Crime de Apropriação Indébita Previdenciária: atipicidade antes da constituição definitiva do débito tributário na esfera administrativa

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1. RESUMO

Trata-se de pesquisa acerca do delito de apropriação indébita previdenciária, disposto no artigo 168-A do Código Penal Brasileiro, e de sua tipicidade ante a discussão administrativa de eventuais contribuições previdenciárias não recolhidas aos cofres da Previdência Social. A discussão irá abordar a relação entre os campos do direito que envolvem os crimes tributários e a forma mais adequada de se discutir a ausência de recolhimento de contribuições, com constante auxílio doutrinário e jurisprudencial. Apesar da falta de clareza legal quanto ao tema abordado, a jurisprudência vem preenchendo as lacunas de forma satisfatória e justa. A problemática é evidenciada no presente trabalho desde as origens históricas do tipo penal pesquisado, colhendo-se os primórdios legais na tentativa de se entender a real motivação do legislador ao tipificar o delito de não recolhimento de contribuições previdenciárias pelo empregador. Nesse diapasão, também é analisada a origem das contribuições previdenciárias e seu caráter tributário. Após analisados os passos introdutórios, adentra-se na esfera penal propriamente dita: analisa-se o caráter do crime, se material ou formal, a importância do processo administrativo prévio para a consumação do crime; bem como se é útil a utilização do aparelhamento estatal antes da confirmação administrativa quanto à materialidade do crime e a consequente necessidade – ou não – de instauração de inquérito policial ou ação penal. Toda a pesquisa é pautada nos princípios basilares do Direito Penal, como por exemplo a ultima ratio e a fragmentariedade, também resguardados pela Constituição Federal, no caso do princípio da reserva legal. Portanto, a análise revela a necessidade de discussão no âmbito penal apenas para as condutas consideradas mais graves no Direito, contra bens mais significantes.

Palavras-chave: apropriação indébita previdenciária, Direito Penal, Direito Tributário, tipicidade, discussão administrativa.

2. INTRODUÇÃO

Busca-se com o presente trabalho expor as principais particularidades do crime de apropriação indébita previdenciária, inserido no artigo 168-A do Código Penal Brasileiro pela Lei nº 9.983, de 17 de julho de 2000.

O principal objetivo dessa pesquisa é analisar e avaliar a tipicidade do delito descrito no artigo 168-A do Código Penal antes do exaurimento da via administrativa, bem como demonstrar a melhor forma de tratamento a tal delito.

Esse objetivo principal tem evidente reflexo na esfera penal de discussão dos delitos, e demonstra a necessidade de comunicação e adaptação das áreas do direito para convergirem em um ponto comum.

Consequentemente, para chegar à conclusão acerca da tipicidade ou atipicidade do delito de apropriação indébita previdenciária, deve-se indicar se tal delito tem caráter formal ou material, com base nos pensamentos dos mais seletos doutrinadores, bem como na jurisprudência mais atualizada.

Imperioso investigar também o caráter das contribuições sociais, objeto do crime, e o bem jurídico tutelado pelo tipo, bem como deve se esmiuçar o histórico do delito referido. Tal pesquisa há de ser realizada em conjunto com as mais diversas áreas do direito pertinentes ao tema, ganhando notória importância o direito penal e processual penal, o previdenciário e o tributário.

Nesse mesmo diapasão, deve-se verificar a possibilidade de ser dado o mesmo tratamento dos crimes tributários (em especial, os materiais) a tal delito, principalmente com relação à Sumula Vinculante nº 24 do STF, o que, por sua vez, leva-se a investigar os seus efeitos no âmbito penal, principalmente se pode haver instauração de ação penal antes de se finalizar os procedimentos na esfera administrativa, ou constituição definitiva do débito.

Toda essa análise será verificada com amparo nos princípios informativos basilares do direito penal e do direito tributário. Tudo para que se crie uma indagação acerca da necessidade e utilidade das penas impostas pela legislação aos crimes tributários. Tal questionamento tem maior relevo quando se constata que o crime em questão ainda é passível de decisão na esfera administrativa, o que pode acabar por mudar totalmente os rumos de eventual ação penal.

Diante dos pontos mais importantes a serem debatidos, introduzidos nessa breve apresentação, busca-se esclarecer as principais dúvidas quanto ao assunto, para que não reste dúvidas quanto à necessidade de prévio exaurimento da esfera administrativa antes de se iniciar ação criminal com fundamento em delito de caráter tributário.

3. BREVE HISTÓRICO DO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

Para tratar do delito de apropriação indébita previdenciária, hoje descrito no artigo 168-A do Código Penal Brasileiro, faz-se necessário traçar um histórico recente da origem do delito, para sua melhor compreensão.

Ao esmiuçar a origem do delito tema do presente trabalho, eventuais esclarecimentos surgirão, auxiliando em questões a serem tratadas adiante, ao longo desse artigo. Essa abordagem histórica preliminar é precípua para o bom entendimento do delito, bem como para evidenciar qual o tratamento devido deve ser dispensado ao crime, conforme a intenção do legislador.

A análise histórica do crime em comento também auxiliará na completa compreensão do tipo penal e de toda sua complexidade, a qual afeta o direito penal, previdenciário e tributário, bem como está intrínseco ao processo administrativo tributário e ao processo penal.

Pois bem, a melhor abordagem do histórico do delito tipificado no artigo 168-A do CP encontra-se na obra coordenada por Alberto Silva Franco e Rui Stoco (2007, p. 848-856). A origem do delito de apropriação indébita previdenciária é comumente lembrada como advinda da Lei nº 8.212/91, a qual dispõe sobre a organização da Seguridade Social.

Dispunha o artigo 95 da referida lei sobre os crimes “contra a previdência”. A alínea “d”, mais especificamente, tratava do crime em comento: “d) deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público;”. Entretanto, crimes contra a seguridade social já haviam sido tipificados antes mesmo da edição da Lei de Seguridade Social.

A título de exemplo, e em sintonia com o presente estudo, pode-se citar o artigo 5º do Decreto-Lei nº 65/37, o qual “considerava criminoso o procedimento do empregador que não recolhia, na época própria, as contribuições arrecadadas de seus empregados” (FRANCO; STOCO, 2007, p. 848-856).

Também é possível citar o artigo 155 da Lei nº 3.807/60, em equiparação a outros crimes já existentes à época, especificamente seus incisos I e II (sonegação fiscal e apropriação indébita, respectivamente). Nesse ponto, revela-se que era considerada sonegação a omissão em incluir, na folha de pagamento dos salários, empregados sujeitos ao desconto das contribuições previstas na lei, bem como deixar de lançar, em títulos próprios de sua escrituração mercantil, em cada mês, o montante das quantias descontadas de seus empregados e o da correspondente contribuição da empresa (alíneas a e b do inciso I).

Destaca-se o inciso II do referido artigo, pois já mencionava o termo apropriação indébita após a inserção textual efetuada pelo Decreto-lei nº 66, de 1966.

Ambas omissões referenciam-se ao artigo 80 da Lei nº 3.807/60:

Art. 80. As emprêsas sujeitas ao regime desta Lei são obrigadas a:

I - preparar fôlhas de pagamento dos salários de seus empregados, nas quais anotarão os descontos realizados para a previdência social;(Incluído pelo Decreto-lei nº 66, de 1966)

Il - lançar, em títulos próprios de sua escrituração mercantil, cada mês, o montante das quantias, descontadas de seus empregados, o da correspondente contribuição da emprêsa e o que foi recolhido à previdência social. (Incluído pelo Decreto-lei nº 66, de 1966)

III - entregar ao órgão arrecadador da previdência social, anualmente, por ocasião do recolhimento relativo ao mês subseqüente ao do balanço, cópia autenticada dos registros contábeis relativos ao montante dos lançamentos correspondentes a importâncias devidas à previdência social e das quantias a ela pagas, com discriminação, mês a mês, das respectivas parcelas. (Incluído pelo Decreto-lei nº 66, de 1966)

Parágrafo único. Os comprovantes discriminativos dêsses lançamentos deverão ser arquivados na emprêsa, durante (5) cinco anos, para para os efeitos do artigo 81. (Incluído pelo Decreto-lei nº 66, de 1966)

Após a Lei nº 3.807/60 foi promulgada então a Lei nº 8.212/91, a qual se apoiava expressamente no artigo 5º da Lei nº 7.492/86 para caracterização do delito de apropriação indébita previdenciária. Senão, veja-se o texto do § 1º do artigo 95 da Lei de Seguridade Social: “No caso dos crimes caracterizados nas alíneas "d", "e" e "f" deste artigo, a pena será aquela estabelecida no art. 5º da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, aplicando-se à espécie as disposições constantes dos arts. 26, 27, 30, 31 e 33 do citado diploma legal”.

Por seu turno, o texto do artigo 5º da lei 7.492/86 indicava o seguinte: “Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio”. As pessoas mencionadas no artigo 25 da referida Lei são os responsáveis por instituições financeiras, quais sejam o controlador e os administradores, assim considerados os diretores, gerentes, equiparados a eles o interventor, o liquidante ou o síndico.

Defende-se ainda que “a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, de seu turno, também tratou do crime em análise em seu artigo 2º, inciso II” (PRADO, 2013, p. 537).

Por fim, o legislador revogou expressamente o art. 95 da Lei nº 8.212/91, com a promulgação da Lei nº 9.983, de 17 de julho de 2000, alterando o Código Penal e inserindo em seu texto o delito de apropriação indébita previdenciária, dentre outros. No mesmo diapasão, é evidente que o novo regramento também derrogou o texto da Lei nº 8.137/90 pertinente à contribuição social, em convergência com o entendimento exposto acima, de Luiz Régis do Prado, acerca do artigo 2º, II, da Lei nº 8.137/93.

Intrinsicamente ligado ao tema em debate, o artigo 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, modificado posteriormente pela Lei nº 12.350, de 20 de dezembro de 2010, dispõe o seguinte:

Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente. (Redação dada pela Lei nº 12.350, de 2010)

O referido artigo, inclusive, foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1571/DF, requerida pelo Procurador-Geral da República. Contudo, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, à maioria, decidiram corretamente pela improcedência da Ação, sob o argumento de que o artigo impugnado não é direcionado ao Ministério Público, mas sim aos agentes do Fisco. Veja-se a Ementa referente à citada Ação:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 83 da Lei no 9.430, de 27.12.1996. 3. Argüição de violação ao art. 129, I da Constituição. Notitia criminis condicionada "à decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário". 4. A norma impugnada tem como destinatários os agentes fiscais, em nada afetando a atuação do Ministério Público. É obrigatória, para a autoridade fiscal, a remessa da notitia criminis ao Ministério Público. 5. Decisão que não afeta orientação fixada no HC 81.611. Crime de resultado. Antes de constituído definitivamente o crédito tributário não há justa causa para a ação penal. O Ministério Público pode, entretanto, oferecer denúncia independentemente da comunicação, dita "representação tributária", se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo. 6. Não configurada qualquer limitação à atuação do Ministério Público para propositura da ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. 7. Improcedência da ação (ADI 1571, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 30-04-2004 PP-00027 EMENT VOL-02149-02 PP-00265)

Com essa breve passagem histórica, baseada principalmente na legislação e com apoio na jurisprudência e doutrina, percebe-se a complexidade do delito de apropriação indébita previdenciária, o qual esteve inserido em diversas leis. A apropriação indébita previdenciária recebeu, por vezes, tratamento de crime tipicamente tributário, ou contra a ordem tributária, bem como foi alvo de inúmeras ações judiciais.

Com a inserção do crime de apropriação indébita previdenciária no capítulo de Crimes contra o Patrimônio do Código Penal Brasileiro, logo após o delito de apropriação indébita (art. 168), muitas divergências tomaram conta no âmbito acadêmico-doutrinário e jurisprudencial. Até mesmo a denominação deste tipo penal repercute nas discussões do direito brasileiro.

Críticas à opção legislativa foram constantes, e os doutrinadores mais respeitados defendiam a manutenção do crime em legislação especial, como o fora anteriormente. Nessa corrente, destaca-se que:

A distribuição dos acréscimos pela Parte Especial do código Penal deu-se na forma de um polvilhar aleatório e assistemático. Assim, temos, agora, verdadeiros crime contra a arrecadação tributária inseridos dentro do título II, dedicado aos crimes contra o patrimônio, é o caso do novel art. 168-A (FRANCO; STOCO, 2007, p. 851 apud ESTELLITA, 2001, p. 70-90).

Ainda baseando-se na doutrina de Franco e Stoco, insta relembrar que o empresário, costumeiro sujeito ativo do crime de apropriação indébita previdenciária, não chega a receber a contribuição previdenciária do trabalhador. Quando há o pagamento do salário pelo empregador, a contribuição já é descontada, de forma que permanece sempre em poder do empresário. Diante disso, não é cabível a interpretação de existência de um típico crime patrimonial, como o é a apropriação indébita do artigo 168 do Código Penal.

4. CARACTERÍSTICAS DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS

Uma vez expostas a origem e o percurso histórico do delito em estudo, bem como a confusão legislativa relativa ao crime referido, outro elemento do tipo ainda é alvo de dúvidas: a natureza das “contribuições recolhidas dos contribuintes”. Sua natureza jurídica, por óbvio, influencia na correta exegese do tipo, e evidencia o verdadeiro bem jurídico a ser tutelado.

Para elucidar o caso, observa-se a melhor doutrina, que leciona o seguinte:

Embora não se possa desconsiderar a aparente semelhança existente entre os delitos de apropriação indébita e apropriação indébita previdenciária, ambos não se confundem. Trata-se esta última, segundo alguns, de delito patrimonial com caráter público. Não se pode olvidar que a melhor doutrina enfoca a contribuição social como um instituto de natureza tributária, que pode ser conceituado como ‘espécie de tributo com finalidade constitucionalmente definida, a saber, intervenção no domínio econômico, interesse de categorias profissionais ou econômicas e seguridade social’(PRADO, 2013, p. 538 apud MACHADO, 2013, p. 423).

Diante do presente imbróglio, destaca-se ainda a doutrina previdenciária, específica ao caso, para extirpar dúvidas quanto à natureza jurídica das contribuições sociais, ou melhor, contribuições previdenciárias. Essa conceituação servirá de base para as discussões a serem tomadas à frente, para melhor definição do delito de apropriação indébita previdenciária.

Pois bem, Wladimir Novaes Martinez, introduzindo o capítulo XXIV de sua obra, denominado ‘natureza jurídica da contribuição’, assim determina: “a natureza jurídica da exação previdenciária é a área na qual o direito previdenciário mais se relaciona com o direito tributário” (2010, p. 206).

Seguindo esse posicionamento, não é outro o entendimento de Castro e Lazzari, os quais se filiam à “orientação que predominou na doutrina e na jurisprudência após a Constituição de 1988, de que as contribuições destinadas ao financiamento de Seguridade Social possuem natureza jurídica tributária (2011, p. 238)”.

Seguem essa compreensão inúmeros doutrinadores, especializados nas diversas áreas do direito, com destaque para os tributaristas Hugo de Brito Machado (2013, p. 422) e Harada: “... a contribuição social é espécie tributária vinculada à atuação indireta do Estado (2009, p. 310).”

Portanto, diante dessa característica fundamental, trata o delito de apropriação indébita previdenciária de um crime tipicamente tributário, que visa à proteção do sistema arrecadatório da previdência social, conforme disposto no art. 149 da Carta Magna, constante no Título VI – Da Tributação e do Orçamento, Capítulo I – Do Sistema Tributário Nacional:

Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.

Nada obstante, conveniente demonstrar o entendimento adotado nas cortes brasileiras, em especial nas cortes superiores. O Supremo Tribunal Federal, em Ação Declaratória de Constitucionalidade, assim definiu:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE - PROCESSO OBJETIVO DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO - A NECESSÁRIA EXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA JUDICIAL COMO PRESSUPOSTO DE ADMISSIBILIDADE DA AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE - AÇÃO CONHECIDA. - O ajuizamento da ação declaratória de constitucionalidade, que faz instaurar processo objetivo de controle normativo abstrato, supõe a existência de efetiva controvérsia judicial em torno da legitimidade constitucional de determinada lei ou ato normativo federal. Sem a observância desse pressuposto de admissibilidade, torna-se inviável a instauração do processo de fiscalização normativa "in abstracto", pois a inexistência de pronunciamentos judiciais antagônicos culminaria por converter, a ação declaratória de constitucionalidade, em um inadmissível instrumento de consulta sobre a validade constitucional de determinada lei ou ato normativo federal, descaracterizando, por completo, a própria natureza jurisdicional que qualifica a atividade desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal. - O Supremo Tribunal Federal firmou orientação que exige a comprovação liminar, pelo autor da ação declaratória de constitucionalidade, da ocorrência, "em proporções relevantes", de dissídio judicial, cuja existência - precisamente em função do antagonismo interpretativo que dele resulta - faça instaurar, ante a elevada incidência de decisões que consagram teses conflitantes, verdadeiro estado de insegurança jurídica, capaz de gerar um cenário de perplexidade social e de provocar grave incerteza quanto à validade constitucional de determinada lei ou ato normativo federal. (...) A CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL POSSUI DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL ESPECÍFICA. - A contribuição de seguridade social não só se qualifica como modalidade autônoma de tributo (RTJ 143/684), como também representa espécie tributária essencialmente vinculada ao financiamento da seguridade social, em função de específica destinação constitucional. A vigência temporária das alíquotas progressivas (art. 2º da Lei nº 9.783/99), além de não implicar concessão adicional de outras vantagens, benefícios ou serviços - rompendo, em conseqüência, a necessária vinculação causal que deve existir entre contribuições e benefícios (RTJ 147/921) - constitui expressiva evidência de que se buscou, unicamente, com a arrecadação desse plus, o aumento da receita da União, em ordem a viabilizar o pagamento de encargos (despesas de pessoal) cuja satisfação deve resultar, ordinariamente, da arrecadação de impostos. Precedente: ADI 2.010-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO.(ADC 8 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/1999, DJ 04-04-2003 PP-00038 EMENT VOL-02105-01 PP-00001)

No mesmo tom, a compreensão do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. APOSENTADO PELO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL (RGPS). RETORNO À ATIVIDADE.POSSIBILIDADE DE COBRANÇA. REPETIÇÃO. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL. 5 (CINCO) ANOS. AÇÃO AJUIZADA APÓS A VIGÊNCIA DA LEI COMPLEMENTAR Nº 118/1995. MÉRITO. ART. 12, § 4º, DA LEI Nº 8.212/1991 (REDAÇÃO DA LEI Nº 9.032/1995). TEMA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO ADMITIDO COM BASE NA JURISPRUDÊNCIA A RESPEITO DO MÉRITO. AUSÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

1. "Ação previdenciária de repetição de indébito de contribuições previdenciárias" ajuizada em 7.4.2008, buscando o autor, que foi aposentado pelo RGPS e que voltou à atividade, ser restituído os valores descontados indevidamente a título de contribuição previdenciária.

2. "As contribuições sociais, inclusive as destinadas a financiar a seguridade social (CF, art. 195), têm, no regime da Constituição de 1988, natureza tributária. Por isso mesmo, aplica-se também a elas o disposto no art. 146, III, b, da Constituição, segundo o qual cabe à lei complementar dispor sobre normas gerais em matéria de prescrição e decadência tributárias, compreendida nessa cláusula inclusive a fixação dos respectivos prazos. Conseqüentemente, padece de inconstitucionalidade formal o artigo 45 da Lei 8.212, de 1991, que fixou em dez anos o prazo de decadência para o lançamento das contribuições sociais devidas à Previdência Social" (AI no REsp 616.348, Corte Especial, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 15.10.2007).

3. No que diz respeito aos tributos sujeitos a lançamento por homologação, aplica-se às ações de repetição ajuizadas a partir de 9.6.2005 a norma do art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005, adotando-se como termo inicial do prazo prescricional de 5 (cinco) anos a(s) data(s) do(s) pagamento(s) efetuado(s). Precedentes.

(...)

(REsp 1120094/PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/08/2013, DJe 22/08/2013)

Até mesmo súmula vinculante foi editada, revelando a natureza dos créditos provenientes de contribuições sociais, referentes à Lei nº 8.212/91. É o teor da súmula vinculante nº 8, do Supremo Tribunal Federal: “são inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-Lei nº 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência de crédito tributário”.

Apesar do posicionamento demonstrado pelos tribunais superiores, por vezes a jurisprudência revela diverso entendimento. Na jurisdição de tribunais federais não é diferente, existindo muita divergência, assim como é no campo doutrinário.

Os recentes julgados do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, demonstrando o melhor entendimento, defendem a natureza tributária nas contribuições previdenciárias:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. ART. 168-A/CÓDIGO PENAL. SENTENÇA TRABALHISTA. LANÇAMENTO DEFINITIVO: CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE.  1. A apropriação indébita previdenciária (ART. 168-A/CP), ainda que seja tida como crime comissivo por omissão (omissivo impróprio), contém núcleos omissivos ("deixar de repassar", "deixar de recolher" e "deixar de pagar") que produzem resultados naturalísticos que a lei define como crime, o que implica autuação, com a cobrança do tributo ou da quantia não recolhida ou não paga, exigindo o lançamento definitivo como condição objetiva de punibilidade (STF - HC 81.611/DF).  2. Ainda que a existência do crédito tributário, atestado pela sentença trabalhista (art. 114, VIII - CF), possa servir de elemento para que o fisco dê início do lançamento, ela, isolada, não se afigura suficiente em termos penais, como condição objetiva de punibilidade, não somente porque a justiça do trabalho não trabalha tanto com a certeza fática, como também porque compete ao fisco, privativamente, constituir o crédito tributário pelo lançamento (art. 142 - CTN), por procedimento próprio, a partir da contabilidade da empresa.  3. Apelação não provida. (ACR 0028154-31.2008.4.01.3800 / MG, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES, QUARTA TURMA, e-DJF1 p.97 de 23/04/2014)

Fato é que a corrente majoritária adota a concepção tributária das contribuições previdenciárias quando tratam de sua natureza. Contudo, o ponto de maior discordância está além do campo material, e encontra-se na esfera processual.

Os conceitos expostos são basilares e definirão os rumos do presente estudo, convergindo para um entendimento mais adequado quanto ao tipo penal e seu devido processamento.

Resumindo bem o exposto até então, o ensinamento de Kiyoshi Harada:

O certo é que nos chamados crimes tributários é indispensável levar em conta, de um lado, os princípios de Direito Penal, o exame do aspecto subjetivo do agente, as causas excludentes de criminalidade, etc., e, de outro lado, levar em conta os princípios e noções de Direito Tributário, porque frequentemente as hipóteses criminais fazem referência a conceitos específicos do ramo de direito tributário, se perder de vista o objetivo da criminalização no campo tributário. Não seria possível, por exemplo, saber se houve ou não crime de sonegação tributária sem saber exatamente o que é e como surge um tributo (HARADA, 2012, p. 95).

Após essa breve passagem histórica da origem do delito de apropriação indébita previdenciária, bem como a exposição da acepção doutrinária e jurisprudencial mais correta no tocante à sua natureza jurídica, o delito em estudo deve ser tratado como verdadeiro crime tributário. Esse tratamento leva ao melhor esclarecimento e sistematização das medidas e procedimentos a serem tomados quando o crime do art. 168-A do Código Penal estiver em questão.

5. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA: CRIME FORMAL OU MATERIAL?

A problemática apresentada segue agora por outra via de discussão, a qual influencia o problema central no que toca à apropriação indébita previdenciária: sua atipicidade antes da constituição definitiva do débito na esfera administrativa. O ponto de discussão atual é justamente a verificação quanto ao tipo do delito apresentado, se é material ou formal, de resultado ou de mera conduta.

Ao analisar tal característica delitiva, é possível definir o marco inicial do crime e identificar sua consumação, o iter criminis. Para o tipo definido no artigo 168-A do CP, essa informação é essencial para o sujeito passivo do débito tributário a ser discutido, com evidente importância ao manejo do direito à ampla defesa e ao contraditório, desde a esfera administrativa à esfera penal.

Imperioso ressaltar que nos casos de crimes com natureza tributária, mais importante do que saber quando houve sua consumação, é fundamental identificar, primeiramente, se houve a consumação do delito e se houve a constituição definitiva do débito tributário.  A partir dessas informações preliminares, é possível partir para a discussão do quantum e do tempo da consumação, bem como as supostas condutas infracionais.

Tais indagações são respondidas adiante, com base na doutrina e jurisprudência majoritárias.

Adentra-se, portanto, na esfera penal do delito, tomando em conta uma divergência particular em seu cerne: se crime formal ou material. A resposta a tal indagação leva ao entendimento do delito e suas consequências, tendo apoio na noção de que o crime de apropriação indébita previdenciária é de fato um crime material.

Nesse sentido tem se firmado a jurisprudência do STJ:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ARTS. 168-A E 337-A DO CÓDIGO PENAL. CRIMES MATERIAIS. PRÉVIO ESGOTAMENTO DA ESFERA ADMINISTRATIVA. IMPRESCINDIBILIDADE. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO JULGADO PREJUDICADO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO DE PLANO. NECESSIDADE DE EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ELEITA.

1. É verdade que, na esteira da compreensão firmada pelo Supremo Tribunal Federal, esta Corte vem entendendo não ser possível a deflagração de ação penal pela prática dos crimes de sonegação de contribuição previdenciária e apropriação indébita previdenciária, enquanto não houver lançamento definitivo do tributo, no âmbito administrativo.

2. No caso presente, mostra-se prematura a providência buscada, pois, ao contrário do alegado nas razões recursais, não há comprovação, em um exame perfunctório, da impugnação ou desconstituição do crédito tributário consolidado.

3. Com efeito, o recorrente não comprovou se, na data do oferecimento da denúncia, os procedimentos fiscais de que aqui se cuida não haviam ainda chegado ao seu termo final.

4. Também não logrou demonstrar a pendência, de fato, naquela ocasião, de qualquer recurso administrativo, em que, eventualmente, estaria sendo discutido a própria existência dos débitos tributários (ou mesmo do quantum devido), sobre os quais se funda a presente ação penal.

5. Cumpre ressaltar, ainda, que o tema ora trazido à análise já foi controvertido e, à época em que foi recebida a denúncia contra o paciente, junho de 2003, a jurisprudência dava respaldo ao início da ação penal antes do lançamento definitivo do crédito.

6. Assim, diante da superveniência da sentença condenatória, mostra prudente aguardar o julgamento do recurso de apelação, já interposto pela defesa, no seio do qual todas as matérias serão enfrentadas com amplitude muito maior do que na via eleita.

7.  Agravo regimental a que se nega provimento.

(STJ – AgRg no RHC 17.513/GO, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 11/04/2013, DJe 23/04/2013)(grifos adicionados)

Para esclarecer tal conceito, cita-se Damásio de Jesus, em sua obra referente à parte geral do Código Penal:

São delitos materiais aqueles que para a consumação a lei reclamava a verificação do resultado querido pelo agente, que consiste na lesão de fato do bem. São delitos formais aqueles que, não obstante reclame a lei que a vontade do agente se dirija à produção de um resultado que constituiria uma lesão do bem, não exigem para a consumação que esse resultado se verifique. Ao lado dos crimes materiais e formais estão os de mera conduta, sem resultado. (JESUS, 2010, p. 231)

Ora, o que se pretende com a presente análise é demonstrar que o delito tipificado no artigo 168-A do CP necessita de um resultado final para sua consumação. Não se trata apenas de “deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes”, pois há um procedimento apropriado para o lançamento dessas contribuições na esfera administrativa, diante de sua natureza tributária.

De acordo com o artigo 142 do Código Tributário Nacional, entende-se por lançamento tributário:

Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

O referido lançamento tributário, de contribuições previdenciárias, se dá por homologação, e percorre um procedimento administrativo próprio, antes mesmo do contraditório na esfera administrativa, em que se discutem principalmente os valores a serem recolhidos. Observa-se que o debate realizado no âmbito criminal é posterior a tudo isso. Dessa forma, não se demonstra adequado outro procedimento.

A regra geral para o lançamento de crédito tributário por homologação está estampada no artigo 150 do Código Tributário Nacional:

Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.

Contudo, merece ressalva essa regra, diante dos ensinamentos de Hugo de Brito Machado, os quais reforçam o entendimento adotado nesse artigo:

O lançamento por homologação também é conhecido como auto lançamento. Mas como o Código diz ser a atividade de lançamento privativa da autoridade administrativa, evidentemente não se pode cogitar de um lançamento feito pelo sujeito passivo. Embora faça ele todo o trabalho material, o lançamento, no caso, só se opera com a homologação. (MACHADO, 2013, p.185)

Tendo isso em vista, conclui-se que a fiscalização tributária opera para o delito de apropriação indébita previdenciária da mesma forma que fiscaliza os demais ilícitos tributários, com dever de conferir se os tributos devidos foram recolhidos em sua forma devida. Após tal conferência é que se pode falar em lançamento, o qual, nas palavras de Machado, só é realmente efetuado pelo Fisco.

A regularidade do débito tributário deve ser discutida antes mesmo do embate acerca da configuração ou não de crime. Se não há débito, não houve apropriação, não houve crime. Há de se levar em conta, inclusive, erro da administração, o que não poderia afetar a vida do contribuinte, levando-o a ser denunciado e, consequentemente, a enfrentar uma ação penal antes mesmo de se resolver um mero imbróglio administrativo.

Responder a uma ação penal, por si só, já revela bastante sentimento penoso e temor a eventual punição, mesmo quando razoável. Se o valor do tributo ainda não foi conferido, nem mesmo se definiu se houve algum equívoco em eventual lançamento, não é razoável o enfrentamento da temida ação criminal.

Se a fiscalização, o não-recolhimento e o procedimento administrativo para a apropriação indébita previdenciária ocorrem da mesma forma que para os ditos ilícitos tributários típicos, o caráter material desses delitos também é comum ao tipo penal disposto no artigo 168-A do CP.

O delito em questão é, portanto, um típico crime de resultado.

Bitencourt assim dispõe:

Crime material ou de resultado descreve a conduta cujo resultado integra o próprio tipo penal, isto é, para a sua consumação é indispensável a produção de um dano efetivo. O fato se compõe da conduta humana e da modificação do mundo exterior por ela operada. A noção ocorrência do resultado caracteriza a tentativa. Nos crimes materiais a ação e o resultado são cronologicamente distintos (...) afirma-se que no crime formal o legislador antecipa a consumação, satisfazendo-se com a simples ação do agente (BITENCOURT, 2011, p. 255)

Na verdade, o resultado do crime do artigo 168-A do CP está subentendido por se tratar de ilícito tributário, como se vem defendendo até aqui. A falta de clareza do texto legal é justamente um dos pontos de discussão e repreensão desse trabalho.

Diante da concatenação lógica de ideias elencadas até aqui, fica evidente que o dano efetivo do delito em análise é a constituição definitiva do débito tributário, ante a ausência de recolhimento devido de tributo.

Para revelar o grande conflito que existe no tocante ao tema, expõem-se pareceres emitidos por representantes do Ministério Público Federal, respectivamente em 2012 e 2014, em contramão à evolução do entendimento adequado ao crime de apropriação indébita previdenciária:

PEÇAS DE INFORMAÇÃO. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA (CP, ART. 168-A). REVISÃO DE ARQUIVAMENTO (LC Nº 75/93, ART. 62 – IV). CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DE ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. INAPLICABILIDADE DO ART. 83 DA LEI Nº 9.430/96. PROSSEGUIMENTO DA PERSECUÇÃO PENAL.

1. A notícia de crime de apropriação indébita previdenciária previsto no art. 168-A do Código Penal foi arquivada com fundamento na ausência de constituição definitiva do crédito tributário.

2. O crime do art. 168-A, de natureza formal, caracteriza-se pelo não repasse à Previdência Social das contribuições previdenciárias descontadas da remuneração do trabalhador, de modo que não há motivo para obstar a persecução penal até o término de procedimento administrativo destinado a apurar o prejuízo efetivamente experimentado.

(...)

(Procedimento MPF nº 1.15.000.001496/2012-01, Rel. Procuradora Raquel Elias Ferreira Dodge, 26/11/2012)

PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO CRIMINAL. POSSÍVEIS CRIMES DE SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA (CP, ART. 337-A) E DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA (CP, ART. 168-A). REVISÃO DE ARQUIVAMENTO (LC Nº 75/93, ART. 62, IV). SÚMULA VINCULANTE Nº 24. APLICABILIDADE EM RELAÇÃO AO CRIME DE SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. QUANTO AO DELITO DE APROPRIAÇÃO NDÉBITA PREVIDENCIÁRIA, DESNECESSIDADE DE ESGOTAMENTO DA INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA. PROSSEGUIMENTO DA PERSECUÇÃO PENAL.

(...)

3. O prévio exaurimento da via administrativa é requisito para denúncia apenas em relação aos crimes cujos verbos nucleares encerrem as condutas de suprimir ou reduzir tributo, o que só se conclui com a apuração fiscal definitiva, caso do delito de sonegação de contribuição previdenciária, disposto no art. 337-A do Código Penal.

4. O crime do art. 168-A caracteriza-se pelo não repasse à Previdência Social das contribuições previdenciárias descontadas da remuneração do trabalhador. Logo, não há no tipo referência aos verbos nucleares suprimir ou reduzir tributo, conforme se exige na sonegação fiscal.

(...)

(Procedimento MPF nº 1.34.006.000365/2008-14, Rel. Procurador Carlos Augusto da Silva Cazarré, 28/04/2014)

Os que defendem a formalidade do crime de apropriação indébita previdenciária se baseiam na omissão do repasse. Esquecem, entretanto, do resultado dessa “não-ação”. O não-recolhimento de tributo e consequente constituição de débito tributário (ocorridas todas as fases administrativas pertinentes) estão visceralmente atrelados à conduta tipificada.

Não há independência da conduta para com o resultado do crime. Desse modo, não há que se comparar o crime do artigo 168-A do CP com delitos tipicamente formais, como, por exemplo, a ameaça, clássico tipo penal classificado como formal.

 Assim, resta evidente o caráter material da apropriação indébita previdenciária, não obstante a relutância de alguns doutrinadores e parcela de magistrados e representantes do Ministério Público se basearem em entendimento diverso.

O cenário nacional experimentou o início dessa mudança de entendimento recentemente, precisamente em 2008. Renomados sítios jurídicos da internet ressaltaram a importância da modificação desse entendimento nos tribunais superiores do país, analisando com bons olhos a mudança de posição jurisprudencial:

Surpreendentemente, o novo artigo não surtiu modificação nos decisuns e acórdãos, seguindo a Justiça Federal de todo país a orientação antiga no sentido de que o simples não recolhimento configuraria o crime, independentemente da vontade do agente. A jurisprudência vinha dando este entendimento até 2008, quando deu sinal de modificação. [...]Foi um passo importante, pois afirmou ser o crime uma espécie típica de resultado, abrindo as portas da discussão sobre seu conteúdo comportar os elementos intrínsecos da apropriação [...] As novas posições adotadas pelo STF e STJ demonstram um caminho mais justo, e, melhor, são indicadores de independência do Poder Judiciário, por meio de seus tribunais superiores, em matéria controversa de grande interesse do governo federal, da classe empresarial e da sociedade em geral. (SANTOS, 2010).

O Pretório Excelso traz sólida jurisprudência, a qual inaugurou, na Corte Constitucional, a tese favorável à opinião exposta (e transpôs tal entendimento aos demais tribunais pátrios):

APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA - CRIME - ESPÉCIE. A apropriação indébita disciplinada no artigo 168-A do Código Penal consubstancia crime omissivo material e não simplesmente formal. INQUÉRITO - SONEGAÇÃO FISCAL - PROCESSO ADMINISTRATIVO. Estando em curso processo administrativo mediante o qual questionada a exigibilidade do tributo, ficam afastadas a persecução criminal e - ante o princípio da não-contradição, o princípio da razão suficiente - a manutenção de inquérito, ainda que sobrestado. (STF – Inq 2537 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 10/03/2008, DJe-107 DIVULG 12-06-2008 PUBLIC 13-06-2008 EMENT VOL-02323-01 PP-00113 RET v. 11, nº 64, 2008, p. 113-122 LEXSTF v. 30, nº 357, 2008, p. 430-441)

Portanto, o tipo penal deve ser observado criteriosamente. O artigo 168-A do CP descreve uma conduta e, por isso, deve ser levada em consideração a análise da ação humana tipificada, não somente o texto legal.

Isso ocorre devido às incorreções por vezes praticadas pelo legislador, o qual cria textos que não condizem com a real intenção legiferante, e acaba por criar leis ambíguas ou contraditórias.

Aliás, cabe aqui a reflexão: o sistema judiciário, como um todo, tem o dever de realizar análise estrita das condutas humanas, já que está envolvido no papel de aplicador da justiça, principalmente quando se trata da discussão da liberdade humana, como é o caso do direito penal.

O exame adequado da norma deve se basear, por conseguinte, na conduta a ser perseguida, contrária ao ordenamento penal brasileiro.

Como retratado em capítulo anterior, o próprio nomem juris do artigo se encontra equivocado, também colocado em capítulo estranho à sua real natureza (crimes contra o patrimônio). A conduta criminosa tipificada pelo artigo não se baseia no “deixar de repassar”, mas sim no deixar de recolher contribuição previdenciária, a qual, por sua vez, tem natureza tributária. A diferença aqui está em olhar atentamente a conduta, e não apenas o texto legal, conforme exposto anteriormente.

Logo, fazendo uso da hermenêutica jurídica, a apropriação indébita previdenciária não passa de um crime de não recolhimento de tributo. Dessa forma, conclui-se por sua característica material, tendo por resultado a constituição definitiva de débito tributário.

Oportuno citar a célebre mudança de entendimento também adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, iniciado pela Ministra Laurita Vaz, em acertada compreensão. A decisão apresentada teve o condão de inaugurar, na Corte Superior de Justiça, o posicionamento mais adequado quanto à característica material do crime do artigo 168-A do Código Penal. Veja-se:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO. DELITO MATERIAL. PRÉVIO ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA.

IMPRESCINDIBILIDADE. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE PARA A INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL POR FALTA DE JUSTA CAUSA. PRECEDENTE DO STF.

1. Nos termos do entendimento recente da Suprema Corte, os crimes de sonegação e apropriação indébita previdenciária também são crimes materiais, exigindo para sua consumação a ocorrência de resultado naturalístico, consistente em dano para a Previdência.

2. O prévio esgotamento da via administrativa constitui, desse modo, condição de procedibilidade para a ação penal, sem o que não se vislumbra justa causa para a instauração de inquérito policial, já que o suposto crédito fiscal ainda pende de lançamento definitivo, impedindo a configuração do delito e, por conseguinte, o início da contagem do prazo prescricional.

3. No caso dos autos, constata-se o constrangimento ilegal, tendo em vista que o processo administrativo,  no qual se imputou a existência de débitos tributários, ainda não havia chegado ao seu termo final, quando da instauração do inquérito policial para apurar a prática do suposto delito.

4. Ordem concedida para trancar o inquérito policial relativo à NFLD DEBCAD nº 37.018.027-5, diante da ausência de justa causa para a sua instauração, por inexistir lançamento definitivo do débito fiscal, ficando suspenso o prazo prescricional até o julgamento definitivo do processo administrativo.

(HC 96348/BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 24/06/2008, DJe 04/08/2008)

Com tal ensinamento, aliado à interpretação de que o objeto do delito envolve um tipo de tributo, e com apoio na melhor doutrina, tem-se que a apropriação indébita previdenciária é um crime material e apenas se consuma após o exaurimento da via administrativa de discussão do tributo, conforme julgado do Pretório Excelso (STF –HC 81611, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 13-05-2005) e Súmula Vinculante nº 24 do STF.

6. EQUIVALÊNCIA DO DELITO DO ARTIGO 168-A DO CÓDIGO PENAL COM OS CRIMES TRIBUTÁRIOS

Diante das noções preliminares expostas, não resta outra alternativa senão reconhecer a equivalência do crime do artigo 168-A do CP com os demais crimes de caráter tributário, conforme exposto na melhor doutrina:

Considerando que o crime de apropriação indébita previdenciária é, nos termos acima lançados, crime material e, por isso, depende da existência de um resultado material para sua caracterização, o posterior pagamento de montante correspondente ao valor principal das contribuições devidas, independentemente do pagamento de acessórios, recai sobre o bem jurídico anteriormente violado, excluindo materialmente os efeitos dessa violação, e, por conseguinte, deve excluir sua tipicidade.” (DIAS, 2007, p. 113)

Já foi amplamente debatido o desacerto do legislador quando da inserção desse crime em Capítulo do Código Penal destinado aos crimes contra o patrimônio. Conforme demonstrado, grandes doutrinadores seguem o entendimento de que o delito em questão não se encontra em “local” apropriado, bem como seu nome não é o mais adequado.

Ressalva-se que a intenção do presente estudo não é, sob hipótese alguma, revelar o nome mais adequado ou indicar o local correto ao tipo penal em análise, mas tão somente revelar o tratamento adequado ao crime, o qual independe de mera adequação formal, mas trata-se de método justo.

Nada obstante, a confusão causada por tal equívoco encontra-se ultrapassada, de maneira que a apropriação indébita previdenciária não se caracteriza como um crime contra o patrimônio, mas como típico crime tributário. Pelo menos é o que se defende até aqui.

Nesse diapasão, no tocante à necessidade de prévio exaurimento da discussão do crime e de eventual débito na esfera administrativa, a pesquisa também se sustenta fortemente na atual jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros, os quais equiparam a apropriação indébita previdenciária aos crimes tributários.

Nesse sentido está a jurisprudência do STJ, o qual confere ao crime de apropriação indébita previdenciária o tratamento dado aos crimes tributários materiais, que somente se configuram após constituição definitiva do débito tributário na esfera administrativa. Leia-se, a esse respeito, o seguinte julgado:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA (168-A DO CÓDIGO PENAL). INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL. AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DOS CRÉDITOS NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL.CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.

1. Segundo entendimento adotado por esta Corte Superior de Justiça, os crimes de sonegação de contribuição previdenciária e apropriação indébita previdenciária, por se tratarem de delitos de caráter material, somente se configuram após a constituição definitiva, no âmbito administrativo, reconhecendo a regularidade do respectivo crédito (Precedentes).

2. No presente caso, conforme ressaltado pelo próprio Tribunal a quo, verifica-se que as impugnações aos Autos de Infração encontram-se em trânsito no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, configurando, assim, constrangimento ilegal, em virtude da falta de decisão administrativa definitiva em que se discute a exigibilidade do crédito.

3. Recurso provido, para trancar o inquérito policial instaurado contra o recorrente.

(STJ - RHC 28798/PR, Rel. Ministro CAMPOS MARQUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PR), QUINTA TURMA, julgado em 23/10/2012, DJe 26/10/2012)

Apesar da atualização jurisprudencial, o meio jurídico ainda não se encontra em uniformidade quando se trata desse crime previdenciário em especial.

O tema acerca da constituição definitiva do débito como condição sine qua non do debate no âmbito criminal já passou pelas mais variadas esferas de discussão, superando até mesmo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a de nº 1571, já tratada no Capítulo 1 do presente estudo.

Ocorre que o grande ponto de divergência se encontra na doutrina de grandes penalistas brasileiros, os quais, ao ensinarem diversamente do proposto nesta pesquisa, parecem não adotar o melhor caminho.

Pode-se citar Julio Fabbrini Mirabete entre os doutrinadores divergentes do ponto apresentado na pesquisa, o qual entende ser a apropriação indébita previdenciária um crime de mera conduta (2011, p. 259). Também contrário ao posicionamento dos presentes estudos, Cezar Roberto Bitencourt entende se tratar de um crime formal e instantâneo (2011, p. 253 e 254).

Rogério Greco, por outro lado, apesar de classificar o delito do artigo 168-A do Código Penal como omissivo próprio, de mera conduta, mesmo assim destaca as divergências já apontadas anteriormente, tratando do aguardo da decisão administrativa para dar início à ação penal e, inclusive, do princípio da insignificância (2011, p. 209 e 216).

Em sintonia com o que se expõe até então no presente artigo, segue-se o entendimento de Guilherme de Souza Nucci, o qual, em recente obra, compreendeu que o objeto do delito em pesquisa (contribuição previdenciária) é espécie de tributo e que “é fundamental que a apuração do débito na esfera administrativa, tenha sido concluída. Do contrário, torna-se inviável o ajuizamento de ação penal por apropriação indébita de contribuição previdenciária” (2012, p. 846 e 847).

Celso Delmanto, por sua vez, também na mesma linha do trabalho aqui apresentado, compreende que se trata de um delito material, observando que sua consumação – já que é um crime tributário material - “somente ocorre no momento em que o crédito tributário se torna definitivo, não mais cabendo recurso administrativo” (2010, p. 609).

Conforme demonstrado, o assunto ainda é alvo de bastante controvérsia, tanto jurisprudencial quanto doutrinária, mas os julgados atuais estão, cada vez mais, seguindo a linha sustentada nesse trabalho.

Deve-se destacar também os doutrinadores que já se atualizaram em seus ensinamentos e informam à sociedade jurídica o posicionamento correto à respeito da norma em evidência, ultrapassando suas próprias lições antigas, que ficaram à margem do direito diante de novo posicionamento do ordenamento, alcançado, principalmente pela festejada mudança jurisprudencial das cortes brasileiras.

Isso demonstra a necessidade de adaptação, tanto legislativa quanto doutrinária e jurisprudencial, de modo a unificar o entendimento, por vezes indefinido. Por vezes, tal indefinição opera baseada em fatos pretéritos, sem a preocupação de se manter atenta às novas correntes de pensamento, as quais, por mais que fossem mantidas por muito tempo, podem ser modificadas; principalmente quando se trata daquilo que é justo.

Compreende-se, portanto, que tal entendimento deve prosperar, de modo que será demonstrado que o delito descrito no artigo 168-A do Código Penal é atípico, se ainda não houve constituição definitiva do débito em esfera administrativa, em extensão ao entendimento consolidado na Súmula Vinculante nº 24, do STF. É, portanto, demonstração clara de tratamento equivalente aos crimes tributários para o delito do artigo 168-A do Código Penal.

Vale à pena reforçar: o objeto do crime de apropriação indébita previdenciária é justamente a contribuição previdenciária não repassada ao fisco. Tal contribuição, conforme exaustiva demonstração, constitui típico tributo, de forma que o tratamento dispensado deve ser o mesmo aos delitos tipicamente tributários.

De fato, é o que ocorre. Veja-se: a adoção do caráter tributário das contribuições previdenciárias, a aplicação do conceito de materialidade do delito do art. 168-A do CP, bem como a exigência de prévio exaurimento da esfera administrativa, com constituição definitiva de débito, são condições mínimas para que seja dado início à ação criminal a ser proposta pelo Ministério Público Federal.

Inclusive o valor tido como insignificante para a Fazenda Pública executar seus créditos tributários é aplicado ao delito do artigo 168-A do Código Penal:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS (ART. 168-A DO CÓDIGO PENAL). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ART. 20 DA LEI 10.522/2002. APLICABILIDADE. DECISÃO MANTIDA PELO SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. 1. Com o julgamento pela Terceira Seção do Recurso Especial Repetitivo nº 1.112.748/TO (Relator Ministro Felix Fischer, DJe de 5/10/2009), restou pacificado nesta Corte o entendimento de que o princípio da insignificância no crime de descaminho incide quando o débito tributário não ultrapasse o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), consoante o disposto no art. 20 da Lei 10.522/2002. 2. A Lei nº 11.457/2007 que criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil considerou como dívida ativa da União os débitos decorrentes das contribuições previdenciárias. Diante disso, entende-se viável, sempre que o valor do débito não for superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), a aplicação do princípio da insignificância também no crime de apropriação indébita previdenciária. 3. In casu, verifica-se que o valor da contribuição previdenciária não recolhida é de R$ 4.442,19 (quatro mil, quatrocentos e quarenta e dois reais e dezenove centavos), razão pela qual está caracterizado na esfera penal a irrelevância da conduta. 4. A decisão agravada deve ser mantida pelos seus próprios fundamentos. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ – AgRg no REsp 1013009 / RS – Relator Ministro JORGE MUSSI – Quinta Turma – DJe 19/05/2011)

O princípio da insignificância aplicado ao caso é proveniente da Lei nº 10.522/2002, e hoje é apoiado na Portaria MF nº 75, de 2012, alterada pela Portaria MF nº 130, também de 2012, ambas do Ministério da Fazenda. Nessas normas é disposto que haverá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

Se tal princípio, aplicado diuturnamente por força normativa aos crimes tributários, também já é aplicado à apropriação indébita previdenciária (inclusive por membros do Ministério Público), mais um argumento toma corpo para a cada vez mais concreta tese de seu caráter tributário.

7. A APLICAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 24 DO STF

O crime do art. 168-A do CP – contra a previdência – por se tratar de um crime tributário, herda as dificuldades que o Estado brasileiro tem para lidar com os tributos, impostos e contribuições. Em consequência, deve-se enfrentar as lacunas na legislação que costumeiramente são preenchidas pelo Poder Judiciário.

Não obstante, as normas tributárias e previdenciárias que incidem sobre o crime previdenciário de apropriação devem ser interpretadas corretamente, possibilitando a elas o correto tratamento desde sua gênese, nos Procedimentos Fiscais da Receita Federal.

Ou seja, o entendimento predominante está se acertando, conferindo o tratamento adequado a esse típico delito tributário que é a apropriação indébita previdenciária. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência mais recentes têm se adaptado à ausência de legislação adequada, demonstrando como deve ser o procedimento relativo a esse delito.

Antes de se invocar a esfera penal, não se pode suprimir a possibilidade de discussão acerca do tributo devido – desde o quantum à tipicidade de suposta conduta dolosa, ou, ainda, criminosa – na esfera administrativa.

O norte para esse ponto específico da discussão é a decisão tomada pelo STF ao editar o enunciado de Súmula Vinculante nº 24, o qual possui o seguinte teor:

SÚMULA VINCULANTE 24
“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.” (Data de Aprovação: Sessão Plenária de 02/12/2009; Fonte de Publicação: DJe nº 232 de 11/12/2009, p. 1.)

Tal entendimento revela a ideal proteção aos contribuintes, cidadãos, para que possam expor seus argumentos antes mesmo de se verem investigados em um procedimento intimidador como o é o inquérito policial, ou, ainda pior, uma ação penal.

O sujeito já tem que prestar contas ao fisco, devido à ausência de repasse do tributo devido, de modo a revelar a verdade real dos fatos, sob seu ponto de vista. O contribuinte passa por procedimentos administrativos, muitas vezes também intimidadores, em que os agentes já tomam como dolosa a ação, ou omissão, do cidadão que está a prestar informações, sem se esquecer das possíveis penalidades pecuniárias.

No momento de apresentação de contas ao fisco, o contribuinte pode demonstrar qualquer argumento em sua defesa, o qual será decidido por agentes providos de competência para tanto – havendo instâncias administrativas, inclusive. De tal modo, não parece justo o cidadão ter que se defender de uma mesma conduta por várias vias concomitantemente: a administrativa e a criminal.

Em resposta ao fisco há para o contribuinte várias possibilidades de argumentação, como, por exemplo: o tributo pode ter sido cobrado a maior; houve erro na homologação; houve erro no lançamento; o valor devido é considerado insignificante; dentre tantas outras.

Não é nada razoável que o contribuinte, supostamente devedor ao fisco, seja levado ao banco de réu em uma ação criminal sendo que sequer está definido se há ou não tributo a ser pago, reconhecido pela constituição definitiva de débito tributário. Dessa forma, é preciso esperar o transcurso do procedimento administrativo para analisar se a conduta investigada tem relevância para o âmbito penal.

Imperioso rememorar, para tanto, os princípios informativos do direito penal e do direito processual penal, os quais se encontram interligados aos ilícitos tributários. Desses, tomam destaque o princípio da reserva legal (só há crime se definido em lei, aqui interpretada em conjunto com a Súmula Vinculante nº 24), o princípio da intervenção mínima (ou ultima ratio, identificando a Lei Penal como último recurso a ser utilizado pelo Estado), bem como o princípio da fragmentariedade (preocupação do Estado com os bens jurídicos mais importantes a serem protegidos – vida, liberdade, etc.), tão importantes para a manutenção da justiça e de um Estado Democrático de Direito.

Tais conceitos penais serão melhor esclarecidos adiante, demonstrando a necessidade de independência da esfera administrativa para com a esfera penal, detentora do princípio da ultima ratio.

Assim, o tanto construído até então, acerca do conceito mais adequado para a apropriação indébita previdenciária (crime tributário material), revela grandes avanços a serem aplicados também na esfera processual penal, quanto à desnecessidade de instauração de inquérito policial ou ação penal antes mesmo do exaurimento prévio da esfera administrativa da Receita Federal.

Essa questão, por sua vez, envolve a análise da necessidade em se utilizar todo o aparelhamento estatal, principalmente a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, bem como o Poder Judiciário, quando ainda não se sabe ao certo da materialidade do delito, da tipicidade.

A utilização da Súmula Vinculante nº 24 do STF para se interpretar o delito do art. 168-A do Código Penal revela, portanto, sua equivalência para com os crimes tributários, ou melhor, reconhece sua característica de crime tributário, exigindo adequação do processo penal quando da discussão desse crime.

8. EFEITOS DA PENDÊNCIA DE DECISÃO ADMINISTRATIVA NO ÂMBITO DO PROCESSO PENAL

Ante o complexo cenário apresentado, a resolução do problema central, atentando-se aos questionamentos subsidiários, é realizada com base nos mais importantes princípios norteadores do Direito Penal, notoriamente o princípio da reserva legal, exposto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988, o princípio da intervenção mínima, muito conhecido como ultima ratio, o qual constitui clara limitação à aplicação do direito penal, e, por fim, o princípio da fragmentariedade, decorrente dos princípios anteriores, ressaltando que o Direito Penal deve sancionar “tão somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens mais relevantes” (BITTENCOURT, 2011, p. 45).

Damásio compreende que o Estado deve agir penalmente por meio de uma mínima intervenção:

Procurando restringir ou impedir o arbítrio do legislador, no sentido de evitar a definição desnecessária de crimes e a imposição de penas injustas, desumanas ou cruéis, a criação de tipos delituosos deve obedecer à imprescindibilidade, só devendo intervir o Estado, por intermédio do direito penal, quando os outros ramos do direito não conseguirem prevenir a conduta ilícita.(JESUS, 2008, p.10 e 11)

No mesmo diapasão, Bittencourt defende que “se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável (2011, p. 43)”. Acrescenta o doutrinador o princípio da proporcionalidade, tão festejado para o direito, mas aqui, especificamente aplicável ao direito penal. Para isso, cita trecho da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que em seu artigo 15 dispunha: “a lei só deve cominar penas estritamente necessárias e proporcionais ao delito” (2011, p. 54).

Ainda no campo do direito penal, ganha relevo outro de seus princípios basilares, o da anterioridade, o qual impõe que “não há crime sem lei anterior que o defina”. Esse princípio reflete a discussão da tipicidade de uma conduta, para que possa se compreender quando e por que uma conduta recebe uma tipificação penal, em que momento uma mera conduta é considerada crime para o direito.

Todos os princípios tratados, consagrados para o Direito Penal, têm por base uma elementar norma internacional, proveniente da Carta Maior de Direitos Humanos, qual seja o artigo XI da Declaração Universal dos Direitos do Homem:                                              

Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

A jurisprudência das cortes superiores espelham esses princípios, conferidos na ocorrência de crimes tributários, para que não se inicie ação penal antes de se concretizar a conduta criminosa, e, por conseguinte, o interesse de eventual punição estatal:

EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.
(STF – HC 81611, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 13-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02191-1 PP-00084)

HABEAS CORPUS. ART. 168-A, § 1º, I, DO CÓDIGO PENAL. NECESSIDADE DE PRÉVIO ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE.

1. "Consoante recente orientação do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária, o procedimento administrativo de apuração de débitos se constitui em condição de procedibilidade para a instauração da ação penal." (REsp nº 875.897/CE, Relator para acórdão o Ministro Paulo Gallotti, DJ de 15.12.08).

2. No caso, consta das informações prestadas pelo Juízo de origem que ainda se encontra em tramitação o processo administrativo no qual se questiona a Notificação Fiscal de Lançamento de Débito (NFLD). Assim, forçoso reconhecer que não se tem por preenchida a condição de procedibilidade.

3. Habeas corpus concedido para trancar a ação penal.

(STJ, Sexta Turma, HC 164864, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 09/08/2010)

Hugo de Brito Machado, notório doutrinador tributário, também revela preocupação dessa área do direito para com o crime retratado:

Não obstante a doutrina justifique as sanções penais concomitantes com as sanções administrativas com a independência das instâncias, na verdade nada justifica essa duplicidade, que contribui para a complexidade do sistema jurídico e dificulta a repressão dos cometimentos ilícitos. Como a principal sanção penal é a prisional, as normas penais, a partir da Constituição, tendo em vista a proteção da liberdade humana, cercam de cautelas a imposição de sanções penais, garantindo inclusive aos acusado o direito ao silêncio, com o quê tornam inconstitucional a exigência de informações indispensáveis à plenitude da fiscalização tributária. Ao definir como ilícito penal atos de descumprimento de leis tributárias cria-se, por outro lado, um sério problema que concerne à responsabilidade. (MACHADO, 2013, p.508-509)

Como se depreende, a discussão trespassa por aprofundadas questões principiológicas, as quais sustentam o ordenamento jurídico vigente. Ultrapassar essas barreiras com o fito de constranger o contribuinte a pagar tributos sob pena de se ver encarcerado não fere apenas os princípios que vigem para o direito penal; a letra constitucional também está em xeque quando situações como essa ocorrem.

Em notória obra sobre Direito Penal Econômico organizada por Artur de Brito Gueiros Souza, é exposto o seguinte:

... parece que não se deve ir ao extremo de postular para o Direito Penal Econômico uma completa desvinculação com o Direito Penal nuclear, na medida em que, para a maioria dos doutrinadores, ele se encontra atrelado – e é bom que assim continue – aos mesmos princípios dogmáticos fundamentais, começar pelo princípio da reserva legal, as regras de imputação objetiva e subjetiva e a sistemática das penas (SOUZA, 2011, p. 118)

O procedimento a ser adotado, antes de tudo, é administrativo-tributário, devido ao objeto em questão: tributo. Como explicitado anteriormente, ainda mais em tempos em que se vê todas as esferas de Poder com suposto déficit administrativo, não se pode tomar o tempo do Parquet, da Polícia Federal, ou do Judiciário para uma questão que pode ser muito bem resolvida administrativamente.

Fala-se que há pouco contingente para as demandas policiais e para o Ministério Público, sem contar o excesso de processos que os gabinetes de Magistrados têm que lidar, por vezes, mais urgentes.

Mas esse não é o mérito, e nem é por esse viés que deve ser colocada a questão. É tão somente mais uma justificativa para somar aos argumentos já expostos, baseados em princípios básicos do direito, bem como em doutrina e jurisprudência adequadas.

Seguindo essa linha de raciocínio, indaga-se a necessidade e a utilidade do Direito Penal e quando sua aplicação se faz imprescindível. Difícil missão responder a tão tortuoso questionamento, mas é possível criar um parâmetro após a reflexão imposta por Cinthia Rodrigues Menescal Palhares na obra organizada por Artur de Brito Gueiros Souza:

Embora o Direito Penal não seja o meio de controle social mais eficaz, indiscutivelmente é o mais restritivo, e, por que não dizer, violento, pois apresenta, como sanção, a pena, pelo que deveria ser utilizado apenas quando não houvesse outros mecanismos preventivo e quando o comportamento antissocial apresentasse especial gravidade. (SOUZA, 2011, p. 155)

Tal ensinamento expõe a capacidade de interferência do Direito Penal, e, por consequência, a necessidade de cuidado ao aplicá-lo, sempre com vistas à sua função social e sem abrir mão de seus princípios informativos.

Os efeitos de uma ação penal indevida provocada para a discussão de tributo pode interferir em todas essas instituições elencadas, mas, de fato, o contribuinte é quem mais sofre com a situação. O processo penal existe para resolver questões criminosas, que, na origem do direito penal, devem ter comprovado o caráter subjetivo de vontade. Trata-se da culpa, do dolo.

Veja-se a lição de Machado, quanto à extinção de punibilidade nos delitos tributários:

A lei nº 10.684/2003, que estabeleceu forma especial de parcelamento de débitos fiscais, determinou a suspensão da pretensão punitiva tanto em relação aos crimes contra a ordem tributária como em relação aos crimes ditos de apropriação indébita e de sonegação de contribuições da previdência social. E o STF já consagrou entendimento segundo o qual, em face dessa lei, o pagamento do débito tributário a qualquer tempo extingue a punibilidade de qualquer desses crimes, mesmo depois do recebimento da denúncia. (...) a rigor, a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária opera-se como decorrência de qualquer das causas de extinção do crédito tributário... (vária formas) é possível, sim, a utilização da analogia em matéria penal, desde que para favorecer o acusado. No caso, porém, nem é necessária a aplicação analógica. Basta a interpretação extensiva da norma que determina a extinção da punibilidade pelo pagamento. (MACHADO, 2013, p. 513-514)

Caso o contribuinte não possuísse condições financeiras para pagar o tributo devido à época de seu recolhimento, reconhece-se a exigência de conduta diversa nas atuais decisões. Veja-se julgado do STJ:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. ALEGAÇÃO DE DIFICULDADES FINANCEIRAS SUFICIENTES À INCIDÊNCIA DE CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DE ILICITUDE. COMPROVAÇÃO. REEXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7, STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. O Eg. Tribunal a quo, com base no acervo fático-probatório, entendeu que restou caracterizada a inexigibilidade de conduta diversa, em razão da grave crise financeira enfrentada pela empresa, comprovada através dos empréstimos bancários, das duplicatas e dos extratos bancários com saldo negativo, além dos depoimentos de diversas testemunhas, fazendo incidir o óbice da Súmula 7, STJ a desconstituição de tal entendimento.

2. Agravo regimental não provido.

(AgRg no REsp 1394125/RN, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, julgado em 06/02/2014, DJe 12/02/2014)

Trata-se, portanto, de um caso de excludente de ilicitude. Por que então não esperar a conclusão do processo administrativo para verificar a possibilidade e adequação de uma ação penal?

É justamente o que se defende na presente pesquisa. Levando-se em consideração que o direito penal é a ultima ratio, sua iniciativa deve ser concretamente a última medida a ser tomada quando há discussão do direito em outras áreas. Ainda mais quando essa discussão prévia já pode resolver o conflito.

Há determinação legal que impõe o encaminhamento de representação fiscal para fins penais (quando relativa aos crimes contra a ordem tributária) ao Ministério Público somente depois de finalizada a discussão da esfera administrativa. Só deve ser enviada a representação após proferida a decisão final, acerca da existência ou não do crédito tributário, proveniente de contribuições previdenciárias.

Tal determinação é proveniente da Lei nº 9.430/96, alterada pela Lei nº 12.350, de 20 de dezembro de 2010, para adicionar em seu texto os crimes contra a previdência, em seu artigo 83, já exposto no Capítulo 1.

Notável é a reflexão e o grande ensinamento de Hugo de Brito Machado, nessas derradeiras palavras:

(...) Não temos dúvida de que a criminalização do ilícito tributário tem na verdade objetivos utilitaristas. Visa realmente a compelir o contribuinte ao pagamento do tributo. Não tem conteúdo ético algum, até porque as autoridades fazendárias não respeitam os princípios éticos no trato com os contribuintes. Deles na verdade pretendem obter, a qualquer custo, recursos financeiros para um Estado que se revela cada vez menos eficiente na prestação dos serviços públicos.

(...)

A questão essencial, na verdade, consiste em saber se é juridicamente válido o uso da ação penal como instrumento de coação para obrigar o contribuinte a pagar tributos sem direito de questionar a legalidade destes. E o STF merece aplausos da comunidade jurídica pela resposta a ela oferecida, com a qual contribui positivamente para a construção, no Brasil, de um Estado Democrático de Direito. (MACHADO, 2013, p. 514 e 517)

Por conseguinte, seja em defesa da justiça, dos direitos individuais, ou até mesmo do Estado Democrático de Direito, no caso de crimes tributários, a decisão administrativa deve ser o divisor de águas para definir se haverá ação penal. Principalmente para o delito de apropriação indébita previdenciária, por ter maiores divergências, seja em razão de sua nomenclatura ou de sua origem, a decisão administrativa pendente impede a ação penal e até mesmo a instauração de inquérito.

Tal conclusão permite igualdade e justiça no trato com questões tributárias, as quais podem ser resolvidas antes mesmo de eventual tipificação penal, impedindo arbitrariedades e constrangimentos desnecessários.

9. CONCLUSÃO

Diante de toda argumentação demonstrada, resta evidente que a conduta e o objeto do crime de apropriação indébita previdenciária devem ser discutidos primeiramente na esfera administrativa até seu esgotamento antes de se buscar a esfera criminal.

A busca por essa discussão, inclusive, deve ser precedida de amplo debate multidisciplinar, utilizando-se, para a elucidação dos casos, o direito penal e processual penal em consonância com outros ramos do direito, notadamente a área previdenciária e tributária, para o crime em questão.

Por tudo exposto, concluiu-se que o crime do artigo 168-A do Código Penal constitui crime tipicamente material. Exatamente por isso, requer um resultado concreto, o que, por sua vez, pode ser verificado pela lesão efetiva do bem protegido que, ao caso, são os cofres da Previdência Social.

A partir desse ponto, a conclusão seguinte, como foi exaustivamente demonstrado, não poderia ser outra: as contribuições previdenciárias são especiais tipos de tributos e estão dispostas no artigo 149 da Constituição Federal, conferindo a esse delito, seu caráter tributário.

Tudo isso leva à conclusão de que o tratamento dispensado ao delito de apropriação indébita previdenciária deve ser diferenciado, principalmente dos crimes contra o patrimônio, em cujo Capítulo se encontra – por equívoco legislativo – no Código Penal. Por conseguinte, o tratamento deve ser o mesmo dado aos crimes tributários, com especial atenção à Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal.

A presente pesquisa se baseia nos fundamentos e princípios do ordenamento jurídico brasileiro, principalmente com relação ao direito penal. Isso porque o direito criminal deve ser utilizado apenas em último caso, para proteger bens essenciais e que não estejam sob o amparo de outros ramos do direito. É o que dispõe princípios como o da reserva legal, o princípio da intervenção mínima, bem como o princípio da fragmentariedade.

O que ocorre ao caso presente é que o não pagamento de contribuições previdenciárias – objeto do delito pesquisado – deve ser analisado primeiramente sob a égide do direito tributário e administrativo. Após essa preliminar análise, pode ser revelado que sequer houve constituição definitiva de débito fiscal. Tal fato levaria eventual ação penal ao arquivamento, e toda a ação estatal penal se demonstraria inútil, além de completamente ineficaz.

Portanto, o crime de apropriação indébita previdenciária não se constitui antes de prévio exaurimento da esfera administrativa de discussão do tributo, demonstrando-se atípico até que se declare a constituição definitiva do débito.

10. REFERÊNCIAS

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Publicado por: Matheus Corrêa de Melo

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