O Crime de Porte Ilegal de Arma de Fogo Desmuniciada: uma análise a luz dos crimes de perigo abstrato

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1.  RESUMO

A presente monografia trata do crime de porte ilegal de arma de fogo desmuniciada. Esse crime vem sendo questionado sobre sua tipicidade levando em consideração a existência de punibilidade para os crimes de perigo abstrato. O Estatuto do desarmamento, algumas leis e jurisprudências tratam do caso. Buscando na obra de Luigi Ferrajolli encontra-se os Princípios da lesividade e da Intervenção Mínima para fundamentar o questionamento sobre a atipicidade do crime em tela.

Palavras-chave: Porte ilegal, Arma de Fogo, Estatuto do Desarmamento, Princípio da Intervenção Mínima, Princípio da Lesividade, Garantismo Penal.

2. INTRODUÇÃO

A sociedade passa por diversas mudanças, assim como o nosso ordenamento jurídico. Com o intuito de regulamentar de forma eficaz a utilização de arma de fogo, a legislação passou por diversas alterações, e como consequência a vários questionamentos na esfera jurídica. Buscando compreender os argumentos e divergências deste processo, o presente trabalho tem por objeto a análise do crime de porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, onde se questiona sua classificação como crime de perigo abstrato. Para se obter um melhor entendimento acerca do tema, este trabalho faz uma análise da legislação, doutrina e jurisprudência de renomados autores e magistrados.

Uma das primeiras leis que previam os crimes envolvendo arma de fogo foi o Decreto Lei Nº 3.688/41 conhecida como a Lei das Contravenções Penais; Em seguida em 1997 foi instituído o Sistema Nacional de Armas, Lei nº 9.437, chamado de SINARM que estabelecia questões sobre o registro, porte e crimes envolvendo armas de fogo. Em 23 de Dezembro de 2003 foi Sancionado a lei Nº 10.826, conhecido como Estatuto do Desarmamento que é o objeto de estudo deste presente trabalho. Em seu artigo 14, onde prevê o porte de arma de fogo de uso permitido, sendo punido apenas a mera conduta, cria-se a discussão acerca do porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sendo que, parte da doutrina corrobora por sua tipicidade e outra parte por sua atipicidade.

É bem verdade que o Estado de Direito deve punir as condutas mais danosas e relevantes, sendo o Direito Penal utilizado em menor escala a fim de que o Estado intervenha minimamente na liberdade do cidadão, aplicando a lei penal de forma justa e adequada ao caso concreto, sendo discutida, desta feita, a inconstitucionalidade do crime de perigo abstrato.

Por outro lado, é público e notório que o crime de perigo abstrato em tela existe, possuindo sua tipificação no Estatuto do Desarmamento, no qual parte da jurisprudência defende que apenas o poder de intimidação de uma arma de fogo, mesma que inútil a disparos por não conter munição acessível tipifica o crime, tratando assim de um perigo.

A presente pesquisa visa analisar os argumentos e divergências que sustentam essas duas vertentes, utilizando-se de teorias e doutrinas modernas que corroboram essas correntes a fim de explanar os entendimentos existentes referentes ao crime de porte de arma de fogo desmuniciada utilizando-se ainda de jurisprudências, leis e códigos a fim de exemplificar e ilustrar o presente trabalho.

Essa pesquisa encontra-se estruturada em quatro capítulos, seguidos de conclusão. O primeiro capítulo aborda os princípios e o processo legislativo, o segundo versa sobre o Estatuto do Desarmamento e o terceiro explica o Garantismo Penal de Ferrajoli e a conclusão acerca do porte de arma de fogo desmuniciada à luz das três análises expostas anteriormente.

Abordando os princípios, doutrinadores, teorias e jurisprudências que ajudam a compreender e explicar esse tema, mostrando ainda suas duas vertentes e argumentos, a fim de que se obtenha uma melhor interpretação sobre o crime em tela.

3. O PROCESSO LEGISLATIVO PENAL E OS PRINCÍPIOS PENAIS

O presente capítulo estuda, inicialmente, uma espécie de classificação de crimes, que seriam o de dano e o de perigo, visto que, se diferenciam em vários aspectos. O crime de dano necessita de dolo na lesão ao bem jurídico tutelado enquanto o crime de perigo basta apenas à intenção de gerar o perigo, sem que seja necessária a lesão ao bem jurídico. Este subdivide-se em crime de perigo concreto que é a comprovação real da situação de perigo e o crime de perigo abstrato que não necessita de demonstração concreta do perigo, pois o simples fato de realizar a conduta já o tipifica.

Para que se tenha um melhor entendimento da matéria supracitada utilizar-se-á de conceitos, jurisprudências e doutrinas além de exemplos destacados em alguns artigos.

Neste capítulo também aborda-se os princípios da ofensividade ou lesividade e o princípio da intervenção mínima de forma conceitual para se aproximar ao objetivo do tema que será discutido posteriormente.

3.1. CRIMES DE DANO

Neste ponto, será discutido sobre o crime de dano que consiste na alteração prejudicial do bem jurídico, tendo como característica fundamental a vontade do agente.

De acordo com Heleno Fragoso "dano é a alteração prejudicial de um bem; a destruição ou diminuição de um bem; o sacrifício ou restrição de um interesse jurídico" (FRAGOSO, 1985, p. 173).

Verifica-se que o crime de dano caracteriza-se pela vontade do agente, ou seja, pelo dolo. Como ensina Bitencourt:

“Crime de dano é aquele que cuja formação é necessária à superveniência da lesão efetiva do bem jurídico. A ausência desta pode caracterizar a tentativa ou indiferente penal, como ocorre com os crimes materiais (homicídio, furto, lesão corporal )” (BITTENCOURT, 2010, p. 254).

 

Verifica-se que a vontade de realizar a efetiva lesão é de suma importância para que se classifique como crime de dano. Paulo Queiroz também afirma em sua obra que:

 

“Crimes de dano são aqueles em que o tipo penal descreve uma ação lesiva de um bem jurídico, de modo que a conduta somente assume relevância jurídico-penal quando se verificar um dano (lesão) real ou potencial (consumação o tentativa) ao interesse tutelado(v.g. homicídio, roubo). Nos crimes de dano, portanto, a consumação pressupõe a produção de uma lesão”(QUEIROZ, 2011, p. 175).

 

Através deste renomado autor verifica-se que o dolo de causar lesão ao bem é requisito para ser considerado como crime de dano.

Destaca-se também que: “o crime de dano é quando ocorre uma lesão efetiva ao bem jurídico tutelado, não bastando apenas se ter o risco da lesão ou uma provável intenção de lesionar, a lesão deve realmente ocorrer no mundo factual” (MIRABETE, 2003, p. 134).

Verifica-se que o autor enfatiza a efetividade do dano, porém, não pode se deixar de levar em consideração a possibilidade do crime tentado.

Damásio de Jesus afirma que a consumação desse crime só ocorre com “a efetiva lesão do bem jurídico” (JESUS, 1997b, p. 103).

A lesão ao bem é o requisito necessário para qualificar este tipo de crime.

Jesus (2006c) também, em sua obra, cita alguns exemplos nessa modalidade de crime, entre eles o homicídio culposo e a lesão corporal culposa ambos no trânsito previstos no Código de Trânsito Brasileiro, respectivamente nos artigos 302 e 303 como verifica-se abaixo:

Artigo 302 – Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Artigo 303 – Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (BRASIL,1997).

Além dos crimes supracitados, existem outros crimes de dano prescritos no Código Penal Brasileiro, podendo-se ainda destacar, como exemplo, os crimes de homicídio, lesões corporais, peculato, roubo, estupro, entre outros. Conclui-se que para o crime ser classificado com de dano, o autor precisa ter a vontade de causar o dano, o que difere do crime de perigo, que será demonstrado adiante.

3.2. CRIMES DE PERIGO

O perigo consiste na probabilidade de ocorrer fato lesivo, não sendo necessária sua efetivação. Segundo Nucci:

[...] contenta-se com a mera probabilidade de dano. Trata-se de um juízo de probabilidade que se funda na normalidade dos fatos, vale dizer, conforme o que usualmente costuma acontecer, o legislador leva em consideração o dano em potencial gerado por uma determinada conduta para tipificá-la (NUCCI, 2007, p. 122).

Através do texto acima, verifica-se que o simples fato de expor ao perigo já se encaixa neste tipo de crime. Paulo Queiroz em sua obra, enfatiza que:

“... nos crimes de perigo, o legislador, ao descrever o tipo, contenta-se com o perigo que a presente ação representa relativamente ao bem jurídico” (QUEIROZ, 2011, p. 175).

Desta feita, o legislador leva em consideração a probabilidade de gerar o dano e não a sua efetivação. Em relação aos seus aspectos, Leandro de Souza, afirma que:

“É possível analisarmos o perigo sob dois aspectos: o objetivo, para o qual o perigo constitui o conjunto de circunstâncias que podem fazer surgir o dano; e o subjetivo que consiste no juízo do julgador, baseado na experiência e no caso concreto, sobre a probabilidade de ocorrência do dano. Dessa forma, podemos afirmar que os crimes de perigo se consumam com a probabilidade de ocorrência do dano”(SOUZA, 2011, p.01).

Para que se tenha uma melhor visão dos crimes de perigo, elencam-se alguns exemplos dessa modalidade, com os crimes de perigo de contágio venéreo e a rixa, ambos previstos pelo Código Penal Brasileiro, como diante exposto:

Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

[...]

Art. 137 - Participar de rixa, salvo para separar os contendores:

Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.

Parágrafo único - Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave, aplica-se, pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de seis meses a dois anos (BRASIL, 1940).

Esta modalidade de crime pode ser divida entre: individual, quando expõe o interesse de uma pessoa ou de um número determinado de pessoas ao risco, ou coletivo ou comum, quando expõe os interesses jurídicos de um número indeterminado de pessoas ao risco.

Segundo a boa doutrina, o crime de perigo se subdivide em crime concreto e abstrato que será demonstrado adiante.

3.2.1. Crime de Perigo Concreto

O Perigo concreto é o perigo real, ou seja, é quando o efetivo perigo é fundamental para a consumação.

Para Capez “deflui de dada situação objetiva em que o comportamento humano gerou uma possibilidade concreta de destruição do bem jurídico tutelado, não bastando assim à simples potencialidade lesiva da ação” (CAPEZ, 2005, p. 44).

Essa modalidade de crime apresenta a real probabilidade de causar o dano, sendo caracterizado o delito através da prova que ocorreu este perigo.

Para exemplificar o perigo concreto, segue para mera demonstração uma jurisprudência da 2ª Vara Criminal do Paraná:

APELAÇÃO CRIMINAL. INCÊNDIO EM RESIDÊNCIA HABITADA (ART. 250 § 1º, II, a, DO CÓDIGO PENAL). PLEITO DE ABSOLVIÇÃO.

IMPOSSIBILIDADE. DESCLASSIFICAÇÃO PARA FORMA CULPOSA. NÃO CABIMENTO. CRIME DE PERIGO CONCRETO. RISCO À INCOLUMIDADE PÚBLICA EVIDENCIADA. RECURSO NÃO-PROVIDO. 250§ 1ºIIa CÓDIGO PENAL. O crime de incêndio é de perigo concreto e se caracteriza quando o agente dolosamente expõe indeterminado número de pessoas a risco.

(5038362 PR 0503836-2, Relator: Noeval de Quadros, Data de Julgamento: 30/10/2008, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 7748)

Como verificado acima, a jurisprudência descreve que praticar incêndio é crime e está previsto no artigo 250 do Código Penal Brasileiro, é este crime um grande exemplo de perigo concreto; Verifica-se que o autor age de forma dolosa expondo uma ou mais pessoas ao risco, pois o crime foi praticado em área habitada, o que não se pode medir à primeira vista o grau da lesão que poderia ocorrer.

Para demonstrar outro caso de Crime de Perigo Concreto a 1ª Turma Criminal do Distrito Federal, decidiu que:

PENAL E PROCESSUAL. CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO SEM TER CARTEIRA DE HABILITAÇÃO OU AUTORIZAÇÃO LEGAL PARA DIRIGIR. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DANO. CRIME DE PERIGO CONCRETO. DESNECESSIDADE DA PRODUÇÃO EFETIVA DO DANO. SENTENÇA CONFIRMADA.1 Réu condenado por infringir o artigo 309 do código de trânsito brasileiro, eis que dirigia perigosamente automóvel sem estar habilitado, perdendo o seu controle quando passava em velocidade incompatível para as condições de segurança da via, subindo a calçando e se enganchando num bueiro. 309código de trânsito brasileiro2 o tipo do artigo 309 do código de trânsito brasileiro configura crime de perigo concreto, para cuja configuração se exige tão só a prova de uma conduta perigosa, apta à produção de danos ao patrimônio, à vida ou à incolumidade física das pessoas, sem necessidade da sua efetiva produção. 309código de trânsito brasileiro3 apelação desprovida.

(119934720098070004 DF 0011993-47.2009.807.0004, Relator: GEORGE LOPES LEITE, Data de Julgamento: 26/05/2011, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: 06/06/2011, DJ-e Pág. 186).

Conforme demonstrado este crime baseia-se na possibilidade concreta da lesão em que a conduta do indivíduo expõe ao risco o bem jurídico tutelado, não bastando assim a potencialidade abstrata da lesão. O que se verifica é a conduta perigosa, estando nela a concreta possibilidade de produzir danos ás pessoas ou ao patrimônio.

3.2.2. Crime de Perigo Abstrato

Esse tipo de crime tem sido amplamente utilizado pelo legislador nestes últimos anos, os quais não se limitam aos crimes de trânsito, mas também nos crimes contra a pessoa, na área da biosegurança, ambiental, crimes financeiros dentre outros. Por causa desse grande aumento a doutrina tem se dedicado a estudar mais essa técnica de tipificação. Segundo Damásio de Jesus, ao citar ROXIN:

Perigo presumido (ou abstrato) é considerado pela lei em face de determinado comportamento positivo ou negativo (valoração ex ante). Não precisa ser provado. Ocorre nos casos em que o comportamento não apresenta probabilidade real de dano ao bem jurídico, i.e., não o expõe a perigo de dano. É a lei que o presume júris et de jure, sob o fundamento de que a periculosidade típica da conduta já é motivo para a sua apenação, sem que fique na dependência da produção de dano (Claus Roxin, Derecho penal; parte general, trad. Diego Manuel Luzón Pena, Miguel díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madri, Ed. C, p. 336). Diante disso, para que o perigo seja considerado não é necessário provar sua superveniência (ROXIN, 2001 Apud JESUS, 2006a, p. 03).

A partir deste conceito, verifica-se que o perigo abstrato ou perigo presumido ocorre quando não há probabilidade real do dano. Como elenca, recentemente, o julgado da 1ª Turma do STF originário do Espírito Santo:

EMENTA HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO (ART. 14 DA LEI Nº 10.826/03). ARMA DESMUNICIADA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. TIPICIDADE DA CONDUTA. PRECEDENTES.1410.8261. A jurisprudência da Primeira Turma desta Corte é firme no sentido de que "o porte ilegal de arma de fogo é crime de perigo abstrato, consumando-se pela objetividade do ato em si de alguém levar consigo arma de fogo, desautorizadamente e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. donde a irrelevância de estar municiada a arma, ou não, pois o crime de perigo abstrato é assim designado por prescindir da demonstração de ofensividade real" (RHC nº 91.553/DF, Primeira Turma, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 21/8/09).2. Ordem denegada.

(109136 ES , Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 18/10/2011, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-217 DIVULG 14-11-2011 PUBLIC 16-11-2011).

Verifica-se que o crime acima é caracterizado por prescindir a ofensividade do ato buscando a proteção de bens jurídicos de caráter coletivo. Neste sentido o Ministro Gilmar Mendes manifesta-se:

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDATOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.  LEGITIMIDADE DA  CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA.1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. 1.1. Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente.  1.2. Modelo exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria penal, baseado em níveis de intensidade: Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais. 2. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. PORTE DE ARMA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALDIADE. A Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) tipifica o porte de arma como crime de perigo abstrato. De acordo com a lei, constituem crimes as meras condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo. Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam consigo o indesejado perigo ao bem jurídico.  A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional. 3. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa.
4. ORDEM DENEGADA.

(STF - HC N. 104.410-RS (Informativo 660)  RELATOR: MIN. GILMAR MENDES).

Observa-se que diversas são as hipóteses do Perigo Abstrato em que sua suposição legal é a de que algumas condutas põem em risco o bem jurídico tutelado não se exigindo um perigo efetivo para configurar os elementos do tipo penal. Já que, de acordo com a lei, constitui crime meras condutas como de possuir, deter, portar, adquirir, etc. Sendo assim, o pressuposto da criminalização não é tomado pelo legislador como lesividade concreta a um bem jurídico neste delito.

3.2.3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

No tópico anterior foi estudado o conceito do crime de perigo abstrato. Em confronto com esse tipo, os princípios como o da intervenção mínima e o princípio da lesividade vão de forma a nos revelar uma visão contrária, na qual não se busca somente punir, mas sim intervir de forma mínima na liberdade e garantindo a preservação de seus direitos fundamentais.

De acordo com Nucci: “[...] princípio indica uma ordenação, que se irradia e imanta o sistema de normas, servindo de base para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo” (NUCCI, 2007, p. 67).

Os princípios são as garantias mínimas de um País, buscando proteger os direitos individuais e coletivos básicos de um Estado Democrático de Direito. Esses orientam o legislador a adotar um sistema de controle, de modo a limitar e a condicionar o poder punitivo estatal e também definir a base mínima para um direito penal.

A Constituição Federal, como marco fundante de todo ordenamento jurídico, emana sua força normativa para todos os setores do direito. Todavia, tem ela particular e definitiva influência na seara penal. Isso porque cabe ao Direito Penal, como já visto, a proteção de bens e valores essenciais à livre convivência e ao desenvolvimento do individual e da sociedade, insculpidos na Lei Fundamental, em determinada época e espaço territorial. A relação entre a Constituição e o subsistema penal é tão estreita que o bem jurídico penal tem naquela suas raízes, materiais (PRADO, 2002, p. 38).

Como o Estatuto do Desarmamento é uma lei que tipifica crimes cujo bem jurídico tutelado é a incolumidade pública, é de grande valia que antes de ser aplicado, devam ser analisados minuciosamente os princípios constitucionais penais que diante se expõe.

4. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO

O presente capítulo visa inicialmente, analisar a implementação do Estatuto do Desarmamento previsto na lei nº 10.826 de 2003 em um contexto histórico onde a criminalidade envolvendo o uso de arma de fogo se encontrava em alta.

Serão analisadas também, algumas peculiaridades previstas na antiga Lei de Armas nº 9.437 do ano de 1997 a título de comparação, os crimes de posse e porte ilegal de arma de fogo e suas análises à luz da doutrina e da jurisprudência, visando um melhor entendimento sobre estes.

4.1. CONTEXTO HISTÓRICO

A violência no Brasil tem merecido uma crescente atenção nos últimos anos, principalmente nos crimes que envolvem arma de fogo.

O Brasil é um dos países do mundo com o maior número de pessoas mortas por armas de fogo. Em 2003 foram 108 mortos por dia, quase 40 mil no ano. A arma de fogo é a primeira causa de morte de homens jovens no Brasil, mata mais que acidente de trânsito, AIDS ou qualquer outra doença externa (WAISELFISZ, 2013).

Com vistas a esses dados, têm-se a proposta desta referida lei, para diminuir hipoteticamente o aumento da violência, regulamentando o comércio de armas de fogo e munições em todo território nacional. A presente norma foi chamada de Estatuto do Desarmamento e está prevista na lei nº 10.826 criada no ano de 2003 que revogou a lei nº 9.473 de 1997, conhecida como Lei de Armas.

O Legislador como resposta viu a grande necessidade de criar uma lei com “o propósito de diminuir a quantidade de crimes violentos em que há emprego de arma de fogo, principalmente os homicídios e roubos, além de possibilitar a prisão de assaltantes e outros marginais antes da prática do crime” (SILVA, 2007, p. 01).

4.2. O CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO

Durante anos o crime de porte ilegal de arma de fogo era considerado uma contravenção penal disposto no artigo 19 do Decreto Lei 3.688 de 03 de outubro de 1941, chamado de Lei de Contravenções Penais, como verifica-se abaixo:

Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade.

Pena: prisão simples de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, ou multa, ou ambas cumulativamente. (BRASIL,1941)

Com o passar dos tempos, devido ao aumento da criminalidade, o legislador trouxe em 1997 a Lei de Armas de Fogo, nº 9.437 na qual o porte ilegal de arma de fogo deixou de ser contravenção e passou a ser considerando crime, tendo sua pena aumentada para detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa. Conforme disposto no artigo 10, caput inscrito abaixo:

Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Pena - detenção de um a dois anos e multa (BRASIL, 1997).

Diante deste novo ordenamento, poucas mudanças ocorreram, visto que o crime continuou a ter a pena de multa. Verifica-se que a pena branda como de menor potencial ofensivo não tem atenção aos crimes de armamentos ilegais, e ainda por não haver distinção entre quem possuía, portava, comercializava, vendia ou fabricava, nem versar sobre acessório ou munição. Dando poucas providências para o fortalecimento da segurança pública, continuando, posto feito, a ter um alto índice de criminalidade.

Por mais uma vez viu-se a necessidade de uma nova Lei, nascendo, desta feita, o Estatuto do Desarmamento previsto na Lei nº 10.826 de 22 de Dezembro de 2003, que dispôs em seu artigo 14 o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, como se segue:

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente (BRASIL, 2003).

É evidente que desta vez o legislador concluiu que o porte ilegal de arma de fogo de uso permitido é um crime grave, salvo se a arma é registrada em nome de seu detentor. Nesse caso, a pena aumentou para de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. Nos crimes de posse, porte e o de armas ilegais não mais se confundem, tendo ainda que ser levado em consideração a inclusão de tipificar este crime apenas com o porte de munição ou acessórios, separadamente, sem necessitar estar junto à arma de fogo. Vale ressaltar que nessa transição surgiu a polêmica sobre a “Vacatio Legis” dos crimes previstos na nova lei, pois em seu artigo 30 previa um prazo de 180 dias, após a sua publicação, para que fosse realizado o registro das armas de fogo não registradas anteriormente. Ao contrário do que fizeram a Lei de Armas, em seu artigo 20, que previa os tipos penais que tiveram sua vigência suspensa, a nova legislação em seu artigo 30, deixou de especificá-los, ficando a cargo do interprete da lei analisar o seu alcance.

Conforme o exposto acima é possível observar a decisão da 1ª Turma Recursal do Distrito Federal que se posiciona da seguinte maneira:

HABEAS CORPUS IMPETRADO CONTRA ACÓRDAO DA EGRÉGIA PRIMEIRA TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS DO DISTRITO FEDERAL QUE CONFIRMOU SENTENÇA CONDENATÓRIA POR INFRAÇÃO AO ART. 10 DA LEI 9.437/97 – PRETENSÂO AO RECONHECIMENTO DA ABOLITIO CRIMINIS – NÂO OCORRÊNCIA -  POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO - ARTIGO 10 DA LEI 9.437/97 - DECRETO 5.123/2004 - PRAZO PARA REGULARIZAÇÃO. ARTIGO 12 DA LEI 10.823/2006 – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DESTE EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – “1. EMENTA - RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA. VACATIO LEGIS TEMPORÁRIA. ABOLITIO CRIMINIS. INOCORRÊNCIA. 1. Os artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento referem-se a possuidores e proprietários de armas de fogo. O artigo 29 e seu parágrafo único dispõem sobre a autorização para o porte de arma de fogo. Aos possuidores e proprietários a lei faculta, no artigo 30, a regularização, mediante comprovação da aquisição lícita, no prazo assinalado. O artigo 32 obriga, aos que não puderem demonstrar a aquisição lícita, a entrega da arma à Polícia Federal, no prazo que estipula. 2. O artigo 29 e seu parágrafo único, da Lei n. 10.826/2003, dizem respeito às pessoas autorizadas a portar armas de fogo. Dispõem sobre o término das autorizações já concedidas (caput) e a propósito da renovação (parágrafo único), desde que atendidas as condições estipuladas nos seus artigos 4º, 6º e 10. 3. O prazo legal estipulado para regularização das autorizações concedidas não configura vacatio legis, do que decorreria a abolitio criminis temporária, no que tange ao crime de porte de arma de fogo por pessoa não autorizada. 4. A vingarem as razões recursais, chegar-se-ia ao absurdo de admitir, no prazo fixado para regularização das autorizações, o porte de arma de fogo por pessoas e entidades não arroladas nos incisos I a IX do artigo 6º da Lei n. 10.826/2003. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento. (in Recurso em Habeas Corpus número 86681, DJ 24-02-2006, pág. 25, Relator Eros Grau).” 1.1 “ EMENTA HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ABOLITIO CRIMINIS. NÃO-OCORRÊNCIA. O prazo de cento e oitenta dias previsto nos artigos 30 e 32 da Lei n. 10.826/2003 é para que os possuidores e proprietários armas de fogo as regularizem ou as entreguem às autoridades. Somente as condutas típicas 'possuir ou ser proprietário' foram abolidas temporariamente. A vingar a tese de abolitio criminis temporária quanto ao porte ilegal, chegar-se-á ao absurdo de admitir que qualquer pessoa pode transitar livremente em público portando arma de fogo. Ordem denegada. (in Habeas Corpus número 88594, DJ 02-06-2006, pág. 44, Relator: Eros Grau).  2.  “HABEAS CORPUS - TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL - DENÚNCIA QUE IMPUTA A PRÁTICA DO CRIME DE POSSE ILEGAL DE ARMA - FATO PRATICADO SOB A ÉGIDE DA LEI ANTERIOR - VACATIO LEGIS TEMPORALIS DECORRENTE DA REGULAMENTAÇÃO DO NOVO ESTATUTO DO DESARMAMENTO - ABOLITIO CRIMINIS - IMPOSSIBILIDADE - PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE NORMATIVA TÍPICA - AGRAVAMENTO DA SANÇÃO - INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL - ORDEM DENEGADA - UNÂNIME. Notadamente, o Estatuto do Desarmamento não descriminalizou o crime de posse de arma de fogo; pelo contrário, tornou a sanção mais severa ao aumentar a pena máxima em abstrato para 3 (três) anos de detenção. A abolitio criminis ocorre quando a Lei posterior deixa de considerar o fato criminoso, o que não ocorreu in casu, tendo em vista que houve até o agravamento da sanção. Verifica-se, pois, na hipótese, o princípio da continuidade normativa típica a tornar inviável a extinção da punibilidade do paciente por ter incorrido, em tese, no delito previsto no artigo 10 da Lei n 9.437/97.

(20050020095323HBC, Relator LECIR MANOEL DA LUZ, 1ª Turma Criminal, DJ 14/12/2005 p. 140). 3. Ordem denegada.

Verifica-se que mesmo a legislação cedendo um prazo de 180 dias, para a regularização da arma de fogo, a jurisprudência afirma que mesmo dentro deste prazo, o fato acima discutido continua sendo crime.

Para uma melhor ilustração de como está seguindo a aplicabilidade desse novo ordenamento, agora aperfeiçoado, sobre o porte de arma, cita-se a decisão da 5ª Turma do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO.ART. 14 DA LEI 10.826/2003. PORTE DE ARMA. AUSÊNCIA. TIPICIDADE DA CONDUTA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. RECURSO PROVIDO.1410.826I. O porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (incluído no tipo os acessórios e a munição) é crime comum, de mera conduta, isto é,independe da ocorrência de efetivo prejuízo para a sociedade, e de perigo abstrato, ou seja, o mau uso do artefato é presumido pelo tipo penal.II. Considera-se materialmente típica a conduta daquele que, mesmo sem portar arma de fogo, é surpreendido portando qualquer de seus acessórios ou munição.III. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.

(1191122 MG 2010/0073658-0, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 05/05/2011, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/05/2011, undefined).

Esta Jurisprudência enfatiza o teor do artigo 14 da lei supracitada, mostrando a eficácia de suas modalidades, utilizando-se da espécie de crime de perigo abstrato. Verifica-se que neste crime, não há necessidade do perigo concretamente demonstrado, e sim pelo simples fato portar ou possuir. O artigo relatado estende-se não só a portar arma de fogo, mas também a portar seus acessórios ou munições.

4.2.1. Diferença entre os crimes de Porte e Posse ilegal de arma de fogo

Com as mudanças do ordenamento jurídico que regula o Porte e a Posse de arma de fogo, nota-se que estas foram separadas em artigos diferentes, visto que deveriam ser diferenciadas a fim de não mais se confundir os tipos penais.

O Estatuto do Desarmamento traz em seu artigo 12 essa tipificação penal:

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa(BRASIL, 2003).

A leitura deste artigo é bem clara para o entendimento de que a posse se configura com a detenção da arma na residência ou no ambiente de trabalho do infrator, diferente do porte que é trazer a arma junto de si, transitar com ela.

Para um bom entendimento acrescenta-se a definição do Ministro Felix Fischer:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ART. 10, § 2º, DA LEI Nº 9.437/97. PRAZO PARA A REGULARIZAÇÃO DA ARMA. ARTIGOS 30, 31 E 32, DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. PRAZO REFERENTE ÀS HIPÓTESES DE POSSE DE ARMA DE FOGO. NÃO SE CONFUNDE COM OS CASOS DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO.10§ 2º9.437303132ESTATUTO DO DESARMAMENTO I - Não se pode confundir posse irregular de arma de fogo com o porte ilegal de arma de fogo. Com o advento do Estatuto do Desarmamento, tais condutas restaram bem delineadas. A posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo. O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho.Estatuto do DesarmamentoII - Os prazos a que se referem os artigos 30, 31 e 32, da Lei nº 10.826/2003, só beneficiam os possuidores de arma de fogo, i.e., quem a possui em sua residência ou emprego (v.g., art. 12, da Lei nº 10.826/2003). Dessa maneira, até que finde tal prazo, ninguém poderá ser preso ou processado por possuir (em casa ou no trabalho) uma arma de fogo.30313210.8261210.826III - In casu, a conduta atribuída ao paciente foi a de portar arma de fogo (art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 10.826/2003). Logo, não se enquadra nas hipóteses excepcionais dos artigos 30, 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento, que se referem aos casos de posse de arma de fogo (Precedentes). Writ denegado16parágrafo únicoIV10.826303132Estatuto do Desarmamento

(92136 RJ 2007/0237240-9, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 26/08/2008, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/11/2008, undefined).

Analisando esta Jurisprudência, em seu inciso primeiro, vemos claramente a distinção dos dois tipos penais, que agora separados possuem também a penalidade diferenciada, sendo do crime de posse de 1 (um) a 3 (três) anos e multa e do porte de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa, diferença esta devida ao grau de periculosidade das tipificações.

5. O GARANTISMO PENAL DE LUIGI FERRAJOLI

Dando continuidade aos estudos correlacionados ao porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, neste momento, será analisada a obra do renomado jurista italiano Luigi Ferrajoli em sua obra chamada Direito e Razão, visando incrementar à análise em tela o garantismo penal e seus axiomas a fim de salientar a não lesividade desse crime.

Primeiramente, faz-se necessária a apresentação do referido jurista. Luigi Ferrajoli nasceu em Florença no dia 06 de agosto de 1940, foi Juiz, professor e reitor, sua obra mais famosa é Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, tendo sua primeira edição publicada em espanhol em 1995, sendo traduzido posteriormente para o português.

5.1. TEORIA GARANTISTA

Para que seja criado um conceito-base sobre o garantismo penal é importante explicar que este nasceu no campo penal para salientar as diferentes formas de se aplicar o ordenamento a nível constitucional e a níveis inferiores, visando uma orientação para que seja a norma efetivada.

De acordo com a obra de Ferrajoli o garantismo possui três acepções, que mesmo distintos entre si, unidos, formam sua teoria, como disposto:

Eles delineiam, precisamente, os elementos de uma teoria geral do garantismo: o caráter vinculado do poder público no Estado de direito; a divergência entre validade e vigor produzida pelos desníveis das normas e um certo grau irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de nível inferior; a distinção entre ponto de vista externo (ou ético-político) e o ponto de vista interno (ou jurídico) e a conexa divergência entre justiça e validade; a autonomia da prevalência do primeiro e em certo grau irredutível de ilegitimidade política a ele das instituições vigentes (FERRAJOLI, 2002, p. 686).

As três acepções acima esplanadas, visam compor o garantismo de uma forma geral, separando o direito e a moral, fundamentado no direito mínimo restringindo o poder do Estado, com ênfase no poder de punir estatal, e a ampliação das garantias fundamentais do cidadão assegurando sua liberdade quanto à intervenção do direito penal em sua vida.

A teoria garantista, em um breve resumo, nota-se que é uma limitadora do poder de punir do Estado, sendo esse denominado de Estado de Direito, no qual analisa-se a aplicação da pena aos cidadãos, se é justa ou não sua pretensão punitiva. Na doutrina existem duas correntes que divergem sobre este mesmo assunto, a corrente abolicionista que defende a carência de normas jurídicas, buscando a eliminação do direito penal e a corrente justificacionista que defende a necessidade do direito penal, haja vista sua função ética e moral na sociedade. Ferrajoli prefere manter sua teoria do garantismo como meio-termo entre as duas correntes.

Diante desta Teoria que visa minimizar o poder estatal destacam-se como ponto mais importante do garantismo penal os dez axiomas estabelecidos, sendo vistos como garantias do cidadão em que um decorre do outro como condição da aplicação referente à pena, ao delito ao processo.

Destaca-se na obra de FERRAJOLI, para adiante serem analisados por ele, como cita-se:

Estes dez princípios, ordenados e aqui conectados sistematicamente, definem – com certa força de expressão lingüística – o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal, isto é, as regras do jogo fundamental do direito penal. Foram elaborados, sobretudo, pelo pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, que os concebera como princípios políticos, morais ou naturais de limitação do poder penal “absoluto”. Já foram posteriormente incorporados, mais ou menos integra e rigorosamente, às constituições e codificações dos ordenamentos jurídicos desenvolvidos, convertendo-se, assim, em princípios jurídicos do moderno Estado de direito. (FERRAJOLI, 2002, p. 75).

Diante do trecho citado anteriormente sobre a importância destes princípios para a formulação da teoria do garantismo penal, elencar-se-á aqui separados de acordo com sua aplicabilidade.

Os primeiros três axiomas se referem a pena, sendo o primeiro o Princípio da Retribuição Penal, nulla puena sine crimine, como escreve Ferrajoli, “ isto é, aplicável como se tenha cometido um delito, que constitui sua causa ou condição necessária e do qual se configura como efeito a conseqüência jurídica” (FERRAJOLI, 2002, p.297) onde o Estado somente pune se houver infração penal, evitando o poder absoluto e preservando as garantias fundamentais.

O segundo é o Princípio da Legalidade Penal, nullum crimen sine lege, um dos mais importantes do Direito Penal, que elucida quando punir tendo, desta feita, ligação direita com a aplicabilidade do conceito de delito, tendo assim desencadeado ao pensamento penal formalista, como esplana Ferrajoli, “são doutrinas formalistas aquelas que consideram delitos todos – e somente – os previstos por uma lei válida como pressupostos de uma pena” (FERRAJOLI, 2002, p.298). Diante aos dizeres da doutrina formalista o Princípio da Legalidade Penal adverte a quatro normas: a) o princípio da irretroatividade penal, onde a lei só retroage in bonan partem; b) o princípio da estrita legalidade; c) o princípio da taxatividade e d) a lei penal deve ser escrita evitando o costume incriminador,

O terceiro e último princípio que versa sobre garantias relacionadas à pena é o Princípio da necessidade, conhecido atualmente como Princípio da Intervenção Mínima, nulla Lex poenalis sine necessitate, onde Ferrajoli explica a pena moderna, “a pena [...] deve ser necessária e a mínima dentre as possíveis em relação ao objetivo da prevenção de novos delitos” (FERRAJOLI, 2002, p.317). O sancionador, como elucida-se acima, deverá buscar o Direito Penal como última opção sancionatória a fim de que seja aplicada minimamente buscando economia na prescrição de infrações penais, utilizando-as em extrema necessidade.

 O Princípio da Intervenção Mínima, também conhecido como ultima ratio, implica que o Estado só deve se preocupar com os conflitos relevantes, buscando apenas a proteção dos bens mais importantes e necessários à sociedade. 

Desta feita, o direito penal aplicado pelo Estado assume uma posição subsidiária intervindo apenas quando as medidas administrativas e civis demonstrarem ineficácia. Conforme Maura Roberti:

O princípio da intervenção mínima está diretamente afeto aos critérios do processo legislativo de elaboração de leis penais, servindo, num primeiro momento, como regra de determinação qualitativa abstrata para o processo de tipificação das condutas, e, num segundo momento, juntamente com o princípio da proporcionalidade dos delitos e das penas, cominar a sanção pertinente (ROBERTI, 2001, p. 73).

Com isso, o legislador deve impor a lei penal de acordo com a necessidade de proteção do bem jurídico levando em consideração aos atos cometidos pelos cidadãos, caso não haja outra solução para sua defesa de acordo com o momento vivido pela sociedade, limitando dessa forma, o poder de punir estatal como última forma de coerção.

É possível observar claramente o definição da Intervenção Mínima através da decisão abaixo prolatada pela 2ª Turma de Minas Gerais:

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO SIMPLES, EM SUA MODALIDADE TENTADA (CP, ART. 155, "CAPUT", C/C O ART. 14, II)- "RES FURTIVA" NO VALOR (ÍNFIMO) DE R$ 70,00 -DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF -"HABEAS CORPUS" DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENALCP15514II. - O princípio da insignificância -que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado -que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

(106510 MG , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 22/03/2011, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-112 DIVULG 10-06-2011 PUBLIC 13-06-2011).

Conforme a jurisprudência, a intervenção mínima encontra-se subsidiária ao princípio da Insignificância, visto que, tal princípio engloba fatores que ponderam a aplicação de sanção pelo Estado quando estritamente necessária.

Diante ao exposto, Damásio de Jesus reforça a limitação do Estado diante a intervenção penal imposta à sociedade:

Procurando restringir ou impedir o arbítrio do legislador, no sentido de evitar a definição desnecessária de crimes e a imposição de penas injustas, desumanas ou cruéis, a criação de tipos delituosos deve obedecer à imprescindibilidade, só devendo intervir o Estado, por intermédio do Direito Penal, quando os outros ramos do Direito não conseguirem prevenir a conduta ilícita (JESUS, 2003, p. 284).

Portanto, para que se evite a produção demasiada de normas severas, o Estado submete-se à aplicação de outras formas punitivas, com base no princípio em tela resguardado pela Constituição Federal em seu Artigo 5º Inciso XLVI, onde se elenca sanções proporcionais ao ato lesivo praticado.

Estes próximos princípios são garantias relativas ao delito, sendo o primeiro deles o Princípio da lesividade, nulla necessitas sine injuria, como ilustra Ferrajoli, “a necessária lesividade do resultado, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos, condiciona toda justificação utilitarista do direito penal como instrumento de tutela e constitui seu principal limite axiológico externo” (FERRAJOLI, 2002, (p.373-374). Desta feita, entende-se que esse princípio tutela a condição de punir do Estado quando lesado o bem jurídico.

O Princípio da Lesividade é também conhecido pela doutrina como Princípio da Ofensividade, em que esta é gênero, sendo a lesão caracterizada como apenas uma espécie. Luiz Flávio Gomes enfatiza que:

O princípio de ofensividade em sua máxima expressão garantista e material adverte que somente será objeto de criminalização e de sanção penal, o fato concretamente lesivo a bem jurídico relevante. Até o presente momento, o respectivo princípio não vem sendo reconhecido explicitamente nos modernos e democráticos ordenamentos constitucionais. Ademais, tendo como finalidade tutelar bens jurídicos relevantes, não se pode negar claro sentido político e limitador (GOMES, 2002, p. 102).

A ofensividade é, portanto, por inúmeras razões, uma exigência constitucional. Em um Estado Democrático de Direito, respeitador dos direitos e garantias fundamentais.

Trata-se de um Princípio Constitucional Implícito contido no artigo 5º inciso XXXIX, onde entende-se que tal princípio é conseqüência lógica do princípio da proporcionalidade, pois, como destaca PRIETRO “o princípio da lesividade é decorrente da proporcionalidade em sentido estrito” (PRIETRO, 2005 apud RIPOLLÉS, 2005, p. 34).

A Proporcionalidade consiste na ponderação entre direitos, valores, bens ou interesses em conflito. De modo que o legislador ao definir uma norma penal estará criando um conflito entre a liberdade individual e o direito de punir do Estado.

Para um melhor entendimento da matéria, dá-se em questão a Apelação julgada pela 5ª Câmara Criminal do Paraná como ilustração do princípio em tela:

APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO DE VULNERÁVEL - ARTIGO 217-A DO CP - CONSENTIMENTO DA OFENDIDA - PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE - AUSÊNCIA DE LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO - ABSOLVIÇÃO DO RÉU - RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO.217-ACP1. O princípio da ofensividade exclui a criminalização de atos que geraram lesões irrelevantes de bens jurídicos penalmente protegidos.2- As circunstâncias do caso em análise demonstram que não houve ofensa à liberdade sexual da vítima, posto que, além de a menor consentir com a prática da conjunção carnal, ela demonstra uma precoce maturidade sexual.

(7572918 PR 0757291-8, Relator: Marcus Vinicius de Lacerda Costa, Data de Julgamento: 21/07/2011, 5ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 688).

Posto isso, nota-se que, o bem jurídico analisado acima possui a possibilidade de aplicação de sanção por lesões impostas, porém o princípio da ofensividade pondera-o quando observa-se que no caso concreto em questão houve o consentimento da vítima, não ocasionando, dessa forma, lesividade relevante para o bem jurídico. Zafaroni em relação ao conceito do referido princípio elucida que:

[...] nenhum direito pode legitimar uma intervenção punitiva quando medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo (ZAFFARONI, 2003, p. 226).

Destaca-se que a atuação do direito penal encontra-se limitada, esclarecendo que onde não existe lesão ao bem jurídico tutelado não existe crime. Tornando este princípio garantia em favor do cidadão contra o poder do Estado.

Esse princípio em especial, que já foi analisado no primeiro capítulo dessa obra, é uma garantia a favor do cidadão contra a punibilidade do Estado, sendo que este apenas pune quando o bem jurídico tutelado for lesionado por terceiros, afastando, dessa forma, a punição sem necessidade, chave principal para essa pesquisa.

O Princípio da materialidade da ação ou exterioridade da ação, nulla injuria sine actione, que também está relacionado ao delito, garante a punição do autor apenas por sua ação ou omissão, visto que o direito penal é do fato e não do autor.

Ferrajoli explica, com mais clareza, esse princípio que é requisito substancial para o garantismo penal:

“De acordo com esse princípio, nenhum dano, por mais grave que seja, pode-se estimar penalmente relevante, senão como efeito de uma ação. Em consequência, os delitos, como pressupostos da pena, não podem consistir em atitudes ou estado de ânimo interiores, nem sequer, genericamente, em fatos, senão que devem se concretizar em ações humanas – materiais, físicas ou externas, quer dizer, empiricamente observáveis – passivas de serem descritas, enquanto tais, pela lei penal.” (FERRAJOLI, 2002, p.384)

Como bem elucidado acima, conclui-se que o direito penal é válido apenas quando há uma ação, não podendo, desta feita, punir o que está interiorizado no autor da suposta ação, tendo, para ser punida a ação, ser essa concretizada.

O Princípio da culpabilidade, nulla actio sine culpa, é o último relacionado ao delito, onde é analisado o caráter subjetivo, psicológico do autor, pois esse deve ter a intenção consciente de cometer o ato típico, como explica Ferrajoli, “por exigir dita condição, que corresponde ao chamado elemento subjetivo ou psicológico do delito, nenhum fato ou comportamento humano é valorado como ação se não é fruto de uma decisão; conseqüentemente, não pode ser castigado, nem sequer proibido [...]”.(FERRAJOLI, 2002, p.390) Diante disso entende-se que a ação delituosa deve ser punida se o autor quis fazer e se esse possui capacidade para compreender o que quer, buscando respostas em seu psicológico.

Buscando melhor esclarecimento acerca do tema, serão analisados os 10 axiomas propostos por Ferrajoli. O primeiro axioma a ser analisado referente ao processo é o Princípio da Jurisdição, nulla culpa sine iudicio, que para Ferrajoli é “a principal garantia processual que forma o pressuposto de todas as outras.” (FERRAJOLI, 2002, p.432) Esse princípio implica na obrigação que o Órgão Judicial tem de tipificar o fato ocorrido e enquadrá-lo nas normas, observando também a presunção de inocência.

O Princípio acusatório, nullum iudicium sine accusatione, também é peça importante referente ao processo, visto que, como Ferrajoli apresenta que esse axioma “comporta não só a diferenciação entre os sujeitos que desenvolvem funções judicantes e os que desenvolvem funções de postulação [...] mas também, e sobretudo, o papel de parte” (FERRAJOLI, 2002, p.455) Desta feita, entende-se que essa separação representa a imparcialidade do Juiz perante as partes, separando o órgão julgador do inquisitório, valorizando, assim, o contraditório.

O terceiro e o quarto axioma trazem os Princípios relacionados à prova, onde o Estado possui o ônus de provar a culpabilidade do agente – Princípio do ônus da prova, nulla accusatio sine probatione – e em contrapartida o agente, supostamente infrator, que possui direito de defesa respalda-se no Princípio da ampla defesa, conhecido também como Princípio do contraditório, nulla probatio sine defensione.

 Verifica-se que o garantista defende que quem comete um crime deve ser investigado, processado, condenado e punido

A breve análise sobre os axiomas de Ferrajoli feita nos parágrafos anteriores servirá de base para o próximo capítulo, que é um mix do que se foi apresentado até agora focando a crime de porte de arma de fogo desmuniciada, a fim de apresentar as duas correntes que versam sobre o tema em questão.

6. O PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA À LUZ DO GARANTISMO PENAL.

O Direito penal possui diversas classificações relacionadas à proteção do bem jurídico, para essa pesquisa ficar-se-á apenas com as de perigo, verificando, desta feita, a probabilidade de que a lesão ocorra para tipificar a conduta.

Nos crimes de perigo abstrato, como já visto no primeiro capítulo, a norma penal incrimina a conduta que simplesmente coloca em risco a tutela dos bens, possuindo assim a tipificação apenas com a probabilidade do dano e não com sua efetiva lesão. Com base nesse posicionamento, a Jurisprudência entende que:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO OCORRÊNCIA. CRIME DE MERA CONDUTA E DE PERIGO ABSTRATO. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Esta Corte firmou entendimento de ser irrelevante estar a arma estar desmuniciada, ou aferir sua eficácia, para configuração do tipo penal de porte ilegal de arma de fogo, por se tratar de delito de mera conduta ou de perigo abstrato, cujo objeto jurídico imediato é a segurança coletiva, subsume-se aos tipos descritos nos arts. 14 e 16 da Lei nº 10.826/03, não havendo se falar em atipicidade da conduta. 2. Agravo regimental improvido.

(STJ - AgRg no AREsp: 333461 DF 2013/0149689-5, Relator: Ministro CAMPOS MARQUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PR), Data de Julgamento: 25/06/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/07/2013)

Observa-se que a nobre corte considera ser irrelevante a arma estar municiada ou não; levando em consideração que o objeto jurídico é a segurança coletiva. Neste mesmo seguimento, o STF através de uma decisão de um Recurso Ordinário em Habeas Corpus, se coloca da seguinte maneira:

Ementa: PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ART. 10, CAPUT, DA LEI Nº 9.437/1997). ARMA DESMUNICIADA. TIPICIDADE. CRIME DE MERA CONDUTA OU PERIGO ABSTRATO. PRECEDENTES. TUTELA DA SEGURANÇA PÚBLICA E DA PAZ SOCIAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS DESPROVIDO. 1. A arma de fogo mercê de desmuniciada mas portada sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar configura o delito de porte ilegal previsto no art. 10, caput, da Lei nº 9.437/1997, crime de mera conduta e de perigo abstrato. 2. Deveras, o delito de porte ilegal de arma de fogo tutela a segurança pública e a paz social, e não a incolumidade física, sendo irrelevante o fato de o armamento estar municiado ou não. Tanto é assim que a lei tipifica até mesmo o porte da munição, isoladamente. Precedentes: HC 104206/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJ de 26/8/2010; HC 96072/RJ, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, Dje de 8/4/2010; RHC 91553/DF, rel. Min. Carlos Britto, 1ª Turma, DJe de 20/8/2009. 3. In casu, o paciente foi preso em flagrante, em via pública, portando uma pistola 6.35, marca “Brownings Patent Depose”, sendo a arma apreendida, periciada e atestada sua potencialidade lesiva. 4. Recurso ordinário em habeas corpus desprovido.

(STF - RHC: 116280 ES , Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 25/06/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-159 DIVULG 14-08-2013 PUBLIC 15-08-2013)

Como afirma o STF no recurso acima citado, portar arma de fogo estando municiada ou não já constitui crime de mera conduta e de perigo abstrato, tendo como base que até mesmo portar munição ou acessório isoladamente é crime. Por outro lado, o STF também afirma não estar pacificado esse entendimento, como podemos ver na seguinte decisão:

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. TIPIFICAÇÃO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESTA PARTE, DENEGADA. A questão relativa à atipicidade ou não do porte ilegal de arma de fogo sem munição ainda não foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal. Há precedentes tanto a favor do reconhecimento da atipicidade da conduta (HC 99.449, rel. para o acórdão min. Cezar Peluso, DJ de 12.2.2010), quanto no sentido da desnecessidade de a arma estar municiada (HC 96.072, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe de 9.4.2010; RHC 91.553, rel. min. Carlos Britto, DJe de 21.8.2009). Há que prevalecer a segunda corrente, especialmente após a entrada em vigor da Lei 10.826/2003, a qual, além de tipificar até mesmo o simples porte de munição (art. 14), não exige, para a caracterização do crime de porte ilegal de arma de fogo, que esta esteja municiada, segundo se extrai da redação do art. 14 daquele diploma legal. Além disso, o trancamento de ação penal é medida reservada a hipóteses excepcionais, como “a manifesta atipicidade da conduta, a presença de causa de extinção da punibilidade do paciente ou a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas” (HC 91.603, rel. Ellen Gracie, DJe-182 de 25.09.2008), o que, como visto, não é caso. As demais alegações do impetrante não foram submetidas nem ao TJCE, nem ao STJ, o que inviabiliza a sua apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de supressão de instância. De mais a mais, o prazo concedido pelo legislador ordinário para o registro de arma, que constituiria uma espécie de vacatio legis indireta, foi destinado aos proprietários e possuidores de arma de fogo, conduta abrangida pelo art. 12 da Lei 10.826/2003, e não àqueles acusados de porte ilegal, previsto no art. 14 da mesma norma, como é o caso do paciente. Habeas corpus parcialmente conhecido e, na parte em que conhecido, denegado.

(STF - HC: 96759 CE , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 28/02/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-113 DIVULG 11-06-2012 PUBLIC 12-06-2012 EMENT VOL-02655-01 PP-00001)
 

Sendo assim, a interpretação do crime o porte ilegal de arma de fogo desmuniciada como crime de perigo abstrato seria inconstitucional, visto que sua tipificação viola os princípios da lesividade e da intervenção mínima, princípios esses que são parte importante da teoria garantista, considerados como axiomas fundamentais. Pois no garantismo penal de Ferrajoli, uma conduta para ser considerada criminosa, deverá ter efetiva e concreta lesão ao bem jurídico.

Pelo exposto, o garantismo penal apresentado nesse capítulo embasa a Constituição Federal Brasileira, devendo o Estado, por ser Democrático de Direito, respeitá-las a favor da defesa dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, ressaltando a liberdade, não tendo por isso justificativa para a aplicação punível ao agente da conduta apresentada, já que não possui tal lesividade.

E com base nesse entendimento que a sexta turma do STJ vêm decidindo pela atipicidade da conduta, como apresenta-se a seguir pelo informativo de nº 491:

PORTE. ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. MUNIÇÃO INCOMPATÍVEL.

In casu, o paciente foi flagrado em via pública com uma pistola calibre 380 com numeração raspada e um cartucho com nove munições, calibre 9 mm, de uso restrito. Em primeiro grau, foi absolvido do porte de arma, tendo em vista a falta de potencialidade lesiva do instrumento, constatada por meio de perícia. Entendeu, ainda, o magistrado que não se justificaria a condenação pelo porte de munição, já que os projéteis não poderiam ser utilizados. O tribunal a quo deu provimento ao apelo ministerial ao entender que se consubstanciavam delitos de perigo abstrato e condenou o paciente, por ambos os delitos, a quatro anos e seis meses de reclusão no regime fechado e vinte dias-multa. A Turma, ao prosseguir o julgamento, após o voto-vista do Min. Sebastião Reis Júnior, denegando a ordem de habeas corpus, no que foi acompanhado pelo Min. Vasco Della Giustina, e o voto da Min. Maria Thereza de Assis Moura, acompanhando o voto do Min. Relator, verificou-se o empate na votação. Prevalecendo a situação mais favorável ao acusado, concedeu-se a ordem de habeas corpus nos termos do voto Min. Relator, condutor da tese vencedora, cujo entendimento firmado no âmbito da Sexta Turma, a partir do julgamento do AgRg no REsp 998.993-RS, é que, "tratando-se de crime de porte de arma de fogo, faz-se necessária a comprovação da potencialidade do instrumento, já que o princípio da ofensividade em direito penal exige um mínimo de perigo concreto ao bem jurídico tutelado pela norma, não bastando a simples indicação de perigo abstrato." Quanto ao porte de munição de uso restrito, apesar de tais munições terem sido aprovadas no teste de eficiência, não ofereceram perigo concreto de lesão, já que a arma de fogo apreendida, além de ineficiente, era de calibre distinto. O Min. Relator ressaltou que, se a Sexta Turma tem proclamado que é atípica a conduta de quem porta arma de fogo desmuniciada, quanto mais a de quem leva consigo munição sem arma adequada ao alcance. Aliás, não se mostraria sequer razoável absolver o paciente do crime de porte ilegal de arma de fogo ao fundamento de que o instrumento é ineficiente para disparos e condená-lo, de outro lado, pelo porte da munição.

Precedente citado: AgRg no REsp 998.993-RS, DJe 8/6/2009. HC 118.773-RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 16/2/2012.

Verifica-se que a Jurisprudência citada acima confirma que a ausência da potencialidade lesiva, não há que se falar em crime, pois não houve o mínimo de mínimo de perigo concreto. Em relação à atipicidade da conduta, o STF decidiu que:

“Arma de fogo: porte consigo de arma de fogo, no entanto, desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do fato: 1. Para a teoria moderna - que dá realce primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de crime de mera conduta - no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação - não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato. 2. É raciocínio que se funda em axiomas da moderna teoria geral do Direito Penal; para o seu acolhimento, convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige a exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador, de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo abstrato ou presumido: basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que a regra incriminadora os comporte. 3. Na figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo. 4. Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis mediante ameaça - pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos - da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena. 5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica”.

(STF - RHC: 81057 SP , Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 24/05/2004, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 29-04-2005 PP-00030 EMENT VOL-02189-02 PP-00257 RTJ VOL-00193-03 PP-00984)

De acordo com a Jurisprudência acima, verifica-se que o agente, quando possui arma de fogo em sua posse e não possui de pronto emprego a munição, não há o que se falar em lesão jurídica alguma, tornando a conduta atípica materialmente. Recentemente tem-se o seguinte julgado:

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E MUNIÇÃO. PERÍCIA. ARMA CONSIDERADA ABSOLUTAMENTE INEFICAZ. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA.

1. De acordo com o entendimento firmado no âmbito da Sexta Turma, para se ter por configurada a tipicidade material do porte ilegal de arma de fogo, necessária a comprovação da eficiência do instrumento, isto é, a sua potencialidade lesiva.

2. No caso, a arma de fogo, apreendida e submetida a perícia, era inapta à produção de disparos.

3. Em relação às munições de uso restrito, conquanto aprovadas no teste de eficiência, não ofereceram perigo concreto de lesão, já que a arma de fogo apreendida, além de ineficiente, era de calibre distinto.

4. Se este órgão fracionário tem proclamado que a conduta de quem porta arma de fogo desmuniciada é atípica, quanto mais a de quem leva consigo munição sem arma adequada ao alcance.

5. Ordem concedida.

(HC 118.773/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 16/02/2012, DJe 18/06/2012)

Conclui-se, por parte dessa, que o porte de arma de fogo desmuniciada, é incapaz de geral perigo real, visto que tal conduta não representa perigo efetivo sendo por desnecessária a imposição de uma sanção penal ao agente da conduta.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia teve por objeto a análise do crime do porte ilegal de arma de fogo desmuniciada à luz dos crimes de perigo abstrato, visando analisar os argumentos e divergências que sustentam as duas vertentes em questão.

A primeira corrente neste assunto, defende que a mera conduta já tipifica o crime, sem haver a necessidade de ter o bem jurídico lesado. Por outro lado, alguns doutrinadores e jurisprudências, vão em desencontro a esse entendimento, afirmando que essa tipificação vai contra os princípios existentes na Carta Magna, onde só poderá ser punido o agente que em sua ação lesionar de forma efetiva e concreta o bem jurídico. Esta mesma corrente busca assegurar que o Estado não utilize de forma abusiva o Direito Penal, visto que esse só deve ser usado em graus extremos resguardando, desta feita as garantias fundamentais do cidadão.

Entretanto, o Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826 de 2003, traz em seu artigo 14 o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, que tipifica o porte ilegal da arma, de sua munição e de seu acessório, mesmo que separados entre si, deixando assim uma brecha a ser analisada de formas diferentes pelo aplicador da lei, visto que não possui expressamente o porte desmuniciada.

Ao final dessas análises, proporcionou-se o estudo da Teoria do Garantismo penal, a fim de enfatizar a análise em tela, teoria essa do jurista Luigi Ferrajoli que foi utilizada como embasamento teórico nesta pesquisa. Para Ferrajoli, a teoria garantista, que por sua vez visa minimizar o poder estatal, destacam-se como ponto mais importante do garantismo penal os dez axiomas estabelecidos, sendo vistos como garantias do cidadão em que um decorre do outro como condição da aplicação referente à pena, ao delito e ao processo. Deixando assim, sua intervenção apenas quando se fizer de extrema importância e levando em consideração a análise da aplicação da pena aos cidadãos; se é justa ou não sua pretensão punitiva, pois deve ser utilizado quando não mais houver outro jeito para sanar condutas lesivas de relevante valor social.

Deve-se levar em consideração que os axiomas de Ferrajoli podem ser encontrados na Constituição Federal de 1988, na qual busca proteger as garantias e limitar o poder Estatal.

Por isso entende-se que, se a Constituição é garantista, se os axiomas protegem os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e se um deles é o princípio da lesividade, logo, conclui-se que o porte ilegal de arma de fogo desmuniciada não pode ser tipificado.

Com essa noção, verifica-se que atualmente existem, duas vertentes sendo que a primeira consiste nos juristas defensores de um rigoroso e atuante direito penal, mesmo que acarrete a omissão de alguns direitos individuais em prol do interesse coletivo, objetivando uma rápida e exemplar punição, enquanto que, por outro lado, existem juristas que defendem um Direito mais humano, onde haja a efetiva punição ao infrator, mas respeitando a dignidade da pessoa humana e que busquem um julgamento mais justo com garantia aos direitos individuais.

No exemplo citado anteriormente, o STJ considerava o crime de porte ilegal de arma de fogo desmuniciada como de perigo concreto, necessitando então da munição para concretizá-lo, visto que a munição não era compatível com o calibre da arma não ocasionando perigo eminente e concreto, tornou assim esse crime atípico, pois se faz necessária a potencialidade da arma para caracterizar crime.

É por esse e outros motivos elencados no presente trabalho que alguns magistrados e doutrinadores vem defendendo a atipicidade do crime de porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, baseado no princípio da Intervenção Mínima citado nesta pesquisa por Maura Roberti onde a mesma questiona os critérios utilizados para a elaboração de critérios penais, e no princípio da ofensividade citado por Luiz Flávio Gomes que consiste na expressão garantista material, onde somente poderá ser criminalizado o fato concreto que causa lesividade ao bem jurídico relevante.

Com base no exposto, o objetivo do presente trabalho foi de defender a impossibilidade de sua tipificação, buscando uma melhor solução no caso concreto fundamentado nos entendimentos existentes dos princípios, doutrinas e jurisprudências referentes ao crime de arma de fogo desmuniciada.

8. REFERÊNCIAS

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Publicado por: Rodrigo de Assis Rezende

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