Crimes Hedionodos
SUMÁRIO:
1. Introdução;
2. Repercussão Geral da Matéria;
3. Coisa Julgada.
I. INTRODUÇÃO
O óbice legal da impossibilidade da concessão do benefício de progressão de regime prisional aos condenados pela prática de crime rotulado como hediondo, a teor do disposto no art. 2º, § 1º da Lei 8.072/90, presente a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, em 23 de fevereiro de 2006, através do HC nº 82.959-7/SP (Rel. Min. Marco Aurélio), que declarou, incidenter tamtum, a inconstitucionalidade da norma inserta no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, ficou, aparentemente, superado, bem assim qualquer possibilidade de se defender a corrente de pensamento contrária, até porque, mesmo antes dessa orientação histórica, já era admitida pela jurisprudência a progressão de regime prisional, mesmo decorrente de crime hediondo, pois, bastava o Juiz explicitar, na sentença, a locução “inicialmente fechado”, que já era o suficiente para a concretização do benefício, no caso concreto.
No entanto, ainda que, por ora, a questão se apresente como pacificada, o Ministério Público do Estado do Paraná, sistematicamente, vem impugnando as decisões concessivas do benefício da progressão, nas situações de sentenças condenatórias transitadas em julgado, com o fundamento de violação à coisa julgada, mister porque não se trata de incidente de execução, mas, sim, da própria execução da condenação.
Neste breve estudo, pretende-se demonstrar que a condenação transitada em julgado, não é óbice para a concessão do benefício da progressão do regime penitenciário, após o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma penal.
2. DA REPERCUSSÃO GERAL DA MATÉRIA
Primeiramente, cumpre auferir a repercussão da matéria - progressão de regime em crimes hediondos -, objeto da decisão declaratória de inconstitucionalidade, proferida pelo STF, em sede de controle difuso (no HC nº 82.959-7/SP), bem assim do alcance (eficácia) dessa decisão, em relação a casos análogos.
Para tanto, torna-se imprescindível a reprodução da essência da decisão do Hábeas-Corpus nº 82.959-7/SP, sintetizada no informativo jurisprudencial nº. 417 do STF:
Inicialmente, o Tribunal resolveu restringir a análise da matéria à progressão de regime, tendo em conta o pedido formulado. Quanto a esse ponto, entendeu-se que a vedação de progressão de regime prevista na norma impugnada afronta o direito à individualização da pena (CF, art. 5º, LXVI), já que, ao não permitir que se considerem as particularidades de cada pessoa, a sua capacidade de reintegração social e os esforços aplicados com vistas à ressocialização, acaba tornando inócua a garantia constitucional. Ressaltou-se, também, que o dispositivo impugnado apresenta incoerência, porquanto impede a progressividade, mas admite o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena (Lei 8.072/90, art. 5º). Considerou-se, ademais, ter havido derrogação tácita do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90 pela Lei 9.455/97, que dispõe sobre os crimes de tortura, haja vista ser norma mais benéfica, já que permite, pelo § 7º do seu art. 1º, a progressividade do regime de cumprimento da pena. Vencidos os Ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Nelson Jobim, que indeferiam a ordem, mantendo a orientação até então fixada pela Corte no sentido da constitucionalidade da norma atacada. O Tribunal, por unanimidade, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, já que a decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão.
Essa análise é importante para o afastamento do argumento, pautado na clássica doutrina, de que a declaração de inconstitucionalidade, em sede de controle difuso, não tem eficácia erga omnes, mas, tão-somente inter partes.
Com efeito, conclui-se, com certa facilidade, tratar-se de matéria de repercussão geral, haja vista que a norma inserta no § 1º, do art. 2º, da Lei nº 8.072/90, que vedava a progressão de regime penitenciário em crimes hediondos, ofende, entre outros, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, sendo um dos motivos pelo qual o plenário da Suprema Corte, por maioria de votos, declarou, em sede de controle difuso, a inconstitucionalidade do dispositivo.
Sublinhe-se que a decisão, proferida pela Corte Suprema, está em conformidade com a Constituição Federal, porquanto, como acentua Luiz Flávio Gomes :
(...) a impossibilidade de progressão de regime nos crimes hediondos é nada mais nada menos que expressão do Direito penal do inimigo de Jakobs, que sustenta a tese de que alguns criminosos devem ser tratados não como cidadãos, sim, como inimigos. Que o autor de crime hediondo seja tratado de modo diferente e com mais rigor é razoável, mas nem ele, nem ninguém pode ser tratado como inimigo.
Dessume-se, ainda, que a ação declaratória de inconstitucionalidade tem repercussão geral porque (i) é capaz de influir, concretamente, de maneira generalizada, em grande quantidade de casos; (ii) é capaz de servir à unidade e ao aperfeiçoamento do direito, ou particularmente significativa para seu desenvolvimento; (iii) tem imediata importância jurídica para círculo mais amplo de pessoas e para mais extenso território da vida pública; (iv) e pode ter como conseqüência a intervenção do legislador no sentido de corrigir o ordenamento positivo (infraconstitucional), à luz da Constituição Federal.
A propósito, os requisitos acima apontados – que permitem a conclusão de que a decisão declaratória de inconstitucionalidade, tendo em vista as questões constitucionais discutidas , ostenta repercussão geral – encontra respaldo teórico na doutrina do Prof. José Carlos Barbosa Moreira que, ao comentar a antiga Argüição de Relevância, aponta as seguintes situações, que a configurariam :
(i) decisão capaz de influir concretamente, de maneira generalizada, em grande quantidade de casos; (ii) decisão capaz de servir à unidade e ao aperfeiçoamento do direito, ou particularmente significativa para seu desenvolvimento; (iii) decisão que tenha imediata importância jurídica ou econômica para círculo mais amplo de pessoas e para mais extenso território da vida pública; (iv) pode ter como conseqüência a intervenção do legislador no sentido de corrigir o ordenamento positivo ou de lhe suprimir lacunas (...).
Demonstrada a questão da relevância da matéria objeto da decisão declaratória de inconstitucionalidade, resta destacar o seu alcance (eficácia jurídica), em relação às demais situações análogas.
Como já mencionado, a doutrina clássica preconiza que a declaração de inconstitucionalidade, em sede de controle difuso, não tem eficácia erga omnes, mas, tão-somente, inter partes.
No entanto, convém destacar as palavras de Luiz Flávio Gomes que:
‘Esse assunto está ganhando uma nova dimensão dentro do STF e é bem provável que chegaremos em breve à conclusão de que, em alguns casos, do controle difuso de constitucionalidade deve também emanar eficácia erga omnes e vinculante (o fenômeno já está recebendo o nome de controle difuso abstrativizado, consoante expressão de Fredie Didier Júnior - "Transformações do recurso extraordinário". Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. Teresa Wambier e Nelson Nery Jr. (coord.). São Paulo: RT, 2006, p. 104-121).
Aliás, continua o renomado penalista destacando:
Foi precisamente isso que ocorreu, recentemente, naquela famosa decisão do STF que decidiu sobre o número de vereadores em cada município, que foi dirimida dentro de um Recurso Extraordinário (RE 197.917-SP). Com base na decisão da Suprema Corte o TSE emitiu Resolução (Res. 21.702/2004) disciplinando a matéria, dando-lhe eficácia erga omnes. Foram interpostas duas ADIns contra essa Resolução (3.345 e 3.365). Ambas foram rejeitadas e, desse modo, o STF acabou proclamando que essa eficácia (erga omnes), extraída de uma decisão proferida em RE, estava absolutamente correta (porque, afinal, o RE deve ser visto na atualidade não só como instrumento para a tutela de interesses das partes, senão, sobretudo, como "defesa da ordem constitucional objetiva") (Gilmar Mendes).
Nesse sentido, vislumbra-se que o julgado da Suprema Corte é de um desses casos excepcionais, a que se refere o Prof. Luiz Flávio Gomes. Com efeito, detecta-se, além da relevância da matéria, que, no caso do HC nº 82.959-7/SP, acham-se presentes todos os requisitos dessa nota “abstrativizadora” (ou generalizadora). Ademais, a decisão foi do Pleno da Corte Suprema.
De outro vértice, cabe asseverar que a matéria (progressão de regime em crimes hediondos) não foi discutida tão-somente em relação ao caso concreto, relacionado com o pedido do paciente, mas, principalmente, o tema restou debatido e discutido à luz da Lei “em tese” (não se voltou exclusivamente para o caso concreto).
Ademais, houve a preocupação de se definir a extensão dos efeitos da decisão, no intuito de disciplinar as relações jurídicas pertinentes “a todos” (não exclusivamente ao caso concreto).
Ainda, o destacado doutrinador chama a atenção, nesse sentido, para o quarto voto favorável à tese da inconstitucionalidade, do Min. Gilmar Ferreira Mendes:
Que a reconheceu, porém, com eficácia ex nunc, não ex tunc (para frente, não para trás ? nesse ponto invocou-se como base legal o art. 27 da Lei 9.868/1997, que é instrumento típico do controle concentrado). Afastou-se o óbice legal para a progressão de regime nos crimes hediondos, entretanto, daqui para frente. Por que eficácia só ex nunc? Porque dessa forma qualquer pessoa que tenha sido condenada e que já tenha cumprido pena em regime integralmente fechado não conta com o direito de postular qualquer indenização contra o Estado.
A conclusão a que se chega, destarte, é a de que, apesar da inexistência de norma explícita, o julgamento de inconstitucionalidade de um texto legal, pelo STF, na prática, mesmo quando se dá num caso concreto, no que diz respeito à sua “validade”, acaba produzindo efeitos erga omnes e possui eficácia vinculante, sobretudo frente ao Poder Judiciário.
Interessante destacar mais alguns excertos do artigo de autoria do Prof. Luiz Flávio Gomes , porque esclarecedor de vários pontos polêmicos acerca do tema (progressão de regime em crimes hediondos):
Vigência e validade: já não se pode confundir a vigência de uma lei com sua validade. Aquela depende unicamente do preenchimento dos requisitos formais (discussão, votação, aprovação da lei, sanção, publicação e vigência). A validade, por seu turno, está coligada a exigências substancias (ou materiais), ou seja, a lei vigente é válida quando compatível com a Constituição (quando for verticalmente compatível com o Texto Maior ? Ferrajoli, Canotilho etc.). No momento em que o STF, por seu órgão Pleno, julga inconstitucional uma lei, retira-lhe a validade. O texto continua formalmente vigente, até que o Senado (CF, art. 52, X) suspenda a sua "execução" (ou seja, até que o Senado elimine formalmente o texto do ordenamento jurídico), mas não vale. E se não vale não pode ser aplicado por nenhum órgão jurisdicional do país.
(...)
De qualquer maneira, a pergunta que todos estão formulando agora é a seguinte: é justo que, nos crimes hediondos, verdadeiramente hediondos, o condenado cumpra somente um sexto da pena para o efeito da progressão de regime? Não seria o caso de se distinguir alguns crimes, exigir um pouco mais de cumprimento efetivo da pena (um terço ou metade, conforme o crime hediondo seja ou não violento), para só depois autorizar a progressão? Com a palavra o legislador brasileiro.
De qualquer modo, mesmo que ele venha a disciplinar essa matéria de forma mais rigorosa, sua nova legislação não vai poder retroagir. Isso significa, na prática, o seguinte: todos os condenados por crimes hediondos podem postular ao juízo respectivo a progressão de regime, desde que presentes dois requisitos: cumprimento de um sexto da pena e bom comportamento carcerário. Recorde-se que o exame criminológico que era necessário para o efeito da progressão já não é exigido pela lei brasileira. A exigência desse exame constitui hoje ilegalidade patente.
A lei dos crimes hediondos proibia a progressão de regime de modo peremptório e geral e, formalmente, não abria nenhuma exceção. Isso era muito rigoroso e era injusto em muitos casos. A partir da decisão do Pleno do STF (HC 82.959) o juiz pode conceder a progressão do regime em alguns casos concretos. Isso significa, na prática, conferir ao juiz muito mais responsabilidade, colocando fim à figura do "juiz carimbador", que só tinha o trabalho de dizer: "crime hediondo, regime fechado". Finalmente e felizmente começa a agonizar esse tipo de magistrado "despachante". No Estado constitucional e democrático de Direito só existe espaço para um tipo de juiz: o que dá a cada um o que é seu, fundamentando todas as suas decisões, tendo por base a constitucionalidade, legalidade e razoabilidade. Inclusive no âmbito criminal, estamos começando a ver o fim do juiz burocrata, guiado por "automatismos".
A decisão ora em consideração, de outro lado, não significa que o STF "abriu as portas das cadeias", para colocar na rua milhares de criminosos hediondos etc. A lei dos crimes hediondos continua, no mais, em vigor e a análise de cada progressão caberá ao juiz. Mas é certo todo ordenamento jurídico necessita de instrumentos que permitam ao juiz fazer justiça em cada caso concreto. Isso é fruto do princípio da razoabilidade que, apesar dos retrocessos, acompanha a constante e vitoriosa evolução da humanidade.
Destarte, o paradigmático posicionamento adotado pela Suprema Corte, na decisão proferida no HC nº 82.959-7/SP, resultado de interpretação sistemática do ordenamento jurídico, ainda que em sede de controle difuso de constitucionalidade, deve ser visto como nova orientação (com eficácia vinculante, principalmente, frente aos demais órgãos do Poder Judiciário), em relação à possibilidade jurídica da concessão de progressão de regime de cumprimento de pena aos condenados pela prática de crimes qualificados como hediondos.
3. DA COISA JULGADA
Por outro lado, em princípio, é certo que não é dado ao Juízo da Vara de Execuções Penais, depois de transitada em julgado a sentença condenatória, alterá-la; tampouco, no concernente à pena imposta e à forma de seu cumprimento, sob pena de incorrer em violação ao princípio da coisa julgada.
Sabe-se, ainda, que a execução da pena se dá nos termos da sentença condenatória definitiva, na qual o juiz deve, à luz do disposto no art. 59, III, do Código Penal, estabelecer o regime inicial para seu cumprimento. Também é sabido que ao Juízo da Execução, por lhe falecer competência, descabe alterar os limites objetivos da reprimenda imposta, em decisão passada em julgado, máxime para agravar a situação do réu.
As sentenças condenatórias, ao fixarem o regime integralmente fechado para o cumprimento de pena, estavam embasadas, única e exclusivamente, na interpretação literal da norma inserta no artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.
Supervenientemente, porém, como já destacado, sobreveio interpretação mais benéfica ao condenado – abstraída da decisão declaratória de inconstitucionalidade, em sede de controle difuso – afastando a vedação legal (imposta pelo art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90) de progressão no regime de cumprimento de pena aos condenados pela prática de crime hediondo, no sentido de garantir aos condenados, pela prática dessa espécie de crime, a aplicação do princípio fundamental da individualização da pena (art. 5º, inc. XLVI da CF/88), restando assegurado, por via de conseqüência, o direito à progressão do regime prisional, como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana (inserto no art. 1º, inciso III da CF/88).
Por essa lógica, tais princípios constitucionais exigem a progressão no regime prisional (até porque o sistema progressivo de cumprimento de pena foi adotado pelo ordenamento jurídico), em qualquer espécie de crime (desde que atendidos os pressupostos legais objetivos e subjetivos), para só então efetivar a possibilidade de reinserção social, a qual é um dos escopos da sanção penal, no sistema jurídico-penal. Assim, traduz-se na recuperação e conseqüente ressocialização do sentenciado, ao menos em tese.
Nesse sentido, cumpre novamente destacar excerto da decisão do STF:
Quanto a esse ponto, entendeu-se que a vedação de progressão de regime prevista na norma impugnada afronta o direito à individualização da pena (CF, art. 5º, LXVI), já que, ao não permitir que se considerem as particularidades de cada pessoa, a sua capacidade de reintegração social e os esforços aplicados com vistas à ressocialização, acaba tornando inócua a garantia constitucional
Portanto, está-se diante, em última análise, de um conflito aparente de princípios fundamentais (aparente porque, na verdade, só há uma solução jurídica adequada para o caso): de um lado o princípio da individualização da pena (como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana) e de outro o da coisa julgada.
Resolve-se o impasse, no caso concreto, pela aplicação do princípio da razoabilidade (princípio de hermenêutica, implicitamente previsto na Constituição Federal), jungido à aplicação das normas insertas nos arts. 2º, parágrafo único do CP, e 66, inc. I da LEP (Lei nº 7.210/84), ambas com amparo constitucional (art. 5º, inc. XL, da CF/88), todas utilizadas, via analogia in bonam partem, em relação à interpretação mais benigna da lei dos crimes hediondos (HC nº 82.959-7/SP).
A solução é juridicamente possível e indispensável, pois se trata de hipótese, embora excepcional, de necessária relativização da coisa julgada , para o fim de se restabelecer a ordem lógica das coisas, pois a lei infraconstitucional deve encontrar amparo na Constituição Federal, sob pena de inconstitucionalidade, para só então ser aplicada nos casos concretos e produzir seus justos e jurídicos efeitos, sob o risco de se aviltar os princípios constitucionais básicos, humanizadores do direito penal.
Pelo princípio da razoabilidade, dada a natureza da matéria, não é exigível que se prejudique o condenado – suprimindo-lhe a possibilidade material de reinserção social digna, pondo-se, assim, a contrariar o sistema de cumprimento de pena eleito pelo ordenamento jurídico (o sistema privilegia a dignidade da pessoa humana, em plena consonância com a CF/88) – em homenagem à res judicata , verificada na espécie, embora seja princípio garantidor da segurança jurídica necessária à sociedade, deve, nesta excepcional hipótese, ceder espaço para a incidência do princípio que privilegia a dignidade da pessoa humana (individualização da pena), que vela pela possibilidade da reinserção social do condenado, que passa a não mais vislumbrar vantagem alguma em seu intento de recuperar-se, em que pese a possibilidade longínqua de obter o livramento condicional.
Outrossim, a aplicação analógica (em benefício do réu) da norma do parágrafo único, do art. 2º, do CP (“A Lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”) e da norma inserta no art. 66, inc. I da LEP (“Compete ao Juiz da execução aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado.”) – esta corroborada pela Súmula (nº 611) do STF – deve ser a solução jurídica, excepcional, a ser adotada para o fim de materializar a lógica defendida nos parágrafos anteriores (relativização da coisa julgada), pois, não se vislumbram óbices para utilização da solução jurídica, via analogia in bonam partem, em relação à decisão do STF, por ser essa mais benigna ao condenado.
Nesse ponto, cumpre destacar trabalho doutrinário, dotado do mesmo espírito jurídico-humanizador, de autoria do Prof. Calmon de Passos no intuito de dotar de credibilidade jurídica a solução aqui declinada:
A Lei, por natureza e por definição, é norma geral e abstrata. Ela alcança, necessariamente, a muitos e sua aplicação jamais pode configurar ofensa ou ameaça de ofensa a um só ou a poucos, salvo situações excepcionais e aberrantes. A inexata aplicação da lei que se faz coisa julgada material e passa a constituir precedente influi muito mais do que se pode imaginar, pela força da inércia que o precedente traz em si mesmo, força esta que a cada dia que passa, com a precariedade da formação dos novos sabedores do direito, mais poderosa se torna e mais ameaçadora. Na verdade, perquirir-se da relevância da questão para admitir-se o recurso é conseqüência da irrelevância do indivíduo aos olhos do poder instituído. Considerar-se de pouca valia a lesão que se haja ilegitimamente infligida à honra, à vida, à liberdade ou ao patrimônio de alguém, ou a outros bens que lhe sejam necessários ou essenciais é desqualificar-se a pessoa humana. Não há injustiça irrelevante! Salvo quando o sentimento de justiça deixou de ser exigência fundamental na sociedade política. E quando isso ocorre, foi o direito mesmo que deixou de ser importante para os homens. Ou quando nada para alguns homens – os poderosos.”. (excerto retirado de : Fredie Didier Júnior in, Transformações do recurso extraordinário. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. Teresa Wambier e Nelson Nery Jr. (coord.). São Paulo: RT, 2006, p. 104-121 ).
Com efeito, consiste a decisão da Suprema Corte em instrumento hábil à relativização da coisa julgada, em homenagem ao princípio constitucional da individualização da pena, corolário da dignidade da pessoa humana –, frente à necessária abertura que ostenta o sistema jurídico, que não pode ser estanque, sob pena de não resistir a antinomias.
Nesse contexto, com muito mais razão, no Processo Penal, por ser o meio de garantir a tutela dos bens jurídicos mais caros à sociedade, não deve a coisa julgada ser tida como princípio absoluto, admitindo-se, portanto, nessa hipótese, pela possibilidade de ser concedida a progressão do regime penitenciário do integralmente fechado para o semi-aberto, observadas as demais exigências.
Conclui-se, portanto, que a coisa julgada não é óbice para a concessão do benefício da progressão de regime penitenciário aos condenados pela prática de crimes hediondos, sob o regime integralmente fechado, em face da inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei 8072/90, decretada em controle difuso, pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, via Hábeas Corpus nº HC nº 82.959-7/SP.
Publicado por: Silmara Yurksaityte Mendez
O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Monografias. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.