no aluno, desmotivando-o para os estudos e, consequentemente, reduzindo seu rendimento escolar.
4.3.3. Mobbing, workplacebullying ou assédio moral
Originado a partir do termo “mob”, empregado para designação da máfia, define a expressão mobbing, nos países europeus, o abuso de poder que ocorre no ambiente profissional, entre adultos. No Brasil, dá-se ao mobbing conceito e tratamento sinônimos ao de assédio moral.
Conforme aduz Lélio Braga Calhau,
O assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atende, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego e degradando o clima de trabalho (CALHAU, 2009, p. 46).
Nesse sentido, manifestou-se o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, acerca da definição da conduta de bullying no ambiente de trabalho, conforme se segue:
Ementa: “Assédio moral – Indenização. O assédio moral, também denominado de mobbing ou bullying, pode ser conceituado, no âmbito do contrato de trabalho, como a manipulação perversa e insidiosa que atenta sistematicamente contra a dignidade ou integridade psíquica ou física do trabalhador, objetivando a sua exposição a situações incômodas e humilhantes, caracterizadas pela repetição de um comportamento hostil de um superior hierárquico ou colega, ameaçando o emprego da vítima ou degradando o seu ambiente de trabalho.30
Corroborando tal entendimento, explica Ana Beatriz Barbosa Silva, que “a palavra mobbing encerra, em si, a ideia de grupos de caráter “mafioso”, que exercem pressões ou ameaças sobre os outros trabalhadores em ambientes profissionais” (SILVA, 2010, p. 146).
Ademais, aduz a autora que,
Apesar de a dinâmica comportamental ser a mesma tanto no mobbing quanto no bullying, convencionou-se em utilizar este último termo para definir o abuso de poder que ocorre em ambientes escolares, enquanto o primeiro designa a mesma situação ocorrida no âmbito laboral (Ibid., p. 146).
O instituto em análise configura fenômeno antigo, de tal sorte que originou-se nas sociedades juntamente com o surgimento do próprio conceito de relação de trabalho. Nesse sentido, nada melhor para representar de forma explícita a violência nas relações trabalhistas, que a escravidão vivenciada nos séculos passados.
Lado a lado com a escravidão, temos o início do período das revoluções industriais, onde revelaram-se exorbitantes os maus-tratos e humilhações nas relações trabalhistas. Segundo Ana Beatriz Barbosa Silva,
foi uma época marcada pela total ausência de direitos dos trabalhadores. Não havia, ainda, uma legislação específica que pudesse estabelecer as mínimas condições materiais e psicológicas necessárias para que as interações com os empregados fossem, ao menos, respeitosas (SILVA, 2010, p. 146).
No Brasil, apenas se observou maior relevância no tocante a estudos e pesquisas acerca do assédio moral a partir das últimas duas décadas, tendo sido precursora desses estudos, a médica do trabalho Margarida Barreto. Ela publicou, no ano de 2000, seu valioso trabalho intitulado “Uma jornada de humilhações”. Esses estudos revelaram a forma mais comum de assédio moral no país, qual seja, a pressão psicológica.
Ressalte-se que tais atitudes visam intencionalmente à desqualificação e o desrespeito para com os colegas de trabalho, de tal sorte que, na realidade, não há que se falar em imunidade a esse fenômeno, haja vista a sujeição de todo ser humano ao labor como fonte de remuneração e a sua dependência para com o trabalho.
Nessa categoria, encontram-se mais submetidos aos índices de assédio moral: os profissionais da área da saúde, da educação, de telemarketing, de comunicação e, os bancários, segundo estudo realizado pela médica do trabalho Margarida Barreto.
4.3.4. Bullying homofóbico
É notório que vivemos em uma sociedade que ainda tende a lidar com a questão da homossexualidade de forma superficial e preconceituosa. A proveniência desse preconceito perpassa tanto às influências por parte de uma educação religiosa, quanto à educação familiar conservadora, pautada em princípios morais distorcidos e valores negativos transmitidos consuetudinariamente.
Segundo explica Lélio Braga Calhau,
O preconceito em relação aos homossexuais no Brasil é pior do que se imagina. Pesquisa realizada pelas Fundações Perseu Abramo e pela Alemã Rosa Luxemburgo Stiftung revelou um quadro preocupante: 99% da população tem esse preconceito. [...] Dos entrevistados, 16% afirmaram ter forte preconceito e consideram os homossexuais “doentes”, “safados” ou “sem caráter”. Os pesquisados que disfarçam seu preconceito, a princípio, negaram esse sentimento, mas ao longo de uma hora de entrevista, fizeram afirmações homofóbicas. Foram 2.014 os entrevistados em várias regiões, maiores de 16 anos e de diversos níveis de escolaridade (CALHAU, 2009, p. 55).
Nesse sentido, aduz Ana Beatriz Barbosa Silva, que “os segmentos sociais costumam tratar a sexualidade como um tabu e, de forma geral, associam a homossexualidade a comportamentos transgressores e/ou promíscuos” (SILVA, 2010, p. 149).
Por se tratar de tema recente de estudos, não há que se falar, ainda, em dados estatísticos específicos acerca do instituto do bullying homofóbico. No entanto, ressalta a autora o seguinte:
Podemos observar que os estudantes que assumem ou demonstram possuir tal orientação sexual sofrem de maneira mais acentuada o rechaço e a exclusão dos mais variados grupos de alunos, como também dos professores e de outros profissionais da escola. [...] O desespero e o preconceito dos adultos no ambiente escolar e/ou familiar tendem a perpetuar e agravar o problema, além de contribuir para a ocorrência de suas cruéis e indesejáveis consequências (Ibid., p. 149).
Assim, o que se observa é que a sociedade deve, primeiramente, aprender e compreender que a homofobia é uma questão discriminatória, a qual ofende a liberdade sexual e a dignidade do ser humano o qual optou por tal orientação sexual, para que então se possa dar prosseguimento na proteção individual desse determinado grupo perante aqueles que os discriminam, seja nas escolas, mediante o bullying, seja nos ambientes de trabalho e sociais.
4.3.5. Trote universitário
O denominado “trote” universitário configura uma das mais antigas tradições presentes nas faculdades e universidades de todas as nações, simbolizando um rito de passagem, e visando celebrar o início da nova jornada do jovem universitário, de tal sorte que configura um momento especial e desejado tanto pelos alunos quanto por seus familiares.
Conforme explica Ana Beatriz Barbosa Silva, o trote universitário “deveria ser o ‘estouro do champanhe’, após uma corrida difícil e bastante disputada” (SILVA, 2010, p. 151). Infelizmente, em diversas instituições do país, observa-se a transformação dessa tradição em um rito de práticas constrangedores, violentas e, certas vezes, repugnantes.
A tradição do trote, em si, não se refere a um ato de bullying escolar, por já ser intrínseca das instituições educacionais e configurar uma ação dos próprios alunos na ideia de recepcionar os novos ingressantes do ensino superior. No entanto, a prática inadequada e persistente de atos constrangedores, e até mesmo violentos, pode vir a configurar a prática do bullying.
Assim explica Cleo Fante e José Augusto Pedra acerca de tal prática inadequada:
Temos conhecimento de inúmeros calouros que são subjugados pelos veteranos ao longo do período universitário. São constrangidos, apelidados pejorativamente, ridicularizados, ameaçados, perseguidos, humilhados. Muitos são obrigados a prestar serviços, pagar festas, fotocópias, fazer trabalhos escolares ou servir de diversão para os autores, que, na maioria dos casos, reproduzem suas experiências como trote (FANTE; PEDRA, 2008, p. 47).
O principal fator consequente da prática do trote por bullies encontra-se no medo adquirido pelas vítimas, as quais tendem a ficar receosas por se sentirem inseguras e sempre sujeitas a um novo ato de violência. Assim, observa-se o anseio em evitar qualquer situação que as possibilite transformarem-se em alvos de constrangimento ou humilhação, de tal sorte que o aluno para de fazer perguntas em salas de aula; deixa de manifestar opiniões; etc., atrapalhando a formação de um novo profissional.
Nesse sentido, explica Ana Beatriz Barbosa Silva:
Em diversos casos de trotes irresponsáveis podemos observar, no decorrer de alguns anos, que os alvos dessa violência tendem a evoluir para quadros de significativa desestruturação psicológica quando não recebem a ajuda e o apoio necessários para sua plena recuperação (SILVA, 2010, p. 152).
A repercussão acerca do trote universitário tornou-se nacional e preocupante, quando em 22 de fevereiro de 1999 o calouro do curso de medicina da Faculdade de Medicina da USP, Edison Tsung Chi Hsueh, descendente de chineses, foi encontrado morto na piscina da Associação Atlética de da Universidade de São Paulo.
Após anos de investigações, de forma espantosa, constatou-se não haver tido sequer uma testemunha que tivesse visto o aluno próximo às imediações da piscina, tendo os supostos delinquentes nunca sido levados a júri popular, e consequentemente sido arquivado o caso pelo Superior Tribunal de Justiça, por não haver sustentação suficiente para a acusação do Ministério Público.
Segundo Ana Beatriz Barbosa Silva:
Felizmente, muitas universidades já começaram a mudar essa história. Elas vêm estimulando o “trote solidário”, que substitui as velhas e desagradáveis brincadeiras por ações que visam à arrecadação de alimentos, roupas e diversos outros bens materiais, bem como a prestação de serviços (aulas, mutirões de limpeza e obras) para instituições de caridade e comunidades carentes nos arredores de suas instalações físicas. Atitudes como essas possuem o efeito imediato de melhorar a qualidade de vida de diversas pessoas socialmente desfavorecidas, e acaba por se constituir em uma belíssima “aula magna” sobre altruísmo, solidariedade e responsabilidade social (SILVA, 2010, p. 154).
Configura-se, assim, o trote solidário como uma forma eficaz, alternativa e sem efeitos colaterais de tratamento do trote universitário, para que, novamente, a prática desta tradição pelas universidades seja recuperada sem que se configure uma violência estúpida e uma antidemocracia.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depreende-se do exposto neste trabalho que a criminalização do instituto denominado Bullying configura um embate entre os estudiosos da seara da Psicologia e o posicionamento sustentado pelos defensores de tal criminalização presente no anteprojeto do novel Código Penal.
Conforme se observa, defendem os pesquisadores e doutrinadores da Psicologia que a forma como o bullying deve ser tratado não deve extrapolar os limites da escola e da autoridade da administração escolar, não se configurando suficiente a intervenção estatal punitiva, por haver suficientes alternativas para a resolução de conflitos provenientes de tal conduta.
Tais afirmativas encontram-se justificadas, conforme anteriormente exposto, haja vista os institutos alternativos apresentados pelos próprios doutrinadores, os quais defendem a resolução da problemática pela conscientização dos alunos, pais e funcionários e pela apresentação de programas antibullying. Ademais, ressaltamos as alternativas presentes no ordenamento jurídico brasileiro para a resolução dos conflitos provenientes do bullying, sem que haja a intervenção punitiva estatal, quais sejam, as reparações por dano moral e material.
Ademais, não sendo a situação controlada e resolvida, por configurar-se situação excepcional, então justificando-se a atuação do Conselho Tutelar e da Polícia, conforme explicam os Psicólogos, ainda sim, observamos haver no ordenamento jurídico pátrio, previsão legal para todos os atos os quais se busca definir em um novo tipo penal denominado bullying.
Ora, resta-nos clara a visão de que a criminalização do instituto, apesar de possível por tratar a conduta de uma ação ilícita, por ferir a dignidade da pessoa humana, e culpável, na medida da culpa de cada bullie, encontra-se demasiadamente equivocada, afrontando diretamente a máxima eficiência do direito penal e o princípio da mínima intervenção (“ultima ratio”).
Isso porque, em primeiro lugar observa-se que o tipo penal incriminador denominado Bullying, a ser inserido no código penal, não abarca todas as suas modalidades, inclusive, visando apenas as condutas perpetradas em desfavor de criança ou adolescente, de tal sorte que, conforme já exposto, o bullying não somente ocorre entre jovens, como pode ocorrer no ambiente de trabalho e nos sistemas prisionais.
Ademais, vislumbra-se que o legislador equivocou-se ao inserir o assédio sexual ao tipo penal incriminador, pois conforme exposto pelo professor Lélio Braga Calhau, não há que se confundir ambos os institutos, pois possuem objetivos diferentes.
Ressalte-se que, conforme exposto nesse trabalho, a grande maioria das práticas de bullying são perpetradas por jovens entre 06 e 16 anos, de maneira que, aos mesmos, regem-se as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conforme exposto no tipo penal incriminador proposto no anteprojeto, a esses será definida medida sócioeducativa quando da prática de algum ato de bullying.
Ora, conforme exposto anteriormente, o liame subjetivo que diferencia uma simples brincadeira de um ato de bullying é muito estreito e extremamente complexo, de tal sorte que não figura atribuição de um magistrado tal análise, cabendo esta aos Psicólogos juntamente com a administração escolar.
Nesse sentido, observamos uma afronta à máxima eficiência na aplicação das normas do Direito Penal, pois a inserção de um novo tipo, o qual abarca condutas já determinadas pelo ordenamento jurídico como ilícitas, incompatibiliza a atuação do judiciário quando da determinação do tipo referente à conduta perpetrada pelo agente, prejudicando a eficiência do caráter sancionatório estatal e a função social da pena e sua individualização.
Assim, entendemos não ser justificada a intervenção Estatal para a resolução dos conflitos provenientes da prática do Bullying, de tal modo que, apesar de o ordenamento possuir alternativas suficientes para a responsabilização do agressor e para a reparação do dano causado à vitima, tais alternativas apenas devem ser utilizadas em casos excepcionais, sendo a principal forma de combate ao bullying a conscientização social e a instauração de projetos antibullying, conforme defendem os Psicólogos, não se configurando necessária a intervenção punitiva estatal para gerir tal problemática.
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30 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO-MG. Processo: 00969-2007-114-03-00-0 RO. Data da publicação: 16.04.08
Publicado por: Vinícius Souza
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