CIDADANIA E DIREITOS DAS MULHERES: um estudo sobre a condição da mulher no Brasil

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1. RESUMO

O presente trabalho aborda algumas questões relativas à condição da mulher na sociedade brasileira, à luz da conquista e exercício dos direitos de cidadania.

Palavras-chave: Cidadania, direitos, mulher e participação política.

2. Introdução

Desde a infância carrego o sentimento crítico ante os “nãos” e os “porquês” da vida. Por mais que isso pudesse contrariar os adultos, na verdade, o que eu queria era receber uma resposta que fizesse sentido, tivesse fundamento. Era difícil aceitar o “é não, porque não” , o “é assim e pronto”, “isto é o certo” ou “isso é errado” e assim por diante.

Na adolescência, meus maiores questionamentos giraram em torno da questão da diferença entre os sexos. Por ter sido uma criança que conviveu, indistintamente, com meninos e meninas, de ter brincado de jogar bola, soltar pipa, andar de bicicleta, correr, subir em muros e em árvores, de boneca, casinha, panelinha, pique, foi estranho, de repente, ter que começar a agir de determinada maneira por ter me tornado uma “mocinha”. Fui percebendo, então, que novos grupos iam sendo formados e uma série de padrões de comportamentos, valores, estereótipos, direitos e deveres iam sendo ensinados com base na diferença de gênero, como se fossem “naturais”.

O grande problema é que, na prática, a minha “natureza” emocional e racional não aceitava determinadas convenções, principalmente por não encontrar nenhum fundamento que as justificassem. Por que o trabalho doméstico é obrigação da mulher? Qual o problema de as mulheres estudarem e exercerem profissões ligadas, por exemplo, à Mecânica, Física ou Engenharia? Por que futebol é coisa de homem? Toda motorista é “barbeira”? Homem não chora? Por que a virgindade da mulher é tão importante? Por que o homem é o chefe da casa se, na linguagem popular, a mulher é que é a “patroa”? Em relação à infidelidade conjugal masculina, por diversas vezes ouvi, inclusive de mulheres, justificativas como “mas ele é homem!”, “no homem isso não fica feio”, ao passo que, quando a infidelidade partia da mulher, notei que ao homem era justificável a “defesa da própria honra”, fosse com ações violentas, tomada da guarda dos filhos ou usando vocabulário de baixo calão para referir-se à mulher infiel.

Minhas primeiras referências vieram de um meio em que a maioria das mulheres eram donas de casa, voltadas para as relações familiares e com a vizinhança, com baixo nível de escolaridade e financeiramente dependentes dos maridos. Por contingências da vida, aos 10 anos deixei de ter a presença masculina dentro de casa e minha família passou a ser administrada por mulheres. A necessidade de ter que trabalhar e estudar desde muito cedo, fez com que eu saísse do “casulo” da família e experimentasse uma realidade diferente que, por exemplo, minha mãe conheceu, tendo esta sido criada para ser a “rainha do lar”. Adquiri uma grande responsabilidade e autonomia sobre minha própria vida. O convívio com mulheres, professoras e colegas de trabalho, que conquistaram um bom nível de escolaridade, uma profissão, independência financeira e o respeito da sociedade, mostrou-me que, realmente, haviam outras possibilidades de vida para uma mulher na sociedade. Na ânsia ingênua de contestar a resignação e a passividade de muitas mulheres ante às injustiças e dificuldades que lhes eram imputadas e achar um lugar no qual eu pudesse me posicionar, classifiquei-as em dois tipos distintos: as “do lar” e as “modernas”, como se uma condição excluísse a outra. Com o tempo, vi que o problema não era tão simples assim.

Tomando como base estudos e pesquisas voltados para a questão de gênero, foi possível verificar que, em todo o mundo, a crescente inserção feminina no mercado de trabalho não necessariamente significou a liberação das mulheres da responsabilidade das tarefas domésticas e da criação dos filhos, mesmo que, tal qual os homens, elas enfrentem um dia inteiro de trabalho, de cobranças profissionais e o vaivém dos transportes coletivos. Pelo contrário, houve uma sobrecarga de trabalho na vida da mulher. No que se refere à ocupação de cargos de chefia, pesquisas revelam que, tanto na iniciativa privada como nas instituições públicas, os homens ainda são maioria na ocupação de cargos de chefia e que não é raro ocorrer de receberem melhor remuneração pela execução de funções iguais ou inferiores às desempenhadas por mulheres, na mesma empresa.

No entanto, nem todas as dificuldades e os preconceitos sofridos pelas mulheres, resultam de ações praticadas por homens. Mesmo entre mulheres “modernas”, com uma profissão, independência financeira etc., alguns costumes, valores e concepções de mundo, que destinam a cada um dos sexos papéis, funções e espaços sociais diferenciados, mantém-se tão vivos, tão enraizados, tão “naturais”, que acabam criando um hiato entre o que é garantido pelas leis e as ações do dia-a-dia. No Brasil, embora a Constituição garanta, indistintamente, a igualdade de todos os cidadãos, o que se vê são mulheres e homens fruindo desigualmente dos direitos e deveres de cidadania.

Este trabalho pretende refletir sobre a questão da conquista da cidadania pelas mulheres brasileiras, ao longo do séc. XX, observando se esta tem garantido uma participação social mais igualitária. Para tal, serão abordados temas sobre cidadania, movimento feminista, direitos políticos e participação política das mulheres.

3. Metodologia

A primeira etapa deste trabalho consistiu num levantamento bibliográfico sobre temas relacionados à mulher e à cidadania, com o objetivo de discutir questões relativas à cidadania feminina. Após esta fase inicial, foram utilizadas fontes formais e informais para coleta de informações, como jornais, revistas, sites, reportagens e entrevistas exibidas na televisão para embasar o estudo.

4. Cidadania

No Brasil, com a promulgação da Constituição de 1988, apelidada de “Constituição Cidadã”, termos relacionados à cidadania passaram a ser invocados em diversas situações, criando no imaginário coletivo a idéia de uma sociedade igualitária, com leis extensivas e acessíveis a todos. De acordo com o Art. 5º do texto constitucional, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade” .

Mas será que existe, de fato, uma igualdade social no Brasil? Será que conhecemos e exercitamos nossos direitos e, principalmente, nossos deveres enquanto cidadãos? Qual o significado de cidadania? O que é ser cidadão no Brasil?

Conforme questionou PASSOS (2004), sobre o significado de cidadania, será que é “ algo que, pairando muito acima do que os olhos podem ver e o entendimento pode apreender, simplesmente nos expatria do que é, para nos internar, alienados, no mundo do faz de conta?”

Desde sua origem, na Antigüidade, até os dias atuais, o conceito de cidadania tem variado no tempo e no espaço, de acordo com a concepção de cada sociedade sobre sua representação e as maneiras de exercê-la. Segundo HERKENHOFF (2000), “o conteúdo da cidadania alargou-se ao longo da História”.

Na Antigüidade, o termo cidadania esteve associado à participação política, ao direito à palavra no trato das coisas públicas, das leis e das questões de Estado. Na Grécia Antiga, o fato de a sociedade ser governada por uma aristocracia acabou associando o conceito de cidadania ao de naturalidade, ou seja, somente os homens nascidos em terras gregas poderiam ser considerados cidadãos. Entre os romanos, a cidadania e os direitos políticos eram determinados pela origem familiar. Somente os patrícios – homens, cujas famílias participaram da fundação de Roma - eram considerados cidadãos. Os plebeus – romanos não nobres e os estrangeiros – não tinham direito à cidadania. É importante ressaltar que, em momentos de redistribuição de poder político, essas sociedades tiveram o quadro de cidadãos ampliado. No entanto, embora o status de cidadania garantisse uma série de privilégios negados aos nãos cidadãos, o acesso às decisões políticas continuava limitado a fatores de ordem econômica e de origem familiar.

Na Idade Média, com o surgimento de uma organização social de estrutura feudal-senhorial-patriarcal, onde as questões de Estado passaram a ser tratadas pelos Reis, com poderes “divinos” e absolutos para governar, pela nobreza e pelo clero, o sentido de cidadania perde praticamente todo o significado. Surgiram novos valores e códigos de comportamentos a partir dos fundamentos e dogmas da Igreja e da relação de interdependência entre senhor e servo. Somente no início da Idade Moderna, quando os homens passaram a olhar o mundo com uma visão mais racional, essa situação começou a ser modificada. É quando surgiu o Iluminismo, corrente de pensamento que dominou durante todo o séc. XVIII.

Em linhas gerais, para os pensadores iluministas1 tudo deveria ser explicado através da razão, fosse fenômeno da natureza ou social. Acreditavam que todos os homens nasciam iguais e naturalmente bons, sendo corrompidos pela sociedade. Ao Estado caberia garantir a liberdade individual, a propriedade, a livre expressão de idéias, a justiça e a igualdade diante da lei. Embora houvesse crença na existência de Deus, rejeitava-se a submissão cega à Igreja, a qual deveria estar separada do Estado. A fim de evitar o despotismo, o poder deveria emanar do povo e em seu nome ser exercido através de uma Constituição, com a divisão autônoma e harmônica dos poderes executivo, legislativo e judiciário.

É importante ressaltar que, nessa mesma época ocorria o renascimento das cidades, a formação dos Estados Nacionais e o nascimento do capitalismo, havia uma rica burguesia mercantil que, embora cada vez mais fortalecida, não tinha acesso às decisões políticas e sofria com as grandes intervenções e tributações do Estado. Nesse contexto, lançando mão das idéias iluministas e retomando a noção clássica de cidadania, a burguesia encontra o fundamento teórico necessário para criar uma ideologia mobilizadora das massas e transformar a estrutura da sociedade. Na luta contra o poder absoluto dos reis e as injustiças praticadas pelos estamentos privilegiados, os homens demonstraram a tomada de consciência de que são eles, e não Deus ou os deuses, que criam as leis que regem a vida em sociedade. Assim, a Europa deu início a uma era de profundas transformações sociais, econômicas e políticas que influenciaram o mundo inteiro, desde o advento das Revoluções Burguesas, séculos XVII e XVIII, até a Revolução Francesa (1789/1889) - marco do processo de formação do Estado moderno e das prerrogativas modernas de cidadania.

Com a retomada de princípios da Antigüidade, como Democracia (Grécia) e República (Roma), a força do lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a proclamação da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (ANEXO) , não só os revolucionários franceses, mas praticamente o mundo inteiro acreditou e foi contagiado pela idéia de uma cidadania universal. No entanto, passados dois séculos da Revolução de 1789, podemos afirmar, sem medo de errar, que há dúvidas sobre a existência de liberdade, igualdade e fraternidade no mundo. Estaria o mundo mais livre, igualitário e fraterno?

Parece que não. O que a História revela é que na própria França o pretenso universalismo mostrou seu caráter contraditório. Ao excluir dos direitos de cidadania os pobres, as mulheres e os estrangeiros, e determinar pela Constituição de 1791, que apenas os cidadãos “ativos” - franceses, do sexo masculino, proprietários de imóveis e com renda mínima anual alta - poderiam votar na Assembléia, a cidadania francesa revelou seu comprometimento com a lógica e os interesses da burguesia, ou seja, a individualidade e a propriedade. Contudo, apesar de todas as contradições, como se explica a força, o apelo e atualidade dos termos relacionados à cidadania?

4.1. A construção da cidadania moderna e da categoria cidadão

A fim de legitimar a nova ordem social fundada pela Revolução Francesa, era preciso construir novos códigos, símbolos valores que substituíssem às antigas relações soberano/súdito e senhor/servo. Assim, foi em torno da figura do cidadão que definiram-se as novas regras sociais, os domínios da lei, os limites entre o público e o privado, os novos símbolos de poder, os novos direitos, deveres e papéis sociais.

Porém, e esse é um dado importante para os objetivos deste trabalho, a construção da categoria de cidadão foi fundamentada, principalmente, sob a marca da diferença de gênero. De acordo com a definição de Bonnachi e Groppi (1995), “Se o caráter constitutivo do termo cidadão em oposição ao de súdito reside em sua participação ativa na esfera pública, no curso da Revolução ele se reforça em oposição à passividade da esfera doméstica e privada que compete às mulheres.”

Para a maioria dos teóricos da Revolução, influenciados pelo paradigma da “Teoria da Evolução das Espécies”, de Darwin apud CASTRO (1983), que considerava mulheres e negros seres primitivos e, logo, inferiores, era naturalmente aceitável e justificável que estes não fossem cidadãos. Segundo eles, a impossibilidade de uma mulher ser considerada cidadã tinha origem na própria natureza que, ao criar homens e mulheres diferentes físico, psíquico e emocionalmente, destinou para cada um deles funções específicas e distintas. Com isso, a construção de um ideal masculino forte, racional, inteligente, audaz e corajoso, reforçava e legitimava um espaço social e político ligado ao poder e destinado aos homens. Ás mulheres, “naturalmente” frágeis, emotivas, impotentes e submissas, restava, ao invés de uma história individual, um destino biológico, atrelado ao espaço privado da vida familiar, às tarefas domésticas e à maternidade. Mas outros fatores, além do biológico, determinaram a exclusão da mulher da vida pública.

A Declaração francesa, sob a perspectiva dos Direitos Naturais, no qual Deus teria feito o homem à sua imagem e semelhança, inaugurou um sistema jurídico que definiu a relação jurídica como prioritária a todas as demais relações. Superestimando os direitos do indivíduo e do cidadão e priorizando as Instituições públicas e políticas a Declaração de 1789 excluiu a Família – grupo onde inexiste a categoria de indivíduo- do espaço social. Daí ao não reconhecimento da mulher como ser social e à ratificação da sua submissão ao marido, era apenas uma questão de lógica.

Como é possível perceber, a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” era bastante contraditória e, exatamente por isso, suscitou uma série de questionamentos sobre o papel desempenhado pela mulher ao longo dos séculos e à sua “invisibilidade histórica”. No curso da Revolução, as mulheres começam a reivindicar sua afirmação como sujeito coletivo e individual, dotado de vontade e capaz de exprimir suas idéias e necessidades e que, como pertencente ao gênero humano, têm os mesmos direitos que os homens.

Em 1791, Olympe DeGouges2, foi responsável por uma das mais importantes reações à Declaração de 1789, ao propor à Assembléia Nacional da França a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” (ANEXO). Através deste documento, DeGouges pôs em cheque os postulados defendidos pelos revolucionários e reivindicou direitos individuais para todos os seres humanos e a co-participação entre homens e mulheres, com o fim da relação de domínio entre eles. Embora esta “ousadia” tenha lhe rendido a condenação como contra-revolucionária e a guilhotina, em 1793, sua atitude marca a luta pelo reconhecimento do pleno exercício da cidadania feminina.

Assim, nasce o Movimento Feminista e as mulheres começam a escrever um novo capítulo na história da humanidade, em direção a um mundo menos injusto e desigual.

4.2. A conquista do espaço feminino

Entre o final do séc. XIX e início do séc. XX, quando a mulher deixa a exclusividade do lar e entra no mercado de trabalho3, começa uma nova fase do Movimento Feminista.

Embora nas fábricas e indústrias não houvesse distinção de sexo para o oferecimento de péssimas condições de trabalho, as mulheres encontravam-se em situação desfavorecida. Sob a justificativa de que a renda da mulher era “complementar à do chefe da família”, seu salário não poderia ser maior que o do marido, mesmo que tivesse uma carga horária maior. Além disso, o desempenho de um novo papel, o de operária, não liberou as mulheres das tradicionais responsabilidades e obrigações de mães e esposas, pelo contrário houve um acúmulo de trabalho na vida da mulher.

Essa nova experiência chamou a atenção das mulheres para as desigualdades e discriminações, antes despercebidas ou tidas como naturais, na relação entre homens e mulheres e quanto ao papel que representam na sociedade. Assim, surgem nos Estados Unidos e na Inglaterra as primeiras manifestações organizadas em favor dos direitos da mulher, tendo como principais reivindicações, além de melhores condições de trabalho, o fim da escravidão, o acesso à educação e o direito ao voto.4

No dia 08 de março de 1857, quando realizavam a primeira greve liderada por mulheres, reivindicando aumento salarial e redução da jornada de trabalho para 12 horas, 129 tecelãs foram trancadas e incendiadas pelos proprietários da Fábrica Cotton de Nova Iorque. Em homenagem a estas mulheres, o dia 08 de março foi escolhido para comemorar o Dia Internacional da Mulher.

Considerado fundamental para o acesso a outros direitos, a conquista do direito ao voto tornou-se bandeira principal do movimento de mulheres. E, de fato, após a conquista do voto por mulheres européias e norte-americanas, em todo o mundo surgiram organizações em prol do sufragismo e transformando a questão da igualdade de direitos entre homens e mulheres no paradigma do séc. XX.

A partir de 1948, com a oficialização, pela ONU – Organização das Nações Unidas-, da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, houve uma intensificação dos estudos e pesquisas voltados para o conhecimento das diferenças, discriminações e carências das mulheres em todo o mundo. Nas décadas seguintes, a realização de conferências, convenções e fóruns, de âmbito nacional e internacional, têm ampliado os canais de discussão sobre temas relacionados às mulheres e reforçando a idéia de que, na construção de um mundo melhor, é fundamental a promoção da igualdade, como direito, entre homens e mulheres.

Estes eventos têm o mérito de evidenciar temas importantes como o direito de votar e ser votada para cargos políticos e órgãos públicos; de exercer funções públicas em todos os níveis; de participar da formulação de políticas públicas; da igualdade perante a lei; direito à nacionalidade, direito ao trabalho com igualdade de oportunidades e de salários em relação aos homens; igualdade de acesso aos serviços de saúde pública e de planejamento familiar; igualdade de direitos e responsabilidades no casamento e na relação com os filhos; proteção contra o casamento infantil e a exploração sexual.

Com isso, tomando as palavras de Verrucci apud Bonnachi (1995), “Gradualmente, os direitos da mulher foram integrados aos mecanismos dos direitos humanos, formando parte de um processo de construção de uma cultura universal de respeito pela pessoa humana.”

4.3. O modelo de cidadania brasileiro

A democratização de uma sociedade é fruto de um longo processo de mudanças que vão incorporando os grupos desprivilegiados nos benefícios dos direitos que igualam os indivíduos, indistintamente, no plano político, econômico e social” (AVELAR , 2001)

Influenciado pelas idéias propagadas pela Revolução Francesa e Norte-americana, assim como, pelo constitucionalismo inglês, em 1824, o Estado brasileiro outorga sua primeira Constituição – “Constituição Imperial” e dá inicio à construção de um modelo de cidadania para o Brasil.

No entanto, partindo do pressuposto de que cidadania decorre de um processo político, social e histórico, construído a partir de dimensões individuais e coletivas, a própria organização política e social do Brasil tem dificultado a realização da proposta constitucional de cidadania. Com exceção de épocas eleitorais, quando o ato de votar é exaltado como expressão máxima dos direitos e deveres do cidadão, a questão da cidadania mostra-se ainda muito mal resolvida entre os brasileiros, prevalecendo uma distância entre o que as leis prevêem e as ações do cotidiano.

Segundo o antropólogo DaMatta (1991), o Brasil apresenta um modelo de cidadania paradoxal, no qual as relações e os costumes vivenciados no quotidiano concorrem com os direitos e deveres instituídos pelas leis. Na análise do autor, o caráter universal e impessoal da cidadania, que faz do cidadão o indivíduo que obedece às leis universais e impessoais, sofre “uma espécie de desvio” no Brasil. Na sociedade brasileira, que gira em torno das relações - familiares, de amizade, de compadrio, da troca de interesses e de favores –, o cidadão é visto como um “joão-ninguém” - indivíduo que não participa de nenhum sistema relacional.

Não há brasileiro que não conheça o valor das relações sociais, que não as tenha utilizado como instrumentos de solução de problema ao longo de sua vida. Não há brasileiro que nunca tenha usado o 'você sabe com quem está falando? diante de uma lei universal e do risco de uma universalização que acabaria transformando sua figura moral num mero número ou entidade anônima.” (DAMATTA , 1991)

Tal qual ocorreu na França, o processo de construção da cidadania na sociedade brasileira também teria se formado a partir de dualidades, as quais, segundo argumento de DaMatta (1991), seria o "dilema brasileiro". No Brasil, a oposição entre indivíduo e pessoa também seriam indicadores do espaço5 em que a relação social se realiza. Nesse sentido, o autor refere-se a “casa” e “rua” como partes constitutivas de dois mundos sociais antagônicos, para os quais são inventados "papéis sociais, ideologia, valores, ações e objetos específicos”. Na “casa”, esfera privada, lugar da moradia e da tranqüilidade, as pessoas se relacionam através de algum tipo de sentimento - amizade, afeto, lealdade, cordialidade- inexistindo a figura do indivíduo. Enquanto que na “rua”, esfera pública, onde as pessoas são desconhecidas, não haveria segurança nas relações, prevalecendo a impessoalidade, a competição, a hostilidade, a corrupção, a ilegalidade.6

Ainda segundo DaMatta (1991), a privatização do espaço público também é um fenômeno tipicamente brasileiro. Tratadas como se fosse a própria casa, onde se tem mais direitos que deveres, as instituições públicas acabam se transformando em arena privilegiada para políticos desonestos cuidar dos próprios interesses.

Muitos autores têm atribuído essa natureza relacional da sociedade brasileira à própria formação social do Brasil que teve a família patriarcal como unidade e instituição mais poderosa. Além disso, a descentralização política do período colonial teria criado as condições para um mandonismo local ilimitado, no qual o Senhor seria proprietário não apenas dos bens materiais como dos escravos, filhos e mulheres.

4.4. Evolução social da mulher brasileira

A Proclamação da República, em 1889, criou grande expectativa de mudanças na estrutura da sociedade brasileira em direção à ampliação do direitos de cidadania. No entanto, a Constituição Republicana, de 1891, demonstrou que quase nada mudaria pois, embora ampliando as garantias constitucionais, sedimentou o pacto liberal-oligárquico e manteve o poder político e econômico restrito às camadas privilegiadas. Além disso, ao desobrigar o Estado a fornecer instrução primária grande parte da população, sem ter como custear seus estudos, continuou analfabeta e, com isso, sem direito de votar.

A situação das mulheres, confinadas durante séculos no mundo da “casa” e impossibilitadas de ascenderem à categoria de cidadãs, era ainda mais difícil pois, embora a Constituição não proibisse o alistamento eleitoral feminino, de acordo com os valores patriarcais da sociedade elas seriam “naturalmente” inaptas para a política, o que lhes tirava qualquer possibilidade de tornar-se cidadã, mesmo que fossem alfabetizadas.

É nesse contexto que, influenciadas pelo Movimento Feminista Internacional, as brasileiras dão início ao Movimento Feminista no Brasil, numa trajetória marcada por uma série de retrocessos, decorrentes de fatores de ordem cultural, social, política e econômica do País, mas também de conquistas importantes. Mas quem eram as primeiras feministas brasileiras?

As primeiras brasileiras envolvidas no Movimento Feminista pertenciam às classes sociais mais favorecidas, tinham um bom nível de escolaridade, uma profissão (médicas, dentistas, advogadas, escritoras, poetisas etc.) e um certo status social. Talvez por esse motivo suas reivindicações estivessem muito mais voltadas para a questão da emancipação feminina que propriamente para mudanças estruturais da sociedade. Essas mulheres queriam o desenvolvimento pleno de todas as suas faculdades e a auto-realização - dentro e fora do lar. Para tal, a educação era condição essencial à emancipação feminina.

No início do século XX, a organização das mulheres brasileiras obteve resultados importantes como a fundação do Partido Republicano Feminino (em 1910, por Deolinda Daltro), a fundação da Liga pela Emancipação da Mulher e da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, filiada à International Woman Suffage Aliance (respectivamente em 1919 e 1922, por Bertha Lutz), a conquista do direito de ingressarem no serviço público (em 1917) e a entrada das mulheres no movimento sindical (em 1920). No ano de 1928, no estado do Rio Grande do Norte, após a inclusão de um artigo na constituição estadual que permitia o voto das mulheres, Alzira Soriano7 foi eleita como prefeita.

Na década seguinte, intensificaram-se a participação das mulheres nas questões políticas do país. O apoio dado à Getúlio Vargas, na Revolução, rendeu às feministas a indicação de Bertha Lutz para participar do anteprojeto constitucional, em 1932. Neste mesmo ano, através do Decreto n.º 21.076, de 24 de fevereiro, foi concedido o direito de voto às mulheres, sendo ratificado pela Constituição de 1934. Em 1933, a paulista Carlota Pereira de Queiróz foi eleita a primeira deputada federal brasileira. No ano seguinte, foram eleitas 8 deputadas para as assembléias constituintes estaduais e, em 1935, foi eleita a primeira deputada estadual do Brasil, Maria do Céu Fernandes, pelo Rio Grande do Norte.

Com a instituição do Estado Novo, 1937 a 1945, o Brasil deu início a um período de obscurantismo político, de autoritarismo e total desrespeito à cidadania. Com o fechamento das instituições políticas parlamentares, o país passou a ser conduzido pelo Presidente da República, a quem foi atribuído o poder de legislar através de Decretos-lei8. Com isso, a primeira deputada eleita para a Câmara Federal, Carlota Pereira de Queiroz, perdeu seu mandato. Com a promulgação da Constituição de 1946 ocorre a volta do Estado de Direito e retoma-se a idéia de cidadania e de democratização do país. Em 1949, com a criação da Federação de Mulheres do Brasil, no Rio de Janeiro, o movimento de mulheres ganha intensidade e marca presença nos movimentos políticos da década de 1950.

A partir de 1964, com a instauração do regime militar, os movimentos sociais voltaram a ser reprimidos9, sendo retomados apenas na década de 1970. Nesse momento o movimento de mulheres se organiza em torno da luta por melhores condições de vida, pela volta da Democracia e pela anistia. A grande maioria das líderes feministas vinham de universidades, movimentos de base da Igreja Católica e antigos partidos clandestinos, como o PCB, o que explica um comprometimento com as questões estruturais da sociedade brasileira inexistente nas bandeiras feministas do início do século XX.

Na década de 1980 o movimento feminista pôs em discussão a questão da violência contra a mulher. Entre a principais conquistas do período destacam-se a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em 1985, e a eleição de 26 mulheres como deputadas constituintes. A ação que ficou conhecida como "lobby do batom", resultou na aprovação e inclusão de mais da metade das propostas e reivindicações encaminhadas por Movimentos de Mulheres de todo o Brasil na Constituição de 1988.

Na década de 1990, mulheres de diferentes setores da sociedade - pobres, ricas, negras, intelectuais, lésbicas, líderes comunitárias, donas de casa, trabalhadoras urbanas e rurais, entre outras - passaram a integrar as organizações feministas, aumentando a pressão por maior espaço político feminino. A criação de redes temáticas ampliou a discussão sobre questões relacionadas à violência contra a mulher, creches, educação não diferenciada, saúde, sexualidade, trabalho, direitos reprodutivos etc. Visando incentivar a participação política das mulheres e neutralizar a discriminação dentro dos partidos, a Lei 9100/95 determinou o mínimo de 20% das vagas de cada partido para candidatas mulheres. Em 1996, o Brasil teve a primeira eleição sob o princípio de quotas.

Cabe ressaltar que, não obstante o número de mulheres eleitas venha aumentando a cada eleição10, este fato não pode ser considerado conseqüência direta da implementação das Cotas. Do mesmo modo, embora a presença feminina nas instâncias de representação política represente a decadência de uma invisibilidade histórica da mulher, é preciso chamar a atenção de que nem todas as eleitas estão envolvidas com a causa feminista. E isto faz muita diferença.

A violência doméstica, o estupro, o assédio e o turismo sexual, a prostituição e o tráfico de meninas e de mulheres, embora quase nunca denunciados, são fatos recorrentes em todos os cantos do país. No que tange à educação, são raras as famílias que estimulam as meninas a ingressarem em áreas científicas e tecnológicas, o que induz à manutenção de certas profissões como típicas de um ou outro sexo. Também são raros os casais que encaram a administração do lar e a criação dos filhos como responsabilidade de ambos os parceiros.

Apesar do aumento da participação feminina no mercado de trabalho a desigualdade salarial entre homens e mulheres ainda é uma realidade e entre os desempregados do País elas representam a maioria. Em relação à saúde da mulher cresce assustadoramente o numero de mulheres infectadas pelo vírus HIV/AIDS e de outras doenças sexualmente transmissíveis, de casos de gravidez na adolescência, de mortes por abortos clandestinos.

O aumento da participação da mulher na política tem sido apontado como um dos principais desafios a ser enfrentado pelos movimentos de mulheres na luta por novos direitos e pela execução prática dos já conquistados. Cabe ressaltar que, embora as limitações femininas sejam basicamente de ordem prática, como sobrecarga na jornada de trabalho e falta de recursos financeiros, elas ainda são confundidas com uma inaptidão feminina para a política. Enquanto isso, os partidos políticos continuam sendo verdadeiros redutos masculinos, dificultando não só a candidatura feminina como a defesa dos interesses mulheres.

5. Considerações

Num balanço sobre a evolução social da mulher brasileira, ao longo do séc. XX, pode-se dizer que o resultado foi positivo. No entanto, passados 70 anos de conquista do direito ao voto, a constatação é de que a mulher brasileira ainda não exerce plenamente seus direitos enquanto cidadã. Os problemas especificamente femininos ainda não são vistos como prioridades nas agendas políticas.

Apesar da luta feminista ter viabilizado, com a conquista dos direitos políticos, a elevação da mulher ao status de cidadã, ela não foi suficiente para acabar com os preconceitos e estereótipos em relação às mulheres.

É preciso dar prosseguimento ao processo de liberdade e igualdade, com ações efetivas que venham preencher a lacuna existente entre a teoria e a prática. É premente diminuir o desnível que impera sobre a sociedade feminina nos dias de hoje e, para tanto, será necessário construir novos conceitos, baseados em modernas reflexões a respeito da posição que a mulher está ocupando na sociedade.

Sem a pretensão de abranger a maioria das teorias envolvidas a respeito do tema, pelo que fora visto neste trabalho, recomenda-se a continuidade do estudo, segundo o prisma da desigualdade social, para a partir de então, promover ações que possam efetivamente transformar condutas, formando cidadãos conhecedores de seus direitos e deveres, através da informação.

6. Referências

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AVELAR, Lúcia. Mulheres na elite política brasileira. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer: UNESP, 2001.

BONACCHI, Gabriela ; GROPPI, Angela. O Dilema da Cidadania. São Paulo: UNESP, 1995.

CARDOSO, Ruth et al. Sobre mulher e violência. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1985. (Perspectivas Antropológicas da Mulher, 4)

CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983.

Dallari, Dalmo. A Cidadania e sua história. Disponível em < http://www.cefetsp.br/edu.eso/cidadaniahistoriadallari.html > . Acesso em: 20 abr. 2004.

DAMATTA, Roberto. A Casa & A Rua : espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, c 1991. 177p.

HERKENHOFF, João Baptista. A cidadania. 2. ed. Manaus: Valer, 2001.

JORNAL O GLOBO – ENCARTE ESPECIAL O GLOBO 2000 – “CEM ANOS ENTRE LONDRES E PEQUIM” por Rosiska Darcy de Oliveira.

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POLANCO, J. J. La representación Politica de las Mujeres em América Latina. [ S.L.:s.n.].

TABAK, Fanny. Mulher e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982

1 Entre os principais nomes do Iluminismo destacam-se Montesquieu, Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Voltaire, Diderot e D'Alembert Condorcet, D'Holbach e Emanuel Kant.

2 Seu nome verdadeiro era Marie Gouze. Olympe era usado na assinatura de panfletos e documentos em grande variedade de frentes de luta.

3 Dois fatores foram considerados determinantes para a entrada da mulher no mercado de trabalho: a necessidade imperiosa do uso da mão-de-obra feminina na produção das fábricas e indústrias têxteis que cresciam rapidamente na Europa e o recrutamento de um grande contingente masculino nas duas grandes Guerras Mundiais que obrigaram muitas mulheres a assumirem os negócios da família.

4 Nos Estados Unidos, embora as primeiras reivindicações pelo direito ao sufrágio feminino tenham acontecido em 1848 (durante a Convenção dos Direitos da Mulher, em Sêneca), somente em 1920 ele foi conquistado. Na Inglaterra, após uma luta de quase seis décadas, o voto feminino foi concedido em 1928.

5 Espaço entendido como categoria sociológica e esfera de ação social e de valores.

6 A noção de pessoa relacionada à troca de favores, ao “jeitinho brasileiro”, à "carteirada", segundo o autor, seria um dos fatores responsáveis por uma certa inclinação para a corrupção e o descumprimento das leis.

7 Luiza Alzira Soriano Teixeira, em 1928, disputou as eleições para Prefeito, pelo Partido Republicano, no Município de Lages, Rio Grande do Norte, vencendo o referido Pleito com 60% dos votos. www.tre-rn.gov.br/tre-rn/alzirabi.htm. Disponível em 27/05/2004.

8 Com a criação do Tribunal de Segurança Nacional - Tribunal de Exceção – o governo passou a ter competência para julgar os crimes contra o Estado e a estrutura das instituições.

9 A Constituição outorgada em 1969, radicaliza a ação da ditadura e aprofunda o retrocesso político com a instauração dos Atos Institucionais.

10 Nas eleições de 2002 houve uma eclosão política das mulheres no Brasil. Houve uma candidata à vice-presidência da República e duas mulheres foram eleitas Governadoras: uma pelo estado do Rio Grande do Norte e a outra pelo Rio de Janeiro, onde três candidatas disputavam o cargo. Para a Câmara dos Deputados foram eleitas quarenta e quatro mulhere e para o Senado Federal oito.


Publicado por: ANA CLAUDIA DA SILVA PITANÇA

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