ANÁLISE DA LEGALIDADE DA INVASÃO DE DOMICÍLIO NOS CRIMES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO E NAS CONTRAVENÇÕES PENAIS

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1. RESUMO

O presente estudo visa sanar uma dúvida recorrente na sociedade atualmente: a invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais é legal? Esse questionamento surge com base no princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio, sendo a casa asilo inviolável do indivíduo, na qual não poderia ser invadida sob o pretexto do cumprimento da lei, salvo exceções constitucionalmente elencadas. Entre as referidas exceções, encontra-se o flagrante delito. No entanto, alguns delitos possuem menor potencial ofensivo, o que poderia ensejar uma maior proteção da residência. Por outro lado, não pode o agente revestir-se do manto constitucional da inviolabilidade domiciliar para a perpetração de delitos, seja de maior ou de menor potencial ofensivo. Nesse sentido, uma breve análise da evolução do direito constitucional é pertinente, assim como os dispositivos constitucionais que tratam da inviolabilidade do domicílio, o conceito de infração penal, crime e contravenção penal. Cabe ainda uma verificação da legalidade ou ilegalidade da invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo, através da ótica legal e jurisprudencial. Assim, através de uma pesquisa bibliográfica, pela abordagem dedutiva, é possível esta análise. Dessa forma, o conteúdo apresentado permite uma maior compreensão sobre a legalidade ou ilegalidade da invasão do domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo, respaldando ações legalmente instituídas e afastando falsas noções de inviolabilidade domiciliar absoluta. Sendo assim, há de se ressaltar que nenhum direito é absoluto, assim como não é a inviolabilidade domiciliar, sendo legal a invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo.

Palavras-chave: Invasão de domicílio. Crimes de Menor Potencial Ofensivo. Contravenções Penais. Legalidade. Ilegalidade.

2. INTRODUÇÃO

Hodiernamente, não são raros os episódios em que a segurança pública atua em crimes de menor potencial ofensivo, muitas vezes, sendo necessário o ingresso no domicílio do agente. Afastando delitos de maior gravidade, onde a flagrância por si só justificaria o ingresso indesejado da polícia na residência, os pequenos delitos assim como as contravenções penais, podem ensejar interpretação diversa, sobre a proporcionalidade entre uma garantia individual – a inviolabilidade do domicílio – e o cumprimento legal daquilo que é definido como crime de menor potencial ofensivo.

Nesse prisma, este estudo apresenta como tema a legalidade ou ilegalidade da invasão do domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo, através de uma ótica legal e jurisprudencial.

Justifica-se na medida em que a sociedade se encontra em uma época em que as garantias constitucionais permitem ao indivíduo uma série de direitos inerentes ao ser humano. No entanto, pode-se observar uma inversão de valores quando o indivíduo faz uso desses direitos individuais para cometer ilícitos, tendo em mente estar acobertado por uma série de garantias, que seriam supremas à legislação penal.

Dessa forma, o que pode gerar algumas incertezas quanto à legalidade da atuação policial é o fato de o indivíduo se resguardar do manto constitucional da inviolabilidade do domicílio para a prática de crimes de menor potencial ofensivo.

Nesse contexto, a atuação da Polícia Militar, em especial, é a mais ampla e variada possível. O atendimento miliciano abrange todas as idades, raças, classes sociais, sexo, gênero, nos mais variados contextos sociais. Engloba desde uma simples discussão, ou atrito verbal, até mesmo casos de homicídios, passando por roubo, furto, lesões corporais, estelionato e uma série de delitos devidamente tipificados na legislação penal. Além disso, atua também nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais, como exemplo, o caso da perturbação do sossego alheio. Este tipo de ocorrência possui enorme incidência dentro da realidade policial, exigindo da Corporação recursos que poderiam ser empregados em outros tipos de delitos, muitas vezes, mais graves.

Sendo assim, uma revisão bibliográfica da legislação sobre o tema, do entendimento doutrinário e jurisprudencial, pode resultar no embasamento legal da atuação policial nos casos de invasão de domicílio em crimes de menor potencial ofensivo, apontando sua legalidade ou ilegalidade.

Diante do exposto, dentro da linha Justiça e Sociedade, este estudo se enquadra na área de concentração da Constituição, Direitos Fundamentais e Sociedade, Liberdades.

Dessa forma, surge a pergunta: Há ilegalidade nos casos em que agentes de segurança, representantes do Estado adentram domicílios para a prisão em flagrante delito nos crimes de menor potencial ofensivo ou nas contravenções penais?

Para responder ao questionamento suscitado, propõe-se como objetivo geral: analisar a legalidade da entrada em domicílios pelos agentes de segurança, representantes do Estado para efetuarem a prisão em flagrante delito nos crimes de menor potencial ofensivo ou nas contravenções penais. No intuito de alcançar este objetivo, os objetivos específicos consistem em: apresentar um esboço histórico da evolução do direito e do domicílio; identificar os dispositivos constitucionais que garantem a inviolabilidade de domicílio; verificar a legislação de crimes de menor potencial ofensivo e suas respectivas sanções; revisar a jurisprudência que trata do tema abordado, analisando se o entendimento majoritário direciona-se pela legalidade ou pela ilegalidade da invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo.

Em relação aos procedimentos metodológicos, garantem o caráter científico da pesquisa, principalmente para uma questão controversa como inviolabilidade de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais.

Nesse sentido, adota-se a técnica de pesquisa bibliográfica, baseada em uma revisão de bibliografias de obras sobre o tema inviolabilidade do domicílio, leis e jurisprudências. Possui ainda uma natureza qualitativa, visando pesquisar e representar a qualidade dos discursos. Além disso, utiliza uma abordagem dedutiva, partindo de um tema geral, especificando o objeto de estudo. Em relação ao procedimento, aplica-se o monográfico, uma vez que é direcionado para um tema específico.

Portanto, o estudo apresenta os requisitos necessários para a elaboração de uma pesquisa pautada na cientificidade e procedimentos metodológicos.

Conforme o exposto, a estrutura do trabalho apresenta-se em cinco capítulos sendo o primeiro a introdução e o último a conclusão sobre o tema. Assim, no primeiro capítulo teórico será abordada a evolução do Direito Constitucional, a Constituição de 1988, os direitos fundamentais previstos na mesma, além da teoria dos limites aos direitos fundamentais e a tese dos limites dos limites. Será apresentada ainda a inviolabilidade do domicílio e sua previsão constitucional, além do conceito de domicílio e a flexibilização do direito à inviolabilidade domiciliar.

No segundo capítulo teórico, será abordada a infração penal, crime e contravenção penal, abarcando o direito penal e a humanidade, o seu caráter científico, diferenças entre crime e contravenção penal e os crimes de menor potencial ofensivo.

Por derradeiro, no terceiro e último capítulo teórico, será analisada a (I)legalidade na invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais, sua permissão e proibição, a doutrina e jurisprudência sobre a inviolabilidade domiciliar.

3. BREVE SÍNTESE DA EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

Para dar início ao estudo, faz-se necessária uma breve síntese da evolução constitucional brasileira, passando pela Constituição de 1988, os direitos fundamentais nela previstos, o limite a esses direitos e a tese dos limites dos limites. Necessário ainda verificar os dispositivos constitucionais e a inviolabilidade do domicílio, a previsão contida na Constituição Federal de 1988, o conceito de domicílio e a flexibilização do direito à inviolabilidade domiciliar.

Nesse sentido, não se pode olvidar da evidente evolução ocorrida com o Direito Constitucional com o passar dos anos, em que tinha como escopo fundamental a limitação do poder.

Consubstanciava-se numa ideia fundamental: a limitação da autoridade governativa. Tal limitação se lograria tecnicamente mediante a separação de poderes (as funções legislativas, executivas e judiciárias atribuídas a órgãos distintos) e a declaração de direitos. (BONAVIDES, 2013, p. 38).

Nota-se, assim, a necessidade de limitar o poder, principalmente através da separação de poderes, o que se tem definido hoje como Executivo, Legislativo e Judiciário. No Brasil, também ocorreu uma evolução até a promulgação da Carta Magna de 1988.

Segundo Lima (2016), nota-se uma evolução em relação à Constituição Política do Império do Brasil de 1824, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, a Constituição do Brasil de 1967, a Emenda Constitucional N. 1 de 1969, os Atos Institucionais e finalmente a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Conforme exposto, visualiza-se a existência de uma série de Constituições com o passar dos anos até a chegada da atual Carta Magna, onde se destacam os direitos e garantias fundamentais.

A constituição brasileira de 1988 tem como objeto, basicamente, os direitos e garantias fundamentais; a estrutura e organização do Estado e de seus órgãos; o modo de aquisição e a forma de exercício do Poder; a defesa da Constituição, do Estado e das instituições democráticas; e os fins socioeconômicos do Estado. (NOVELINO, 2012, p. 84).

Desse modo, considerando que cada constituição reflete um momento histórico próprio, visualiza-se na Carta de 1988 um caráter social potencializado, voltado para o indivíduo e os anseios sociais.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 difere de todas as demais Constituições existentes no Brasil, em razão de sua índole humanitária, isto é, atinente ao coletivo, ao global. Por isso mesmo, é classificada quanto aos direitos fundamentais, na terceira geração, por atentar ao princípio de solidariedade e aos direitos humanos. Como Estado democrático de direito tem como fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. (LIMA, 2016).

Sendo assim, a evolução do processo histórico brasileiro garantiu à Constituição de 1988 um caráter mais voltado para a sociedade, sendo carinhosamente chamada de Constituição Cidadã.

3.1. A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Diante da evolução das constituições anteriores, a Carta Magna de 1988 possui características próprias, que difere das anteriores. Entretanto, antes de sua classificação, cabe uma diferenciação entre a constituição material e a constituição formal.

De acordo com Fernandes (2011, p. 30), “a constituição material é o conjunto de matérias escritas ou não em um documento (constituição formal) constitutivas do Estado e da sociedade. Ou seja, o núcleo ideológico constitutivo do Estado e da Sociedade”.

É possível verificar que uma constituição vai além do texto meramente reproduzido em um documento, uma vez que possui matérias correlatas ao Estado e à sociedade.

Em relação à Constituição de 1988, “nossa Constituição Federal apresenta a seguinte classificação: formal, escrita, legal, dogmática, promulgada (democrática, popular), rígida, analítica”. (MORAES, 2013, p. 10).

Além disso, Fernandes (2011, p.30) ainda assevera que quanto à unidade documental, a atual Carta é orgânica, sendo principiológica quanto ao sistema e dirigente em relação à finalidade.

Dessa forma, conforme aludido, as características da Constituição de 1988 possuem uma estrutura formal, rígida, escrita, promulgada, dogmática, analítica, orgânica eclética, principiológica, dirigente, cabendo ainda outras classificações realizadas por outros autores, mas que não alcançam o proposto neste estudo.

3.1.1. Direitos fundamentais previstos na Carta Magna de 1988

Uma vez apresentadas as características da atual Constituição, passa-se agora a verificar o que ela dispõe sobre os direitos fundamentais. Antes disso, porém, há a necessidade de visualizar que existem princípios fundamentais, estruturantes, em relação à organização política do país.

De acordo com Moraes (2012, p. 94), “os princípios fundamentais são sínteses das normas constitucionais, que a eles podem ser direta ou indiretamente reconduzidas, com o objetivo de organizar o Estado”.

Dessa forma, os princípios fundamentais delineiam a estrutura do Estado, através da democracia, república e a federação.

Segundo Silva (2013, p. 94), “os princípios constitucionais são basicamente de duas categorias: os princípios político-constitucionais e os princípios jurídico-constitucionais”.

Evidenciadas algumas considerações sobre os princípios fundamentais presentes na Constituição Federal de 1988, torna-se possível uma breve compreensão de sua estrutura, alinhando-se com a organização política do país.

Já na abertura do texto constitucional de 1988, o constituinte se preocupou em destacar, no seu título I, o que chamou de princípios fundamentais – [...], os princípios estruturantes – da Constituição. Esses princípios são responsáveis pela organização da ordem política do Estado brasileiro, demarcando teórica e politicamente o pensamento e as convicções da Assembleia Constituinte. (FERNANDES, 2011, p. 203).

Desse modo, destacam-se os princípios fundamentais, também chamados de princípios estruturantes, que denotam o anseio almejado pela Assembleia Constituinte.

Demonstrada as considerações acima, cabe analisar neste momento o que seriam os direitos fundamentais, que não devem ser confundidos com os direitos humanos.

Preliminarmente, cabe considerar que a Carta de 1988, como marco jurídico da transição ao regime democrático, alargou significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais, colocando-se entre as Constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito à matéria. (PIOVESAN, 2013, p. 87-88).

Como já mencionado, a Constituição de 1988 possui um caráter social destacado, assim como esta característica reflete nas questões de direitos e garantias fundamentais.

Segundo Tavares (2012, p. 486), para que seja possível falar em direitos fundamentais se faz necessária a reunião de três elementos: o Estado; a noção de indivíduo; a consagração escrita.

Nesse sentido, os direitos fundamentais necessitam da presença dos elementos supra elencados para sua adequada efetivação.

[...] os direitos fundamentais seriam, ao mesmo tempo, ora vistos como direitos de defesa (ligados a um dever de omissão, um não fazer ou não interferir no universo privado dos cidadãos), principalmente contra o Estado; mas ainda, como garantias positivas para o exercício das liberdades (e aqui, entendidos como obrigações de fazer ou de realizar) por parte do mesmo Estado. Dito de outro modo: através dos direitos fundamentais um cidadão é titular de um direito subjetivo contra o Estado [...] que estaria, por sua vez, obrigado a uma ação (prestação positiva) ou omissão (prestação negativa). (FERNANDES, 2011, p. 229).

É possível observar ainda que os direitos fundamentais consistem em uma limitação ao Estado, ao mesmo tempo em que impõe uma conduta positiva do mesmo. Logo, ao indivíduo é tutelado um direito subjetivo em relação ao Estado.

[...] o termo direitos fundamentais afigura-se como o único apto a exprimir a realidade jurídica precipitada, pois que, cogitando-se de direitos, alude-se a posições subjetivas do indivíduo, reconhecidas em determinado sistema jurídico e, desta feita, passíveis de reivindicação judicial. O adjetivo ‘fundamentais’ traduz, por outro ponto, a inerência desses direitos à condição humana, exteriorizando, por conseguinte, o acúmulo evolutivo dos níveis de alforria do ser humano. (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2013, p. 151).

Nesse prisma, tem os direitos fundamentais a proteção do indivíduo em uma constante evolutiva somatória no intuito de resguardar cada vez mais o ser humano, protegendo-o dos possíveis abusos do Estado.

Para Moraes (2012, p. 521), “os direitos fundamentais são conceituados como direitos subjetivos, assentes no direito objetivo, positivados no texto constitucional, ou não, com aplicações nas relações das pessoas com o Estado ou na sociedade”.

Desse modo, embora não estejam positivados no texto constitucional, ainda assim encontram guarida os direitos humanos na proteção do indivíduo, uma vez que se trata de uma noção acima da questão transcrita na Carta Maior.

Sobre o assunto, leciona Galuppo (2003, p. 223), que “os direitos fundamentais são produtos de um processo de constitucionalização dos direitos humanos, entendidos esses últimos como elementos de discursos morais justificados ao longo da história”.

Portanto, verifica-se que os direitos humanos dão origem aos direitos fundamentais, constitucionalizando-os.

A ideia de que todo Estado deve possuir uma Constituição e de que esta deve conter limitações ao poder autoritário e regras de prevalência dos direitos fundamentais desenvolve-se no sentido da consagração de um Estado Democrático de Direito (art. 1.º, caput, da CF/88) e, portanto, de soberania popular. (LENZA, 2015, p. 127).

Sendo assim, a limitação do poder estatal e a consagração dos direitos fundamentais refletem os princípios estruturantes da Constituição, desencadeando em um Estado Democrático de Direito, fazendo com que a soberania popular possa ser exercida por meio dos cidadãos.

3.1.2. Teoria dos limites aos direitos fundamentais e a tese dos limites dos limites

Uma vez apresentada apertada síntese acerca dos direitos fundamentais, não se pode olvidar que os direitos fundamentais estão longe de configurar direitos absolutos. Torna-se necessária, portanto, uma análise dos limites, restrições que recaem sobre as garantias explicitadas.

O entendimento contemporâneo dos direitos fundamentais, ainda mais quando tomados como valores, representa uma leitura relativista. Isto é, os direitos fundamentais não podem ser tomados como elementos absolutos na ordem jurídica, mas sempre compreendidos e analisados caso a caso e de modo relativo (ou limitado). Nesses termos, temos a afirmação da inexistência de hierarquia entre direitos fundamentais, sendo a posição topográfica que ocupam no texto constitucional apenas um elemento circunstancial, mas nunca revelador de uma superioridade entre os mesmos. (FERNANDES, 2011, p. 254).

Nesse sentido, observa-se que não existe direito absoluto, mas sim sua relativização. Do mesmo modo, os direitos fundamentais não devem ser comparados de forma valorativa, ainda que estejam dispostos no texto constitucional em uma imaginável ordem numérica. Verifica-se que não há maior prevalência de um sobre o outro, o que demonstra de modo derradeiro não existir um direito absoluto. Como visto, faz-se necessário relativizar, ponderar as questões analisadas para que se obtenha um resultado harmônico, impondo limites aos direitos, se assim o caso exigir.

O exercício dos direitos individuais pode dar ensejo, muitas vezes, a uma série de conflitos com outros direitos constitucionalmente protegidos. Daí fazer-se mister a definição do âmbito ou núcleo de proteção e, se for o caso, a fixação precisa das restrições ou das limitações a esses direitos (limitações ou restrições = Schranke oder Eingriff). (MENDES; BRANCO, 2011, p. 219).

Sendo assim, deve-se ratificar a inexistência de um direito absoluto, ainda que fundamental. No conflito existente entre direitos resguardados pelo manto constitucional, faz-se necessária uma ponderação para analisar aquele que deve ser mitigado.

[...] os Direitos Fundamentais, aliás em comunhão com os demais direitos, não são absolutos, mas limitáveis. Isso significa que, por vezes, o comando de sua aplicação concreta não pode resultar na aplicação da norma jurídica em toda sua extensão e alcance. (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2013, p. 165).

Diante do que foi explicitado, não há que se falar em direito absoluto. Reitera-se a sua limitabilidade, sob a necessidade de ponderação entre eles.

Dessa forma, “no caso concreto em si é que se poderia verificar com segurança a extensão e os limites a serem impostos a um determinado direito fundamental”. (FERNANDES, 2011, p. 254).

Ou seja, a abstração de possibilidades de colisões de direitos fundamentais pode ser tamanha, que não seria viável essa previsão, devendo, quando de sua ocorrência, ser realizada uma análise sobre o fato específico.

Segundo Moraes (2012, p. 531): “a relatividade informa a fenomenologia da colisão de direitos fundamentais, que deve ser solucionada na dimensão do peso, pelo mecanismo de ponderação, com a finalidade de obter a harmonização entre os princípios em conflito”.

Diante da possibilidade de limitação dos direitos fundamentais, questiona-se de que modo isso poderia ocorrer:

Nesses termos, a pergunta seria a seguinte: direitos fundamentais podem ser restringidos (limitados) por atos normativos infraconstitucionais? A resposta para a corrente mais atual é que sim! Ou seja, embora tenhamos clássicos autores que ainda defendem a tese de que os direitos fundamentais previstos na Constituição só poderiam ser limitados pelas próprias normas constitucionais (ex.: relação do art. 5º, I com os arts 7, XVIII e XIX da CR/88), não há dúvida de que as normas infraconstitucionais poderiam desenvolver esse papel para a doutrina majoritária de derivação europeia. (FERNANDES, 2011, p. 203).

Sendo assim, verifica-se possível a limitação dos direitos fundamentais, onde se ressalta, não são absolutos, cabendo sua relativização, sua flexibilização, afastando sua aplicabilidade plena.

Explicitada a questão dos direitos fundamentais e sua relativização, pertinente agora uma explanação acerca dos dispositivos constitucionais que tratam da inviolabilidade do domicílio.

3.2. DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS E A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

Considerando o tema proposto no presente estudo, é cabível uma breve análise do texto constitucional no tocante a inviolabilidade do domicílio, sua previsão na Constituição de 1988 e o que abrange o conceito de domicílio.

A nossa Constituição Federal consagra a inviolabilidade do domicílio. Trata-se de um direito fundamental enraizado mundialmente, com bases nas tradições inglesas. Os doutrinadores reconhecem que os direitos fundamentais não podem servir de proteção às pessoas que praticam atos ilícitos e menos ainda subtrair a responsabilidade, seja civil ou penal, por atos ilegais. Se assim fosse, estaríamos consagrando o desrespeito ao Estado de Direito. (BERTOLO, 2003, p. 133).

De fato, a proteção do direito fundamental em estudo é consagrada na Lei Maior vigente, algo que vai além das fronteiras territoriais brasileiras, uma vez que se trata de direito reconhecido mundialmente. Veja-se sua previsão no dispositivo constitucional.

3.2.1. Previsão na Carta Magna de 1988

A previsão da inviolabilidade do domicílio na Constituição Federal de 1988, garante sua proteção constitucional, afastando sua violação.

Em que pese a análise do tema tratado na Carta Magna de 1988, o texto constitucional discorre sobre a inviolabilidade do domicílio em seu título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Reza, no referido diploma legal, em seu artigo 5º, inciso XI, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. (BRASIL, 1988).

Conforme exposto, é possível observar o tratamento constitucional sobre o tema. O domicílio possui guarida constitucional. Sua proteção é tamanha, que vem tratada no Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais, da Carta Maior. Isso demonstra a relevância do assunto em estudo e a cautela quanto à invasão de domicílio, onde deve ser verificada a legalidade ou ilegalidade de sua invasão, em caso de flagrante delito, nos crimes de menor potencial ofensivo.

No entanto, não se pode olvidar que nenhum direito é absoluto, como também não o é a inviolabilidade do domicílio. Há situações que permitem e algumas que até exigem a violação do domicílio, que variam de flagrante delito, desastre, prestação de socorro ou determinação judicial.

Mas, por não se tratar de direito absoluto, o próprio texto constitucional consagra exceções: nos casos de desastre, prestação de socorro ou flagrante delito durante o dia ou durante a noite e ainda durante o dia por determinação judicial. Aqui diferenciamos: a) critério físico-astronômico: equivalente ao lapso de tempo entre o crepúsculo e a aurora; b) critério cronológico: das 6h às 18h; c) critério misto: a junção dos dois outros critérios. As exceções, tanto de dia como de noite, em caso de flagrante delito ou desastre, e ainda, para prestar socorro são explicitadas do seguinte modo: Por flagrante delito devemos entender os termos definidos no CPP (Código de Processo Penal). Por desastre, devemos entender os eventos calamitosos, como incêndios, inundação, etc. No caso na invasão no intuito de prestar socorro, deve-se pontuar que, aqui, é caso diverso da entrada em razão da calamidade, também não se justificando por qualquer fundamento, mas apenas se presente um risco sério (grave) e uma situação que impeça o pedido de acesso. (FERNANDES, 2011, p. 324).

Mas o que abrange o termo constitucional casa? O que vem a ser domicílio? Esse entendimento é pertinente para possibilitar uma maior compreensão do tema proposto, sendo tratado no item seguinte.

3.2.2. Conceito de Domicílio

A Carta Magna de 1988 traz em seu texto o termo “casa” para designar a proteção constitucional, direito fundamental da inviolabilidade da mesma. Porém, vai muito além disso ao tratar do tema. De acordo com Silva (2013, p. 439):

O art. 5º, XI da Constituição consagra o direito do indivíduo ao aconchego do lar com sua família ou só, quando define a casa como o asilo inviolável do indivíduo. Aí o domicílio, com sua carga de valores sagrados que lhe dava a religiosidade romana. Aí também o direito fundamental da privacidade, da intimidade, a vida privada[...].

Percebe-se, pelo que foi exposto, que o termo domicílio possui um contexto histórico relevante. Embora a atual Constituição seja datada do ano de 1988, a casa remete a antecedentes históricos bem mais longínquos.

No curso da história da humanidade, a casa é a primeira instituição de civilidade que marca a passagem do nomadismo à instalação estável do homem. Sua proteção ocupa lugar de destaque entre os valores existentes nas comunidades primitivas conhecidas, embora, durante muito tempo, o objeto da tutela tivesse se identificado com a construção material. É que somente em época relativamente recente adquiriu-se a consciência da instrumentalidade de tal tutela e da individualização de seu objeto num bem imaterial da personalidade. (GROTTI, 1993, p. 13).

Nesse sentido, verifica-se o caráter histórico do termo apresentado, que remonta à antiguidade, sendo utilizada a casa para a proteção do indivíduo contra as intempéries, dos animais e de outros indivíduos.

Nos ensinamentos de Mendes e Branco (2011, p. 327):

O conceito de domicílio abrange todo lugar privativo, ocupado por alguém, com direito próprio e de maneira exclusiva, mesmo sem caráter definitivo ou habitual. O conceito constitucional de domicílio é, assim, mais amplo do que aquele do direito civil.

Diante do apresentado, verifica-se que o conceito de domicílio não se restringe apenas a “casa”, vai além, podendo abranger outros ambientes. Fato é que o domicílio resguarda o indivíduo de uma série de intempéries, desde os primórdios.

Fosse caverna, choupana, ou qualquer outro meio de habitação característico do estado social do homem primitivo, ele sempre se protegeu, a começar por paredes que o resguardassem de animais, dos outros homens, das chuvas, do calor, do frio e de outros fatos do mundo exterior. Desde cedo a casa funcionou para o homem como se “casco” ou sua “couraça”. (GROTTI, 1993, p. 13).

Mas então, poderia se questionar em que momento o termo “domicílio” passa a fazer parte da interpretação do texto constitucional, dada sua abrangência em relação ao termo “casa”.

Nas lições de Araujo e Nunes Júnior (2013, p. 207), embora existam várias definições de domicílio, principalmente no Código Civil, o dispositivo constitucional visou uma maior proteção, prezando pela intimidade e privacidade das pessoas.

Para compreender essa distinção, o ensinamento de Grotti é esclarecedor:

É necessário, porém, atender a que o ajustamento de um conceito jurídico à noção de fato do domicílio só pode operar-se quando o Estado foi adquirindo condições de reconhecer, garantir e proteger o domicílio dos indivíduos. (GROTTI, 1993, p. 13).

Nesse prisma, a compreensão do termo domicílio permite um maior entendimento do tema de estudo proposto, possibilitando uma diferenciação entre casa, local de trabalho, área aberta ao público, etc.

O artigo 5º, XI da Constituição de 1988 traz ainda uma proteção ao domicílio, tornando-o inviolável. Por domicílio, entende-se o espaço físico no qual o indivíduo goza de sua privacidade, nas suas mais variadas modalidades. É portando, criticável o termo utilizado pelo constituinte, por isso ele deve ser interpretado (de forma ampliativa à luz do conceito jurídico de casa) como qualquer compartimento habitado, até mesmo um aposento que não seja aberto ao público, utilizado para moradia, profissão ou atividade, nos termos do art. 150 § 4º do Código Penal. Com isso, temos que os consultórios, escritórios ou mesmo, os estabelecimentos comerciais ou industriais de acesso restrito ao público (locais nos quais as pessoas exercem atividade de índole profissional com exclusão de terceiros) devem ser enquadrados no conceito de domicílio previsto na Constituição. (FERNANDES, 2011, p. 323).

Considerando o exposto, nota-se que a proteção vai além do termo casa. Compreende o domicílio, que abrange uma maior guarida constitucional. Entretanto, outros autores entendem que o termo casa foi empregado corretamente na Carta Maior, afastando, assim, interpretações que poderiam interferir na intenção proposta pelo legislador:

O constituinte brasileiro, seguindo a tradição anterior, com exceção da Constituição de 1937, foi feliz ao utilizar o termo “casa”, e não “domicílio”, contribuindo dessa forma para evitar interpretações dúbias de conceitos jurídicos. Se bem que nos projetos apresentados da atual Constituição, mencionavam ora residência ora domicílio, ora moradia e casa, mas esta acabou prevalecendo. (BERTOLO, 2003, p. 72).

Nota-se que a proteção da casa transcende a Constituição de 1988, e, mesmo com discussões sobre o termo mais adequado a ser empregado, que pudesse abarcar uma maior guarida constitucional, restou vitorioso o termo “casa”.

Porém, isso leva a questionar qual seria o objetivo da proteção constitucional do domicílio? Por que resguardar um espaço, livrando-o da intromissão estatal? Essas questões podem ser observadas na seguinte explanação:

Com relação ao direito à inviolabilidade de domicílio, vislumbra-se nítida sua eficácia horizontal, valendo para fixação de limites à ação estatal bem como à ação de particulares, podendo ser invocada tanto por pessoas físicas quanto por pessoas jurídicas. Para seu exercício é ainda controvertida a tese de que não se refere apenas ao proprietário do imóvel, sendo passível de invocação por quem também resida sem título legitimador. Nos casos de múltiplos titulares, é possível registrar hipóteses de conflitos de interesses, cabendo, por força do art. 226, § 5º, da CR/88, ao chefe da casa, não importa o sexo (levando em conta o fato que tanto o marido quanto a mulher têm igual direito), ou ao chefe da comunidade (diretor do estabelecimento, por exemplo), a palavra final e definitiva. Reconhece-se aos dependentes destes o direito à inviolabilidade com respeito às suas dependências (quarto do filho, quarto da empregada etc.), mas este não exclui o direito do chefe da família ter acesso a todas as dependências do imóvel, ainda que contra a vontade dos que ali se encontrarem, bem como o neles proibir o ingresso de pessoas não autorizadas. (FERNANDES, 2011, p. 323-324).

Dessa forma, a tutela constitucional vai além dos limites estatais, visa resguardar a tranquilidade e sossego do indivíduo quando inserto em seu domicílio, onde não deva ser perturbado. Assim, tanto o Estado quando o particular deve respeitar o espaço constitucionalmente tutelado. Mais que isso, tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica detém o poder legal de tutela domiciliar, cabendo a uma ou à outra invocá-la.

3.2.3. Flexibilização do Direito à Inviolabilidade do Domicílio

Como já demonstrado anteriormente, não há direito absoluto, o que também se aplica ao direito de inviolabilidade do domicílio. Fato é que o texto constitucional traz exceções à inviolabilidade do domicílio, permitindo, assim, uma mitigação do referido direito fundamental.

De acordo com Bertolo (2003, p. 133), “se os direitos fundamentais não podem servir de escudo aos autores de atos ilícitos, é porque, em algumas vezes, o interesse da sociedade é maior do que o individual, e sendo assim podem ser violados”.

Logo, não seria admissível a utilização de um direito fundamental, como o é a inviolabilidade de domicílio, para a prática de atos ilícitos, fugindo à responsabilidade que a lei dispõe. Entretanto, as hipóteses de violação do domicílio estão discriminadas no próprio texto legal, afastando a possibilidade de o legislador ordinário instituir regras diversas.

Segundo Moraes (2012, p. 566), “o direito à segurança do domicílio é desenhado como respeito ao espaço, delimitado e autônomo, reservado à vida íntima ou atividade profissional da pessoa, coincidente ou não, com a habitação civil”.

Distingue-se, portanto, os conceitos de domicílio para efeito cível e para o caráter constitucional. Tratando-se do conceito constitucional, a violação do domicílio deve estar pautada nas hipóteses previstas.

A sua violação poderá ser estabelecida pelo próprio Constituinte ou por meio de legislador ordinário. A nossa novel Constituição foi feliz em discriminar as hipóteses de violação de domicílio, ou seja, com o consentimento do morador, em estado de flagrante delito, desastre, para prestar socorro e, durante o dia, por determinação judicial. Com isso, retirou do legislador ordinário o poder de estabelecer hipóteses de invasão de domicílio. (BERTOLO, 2003, p. 133).

Nota-se, dessa forma, a relevância do tema tratado, sua garantia como direito fundamental, afastando sua relativização pela legislação ordinária. Cabe ao constituinte estabelecer as hipóteses legais de violação do domicílio. Se não fosse assim, o legislador ordinário poderia apresentar projetos visando à diminuição da proteção domiciliar, tornando vulnerável, por consequência, a privacidade e a intimidade do indivíduo.

Como verificado, as hipóteses de violação de domicílio compreendem o consentimento do morador, flagrante delito, prestação de socorro, desastre e determinação judicial.

De acordo com Lenza (2015, p. 890), a casa não abrange apenas o domicílio, estendendo-se ainda ao escritório, oficinas, garagens e até mesmo quartos de hotéis.

Sendo assim, a violação destes locais pode ocorrer por diversas razões.

Visando uma maior compreensão sobre essas exceções, veja-se suas particularidades, dando início pelo consentimento do morador.

O elemento indispensável é a penetração no domicílio, nos termos do preceito constitucional, é o consentimento do morador. Sem o seu consentimento “ninguém”, seja agente do Poder Público, seja particular, pode adentrar no domicílio, exceto se o juiz com jurisdição no domicílio e se ali estiver para realizar procedimento de interesse processual. (BERTOLO, 2003, p. 134).

Dessa forma, sem que seja assentido pelo morador, o ingresso em domicílio alheio configura flagrante afronta à proteção do direito fundamental de inviolabilidade do domicílio. Não havendo referida autorização para entrada, a violação é ilegal, passível de reprimenda.

Em relação à inviolabilidade do domicílio, o STF decidiu que a consagração constitucional desta garantia afastou o atributo da autoexecutoriedade conferido à administração pública para ingressar em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional. Não havendo, portanto, consentimento do proprietário, o ingresso de agente público no estabelecimento sem autorização judicial é considerado uma violação a esse direito fundamental. (NOVELINO, 2012, p. 508).

Desse modo, evidencia-se imprescindível a autorização do proprietário para afastar a violação do domicílio. No entanto, essa autorização é cabível ainda pelo morador, termo que ultrapassa o domínio da casa, como bem leciona Cretella Júnior:

Como bem acentuou José Cretella Júnior, o termo “morador” possui abrangência maior do que proprietário, dominus, dono. Também são moradores o locatário, o comodatário, o arrendatário e qualquer pessoa que está na casa com consentimento do “proprietário”. Prosseguindo, diz que “Consentir” é “anuir”, “concordar”, por escrito, oralmente, ou por gestos. Sem consentimento, a violação é inconstitucional e ilegal, passível de sanção. Com consentimento, incorre a violação. (CRETELLA JÚNIOR apud BERTOLO, 2003, p. 134).

Diante do que foi apresentado, verifica-se que não é somente o proprietário aquele que pode consentir com a entrada na residência, mas qualquer morador daquela, desde que esteja consentido pelo proprietário do imóvel. De modo diverso, estaria configurada a ilegalidade.

Evidencia-se, assim, uma apertada síntese das hipóteses que afastam a inviolabilidade na lição de Moraes:

A busca domiciliar é resumida como entrada e permanência em domicílio alheio, nos casos de desastre, consentimento do morador, flagrante delito, prestação de socorro e, durante o dia, com mandado judicial. O desastre abrange eventos de natureza catastrófica. O consentimento do morador alcança os dependentes e subordinados do proprietário, na ausência do morador. O flagrante delito apreende todas as espécies de flagrância, e não somente o flagrante real ou propriamente dito. A prestação de socorro atinge as hipóteses de estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal. O mandado judicial é legitimado por fundadas razões para a apreensão de coisas achadas ou obtidas por meios criminosos [...], quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato, e pessoas vítimas de crimes, a descoberta de objetos necessários à prova da infração ou defesa do réu ou a prisão de acusado de delitos [...]. (MORAES, 2012, p. 566).

Diante do exposto, nota-se a previsão de hipóteses em que a violação do domicílio não acarretaria ilegalidade. Não sendo respeitados os requisitos constitucionais, configura-se o ilícito, sendo passível de punição ao agente.

É o que se observa na verificação de denúncia de ocultação de substância entorpecente. Não havendo indícios fáticos de sua existência, sua verificação no domicílio pode constituir ilegalidade, não havendo o consentimento do morador.

Nenhuma pessoa física, agente do poder público ou não, pode entrar ou permanecer no domicílio, durante a noite ou durante o dia, sem o seu consentimento. Se for noite e os policiais adentrarem numa residência com o consentimento do morador para verificação de denúncia de ocultação de drogas, tal hipótese por não ser contemplada pelo art. 5.º, inciso XI, da Constituição Federal, pressupõe o não-consentimento do morador e, em consequência, há violação do dispositivo. (BERTOLO, 2003, p. 134).

Dessa forma, a inexistência da referida substância pode acarretar sanções referentes à violação do domicílio de forma ilegal, sem respaldo constitucional.

No ensinamento de Silva (2013, p. 440), não se busca tutelar a propriedade, mas o respeito à personalidade e a intimidade. Apesar de estar voltada basicamente contra as autoridades, aplica-se também ao particular, através do crime de violação de domicílio.

Outra questão relevante diante do que foi explicitado, trata do entendimento de como se dá o referido consentimento, uma vez que o dispositivo constitucional não estabelece o mesmo, deixando dúvida sobre sua aplicação no caso concreto.

Segundo Mendes e Branco (2011, p. 328), “quanto ao modo, o consentimento para o ingresso pode ser tácito ou expresso”.

Não deixando claro o dispositivo constitucional sobre o citado consentimento, Bertolo leciona no mesmo sentido:

O texto constitucional não esclarece se o consentimento deve ser expresso ou apenas tácito, ou ainda, por escrito ou oralmente. Nesse caso, aquele que receber o consentimento para adentrar num domicílio, se for agente do Poder Público, em razão das consequências que poderão advir, deverá estar acompanhado de pessoas não relacionadas com sua atividade profissional, para servirem de testemunhas, se necessário for. (BERTOLO, 2003, p. 135).

No silêncio da lei, portanto, cabe ao representante do Estado se precaver de todos os meios possíveis para resguardar sua ação, através de testemunhas que não possuam vínculo com sua atividade e outras formas que corroborem o assentimento do morador. Caso contrário, pode restar configurada a violação do domicílio.

Sobre o tema, assevera Amaral (2017), que “o desrespeito à norma constitucional que assegura a inviolabilidade do domicílio acarreta consequências sobre o processo penal”.

Logo, o descumprimento do mandamento constitucional é passível de punição àquele que o desobedeceu, além de influenciar o desencadeamento processual. Havendo consentimento, afasta-se a ilegalidade.

Só haverá violação do domicílio, se a penetração ou permanência dar-se contra a vontade expressa ou tácita do morador. A violação pode ser feita abertamente, na presença do morador, que não consentiu, ou às escondidas, como também com o emprego de fraude, ardil ou qualquer artifício. O nosso Código Penal, no art. 150, deixa claro que “entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”, configura crime. É indispensável à configuração desse crime, o dolo específico de penetrar ou permanecer na casa de outrem contra a vontade deste. (BERTOLO, 2003, p. 135).

Nessa seara, sendo contrário ao ingresso em seu domicílio, aquele que comete tal ato poderá estar promovendo um ilícito, seja ele representante do Poder Público, seja um particular. Para tanto, possui relevância o dolo do agente.

Lecionam Mendes e Branco (2011, p. 329), que “a constituição estabelece exceções à inviolabilidade, que não é absoluta. A qualquer momento é lícito o ingresso no domicílio alheio em caso de flagrante delito, conceito que cabe ao legislador definir”.

Mas e se o consentimento se desse por pessoa menor de idade, haveria validade no ato? Seria essa permissão suficiente para validar a ação daquele que ingressa no domicílio alheio?

O agente do Poder Público ou o particular que adentrar numa residência com o consentimento de menor, contra a vontade do titular do direito, deve ser responsabilizado por violação de domicílio, uma vez que se trata de pessoa incapaz e o consentimento é considerado inválido. (BERTOLO, 2003, p. 135).

Nesse contexto, verifica-se a nulidade do consentimento dado pelo menor de idade, para o ingresso no domicílio. Deve, para existir validade no ato, ser consentido por pessoa maior, capaz, responsável pelo domicílio, ou a sua ordem.

Não sendo o objetivo aprofundar-se nas minúcias das hipóteses legais de exceções à inviolabilidade do domicílio, passa-se agora à situação de flagrante delito, que possui estreita relação com o tema proposto.

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). (MORAES, 2013, p. 30).

Como já mencionado, não pode ser o direito à inviolabilidade do domicílio tido como absoluto, havendo hipóteses em que é permitida a referida entrada.

Nos dizeres de Mendes e Branco (2011, p. 329), “a polícia, dando perseguição ao agente que acabou de cometer um crime, e que se homiziou na sua casa, pode adentrá-la. Quebrado o flagrante, contudo, a invasão é proibida”.

Dessa forma, em situação de flagrante delito, lícita é a entrada em residência, uma vez que não se trata de uma garantia absoluta, a inviolabilidade.

Segundo Bertolo (2003, p. 137), “Se fosse absoluta, beneficiaria os malfeitores. A inviolabilidade do domicílio possui uma proteção maior durante a noite do que de dia”.

Nesse sentido, evidencia-se a relativização do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio. Não o é absoluto, sob pena de incentivar o cometimento de ilícitos em seu interior. No entanto, o texto constitucional não deixa claro o que vem a ser flagrante delito, sendo relevante uma análise da situação.

Leciona Grotti (1993, p. 109), que “não definindo o texto constitucional flagrante delito, cabe à doutrina e à lei delinear seu conceito”.

Dessa forma, uma análise do tema é pertinente para que seja possível sua compreensão.

Verifica-se que “na doutrina pátria tem sido conceituação dominante que flagrante delito é aquele que se está cometendo ou se acabou de cometer sem intervalo algum”. (GROTTI, 1993, p. 110).

Em que pese o período distante de conceituação da autora, pertinente um ensinamento mais recente.

Na lição de Soares (2016), em relação ao flagrante delito:

De acordo com a melhor doutrina, verifica-se que a prisão em flagrante funciona como mero ato administrativo, sendo dispensável a autorização judicial. O que é exigido apenas é a aparência da tipicidade, não se exigindo nenhuma valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade.

Desse modo, a análise da situação de flagrância leva a considerar as hipóteses que legitimariam a violação de domicílio, afastando sua ilicitude.

Segundo Sá (2017), em apertada síntese, trata-se a prisão em flagrante de situação de imediatidade em relação à prática delitiva, que objetiva fazer cessar a prática delituosa, podendo ainda verificar-se as espécies de flagrante: impróprio ou quase flagrante e flagrante presumido.

Diante do exposto, a situação de flagrância vai além do simples momento em que o delito é cometido, abrange o período de buscas incessantes, ininterruptas no encalço do autor da infração penal, o que, neste contexto, validaria a violação do domicílio. É o que se pode verificar no texto disposto no Código de Processo Penal, em consonância com o dispositivo constitucional.

No mandamento constitucional do artigo 5º, inciso LVI, é cabível a prisão em flagrante, sem ordem escrita da autoridade judiciária. (BRASIL, 1988).

No mesmo sentido, o Código de Processo Penal trata da prisão em flagrante no artigo 301, que dispõe:

Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem que seja encontrado em flagrante delito. Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. Art. 303. Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência. (BRASIL, 1941a).

Nota-se assim a existência de espécies diferentes de flagrantes, delineadas no referido diploma processual penal. Conforme apontado, estas espécies possuem uma classificação própria, de acordo com os doutrinadores do direito.

De acordo com Reis e Gonçalves (2016), as hipóteses de prisão em flagrante previstas no artigo 302 do CPP abarcam o flagrante próprio ou real, em consonância com os incisos I e II. Enquanto o primeiro refere-se aquele que está cometendo o crime, devendo ser detido durante a prática dos atos executórios da infração penal, o segundo faz referência aquele que acaba de cometer, estando ainda no local. Por sua vez, o flagrante impróprio ou quase flagrante refere-se aquele que é perseguido, logo após, em situação que faça presumir ser ele o autor da infração.

Sendo assim, é possível verificar que cada espécie de flagrante possui um momento específico para o cometimento da infração penal, após seu cometimento, ou ainda, perseguição que faça presumir ser aquele o autor do delito. Por isso, breves considerações sobre essas espécies são pertinentes.

Nos dizeres de Marques e Martini, (2012), as denominações doutrinárias para flagrante próprio, real ou verdadeiro ou propriamente dito, correspondem aos incisos I e II do artigo 302 do CPP, enquanto o flagrante impróprio ou irreal ou quase flagrante corresponde ao inciso III do mesmo dispositivo. Já o inciso IV, aponta o flagrante presumido, ficto ou assimilado.

Ou seja, o flagrante próprio é o flagrante em si, aquela situação em que o agente é surpreendido realizando o delito, ou que tenha acabado de realizá-lo, não havendo tempo hábil para esboçar uma reação evasiva. Conforme o autor, o cometimento do delito em residência alheia permite a ação policial, ou de qualquer do povo na prisão do agente, sem o consentimento do morador, onde é mitigada a inviolabilidade do domicílio.

Enquanto isso, Vieira (2011) assevera que “no caso do flagrante impróprio, [...], a mesma evidência e certezas de autoria não são observadas, visto que apenas após algum tempo do cometimento do delito o suposto autor é capturado”.

Desse modo, como é possível observar, não se trata de flagrante em si, porém, pela definição legal, foi adotada também pela doutrina, denominando flagrante impróprio ou quase-flagrante. Compreende o pós-delito, que acabou de ocorrer, onde o infrator é perseguido por qualquer pessoa, onde se possa presumir ser aquele o autor da infração penal. Assim como o flagrante próprio, no caso do agente se homiziar na residência, própria ou de terceiro, há previsão para a entrada no mesmo, flexibilizando a inviolabilidade do domicílio, não restando dúvida sobre a presença do autor no local.

Por sua vez, o flagrante presumido, também chamado pelos doutrinadores de flagrante ficto, apresenta situação distinta.

[...] o agente também acabou de cometer o delito. Não há perseguição, mas o criminoso é encontrado, logo depois, com armas, objetos ou papéis que favoreçam a presunção de que ele é o autor do crime que acabara de acontecer. (MARQUES; MARTINI, 2012, p. 112).

De modo diverso das demais espécies de flagrante, o flagrante presumido, também conhecido como flagrante ficto, não legitima a entrada na residência por parte da força policial, ou mesmo, de qualquer do povo. Isso porque trata-se de uma suspeita sobre a autoria do delito, e sobre a presença de objetos ilícitos, que não podem afastar a inviolabilidade do domicílio. A mera suspeita da presença do autor do delito no domicílio não respalda a invasão domiciliar. Diferente do flagrante em sentido próprio e do flagrante em sentido impróprio, não houve flagrância da ação e nem mesmo perseguição do infrator penal, sendo sua identidade desconhecida até então.

Sendo assim, a detenção do indivíduo só se daria em local aberto ao público, já que no interior de sua residência, havendo dúvidas sobre quem de fato seja o autor do delito, impera o princípio fundamental da inviolabilidade do domicílio.

Ultrapassada as breves considerações acerca das questões de flagrante delito e da possibilidade de entrada em residência, quando configurado o mesmo, cabe agora uma análise sobre outra forma de flexibilização do direito à inviolabilidade do domicílio: prestação de socorro.

Inova, porém, a Lei Maior ao indicar “a prestação de socorro” como exceção à regra da inviolabilidade. Esse elemento não aparecia com essa roupagem nas Constituições anteriores, daí por que é preciso fixar-lhe o alcance e o sentido. (GROTTI, 1993, p. 112).

Diferente das outras legislações constitucionais, anteriores a 1988, a “prestação de socorro” passa a ser contemplada como hipótese de flexibilização do direito à inviolabilidade do domicílio, permitindo assim a entrada em residência no caso de prestação de socorro.

Todos são obrigados a prestar socorro às pessoas que dele necessitam. Claro que, se a pessoa estiver no interior do domicílio, não há o que se questionar, a não ser que entrou clandestinamente, pois neste caso, houve violação do dispositivo. O dispositivo constitucional protege a ajuda vinda de outrem que não se encontre no interior da residência. (BERTOLO, 2003, p. 142).

Embora a situação pareça evidente, imagine deparar-se com um caso que necessitasse de socorro imediato, no interior da residência, e a legislação pátria dispusesse configurar isso um ilícito. Ingressar no domicílio para prestar socorro, passível de reprimenda pela não observância do preceito legal, ou omitir-se do socorro, atendendo ao preceito fundamental da inviolabilidade. Para afastar esta hipótese que pareceria absurda, o texto constitucional contemplou a prestação de socorro como uma das hipóteses mitigadas pela inviolabilidade domiciliar. Logo, para prestar socorro, há respaldo legal para a entrada na residência, afastando a inviolabilidade do domicílio.

Em consonância com Granja (2013), afasta-se a ilicitude da invasão do domicílio a prestação de socorro, ainda que ausente o consentimento do morador, assim como na ocorrência de desastre, ou quando o fato é cometido em estado de necessidade.

Verifica-se, desse modo, outras possibilidades de flexibilização do direito à inviolabilidade do domicílio: em caso de desastre ou para prestar socorro.

De acordo com Grotti (1993, p. 113), “por oportuno, há que se reconhecer que prestação de socorro e desastre são conceitos abertos, recebendo, por conseguinte, várias respostas, conforme as premissas que se adotem”.

Dessa forma, se faz necessário estabelecer o que alcança cada termo apresentado, para afastar similitudes.

Nos dizeres de Bertolo (2003), desastre seria algo calamitoso, ocasionando danos imprevistos, de forma repentina, colocando em risco a vida ou saúde dos residentes.

Nesse sentido, o desastre compreende algo que acarreta danos, que é trágico, que não havia previsibilidade. Trata-se de fato inesperado que demanda ação imediata de reparação ou mitigação dos resultados.

Diante do exposto, evidencia-se a impossibilidade de se instituir um direito absoluto, exigindo-se optar por um deles. Deve haver uma flexibilização, para que seja aplicado aquele que for mais conveniente. No caso, a vida humana deve prevalecer sobre a inviolabilidade do domicílio, uma vez que o desastre pode ameaçá-la.

Por derradeiro, como hipótese legitimada para a flexibilização do direito à inviolabilidade do domicílio, tem-se a determinação judicial, embora possua relevante particularidade: deve ocorrer durante o dia.

Segundo Granja (2013), “não é lícita a entrada ou permanência em casa alheia, ou suas dependências, durante a noite, para efetuar diligência, a não ser que algum crime ali esteja sendo cometido ou em caso de desastre ou prestação de socorro”.

Desse modo, a determinação judicial, para entrada em residência, durante o dia, carece de fundamentos que justifiquem o pedido da referida determinação judicial. Com a atual proteção domiciliar, os motivos para o pedido de busca em residência devem estar adequadamente fundamentados, sob pena de ser rejeitado, inviabilizando a entrada na residência, com respaldo legal.

A exceção à inviolabilidade deve ser vista de maneira restritiva. É permito ao Estado, por meio dos seus executores, violar o domicílio; entretanto as hipóteses são numerus clausus. E, tanto o flagrante quanto o mandado devem obedecer estritamente aos ditames legais, sob pena de macularem a prisão efetuada, a prova produzida e o processo como um todo. (GRANJA, 2013).

Sendo assim, verifica-se que a proteção domiciliar não pode ser flexibilizada sem o atendimento aos ditames legais, sob pena de se ver afastada sua guarida constitucional.

Questão controversa, no entanto, é a definição dos conceitos de dia e noite.

Em que pese o não estabelecimento pela Carta Magna de 1988, Bertolo (2003, p. 148) assevera: “questão que apresenta dúvida, diz respeito ao conceito do que sejam dia e noite. Como a Constituição não fornece a conceituação, os doutrinadores apresentam suas definições, muitas vezes divergentes entre si”.

Desse modo, como seria possível o cumprimento de uma determinação judicial de entrada em residência sem saber ao certo o horário que tem início o dia, afinal, o conceito jurídico pode ser diferente do conceito temporal.

Há dissenso em relação à conceituação que se deve dar às palavras dia e noite. Para alguns, entende-se por noite o período compreendido entre as 18 horas e as 6 horas. Já outros defendem que se deve considerar como noite o período que se inicia no momento que o sol se põe e se estende até o seu novo surgimento (critério físico-astronômico). (REIS; GONÇALVES, 2013, p. 313).

Sendo assim, o conceito de dia e noite, não explicitado pela Constituição de 1988, ganha significado através das análises elaboradas pelos doutrinadores, sempre em prol do indivíduo a quem os direitos são direcionados, compreendendo os horários entre as 6 e 18 horas como dia, assim como o nascer e o pôr do sol. Sendo assim, o período pode variar de acordo com cada época do ano. Embora haja discussão doutrinária, ambos critérios são aceitos atualmente.

Nos dizeres de Bertolo (2003), não pode o legislador estabelecer através de lei período noturno menor que o aceito atualmente, porém seria plausível ampliá-lo, dando maior proteção, uma vez que esta seria a intenção do constituinte.

Nesse sentido torna-se evidente o caráter protetivo da norma constitucional, onde o direito fundamental não pode ser reduzido, prejudicando seu destinatário. Porém, referido direito poderia ser ampliado.

Sendo assim, a inviolabilidade do domicílio só pode ser flexibilizada se atendidas as hipóteses previstas na Constituição, caso contrário, a ação será ilegal, seja por parte do particular, seja por parte do representante do Estado.

Apresentados os dispositivos constitucionais que tratam da inviolabilidade do domicílio, assim como a possibilidade de flexibilização deste direito fundamental, é cabível agora uma análise sobre infração penal, crime e contravenção penal, o que será abordado no capítulo vindouro permitindo o desenvolvimento do estudo proposto.

4. INFRAÇÃO PENAL – CRIME E CONTRAVENÇÃO PENAL

Neste capítulo, serão apresentados os conceitos de infração penal, crime e contravenção penal, o direito penal e a humanidade, o caráter científico do direito penal, as diferenças entre crime e contravenção penal, os crimes de menor potencial ofensivo, e as sanções aplicadas aos crimes de menor potencial ofensivo.

Para que seja possível estabelecer os conceitos de infração penal, crime e contravenção penal, incialmente é preciso ter em mente que o Direito Penal faz parte da história da humanidade, possuindo uma noção que remonta aos tempos antigos.

Na lição de Jesus (2015, p. 45), “o Estado estabelece normas jurídicas com a finalidade de combater o crime. A esse conjunto de normas jurídicas dá-se o nome de Direito Penal”.

Desse modo, tem-se o estabelecimento de normas jurídicas pelo Estado como fundamento para o Direito Penal.

Leciona Estefam (2012, p. 38), “numa formulação simples e despretensiosa, poder-se-ia conceituar o Direito Penal como o ramo do Direito encarregado de definir as infrações penais e cominar-lhes a respectiva sanção”.

Ou seja, trata-se do ramo jurídico responsável por determinar, através da sociedade, os comportamentos indesejados, incompatíveis com o meio social em que o indivíduo está inserido, prevendo sanções, caso sejam desobedecidos tais comportamentos.

Segundo Masson (2015, p. 4), “direito penal é o conjunto de princípios e regras destinados a combater o crime e a contravenção penal, mediante a imposição de sanção penal”.

Dessa forma, o direito penal evidencia-se imprescindível para pacificação dos conflitos, sem o qual, reinaria a barbárie, uma vez que não estariam presentes os limites para a convivência social.

Para Leite (2013), “o que caracteriza a sociedade primitiva é a hipertrofia da norma penal. As normas, por mais duras e desagradáveis que sejam eram normalmente obedecidas pelos integrantes da sociedade primitiva”.

Logo, denota-se a necessidade de uma legislação penal efetiva, que atenda aos anseios sociais, na busca pela convivência harmônica da comunidade. Primitivamente, verifica-se que as normas, através de um crescimento exagerado, eram mais rígidas, possuindo um caráter repugnante.

Nos dizeres de Estefam (2012, p. 35), “com efeito, sempre que houve agrupamentos sociais, o Direito Penal, ainda que de modo primitivo, se fez presente”.

Nesse sentido, nota-se que o Direito Penal possui relação direta com o desenvolvimento da humanidade, desde o início da sociedade, o que poderá ser observado no item seguinte.

4.1. O DIREITO PENAL E A HUMANIDADE

Como citado anteriormente, o Direito Penal é inerente à Humanidade desde os primórdios, ainda que de maneira rudimentar. Embora não existisse do modo que é conhecido nos dias de hoje, ainda assim, já era aplicado na antiguidade. A aplicação do direito penal ocorre através da pena.

Segundo Jesus (2015, p. 45):

O meio de ação de que se vale o Direito Penal é a pena, em que já se viu a satisfação de uma exigência de justiça, constrangendo o autor da conduta punível a submeter-se a um mal que corresponda em gravidade ao dano por ele causado.

Desse modo, a imposição de pena ao autor do delito, através do Direito Penal, reflete a retribuição pelo mal causado pelo mesmo. As regras de convívio social, quanto desrespeitadas, devem refletir uma sanção, sendo imposta ao autor uma pena.

Ao termo “pena” se atribui vários significados e origens etimológicas. Para alguns deriva do latim poena que significa sofrimento, e outros entendem que deriva do grego ponos que significa dor, e ainda há que atribua ao sânscrito punya que significa purificação (de um mal). (LEITE, 2013).

Em relação ao termo citado, diante das possíveis origens etimológicas da palavra pena, denota-se a ideia de sofrimento, dor ou purificação de um mal, ou seja, retribuir com a pena (sofrimento), o mal causado pelo autor.

Segundo ensina Corsi (2016), “a pena está em nossa sociedade desde sua existência, punindo toda e qualquer forma de violação às regras estabelecidas pelos povos”.

Nesse sentido, evidencia-se a existência da aplicação de pena desde os primórdios da sociedade, visando garantir a adequada convivência social.

Embora a história do Direito Penal tenha surgido com o próprio homem, não se pode falar em um sistema orgânico de princípios penais nos tempos primitivos. Nos grupos sociais dessa era, envoltos em ambiente mágico (vedas) e religioso, a peste, a seca e todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como resultantes das forças divinas (‘totem’) encolerizadas pela prática de fatos que exigiam reparação. Para aplacar a ira dos deuses, criaram-se séries de proibições (religiosas, sociais e políticas), conhecidas por ‘tabu’, que não obedecidas, acarretavam castigo. A infração totêmica ou a desobediência tabu levou a coletividade à punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o que modernamente, denominados ‘crime’ e ‘pena’. O castigo infligido era o sacrifício da própria vida do transgressor ou a ‘oferenda por este de objetos valiosos (animais, peles e frutas) à divindade, no altar montado em sua honra’. A pena, em sua origem remota, nada mais significava senão a vingança, revide à agressão sofrida, desproporcionada com a ofensa e aplicada sem preocupação de justiça. (MIRABETE; FABRINI, 2013, p.15).

Desse modo, um sistema organizado e princípios penais não são inerentes aos tempos primitivos. O que se via era a reparação do mal, através de proibições relacionadas à religião, sociedade e política, que uma vez desobedecidas, imputavam ao indivíduo, o castigo cabível, que poderia ser a própria morte do infrator. A pena, nesse sentido, reflete a vingança, retribuindo o mal sofrido, independente de equilíbrio entre a ação praticada e pena aplicada, afastando conceitos de justiça.

De acordo com Estefam (2012, p. 35), “registram os historiadores que nas tribos, desde a Antiguidade, já se notava, incutida no espírito humano, a ideia do castigo por atos lesivos a terceiros, muito embora, em tempo remotos, era a vingança privada que imperava”.

Quase que naturalmente, tem-se que aquele que realiza um ato indevido, deve ser castigado, para que não torne a delinquir. Trata-se de algo cultural, que acaba por organizar a sociedade e a convivência entre os indivíduos.

No sentir de Bacila (2016, p. 135), “[...] a pena é um ‘bem necessário’, pois, substituindo a vingança privada e coletiva, nos casos de delitos graves, é o meio disponível para a proteção de bens jurídicos e para a solução de conflitos de alta lesividade”.

Ou seja, na inexistência da aplicação da pena, na possível crença da impunidade, os conflitos sociais se potencializariam de tal forma que o caos se instalaria na sociedade gerando uma total instabilidade entre os indivíduos.

Há necessidade de reagir empregando o castigo, se é que queremos sobreviver como grupo dentro de uma ordem social. O caos e a própria destruição do sistema seriam as consequências inevitáveis de não recorrer a essa medida. Num sentido mais amplo, o Direito penal assim observado se traduz em um mecanismo de preservação da ordem social. (BUSATO, 2015, p. 3).

Desse modo, a aplicação de pena, evidencia-se inerente a um contexto social e cultural, sem o qual, proporcionaria uma condição de instabilidade social, promovendo conflitos de toda ordem, afastando o convívio pacífico da sociedade, potencializando a instalação do caos.

Verifica-se uma espécie de emulação entre a crueza do indivíduo e a do poder público, supremo vingador. E o que se visava no requintar dos sofrimentos infligidos ao criminoso era, também, a intimidação dos predispostos. É de lembrar aqui, a palavra escarmento que, na técnica das velhas leis criminais portuguesas, tanto significava castigo como exemplo. (BECCARIA, 2013, p. 8).

Diante da necessidade de infligir castigo ao infrator, por desobedecer um mandamento legal, os meios empregados para punição refletiam a rudeza própria do período, servindo, além de castigo ao criminoso, de exemplo para os demais, caso cometessem o mesmo delito.

As diversas fases da evolução da vingança penal deixam claro que não se trata de uma progressão sistemática, com princípios, períodos e épocas caracterizadores de cada um de seus estágios. A doutrina mais aceita tem adotado uma tríplice divisão, que é representada pela vingança privada, vingança divina e vingança pública, todas elas sempre profundamente marcadas por forte sentimento religioso/espiritual. A despeito da divergência, sem qualquer precisão, o mais importante, ao menos para ilustrar, é que se tenha noção, ainda que superficial, do que caracterizou cada uma das fases. (BITENCOURT, 2014, p. 72).

Nota-se, pelo que foi explicitado, que a vingança sempre figurou como fundamento da pena, seja no caráter privado, divino ou público, segundo doutrina majoritária. Os princípios hoje existentes no Direito Penal, não figuravam nos tempos longínquos.

Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda a parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do restante com mais segurança. A soma de todas essas porções de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania na nação; e aquele que foi encarregado, pelas leis, do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo. (BECCARIA, 2013, p. 22).

Porém, ainda que os princípios hoje existentes, na sociedade primitiva não se apresentassem, a necessidade de segurança dos indivíduos evidenciava-se, mesmo que custasse uma parcela de sua liberdade. A soma de parcelas de liberdades dos indivíduos desencadeou a soberania na nação, sendo na sequência proclamado o soberano aquele que era responsável pelas leis.

Mesmo antes da existência do Estado, havia nas sociedades de estrutura familiar as penas infligidas aos membros da tribo e aos estranhos. Aos primeiros eram aplicadas penas quando praticavam atos que traduziam uma espécie de perturbação da paz e da vida em sociedade e, de regra, envolviam a proscrição do agente, o qual não podia habitare inter homines e, portanto, era morto ou, se pudesse (e lograsse), fugia. As sanções impostas aos estranhos, por outro lado, possuíam conotação de vindita ou vingança contra o estrangeiro (de outra raça ou origem) ou, ainda, de vingança de sangue. Em ambos os casos, a pena imposta revelava um caráter sacro, na medida em que, na consciência dos povos, a paz (fim maior) encontrava-se sob a proteção dos deuses, de modo que a vingança (reação contra a perturbação da paz) fundamentava-se em preceito divino. (ESTEFAM, 2012, p. 35-36).

Nesse sentido, era castigado o indivíduo que cometesse qualquer ato contrário aos costumes da tribo quando membro desta, ou mesmo aquele estrangeiro, que não pertencia àquela cultura, em geral, com a morte. Tendo em vista a evolução do Direito Penal, também evoluiu a aplicação das penas, com o intuito de torná-las mais eficientes e humanas.

Na lição de Leite (2013), o direito penal atual é herdeiro de sua geração, do século XIX, derivando da modernidade penal, superando a antiguidade e conquistando a condição de cidadão, sendo o Direito Penal a última ratio de sua proteção, devendo o Estado somente intervir na esfera individual quando não cabíveis outras medidas. Há que se ressaltar que referido direito encontra-se em construção, em constante evolução.

Ou seja, ainda que o Direito Penal esteja presente desde os tempos primitivos, na atualidade, com a evolução pelo que o mesmo passou, só deve atuar quando outros mecanismos falharam. A intervenção mínima do Estado, sendo sua ação a ultima ratio, denota o desenvolvimento penal na atualidade.

Segundo Prado (2015, p. 67), “com efeito, o ordenamento jurídico deve ser a representação legal-formal de um conjunto de valores inerentes à determinada sociedade, num período histórico e em certo espaço geográfico”.

Desse modo, os valores tutelados por uma sociedade correspondem a um período específico, uma noção social daquilo que tem valor para aquela comunidade, naquele território, refletindo na legislação.

Com o evoluir das épocas, a pena passa a assumir, paulatinamente, uma nota de moderação, abandonando-se a ideia de reação desmedida e vigorosa, no lugar de uma sanção proporcional. Surgem, nesse compasso, outras penas, além da morte, como a mutilação, o banimento (perpétuo ou temporário) e a perda (ou confisco) de bens. (ESTEFAM, 2012, p. 36).

Sendo assim, a pena capital deixa de ser a única opção para infligir sanção ao delinquente, surgindo outras opções, aos poucos, que passam a ser consideradas, atingindo também os objetivos de correção dos atos infringidos.

No entanto, não se pode falar de Direito Penal sem que seja citada a Lei de Talião, lembrada hodiernamente pelo ditado “olho por olho, dente por dente”, onde o infrator recebia o castigo de acordo com o cometimento de seu delito, proporcionalmente, ao mal causado.

Ainda que as penas estabelecidas e aplicadas pelo Código de Hamurabi pareçam severas e até cruéis, o princípio por trás da lei é o de trazer equilíbrio entre crime e penalidade. O mal causado a alguém deve ser proporcional ao castigo imposto: para tal crime, tal e qual a pena. Esse Código é o mais famoso e reconhecido código legal antigo. (MEISTER, 2007, p. 3).

Nesse sentido, nota-se uma pequena evolução no Direito Penal, com históricos datados da antiguidade da aplicação da lei de talião. Somente muito tempo depois é que as penas passaram por um processo de socialização, passando a considerar o caráter humano do indivíduo.

A aplicação e a legislação da pena também foram evoluindo conjuntamente, sendo aos poucos afastada as hipóteses de penas violentas e baseadas unicamente na tortura, para uma pena mais humanizada, destinada geralmente a pena privativa de liberdade, e, em tese, sem qualquer espécie de tortura. (GROKSKREUTZ, 2010).

Nota-se uma evidente evolução na aplicação de penas comparando os períodos atuais e a antiguidade, afastando a imposição de castigos violentos e desumanos, fundados principalmente na tortura, passando para penas humanizadas, voltadas para a ressocialização do indivíduo.

No final do século XVIII, sobretudo a partir da publicação do “pequeno grande livro”, isto é, da obra magistral de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, intitulada Dos delitos e das penas (1764), incutiu-se no pensamento filosófico do Direito Penal a ideia de humanização e busca por Justiça. O autor postulava a distribuição da máxima felicidade dividida pelo maior número e advertia, com propriedade, que: um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infabilidade. [...]. A certeza de um castigo, mesmo que moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo, unido à esperança da impunidade. (ESTEFAM, 2012, p. 37).

Diante do exposto, visualiza-se um longo percurso histórico até a humanização das penas, mitigando a pena capital e a sujeição às sanções cruéis, principalmente após a publicação da obra Dos delitos e das penas.

No entanto, não se pode olvidar do caráter científico do direito penal, para que seja possível analisar adequadamente sua aplicação nos dias atuais.

4.2. O CARÁTER CIENTÍFICO DO DIREITO PENAL

Para que seja possível a aplicação do Direito Penal, se faz necessário que o mesmo possua um caráter científico, pautado em estudos que comprovem sua eficácia e evolução com o passar dos tempos.

Na lição de Prado (2015, p. 71), “a ciência do Direito Penal ou dogmática penal, a política criminal e a criminologia são ciências que se distinguem, mas que não se separam; antes se completam”.

Trata-se, assim, o Direito Penal de uma ciência, aliado à dogmática penal e política criminal, além da criminologia, que juntas atuam no contexto penal.

No mesmo sentido, Masson (2015, p. 12) assevera que “o crime, o criminoso e a sanção penal são objeto de estudo de diversas ciências, também denominadas enciclopédia de ciências penais”.

Dessa forma, são indissociáveis o crime, o infrator e a pena aplicada pelo descumprimento do dispositivo legal, devendo ser analisadas pelas ciências penais.

O direito penal retira sua cientificidade da busca por sua legitimidade. Esta deve ser deduzida da configuração da sociedade, é preciso construir o plexo normativo-penal a partir de uma determinada sociedade, no seu tempo e espaço, com seus respectivos valores. Kirchmann (1847), promotor de justiça alemão, no século XIX, fez ácida crítica aos que propunham o caráter científico do Direito. Em seu texto “O caráter acientífico da Ciência do Direito”, o autor dizia que toda obra doutrinária, toda sentença bem elaborada, todo trabalho jurídico enfim tornava-se papel descartável com três palavras do legislador modificando a legislação. Equivocava-se, contudo, Kirchmann, seja por confundir o Direito (normas e princípios) com a Ciência do Direito (a busca pela legitimidade do ordenamento jurídico em uma dada sociedade). Na verdade, o trabalho que se ocupar do conceito do Direito até chegar ao fundamento de sua legitimação jamais se tornará letra morta com a modificação legislativa. Pelo contrário, se o legislador elaborar alguma disposição que não esteja de acordo com o fundamento do Direito, este sim é que não produzirá mais do que “leis descartáveis”. (ESTEFAM, 2012, p. 42).

Desse modo, para ter validade perante a sociedade, referida ciência precisa ter legitimidade, ser reconhecida pelo meio social em que está inserida. As teses levantadas pela ciência jurídica fundamentam os argumentos propostos, comprovando o fim a que se destinam, aplicando seus conceitos aos indivíduos inseridos na sociedade.

Sendo assim, argumentos infundados não invalidam as teses elaboradas anteriormente, que possuem comprovação científica, pelo contrário, funcionam como um meio para ratificar as ideias apresentadas.

É ciência normativa porque tem como objeto o estudo da norma, do Direito positivo e a sistematização de critérios de valoração jurídica. Isto é, a Ciência do Direito Penal tem como objeto o estudo do conjunto dos preceitos legais e dos critérios de ponderação jurídica que estruturam o “dever-ser”, bem como as consequências jurídicas do não cumprimento dos preceitos normativos, enquanto as ciências causais-explicativas, como a Criminologia e a Sociologia Criminal, preocupam-se com a análise da gênese do crime, das causas da criminalidade, numa interação entre crime, homem e sociedade. (BITENCOURT, 2014, p. 38).

Diante do exposto, o Direito Penal figura como ciência, objetivando o estudo do conjunto de preceitos legais, além de critérios aplicados para o ponderamento jurídico, assim como as resultantes do descumprimento dos referidos preceitos.

Nos dizeres de Jesus (2015), o Direito Penal trata-se de ciência cultural; normativa; valorativa e finalista. É ciência cultural, uma vez pertencente à classe do “dever ser”, oposto ao “ser”; normativa, pois visa o estudo da norma; valorativa, uma vez que valoriza suas normas, dispondo-as em escala hierárquica, tutelando valores mais elevados; e finalista, atuando na defesa social, guarida de bens jurídicos fundamentais, através da proteção do Direito Penal para sobrevivência da ordem jurídica.

Visualiza-se, neste contexto, tratar-se o Direito Penal de ciência cultural, normativa, valorativa e ainda finalista. Em relação ao quesito cultural, figura na classe do “dever ser”, ao passo que o quesito normativo denota a busca pelo conhecimento da norma, enquanto o critério valorativo, evidencia uma classificação de princípios morais e o quesito finalista demonstra uma proteção dos bens fundamentalmente tutelados.

Dessa síntese brevemente exposta, uma conclusão se mostra certa e irrefutável. Não há como negar o caráter científico do Direito Penal, o qual está estreitamente vinculado à concepção e à configuração da sociedade, vigente num determinado momento histórico. Seja esse fundamento a liberdade dos homens, a proteção da convivência em sociedade das pessoas, a proteção subsidiária de bens jurídicos ou a garantia da vigência da norma, é certo que o jurista que se propõe a fazer a Ciência deve ocupar-se dessa investigação, tendo seus olhos voltados obrigatoriamente ao horizonte social. (ESTEFAM, 2012, p. 43).

Conforme explicitado, assevera-se que cada momento histórico reflete uma realidade social, com anseios e propostas de formas de solucionar conflitos. Do mesmo modo, isso se reflete no Direito Penal, através da evolução social, se embasam os fundamentos legais para a proteção do indivíduo, de sua coexistência social e da posse de seus bens. Para tanto, faz-se necessário um processo de investigação contínua.

A expressão Direito Penal, porém, designa também o sistema de interpretação da legislação penal, ou seja, a Ciência do Direito Penal, conjunto de conhecimentos e princípios ordenados metodicamente, de modo que torne possível a elucidação do conteúdo das normas e dos institutos em que eles se agrupam, com vistas em sua aplicação aos casos ocorrentes, segundo critérios rigorosos de justiça. (MIRABETE; FABRINI, 2013, p. 1).

Desse modo, o Direito Penal evidencia-se como sistema interpretativo legislativo penal, uma vez que é utilizado para esclarecer os dispositivos legais, aplicando no caso concreto, aliando aos critérios de justiça estabelecidos.

Assim, a necessidade de compreensão do fato e sua adequação à norma, demonstra a cientificidade do Direito Penal.

O critério da cientificidade do Direito Penal, como de resto ocorre com qualquer ciência humana, não deriva da possibilidade de explicações casuais de fenômenos sensíveis, mas da necessidade de se compreender o fenômeno mesmo em sua concreção única e histórica. (ESTEFAM, 2012, p. 44).

Nesse sentido, a existência do caráter científico do Direito Penal permite a comprovação das teses e a compreensão dos fatos sociais que possuem relação com a referida ciência jurídica, contribuindo sobremaneira para a evolução da sociedade, da ciência jurídica e do comportamento humano.

Diante do que foi apresentado, demonstrado o caráter científico do Direito Penal e sua importância no meio social, tendo em vista o tema proposto neste estudo, cabe agora uma diferenciação entre crime e contravenção penal, o que possibilitará uma maior compreensão sobre a legalidade ou ilegalidade da invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo.

4.3. INFRAÇÃO PENAL: DIFERENÇAS ENTRE CRIME E CONTRAVENÇÃO PENAL

Buscando uma compreensão adequada da diferenciação entre crime e contravenção penal, propõe-se uma análise desses institutos, o que permitirá assimilar sua aplicação nas discussões sobre a inviolabilidade do domicílio.

Em relação ao título do delito, asseveram Mirabete e Fabrini (2013, p. 113), que “utiliza-se a expressão infração penal para abranger o crime e a contravenção, segundo a classificação dada pela lei”.

Desse modo, tanto o crime quanto a contravenção penal constituem infração penal, uma vez que esta abrange aquelas. Cabe agora um entendimento da origem desta distinção.

Muitas vezes nos referimos aos termos crimes, delitos e contravenções sem atentar para o seu real significado. Será o crime diferente do delito, ou será que são expressões sinônimas? Ou ainda, há diferença entre crime, delito e contravenção? Para responder a essas indagações, é preciso saber que nosso sistema jurídico penal adotou, de um lado, as palavras crime e delito como expressões sinônimas, e, de outro, as contravenções penais. (GRECO, 2014, p. 144).

Conforme anteriormente exposto, a infração penal abrange tanto o crime quanto a contravenção penal. Porém, nosso ordenamento peca em algumas denominações quanto aos termos empregados alhures.

De acordo com Estefam (2012, p. 83), “Infração penal é um gênero que, em nosso ordenamento jurídico, subdivide-se em duas espécies: crime e contravenção penal”.

Sendo assim, não se pode afastar significação do termo infração penal, conforme já demonstrada, abrange as espécies crime e contravenção penal.

Em relação ao delito, leciona Busato (2015, p. 205), que:

O delito é, sem dúvida, o objeto sobre o qual se debruça o Direito penal. É um verdadeiro centro gravitacional do estudo jurídico-penal. Como todo objeto de estudo, o delito também pode ser abordado de várias formas. É possível considerar o delito como fato social, verificar suas condicionantes e suas consequências na relação social em que se vê inserido, é possível considerá-lo a partir de uma perspectiva criminológica dentro da ideia dos processos de criminalização, observando o modo pelo qual se determina o que vai ser crime e como reage o sistema penal ao fato concreto que se pretende incriminar. É possível, ainda, observar o delito a partir de sua dimensão jurídica, ou seja, a partir de como as instituições normativas formais se organizam em torno do fenômeno delitivo.

Nesse sentido, objeto de estudo do Direito Penal, o delito sob diferentes óticas, pode ser analisado sob a visão de fato social, sob a ótica criminal ou ainda na perspectiva jurídica, pelo fenômeno delitivo. Trata-se de conceito abrangente, que admite diferentes perspectivas.

Nesse diapasão, Greco (2014, p. 144) assevera que:

Quando quisermos nos referir indistintamente a qualquer uma dessas figuras, devemos utilizar a expressão infração penal. A infração penal, portanto, como gênero, refere-se de forma abrangente aos crimes/delitos e às contravenções penais como espécies.

Diante do que foi aludido, permite-se depreender que tanto o crime quanto a contravenção constituem infrações penais. No entanto, é preciso diferenciar os institutos apresentados, para que seja possível aplicá-los na sequência do estudo, com os fins propostos.

O conceito de crime é o ponto de partida para a compreensão dos principais institutos do Direito Penal. Embora aparentemente simples, a sua definição completa e pormenorizada apresenta questões complexas que acarretam várias consequências ao estudo dos pontos mais exigidos em provas e concursos públicos. (MASSON, 2015, p. 191).

Dessa forma, assimilar o conceito de crime, o que não deve ser encarado como algo descomplicado, conduz a um entendimento de uma série de institutos daquele derivado.

Pertinente assim, um entendimento de como deu-se a formação do conceito de crime, na atualidade.

Enfim, a definição atual de crime é produto da elaboração inicial da doutrina alemã, a partir da segunda metade do século XIX, que, sob a influência do método analítico, próprio do moderno pensamento científico, foi trabalhando no aperfeiçoamento dos diversos elementos que compõem o conceito de delito, com a contribuição de outros países, como Itália, Espanha, Portugal, Grécia, Áustria e Suíça. (BITENCOURT, 2014, p. 273).

Nota-se, dessa forma, uma evolução da definição de crime, em que outros países contribuíram para sua formação, derivada da doutrina alemã.

Nos dizeres de Carlos e Friede (2015, p. 104-105), o conceito de crime pela doutrina abrange três enfoques, quais sejam: formal; material e analítico. No primeiro, formal, crime configura toda ação ou omissão proibida pelo dispositivo legal, sob pena de sancionamento. No enfoque material, trata-se de fato humano que fere ou coloca a perigo de lesão bens jurídicos tutelados pela legislação penal. Quanto ao conceito analítico, em consonância com a doutrina majoritária, é toda conduta, seja por ação ou omissão, tipificada, ilícita e culpável.

Conforme aludido, em apertada síntese, pode-se conceituar o crime com base em critérios legal ou formal, material, e analítico. Em relação ao critério formal, há expressa vedação da lei penal, sujeitando o indivíduo à imposição de uma sanção pelo seu descumprimento. Sob o prisma material, visualiza-se fato humano que lesiona ou ameaça lesionar valores penalmente tutelados. Já o enfoque analítico, de acordo com a melhor doutrina, consiste na conduta típica, antijurídica e culpável.

Para Masson (2015, p. 192), quanto ao critério legal:

Segundo esse critério, o conceito de crime é fornecido pelo legislador, em que pese o Código Penal não conter nenhum dispositivo estabelecendo o que se entende por crime, tal tarefa ficou a cargo do artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal [...].

Desse modo, verifica-se que o critério legal consiste naquele em dispõe-se, de modo expresso no dispositivo legal, tendo em vista que o conceito é dado pelo legislador, com previsão no Código Penal de 1941.

Já em relação ao critério analítico, leciona Capez (2015, p. 130):

Aspecto analítico é aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais de um crime. A finalidade deste enfoque é propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, o crime é todo fato típico e ilícito. Dessa maneira, em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se a mesma é ilícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, já surge a infração penal. A partir daí, é só verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. Para a existência da infração penal, portanto, é preciso que o fato seja típico e ilícito.

Segundo o exposto, estabelece-se elementos estruturais criminais. Possui, assim, um fim voltado para a deliberação acerca da infração penal, e do responsável pelo seu cometimento, possibilitando raciocinar, de forma lógica, ultrapassando as fases necessárias para a configuração do ilícito.

Na lição de Masson (2015, p. 197), “esse critério, também chamado de formal ou dogmático, se funda nos elementos que compõem a estrutura do crime”.

Por sua vez, quanto ao critério material, lecionam Mirabete e Fabrini (2013, p. 80):

[...] Crime é a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de pena, ou que se considere afastável somente através da sanção penal.

Entretanto, deve-se ressaltar que há discussões doutrinárias sobre o critério analítico, correntes que adotam posições quadripartida, outras que adotam posição tripartida, mas que não é o objetivo deste estudo entrar nessa seara.

Em relação à lei penal brasileira, Prado (2015, p. 209) leciona que “os crimes ou delitos são punidos com penas privativas de liberdade, restritiva de direitos e de multa (art. 32, CP), e a contravenção é sancionada com prisão simples e multa (art. 5º, Dec.-lei 3.688/1941 – Lei das Contravenções Penais”.

Mas então, diante do que foi apresentado, em que consiste a diferença entre crime e contravenção?

Na verdade, não há diferença substancial entre contravenção e crime. O critério de escolha dos bens que devem ser protegidos pelo Direito Penal é político, da mesma forma que é política a rotulação da conduta como contravencional ou criminosa. O que hoje é considerado crime amanhã poderá via a tornar-se contravenção e vice-versa. [...]. (GRECO, 2014, p. 145).

Na verdade, segundo explicitado, essa distinção trata-se de política criminal. Aqueles bens jurídicos que devem receber maior tutela, são enquadrados como crimes, enquanto aqueles de menor gravidade, são etiquetados como contravenções.

Apenas a lei fornece distinção formal, quantitativa, recorrendo à espécie de pena para diferenciar o crime (ou delito) da contravenção. Segundo o artigo 1º, do Decreto-lei n.º 3.914, de 9-12-1941 (Lei de Introdução ao Código Penal), ao crime é cominada pena de reclusão ou de detenção e multa, esta última sempre alternativa ou cumulativa com aquela; à contravenção é cominada pena de prisão simples, e/ou multa ou apenas esta. [...]. (MIRABETE; FABRINI, 2013, p. 114).

Considerando que se não houvesse qualquer distinção, não caberia a adoção de diferentes conceitos, nota-se o discernimento necessário na Lei de Introdução ao Código Penal.

Nesse sentido, tendo em vista a diferenciação entre crime e contravenção, conforme citado anteriormente, o artigo 1º da LICP – Decreto-lei n. 3.914/41 traz essa distinção.

De acordo com o art. 1º da LICP – Decreto-Lei n. 3.914/41 -, constitui crime (ou delito) a infração penal apenada com reclusão ou detenção, acompanhada ou não de multa, e contravenção penal aquela punida com prisão simples (juntamente com multa) ou somente multa. (ESTEFAM, 2012, p. 83).

Dessa forma, a distinção se apresenta nítida, uma vez que, quando o preceito secundário comina pena de reclusão ou de detenção, estar-se-á diante de um crime, ainda que de forma isolada, alternativa ou cumulativa com a pena pecuniária de multa. Ou seja, prevendo reclusão ou detenção, configura-se crime. Em contrapartida, no caso da inexistência no preceito secundário da reclusão ou detenção, evidencia-se uma contravenção penal, tendo em vista que a lei comina a ela pena de prisão simples ou de multa, quer isolada, alternativa ou cumulativa.

Destarte, a distinção entre crime e contravenção penal é de grau, quantitativa (quantidade da pena), e também qualitativa (qualidade da pena) e não ontológica. Daí não nos parecer correto denominar esta última de “crime-anão”, inclusive pela ausência de critérios para tanto. Se tal terminologia fosse correta, não seria equivocado considerar o homicídio um “superdelito” e a injúria é um “crime pequenino”. (MASSON, 2015, p. 193).

Desse modo, a distinção que se observa funda-se em qualidade e quantidade da pena, pois enquanto o crime configura-se pela detenção e reclusão, além da possibilidade de pena pecuniária, a contravenção penal caracteriza-se pela prisão simples ou multa.

Entretanto, o mundo jurídico sofre constantes alterações, e alguns conceitos acabam entrando em conflito, como é o caso da Lei Antidrogas.

Conforme leciona Estefam (2012, p. 83), “esse paradigma, entretanto, tornou-se defasado com a atual Lei Antidrogas (Lei n. 11.343, de 23-8-2006), pois o crime de porte de drogas para uso próprio (art. 28) somente contém no preceito secundário penas alternativas”.

Nessa seara, configuraria o porte de droga apenas contravenção penal, conforme os conceitos apresentados anteriormente? Na verdade, a referida tipificação seria algo assimétrico, único de seu gênero, uma situação peculiar.

Para Nucci (2010, p. 820), “é viável a consideração do porte de entorpecentes, para uso próprio, como infração de menor potencial ofensivo, uma vez que, para esse delito, não há mais pena privativa de liberdade”.

Desse modo, não havendo pena privativa de liberdade, estaria assim configurada a infração de menor potencial ofensivo.

Masson (2015, p. 195) “sustenta a manutenção do caráter criminoso da conduta, com a cominação de penas previstas em lei. Cuida-se da posição amplamente dominante, e a ela nos filiamos”.

Sendo assim, o porte de droga é tipificado como crime, porém, possui uma sanção diferente daquelas atribuídas aos demais delitos, não havendo guarida na sua descriminalização.

Em que pese uma distinção adequada entre os institutos em análise, Estefam apresenta uma síntese conveniente para este estudo:

Os traços distintivos residem em suas consequências e em seu regime jurídico. Além da distinção acima retratada, há outras:

  1. os crimes podem ser de ação penal pública, condicionada ou incondicional da, ou de ação penal privada (CP, art. 100); já as contravenções penais são sempre se ação penal pública incondicionada (LCP, art. 17);

  2. é punível a tentativa de crimes (CP, art. 14, II), o que não se dá nas contravenções (LCP, art. 4º);

  3. os crimes podem ser dolosos ou culposos (CP, art. 18); nas contravenções, basta seja a conduta voluntária (LCP, art. 3º);

  4. aos crimes aplicam-se os princípios do erro de tipo e de proibição (CP, arts. 20 e 21); às contravenções, somente se aplica o erro de direito (LCP, art. 8º);

  5. a lei penal brasileira se aplica tanto aos crimes praticados no Brasil (CP, art.5º) como àqueles cometidos no exterior (CP, art. 7º), mas somente às contravenções cometidas em território nacional (LCP, art. 2º);

  6. o limite de cumprimento das penas privativas de liberdade decorrentes de crime é de trinta anos (CP, art. 75); das contravenções é de cinco (LCP, art. 10);

  7. com relação aos crimes, a duração do sursis pode variar de dois a quatro anos e, excepcionalmente, de quatro a seis anos (CP, art. 77); para as contravenções, o limite é de um a três anos (LCP, art. 11). (ESTEFAM, 2012, p. 83-84).

Diante do que foi apresentado, nota-se uma série de particularidades entre os institutos em estudo, que variam entre o tipo de ação penal aplicada, a possibilidade ou não da tentativa, e existência do dolo ou da culpa na conduta, a aplicação dos princípios do erro de tipo, de proibição e de direito, princípio da territorialidade, limite de cumprimento da pena e duração do sursis.

De acordo com Masson (2015, p. 193), os termos crime e delito como sinônimos, verifica-se que são equivalentes, embora exista o emprego impróprio do termo infração penal nos artigos 301 e 302 do Código de Processo Penal.

Nesse prisma, o emprego do termo crime corresponde ao termo delito, sem que haja prejuízo à sua compreensão, o que não ocorre ao confundir o último com o termo infração penal, pois como visto anteriormente, esta abrange tanto os crimes (ou delitos), quanto às contravenções penais.

Demonstradas as devidas distinções existentes entre crime e contravenção penal, espécies do gênero infração penal, oportuno ainda uma breve análise sobre os crimes de menor potencial ofensivo, uma vez que possui estreita relação com o objeto deste estudo.

4.4. CRIMES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO

Assim como a distinção entre crime e contravenção penal, faz-se necessária também uma compreensão sobre os crimes de menor potencial ofensivo, conteúdo que será abordado no decorrer desta análise, o que permitirá assimilar a temática proposta pelo presente estudo.

O Artigo 61, da Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), define que infrações penais de menor potencial ofensivo são as que cominem pena máxima não superior a um ano, portanto, foram abrangidas as contravenções penais e um  número considerável de crimes, excepcionando os de legislações especiais. (LIMA, 2017).

Conforme é possível observar, os crimes de menor potencial ofensivo são normatizados pela Lei nº 9.099/95, a Lei dos Juizados Especiais Criminais, que cominava pena máxima de um ano, abrangendo todas as contravenções penais e ainda uma parcela relevante de crimes, afastando, no entanto, leis especiais.

No entanto, a Lei n.º 10.259/2001, ampliou para dois anos a pena máxima cominada:

Agora, o legislador editou a Lei nº 10.259 (instituindo os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal), de 12.07.2001, que, em seu artigo 2.º, parágrafo único, assim conceitua: “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.”. Agora, vem a indagação: qual é o conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo no Brasil?

Entendo que ocorreu o fenômeno denominado de derrogação tácita, conforme explica o artigo 2º, parágrafo 1º, do Decreto-Lei nº 4.657, de 04.09.1942 (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro). (LIMA, 2017).

Desse modo, a partir da edição do referido diploma legal, passou-se a abranger crimes com pena máxima não superior a dois anos, ampliando a gama de delitos abrangidos pela lei 9.099/95.

Lei 10.259/2001: alterada que foi pela Lei 11.313/2006, não há mais definição de crime de menor potencial ofensivo nessa Lei. O art. 2º da Lei 10.529/2001 simplesmente se refere à competência do JECRIM Federal para processar e julgar os feitos da competência da Justiça Federal. Quem fixa o conceito de infração de menor potencial ofensivo é o art. 61 da Lei 9.099/95. (NUCCI, 2010, p. 813).

Sendo assim, caracterizam-se como infrações penais de menor potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes com pena máxima inferior a dois anos, tendo ocorrida a derrogação tácita em relação à pena anteriormente cominada, prevista no artigo 61 da Lei nº 9.099/95.

De acordo com Nucci (2010, p. 818), as infrações de menor potencial ofensivo, previstas no artigo 61 da Lei 9.099/95 consistem nas contravenções penais, independente da pena prevista em abstrato, além dos crimes em que a lei comine pena máxima de até dois anos. Importa, assim, para qualificar uma infração como menor potencial ofensivo, a pena privativa de liberdade, independente da cumulação de multa.

Dessa forma, tratam-se os crimes de menor potencial ofensivo de infrações penais de menor gravidade, menor reprovabilidade, que por consequência, possuem uma sanção inferior em relação aos demais delitos, como será possível observar no item a seguir.

4.4.1. Sanções dos Crimes de Menor Potencial Ofensivo

Havendo menor reprovabilidade dessas infrações penais perante a sociedade, os crimes de menor potencial ofensivo apresentam também uma carga reduzida de punição.

Toda vez que um indivíduo pratica um ilícito penal, existe uma retribuição à tal conduta, impondo ao agente uma pena em função do ato praticado. No caso dos crimes de menor potencial ofensivo a punição se revela pelas penas alternativas que são impostas pelo Estado. (LUIZ, 2010).

Nesse sentido, a retribuição ao mal causado, no caso dos crimes de menor potencial ofensivo, reveste-se das penas alternativas, impostas pelo Estado, penalizando o comportamento inadequado do indivíduo.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 98, previu a criação dos Juizados Especiais, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo. Trata-se de norma constitucional de eficácia limitada, pois o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo exige complementação por intermédio de legislação infraconstitucional. Assim sendo, coube ao legislador ordinário a incumbência de fixar sua conceituação. (JOPPERT, 2008).

Desse modo, a criação dos Juizados Especiais seriam os órgãos competentes para solucionar as infrações de menor potencial ofensivo.

Indaga-se, no entanto, quais seriam as penas alternativas adequadas para os indivíduos que praticam condutas de menor gravidade, menor ofensa à sociedade?

Para solucionar essa questão, deve-se realizar uma análise sobre o contexto criminal do país.

De acordo com Luiz (2010), a sociedade, além de outras figuras como juristas, sociólogos e cientistas políticos, buscaram alternativas para aqueles que infringem a lei, mas que não ameaçam a paz e segurança social, como é o caso dos crimes de menor potencial ofensivo. Havendo em torno de 308 mil detentos, recolhidos em presídios, delegacias e demais estabelecimentos, estaria o Brasil entre os dez maiores sistemas penais do mundo. Além disso, cerca de 30% dos indivíduos recolhidos aguardam julgamento. Verifica-se ainda que aproximadamente 30% poderia estar cumprindo penas alternativas, uma vez que hoje, apenas 10% a cumpram.

Diante do que foi apresentado, os comportamentos penalizados com penas alternativas constituem condutas indevidas, entretanto, não possuem gravidade suficiente para o encarceramento do indivíduo. No entanto, não devem ficar impunes sob o risco do caos social, onde tais condutas seriam banalizadas, multiplicando pequenos delitos.

De outro prisma, o cerceamento da liberdade dos indivíduos que praticam tais condutas, crimes de menor potencial ofensivo, acarretaria a superlotação dos estabelecimentos carcerários que já apresentam uma situação sobrecarregada.

Não se pode olvidar da previsão constitucional sobre a individualização da pena, que em seu artigo 5º, inciso XLVI, dispõe que adotará, entre outras: “a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”. (BRASIL, 1988).

Além de especificar os tipos de penas aplicáveis no território nacional, a atual Constituição não deixou de proscrever penas indevidas para o ordenamento jurídico pátrio.

Nesse prisma, dispõe a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso XLVII: “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”. (BRASIL, 1988).

Verifica-se ainda que o Código Penal também dispôs sobre o tema das penas alternativas em seu artigo 43.

Nesse sentido, o Código Penal Brasileiro, em relação às penas alternativas, dispõe no artigo 43 as penas restritivas de direitos, in verbis: “As penas restritivas de direitos são: I Prestação pecuniária; II Perda de bens e valores; III (vetado); IV Prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; V Interdição temporária de direitos; VI Limitação de fim de semana”. (BRASIL, 1940).

Dessa forma, a pena restritiva de direito limita a liberdade do indivíduo sem, no entanto, encarcerar o mesmo. Vai além de sua liberdade, podendo privá-lo de seus bens, e ainda possui um caráter social quanto à prestação de serviços à comunidade.

As penas restritivas de direitos, não estão baseadas em privar o cidadão do seu direito de ir e vir, mas segue o pensamento de provocar um abalo na posição que esta pessoa desfruta na sociedade, alterando sua posição no meio em que ele vive, sem, entretanto, removê-lo, do meio social. (LUIZ, 2010).

Sendo assim, não ficaria o indivíduo impune pelo delito cometido, no entanto, não seria ele levado ao cerceamento de sua liberdade, tendo em vista a baixa lesividade do delito cometido. Estaria, assim, perante a sociedade, sendo reprimido pelo mal causado, de forma proporcional.

Diante desse contexto, quais são as penalidades possíveis para os crimes de menor potencial ofensivo?

Penalidades possíveis: as penas compatíveis com a transação são restritivas de direitos ou multa, excluídas as privativas de liberdade. Entretanto, é preciso deixar claro que as pena respeitam, tanto quanto a definição de crime, o princípio da legalidade (não há pena sem prévia cominação legal). Por tal motivo, a aplicação da multa deve obedecer os critérios gerais, fixados pelo Código Penal, variando entre 10 e 360 dias-multa, calculado cada dia em valores de 1/30 a 5 vezes o salário mínimo. No campo das penas restritivas de direito, existem somente cinco: a) prestação pecuniária; b)perda de bens e valores; c) prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; d) interdição temporária de direitos; e) limitação de fim de semana (art. 43, CP). (NUCCI, 2010, p. 837).

Desse modo, evidenciam-se as penas restritivas de direitos ou multa, afastando as penas privativas de liberdade. Quanto às penas restritivas de direito, consistem restritamente a prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas, interdição temporária de direitos e ainda a limitação de fim de semana.

Conforme aludido, verificadas as sanções cabíveis nos crimes de menor potencial ofensivo, de uma forma superficial e sintética, uma vez que um exame mais aprofundado demandaria maior dedicação em detrimento do foco proposto nessa análise sobre a inviolabilidade do domicílio, passa-se ao propósito do presente estudo, a legalidade ou ilegalidade na invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo.

Sendo assim, explicitados os conceitos atinentes a infração penal, crime, contravenção e crimes de menor potencial ofensivo, assim como as penas cabíveis, neste momento, deve-se verificar a questão objeto principal do estudo: a legalidade ou ilegalidade na invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo, tema do próximo capítulo.

5. A (I)LEGALIDADE NA INVASÃO DE DOMICÍLIO NOS CRIMES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO E NAS CONTRAVENÇÕES PENAIS

O capítulo que se inicia tem por objetivo uma análise sobre a legalidade ou ilegalidade da invasão de domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais, a questão da permissão X proibição, a doutrina, e a jurisprudência.

Evidenciada a evolução do direito constitucional brasileiro, os direitos fundamentais previstos na Carta Magna de 1988, a teoria dos limites aos direitos fundamentais e a tese dos limites dos limites, assim como dispositivos constitucionais relacionados à inviolabilidade do domicílio e com sua previsão e conceito, têm-se elementos suficientes para uma análise acerca da inviolabilidade do domicílio.

Conforme exposto anteriormente, não se pode olvidar ainda da questão de sua flexibilização de violação, e ainda, conceitos explicitados sobre infração penal, crime e contravenção penal, suas diferenças e crimes de menor potencial ofensivo.

Nos dizeres de Villa Júnior (2006), são estabelecidos limites para que um policial adentre à uma residência, aliás, estendido estes limites à qualquer pessoa.

Dessa forma, a norma constitucional da inviolabilidade domiciliar é inerente a qualquer pessoa, e não especificamente à integrantes das forças policiais, incumbidas da preservação da ordem pública e do cumprimento das legislações penais, assim como dos crimes de menor potencial ofensivo. Não há, assim, qualquer distinção entre aquilo que qualquer pessoa pode fazer, em relação à inviolabilidade do domicílio, e os integrantes da segurança pública.

De acordo com Sarlet (2015), “com efeito, a CF não proíbe a entrada em casa alheia, ainda que à noite, para fazer cessar prática delitiva, em caso de flagrante – ou desastre, ou para prestar socorro, tudo isso sem determinação judicial”.

Logo, inexistindo os excludentes constitucionais da inviolabilidade domiciliar, a casa é asilo inviolável do indivíduo. Cabe então, nesse momento, estabelecer uma diferenciação entre a permissão e a proibição.

5.1. PERMISSÃO X PROIBIÇÃO PARA A INVASÃO DO DOMICÍLIO

Notadamente, conforme o que foi exposto até o momento, havendo a permissão por parte do morador, a entrada no domicílio reveste-se de legalidade, uma vez que seu consenso afasta a ilicitude. É o que dispõe o texto constitucional, que enumera as possibilidades de invasão do domicílio, o que, de forma diversa, constitui um ilícito.

Nesse sentido, “é importante observar que os casos de invasão domiciliar permitidos são os taxativamente enumerados pela norma constitucional, não cabendo à lei ordinária aumentar ou diminuir o rol estabelecido por esse dispositivo”. (GROTTI, 1993, p. 109).

Conforme apresentado, havendo consenso do morador, uma das exceções elencadas pela Carta Magna de 1988, é permitida a violação do domicílio. Entretanto, a atual constituição não definiu como se daria esse consentimento, essa permissão para a entrada no domicílio.

Em recente julgado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul afastou a legalidade da violação do domicílio com base no consentimento do morador:

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. BUSCA DOMICILIAR FUNDADA EM DENÚNCIA ANÔNIMA. AUSÊNCIA DE MANDADO. PROVA ILÍCITA. Inviolabilidade do domicílio. Não restou demonstrada a situação de flagrante delito apta a excepcionar a proteção conferida por força do artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Havendo suspeita da prática de delito em algum domicílio/residência é indispensável a prévia obtenção de mandado judicial de busca e apreensão. A lei não permite atalhos, nesse caso e, somente no caso de haver certeza da prática de ilícito penal é que fica autorizada a exceção do inciso XI do art. 5º da Constituição. [...]. O flagrante delito que autoriza o ingresso deve ser induvidoso, certo, existente e previamente constatado, mediante gritos ouvidos de pessoas que estão sofrendo violações, ou visualizações feitas, ou, em outros casos, pela identificação de pessoas do exterior que relatam, por escrito, a prática de delito no interior da casa, naquele exato momento. Qualquer coisa em sentido contrário demanda a necessária investigação e obtenção de mandado de busca e apreensão. Atalhos tornam-se ilícitos e, em decorrência, ilícita a prova. (RIO GRANDE DO SUL, 2014).

Nesse sentido, a anuência do morador realizada aos policiais que realizavam a operação, não se mostrou suficiente para afastar a inviolabilidade do domicílio. Seria necessário o devido mandado judicial para a entrada na residência, tornando a prova obtida ilícita, segundo o julgado.

O desrespeito à norma constitucional que assegura a inviolabilidade do domicílio acarreta consequências sobre o processo penal. Veremos duas principais, as quais se projetam sobre o auto de prisão em flagrante e sobre a solução do processo, ou seja, sobre a sentença. (AMARAL, 2017).

Sendo assim, a ilicitude realizada na invasão de domicílio ocasiona efeitos indesejados no processo, resultando em falhas processuais que geram absolvições aos autores de delitos, por mero descumprimento de formalidades legais imprescindíveis.

Leciona Grotti (1993, p. 105), que “a regra constitucional brasileira não esclarece que tipo de consentimento deve ser dado, ou seja, se deve ser expresso ou apenas tácito”.

Desse modo, na falta de uma previsão legal adequada que subsidie as ações daquele que ingressa no domicílio, toda cautela é salutar.

Para Perine (2017), “e nem se levanta a hipótese real de autorização do ingresso na residência pelo abordado, uma vez que no mínimo se está diante de um constrangimento, o que torna a autorização eivada de vício e, portanto, nula”.

Nesse sentido, assevera o autor a probabilidade da coação por parte dos representantes do Estado quando da entrada na residência, o que não deve ser ignorada.

Amaral (2014) ensina que nossa legislação deixou de eleger quais infrações penais seriam aptas à invasão domiciliar.

Logo, não se visualiza nas leis questões autorizativas para a entrada na residência. Trata-se de regra geral, onde se deve atender ao disposto no mandamento Constitucional.

Segundo Masi (2017), “para aferir a validade da busca sem mandado, então, deve-se pressupor que não há consentimento do morador para a entrada. Tal consentimento deve ser provado pelos agentes”.

Diante do exposto, a forma autorizativa para a entrada à residência deve ser verificada na doutrina, uma vez que o texto legal não estabeleceu a forma de consenso que deve ser dada pelo morador.

Assim, “o dissenso do morador é, pois, indispensável para caracterizar a violação. Pode ser expresso, isso é, manifestado por palavras, gestos, escritos e atos; ou tácito, quando se deduz de fatos, de comportamentos [...].” (GROTTI, 1993, p. 106).

Diante do exposto, sendo o consenso do morador compatível com a entrada na residência, não haveria ilegalidade. Na falta de critérios normativos para essa invasão legal, onde o consentimento pode ser questionado através de ações do morador que não demonstram recusa à entrada em sua residência, deveria aquele que ingressa em domicílio alheio se cercar de meios probatórios da permissão do morador.

Deve-se ressaltar que “[...] o consentimento do morador alcança os dependentes e subordinados do proprietário, na ausência do morador [...]”. (MORAES, 2012, p. 566).

Nesse caso, na ausência do morador, aquele que se encontra no domicílio como dependente daquele, ou mesmo seu subordinado, estaria autorizado a consentir a entrada na residência.

De acordo com Silva (2013, p. 440), “o objeto de tutela não é a propriedade, mas o respeito à personalidade, de que a esfera privativa íntima é aspecto saliente”.

Sendo assim, nota-se o intuito constitucional de resguardar a privacidade do indivíduo, em seu domicílio, possui uma proteção fundamental.

De outro norte, a entrada sem o consentimento do morador, configura a violação do domicílio.

Assevera Grotti (1993, p. 106) que para que ocorra a violação, o ingresso ou permanência deve ocorrer contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, podendo ocorrer clandestinamente, astuciosamente ou ostensivamente, conforme estabelecido no Código Penal, no artigo 150.

Desse modo, inexistindo permissão para o ingresso no domicílio, afastadas as hipóteses legais para sua violação, há a proibição, resultando em ilícito penal conforme previsão no artigo 150 do Código Penal, acima apontado.

Aliás, é pertinente a transcrição do dispositivo legal em comento, intitulado Violação de Domicílio, dentro da Seção II – Dos Crimes Contra a Inviolabilidade do Domicílio: “Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena - detenção, de um a três meses, ou multa. [...]”. (BRASIL, 1940).

Nesse prisma, o referido dispositivo apresenta-se elucidativo quanto à proibição da entrada no domicílio em descumprimento às hipóteses constitucionais que afastam a inviolabilidade, já apresentadas anteriormente.

No entanto, como já mencionado outrora, não se pode olvidar que não se trata de direito absoluto, a inviolabilidade domiciliar.

[...] não se pode violar o domicílio, embora tal proibição não possua caráter absoluto. Outro mandamento proibitivo é aquele que aponta que ninguém pode penetrar no domicílio alheio, afirmativa esta que também acaba sendo flexibilizada. A importância deste elemento do tipo constitucional se situa no fato de retratar transparentemente que nem mesmo autoridades, sob argumentação de que querem fazer diligências, podem fazê-las sem que certas condições sejam observadas. (VILLA JÚNIOR, 2006, p. 7).

Posto isto, verifica-se que embora a inviolabilidade do domicílio não seja absoluta, sua violação em desacordo com os critérios de excepcionalidade refletem o efeito proibitivo, sendo que, havendo o dissenso do morador, resta caracterizada a violação do domicílio.

Silva (2013, p. 440) assevera que a proteção objetiva as ações das as autoridades, visando impedir a invasão domiciliar, mas também os particulares.

Destarte, conforme apresentado, além da previsão na Carta Magna, a previsão do crime de violação de domicílio afasta tanto autoridades quanto particulares.

Em consonância com o que foi apresentado, Villa Júnior (2006, p. 8) leciona que “o consentimento do morador bem como todas as demais exceções expostas constituem, em face do que dispõe o Código Penal Brasileiro, excludentes de ilicitude”.

Nesse sentido, é possível estabelecer uma diferenciação entre a permissão e a proibição para a invasão do domicílio, de acordo com os dispositivos legais, que enumeram as hipóteses de legalidade na invasão do domicílio, assim como a sua inviolabilidade, nos casos em que não estejam presentes suas exceções.

Oportuno, nesse momento, apresentar uma breve síntese sobre a inviolabilidade do domicílio de acordo com a doutrina.

5.2. A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO À LUZ DA DOUTRINA

Explicitados breves comentários sobre os conceitos pertinentes ao estudo em questão, seus eixos estruturantes, e bases legais, chega-se ao momento predominante da presente análise, qual seja, a visão da inviolabilidade do domicílio sob a ótica da doutrina em detrimento da visão jurisprudencial.

Segundo Villa Júnior (2006, p. 88), “dentre os direitos tutelados, fica evidente que a violação de domicílio se afigura como tema de complexa e extrema importância, uma vez que, como é de conhecimento geral, muitos crimes são cometidos no interior de residências”.

Notadamente, o tema inviolabilidade do domicílio possui grande importância, tanto no caráter de direito fundamental quanto na questão de tipificação penal.

Nos dizeres de Bertollo (2003, p. 208), ao estabelecer o Constituinte que a casa é asilo inviolável, previu a possibilidade de sua invasão em hipóteses que afastam sua ilegalidade. A Carta Política exemplifica as referidas hipóteses, ressaltando a determinação judicial.

Conforme observado, por ser uma garantia fundamental, sua violação deve estar pautada em alguma das hipóteses já citadas, caso contrário, será proibida. Além disso, na determinação judicial, deve o magistrado se cercar de elementos que demonstrem a necessidade da invasão do domicílio.

De acordo com Grotti (1993, p.87), “a inviolabilidade do domicílio significa a proibição de intrusão material em uma habitação privada”.

Nesse prisma, não havendo consenso do morador, está-se diante de uma violação do domicílio, a menos que exista alguma das hipóteses elencadas pelo diploma constitucional.

[...] ressalvadas as situações excepcionais apontadas no art. 5º, XI, da Constituição, se não houver consentimento, as autoridades administrativas (fiscais fazendários, trabalhistas, sanitários, ambientais e servidores congêneres) somente poderão adentrar nas dependências dos administrados se munidos de ordem judicial autorizativa (mandado de busca e apreensão judicial) [...]. (PAULO; ALEXANDRINO, 2008, p. 122).

Dessa forma, segundo o doutrinador, não estando presentes as exceções elencadas na atual Carta Política, não havendo o consentimento do morador, a entrada no domicílio só deve se dar através de mandado judicial.

Bertolo (2003, p. 103) assevera que a inviolabilidade domiciliar no Direito Constitucional exige uma inação dos agentes estatais, assim como do particulares, visando garantir a liberdade individual, a privacidade e intimidade dos moradores, afastando possíveis situações vexatórias.

Em que pese o caráter fundamental do direito da inviolabilidade do domicílio, encontra-se posicionamento doutrinário no sentido de se caracterizar o referido direito como cláusula pétrea, invariável, imutável, que não permite alteração como os demais dispositivos legais.

Importante que se mencione que, na condição de direito e garantia individual, a inviolabilidade de domicílio não pode ser objeto de proposta de emenda constitucional, tendo em vista que, segundo o art. 60, parágrafo 4º, da lei maior, “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”. Trata-se, pois, de uma cláusula pétrea, imexível, imodificável. (VILLA JÚNIOR, 2006, p. 8-9).

Ressalta-se, portanto, a relevância do referido direito fundamental. Considerando o preceito disposto na Carta de 1988, o texto conduz à interpretação de que seria lícita a invasão do domicílio em qualquer situação de flagrante delito, indiferente ao grau de periculosidade proposta pela infração penal.

Prezando-se pela interpretação literal do disposto na aludida norma constitucional, chega-se à conclusão de que a flagrância de qualquer delito ensejaria o sacrifício da inviolabilidade domiciliar. Seria lícito, portanto, invadir a casa de um indivíduo caso lá estivesse sendo praticado qualquer crime, independentemente de sua intensidade lesiva. (OLIVEIRA, 2012).

Nota-se, nesse primeiro momento, a autorização legal para a ação, quer seja policial, quer seja do particular, para exercer a entrada no domicílio, no caso de flagrante delito, em qualquer espécie de infração penal, seja crime, contravenção penal, ou crimes de menor potencial ofensivo.

No entanto, havendo dúvidas quanto ao estado de flagrância, a violação do domicílio deve restar afastada.

[...] Mesmo diante de fortes indícios de que, no interior do estabelecimento, haja provas contundentes da prática de ilícitos, se não houver consentimento, não poderá o agente administrativo executar a busca e apreensão, sem autorização do Poder Judiciário. (PAULO; ALEXANDRINO, 2008, p. 122).

Desse modo, ou viola-se o domicílio respaldado pelas excludentes de ilicitude previstas no mandamento constitucional – hipóteses de violação do domicílio – ou resta configurado o ato ilícito.

No entanto, não se pode resguardar da tutela protetiva da residência para o cometimento de ilícitos.

De acordo com Villa Júnior (2006, p. 72), “se a proteção constitucional ao domicílio constitui direito e garantia individual, não se pode desprezar o fato de que as condutas tipificadas como crime são implícita ou explicitamente proibidas pela Carta Constitucional”.

Sendo assim, embora a Constituição resguarda a intimidade e a privacidade do indivíduo em seu domicílio, o mesmo não deve ser utilizado para a prática de crimes, desvirtuando sua finalidade.

Segundo Tavares (2012, p. 677), “a casa é, nesse sentido, um local a ser respeitado como ‘sagrada manifestação da pessoa humana’”.

Conforme explicitado, sendo a casa um retiro íntimo do indivíduo, sua proteção deve ser tamanha que o resguarde em toda sua totalidade, sem, no entanto, fazer deste seu abrigo para ilícitos.

Por sua vez, ensinam Araujo e Nunes Júnior (2013, p. 207), que “apesar de estarmos na área da liberdade específica, a de inviolabilidade do domicílio, a proteção não pode deixar de estar ligada ao direito à intimidade e à privacidade [...]”.

Dessa maneira, a intimidade e a privacidade do indivíduo vê-se resguardada pela tutela constitucional, o que não afasta seu compromisso com as regras sociais que disciplinam a conduta em sociedade, quais sejam, as infrações penais.

O conteúdo de bens, pertences e documentos pessoais existentes dentro de ‘casa’, cuja proteção constitucional é histórica, se relaciona às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade (intimidade), e também envolve todos os relacionamentos externos da pessoa, inclusive os objetos, tais como relações sociais e culturais (vida privada). (MORAES, 2013, p. 56).

Nesse ínterim, tudo aquilo que está dentro do domicílio compreende objeto de tutela constitucional, devendo ser resguardado pela intimidade e privacidade inerente ao ser humano que ali habita.

A cláusula constitucional da reserva de jurisdição (que incide sobre determinadas matérias, como busca domiciliar, a interceptação telefônica e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância) traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário não apenas o direito de proferir a última palavra, mas sobretudo, a prerrogativa de dizer também a primeira palavra. (AVELAR, 2011, p. 130-131).

Desse modo, evidencia-se a importância do Poder Judiciário na flexibilização ao direito da inviolabilidade domiciliar, órgão que deve ser frequentemente acionado, visando resguardar a proteção constitucional do domicílio.

Nesse sentido, qualquer ação promovida por um representante do Estado, sem as hipóteses excludentes de ilicitude, já apresentadas, pode ensejar o cometimento do famigerado abuso.

Para Villa Júnior (2006, p. 73), se deve agir o policial quando há indicativos que esteja ocorrendo um delito no domicílio, seria necessária a previsão na lei que amparasse o profissional. Trata-se assim de um jogo de azar, onde, encontrando um flagrante, estaria amparado, caso contrário, responde por abuso, uma vez ausente a legalidade de sua atuação.

Recordando ser o estudo voltado para a atividade policial, onde busca-se evidenciar a legalidade ou ilegalidade da invasão do domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais, não se pode olvidar que cada situação deve ser analisada de forma pormenorizada, principalmente no que diz respeito a crimes de menor gravidade.

As hipóteses, portanto, em que o domicílio pode ser invadido sem o consentimento do morador, durante a noite, foram taxativamente enumeradas pelo constituinte, enquanto, durante o dia, a questão é deixada ao critério do juiz. (FERREIRA FILHO, 2012, p. 335).

Desse modo, não há guarida na violação do domicílio exceto os casos previamente citados pelo texto constitucional. Em relação ao dia, a entrada no domicílio é passível através da autorização judicial, o que não se reflete no período noturno.

De acordo com Avelar (2011, p. 131), “[...] exclui-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado”.

Diante do exposto, a violação do domicílio por qualquer indivíduo, seja particular, seja representante do Estado, afastadas as hipóteses que legitimam referida violação, acarretam a configuração de ato ilícito, ou até mesmo o abuso.

Na lição de Villa Júnior (2006, p. 21), o artigo 3º alínea “b” da Lei 4.898 de 1965 estabelece que constitui abuso de autoridade qualquer atentado à inviolabilidade domiciliar praticada por funcionário público no exercício da função.

Diante disso, não havendo as hipóteses anteriormente apresentadas que respaldam a entrada legal do domicílio, poderá incorrer o agente da segurança pública no crime de abuso de autoridade, de acordo com a Lei 4.898/65.

Importa, portanto, mediante avaliação rigorosa do contexto fático, verificar se há elementos objetivos e racionais a caracterizar, ‘ex ante’, situação de flagrância, na perspectiva de quem está fora da residência, pois não sendo assim desautorizada estava a invasão da casa/domicílio, por qualquer um, aí incluídos os policiais, cujo ingresso, repetimos, autoriza-se apenas nas exceções permitidas pelo preceito constitucional (flagrante delito, desastre, prestação de socorro e cumprimento, durante o dia, de mandado judicial). (SARLET, 2015).

Para afastar essa possibilidade, basta atentar para as hipóteses constitucionais que autorizam a violação do domicílio, principalmente a questão do flagrante delito, ainda que sejam crimes de menor potencial ofensivo, uma vez que a Carta Magna de 1988 não distingue, em seu texto, se o flagrante delito possui maior ou menor potencial ofensivo.

Em que pese a necessidade do contexto, “a norma constitucional fixou ‘a casa é asilo inviolável do indivíduo’, porém não de forma absoluta, pois a ela agregou algumas exceções [...]”. (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2013, p. 208).

Conforme já aludido anteriormente, não se trata de direito absoluto, uma vez que deve ser analisado cada caso individualmente e sopesar os direitos envolvidos.

No mesmo sentido, assevera Tavares (2012, p. 678) que “a Constituição, contudo, reconhece peremptoriamente que referido direito não é absoluto [...]”.

Resta, assim, configurada a inexistência do caráter absoluto da inviolabilidade domiciliar de acordo com a doutrina majoritária.

Explicitado, de forma breve, algumas considerações sobre a inviolabilidade do domicílio na ótica da doutrina, verificar-se-á agora a visão jurisprudencial sobre o tema.

5.3. A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO - JURISPRUDÊNCIA

Após uma breve análise acerca dos ensinamentos doutrinários sobre a inviolabilidade domiciliar, cabe, neste momento, um exame sob a ótica jurisprudencial sobre o assunto discorrido.

De acordo com Sarlet (2015), sinteticamente, em sede de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal definiu que a entrada em domicílio sem a determinação judicial somente apresenta-se respaldado de legalidade quando razões justificadas devidamente no caso concreto apontem que no interior da residência ocorra situação de flagrante delito, sob pena de responsabilização na esfera penal, cível e administrativa do agente ou autoridade, além da nulidade dos atos praticados.

Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal já demonstrou posicionamento no sentido de validar a invasão do domicílio quando tratar-se de flagrante delito: “Matéria Criminal. Busca e apreensão em residência sem mandado judicial. Inviolabilidade do domicílio. Prova ilícita. Repercussão geral admitida”. (BRASIL, 2010).

De outro norte, infundado o flagrante, torna-se também ilícita a busca sem mandado judicial, tornando-se nula a prova obtida por este meio.

No entanto, as decisões do Supremo Tribunal Federal flexibilizam consideravelmente a inviolabilidade domiciliar.

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso. (BRASIL, 2015b).

Nesse prisma, recente julgado apontou ser lícita a violação do domicílio pautada em fundadas razões, devidamente justificada, que naquele local ocorria situação de flagrante delito, em especial, o tráfico de drogas.

EMENTE: DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA. INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO. CONSENTIMENTO. SÚMULA 279/STF 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal já assentou a inexistência de repercussão geral da controvérsia relativa à suposta violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal (ARE 748.371-RG, Rel. Min. Gilmar Mendes). 2. A garantia insculpida no art. 5º, XI, da Carta, somente será aplicada nas hipóteses em que o ingresso da fiscalização tributária na propriedade privada se der sem o devido consentimento do proprietário ou de seu representante. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL, 2016).

Em sentido contrário, não havendo situação de flagrante e sem o consentimento do morador, o ingresso no domicílio só é legal através de mandado judicial.

Nota-se, com a exposição dos julgados acima, que o crime permanente sinaliza para a licitude da violação do domicílio desde que esteja presente fundadas razões da situação de flagrante delito no domicílio.

COMPETÊNCIA TERRITORIAL – NATUREZA. Ante a natureza relativa da competência territorial, a não arguição, até as alegações finais, importa preclusão. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA – DADOS CONCRETOS – VALIDADE. Uma vez motivada em elementos concretos, e não em notícia anônima, válida é a interceptação telefônica. FLAGRANTE – CRIME PERMANENTE – DOMICÍLIO – INVIOLABILIDADE – AFASTAMENTO. A situação de flagrância inerente a crime permanente afasta a inviolabilidade versada no inciso XI do artigo 5º da Constituição, tornando lícita a busca domiciliar. (BRASIL, 2015c).

Desse modo, não se fundando unicamente em denúncia anônima, a violação do domicílio com base em outros elementos valida a invasão. Salienta-se a necessidade de fundadas razões para a violação domiciliar.

Ementa: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. POSSE DE ACESSÓRIO DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. ART. 16 DA LEI 10.826/2003. BUSCA E APREENSÃO. ILICITUDE DA PROVA. INOCORRÊNCIA. CRIME PERMANENTE. FLAGRANTE DELITO. CRIME DE MERA CONDUTA E DE PERIGO ABSTRATO. IRRELEVÂNCIA DA POTENCIALIDADE LESIVA DO ARTEFATO. DESCRIMINALIZAÇÃO TEMPORÁRIA PREVISTA NOS ARTIGOS 30 E 32 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. PRORROGAÇÃO DO PRAZO CONFERIDO PELAS LEIS 11.706/2008 E 11.922/2009. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Busca e apreensão autorizada judicialmente em propriedade rural, compreendida por seus vários imóveis. Inocorrência de ilicitude da prova por ofensa ao princípio da inviolabilidade do domicílio. 2. Ademais, havendo fundada suspeita, a busca domiciliar nos crimes permanentes se justifica em decorrência do flagrante delito. Inexistência de ingresso abusivo e constatação posterior de crime permanente. 3. A posse de arma de fogo de uso restrito, de seus acessórios ou de munições constitui crime de mera conduta e de perigo abstrato cujo objeto jurídico tutelado compreende a segurança coletiva e a incolumidade pública. 4. Presente laudo especificando o modelo do silenciador de uso restrito, desnecessária a realização de perícia a comprovar a potencialidade lesiva do acessório para configuração do delito. 5. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a descriminalização temporária prevista nos arts. 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento, com a redação conferida pela Lei 11.706/2008, restringe-se ao delito de posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12) e não se aplica à conduta do art. 16 da Lei 10.826/2003. 6. Recurso ordinário a que se nega provimento. (BRASIL, 2015d).

Evidencia-se ainda a possibilidade de invasão de domicílio não somente nos crimes relacionados ao tráfico de drogas, mas qualquer situação de flagrante delito, como a posse de acessório de arma de fogo de calibre restrito, entre outros, sempre recordando a necessidade de fundadas razões.

Diante do que foi aludido, tanto durante o dia, quanto à noite, tratando-se de flagrante delito, segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, revela-se legítima a invasão do domicílio, afastando a necessidade do mandado judicial, desde que presentes fundadas razões para o ingresso no domicílio.

No entanto, não caracterizada a situação de flagrante delito, o ingresso forçado poderá ensejar responsabilização na esfera cível, disciplinar e até mesmo penal, assim como invalidar os atos ali praticados.

Apresentadas as considerações acerca da doutrina e da jurisprudência sobre a inviolabilidade domiciliar, pertinente agora verificar a questão da inviolabilidade do domicílio nos crimes de menor potencial ofensivo.

5.4. A INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO NOS CRIMES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO E NAS CONTRAVENÇÕES PENAIS

Em que pese a necessidade da invasão do domicílio para fazer cessar a situação de flagrante delito nos casos de crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais, faz-se oportuno verificar através de jurisprudências o posicionamento jurídico sobre a legalidade da invasão domiciliar, não podendo olvidar-se das particularidades de cada situação.

Vale lembrar que a prisão em flagrante é composta por quatro etapas distintas, quais sejam: a captura, a condução, a lavratura do auto de prisão em flagrante e o recolhimento. Se alguém é surpreendido na prática de uma infração penal de menor potencial ofensivo, até mesmo para que cesse a conduta, a fim de evitar a consumação do delito e no auxílio de recolhimento de provas, esse agente deverá ser capturado e conduzido a um distrito. (ARRAIS SOBRINHO, 2014).

Nesse sentido, ainda que não seja aplicada a prisão em flagrante nos crimes de menor potencial ofensivo, deve-se diferenciar das fases necessárias para fazer cessar o ilícito, quais sejam a captura e a condução, resguardada a celeuma sobre o tema do cabimento ou não da prisão em flagrante nos delitos de menor potencial ofensivo.

De acordo com Paula (2017), “é perfeitamente possível a prisão em flagrante nas infrações penais de menor potencial ofensivo”.

Dessa forma, estando diante de situação que configure infração penal, de maior ou menor potencial ofensivo, ou ainda contravenção penal, deve o representante do Estado agir para fazer cessar o ilícito.

APELAÇÃO CRIMINAL. ART. 42, I, DA LCP. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO. PROVA TESTEMUNHAL COERENTE E SEM CONTRADIÇÕES. POLICIAIS QUE ATENDERAM A OCORRÊNCIA CONFIRMARAM A GRITARIA E ALGAZARRA. PRÓXIMAS À HOSPITAL. CONDUTA TÍPICA. CONJUNTO PROBATÓRIO SUFICIENTE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (PARANÁ, 2015a).

Não se deve optar por qual ilícito atender. Diante do flagrante delito, existe o dever de agir. Tratando-se de contravenção penal de perturbação do sossego, abrangida pela Lei 9.099/95, a ação policial para fazer cessar o ilícito apresenta-se tangível, uma vez que estaria configurada a situação de flagrância.

Corrobora este entendimento o fato de somente ser permitida a prisão do cidadão em caso de flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI da CF/88). No caso do art. 69 da lei 9.099/95, não há a segunda hipótese permitida pelo texto constitucional, restando apenas a hipótese de flagrante delito. Ainda, no parágrafo único do art. 69 da lei 9.099/95, há menção explícita que, não sendo possível conduzir o autor do fato ao JECrim, e assumindo este o compromisso de comparecer ao poder judiciário, não ser-lhe-á imposta a prisão em flagrante (lavratura do auto de prisão em flagrante - APF), pois é princípio de hermenêutica jurídica que não se pode interpretar o parágrafo destoando do caput do artigo. (COSTA, 2009).

Desse modo, flagrado em situação de ilícito penal, abrangido pelas hipóteses do artigo 69 da Lei 9.099/95, não sendo possível a realização do termo circunstanciado que compromete o indivíduo ao comparecimento no JECrim – Juizado Especial Criminal, deve ser imposta a prisão em flagrante, sendo lavrado o respectivo auto de prisão em flagrante.

Sobre o tema, leciona Arrais Sobrinho (2014) distinguindo o inquérito policial ou auto de prisão em flagrante e termo circunstanciado:

E há infrações penais outras, cuja pena máxima não supera dois anos, reconhecidas como de menor potencial ofensivo, com regra própria, diferenciando-se do acima explanado, tanto que não se fala em inquérito policial ou auto de prisão em flagrante, mas sim de termo circunstanciado de ocorrência, sem maiores formalidades, regendo-se pelos critérios da oralidade (a representação poderá ser dada de forma oral na audiência preliminar quando restar frustrada a composição civil dos danos), informalidade, celeridade, economia processual, simplicidade.

Sendo assim, nas infrações penais de menor potencial ofensivo, o que se verifica é a possibilidade da confecção do termo circunstanciado de ocorrência, comprometendo o autor do fato a apresentar-se no JECrim para resolução do fato.

O que o legislador quis ao prever a não possibilidade de prisão em flagrante nas infrações de menor potencial ofensivo, previsto no parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.0099/95, foi a aplicação dos critérios norteadores contidos na mencionada lei. Assim, em se tratando de Juizados Especiais Criminais, os princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade, deverão ser observados logo que a Autoridade Policial, no caso, o Delegado de Polícia, tome conhecimento dos fatos e, em uma análise preliminar, se convença da ocorrência de uma infração penal de menor potencial ofensivo. Observados os requisitos para a não lavratura da prisão em flagrante, quais sejam, o encaminhamento imediato do autor do fato ao Juizado logo após a lavratura do termo circunstanciado ou se o autor assumir o compromisso de a ele comparecer, não será elaborado o auto de prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. (PAULA, 2017).

Não se pode olvidar, no entanto, a necessidade de agir sob as hipóteses apresentadas até o momento, que permitem a ação policial, caso contrário, sujeita-se o agente estatal à responsabilização pelas ações realizadas.

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. REPRESENTAÇÃO FORMULADA CONTRA POLICIAIS MILITARES. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL MILITAR. ARQUIVAMENTO. SUPOSTA INVASÃO DE DOMICÍLIO E LESÕES CORPORAIS. SEDIZENTE VÍTIMA SUBMETIDA A EXAME DE CORPO DE DELITO. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. INOCORRÊNCIA. O OFERECIMENTO DE "NOTITIA CRIMINIS" OU REPRESENTAÇÃO À AUTORIDADE POLICIAL NÃO PODE SER CONSIDERADO ATO TEMERÁRIO, LEVIANO OU DESPROPOSITADO. AUSÊNCIA DE ILICITUDE. EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO. ART. 188, INC. I, DO CC. Do contexto probatório coligido aos autos não há como imputar à ré conduta que se possa tachar de temerária ou leviana, apta a caracterizar denunciação caluniosa. É lícito peticionar ou representar às autoridades públicas dando-lhes a conhecer ato ou fato considerado, em tese, ilegal, irregular ou pretensa transgressão disciplinar. Tal conduta, de regra, se insere no âmbito do direito constitucional de representação ou petição, configurando o exercício regular de um direito (art. 188, I, do CC). Sentença de improcedência da ação confirmada. APELO DESPROVIDO. (RIO GRANDE DO SUL, 2015).

Nesse sentido, para afastar qualquer ilegalidade, evidencia-se imprescindível que as ações sejam pautadas pelos ditames constitucionais, preservando as garantias elencadas durante todo o estudo.

Quanto à inviolabilidade domiciliar, visualiza-se sua flexibilização nos casos de flagrante delito.

DECISÃO: ACORDAM OS INTEGRANTES DA SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ, POR UNANIMIDADE DE VOTOS EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E, "DE OFÍCIO", EXCLUIR A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE DO ROL DAS CONDIÇÕES ESPECIAIS DO REGIME ABERTO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - CONDENAÇÃO PELA PRÁTICA DE CRIME DE MANTER EM CATIVEIRO ANIMAIS DA FAUNA SILVESTRE E POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO (ARTIGO 29, § 1º, INCISO III DA LEI 9.605/98 (LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS) E ARTIGO 12 DA LEI Nº 10.826/03) - AUTORIA E MATERIALIDADE DE AMBOS OS CRIMES INQUESTIONÁVEIS - RÉU FOI PRESO EM FLAGRANTE PORQUE FORAM ENCONTRADAS EM SUA RESIDÊNCIA 25 PÁSSAROS EM CATIVEIRO E UMA ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO - EM QUE PESE O RÉU TENHA NAS RAZÕES RECURSAIS NEGADO A AUTORIA, QUANDO DE SEU INTERROGATÓRIO EM JUÍZO CONFESSOU A PRÁTICA DOS DELITOS - PROVA DOS AUTOS CONFIRMOU, SEM SOMBRA DE DÚVIDAS, A PRÁTICA DOS ILÍCITOS - ALEGAÇÃO DE ILEGALIDADE PRATICADA PELOS POLICIAIS QUE ADENTRARAM EM SUA RESIDÊNCIA SEM ESTAREM MUNIDOS DE MANDADO DESCABIDA - TRATA-SE DE CRIMES PERMANENTES, O QUE TORNA LÍCITA A BUSCA E APREENSÃO SEM MANDADO - PRECEDENTES - CONDENAÇÃO ESCORREITA, QUE DEVE SER MANTIDA PELOS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.RECURSO DESPROVIDO.CASO, TODAVIA, DE SE EXCLUIR, "DE OFICIO", A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE COMO CONDIÇÃO DO REGIME ABERTO. (PARANÁ, 2015b).

Conforme evidenciado, não se reconheceu a ilegalidade da invasão de domicílio pelos policiais, sem mandado, uma vez que presentes crimes permanentes, quais sejam manter em cativeiro animais da fauna silvestre e posse irregular de arma de fogo de uso permitido, o que tornou lícita a busca realizada.

Além do exposto, cabe ressaltar que a lavratura do termo circunstanciado pelo policial militar trata-se de procedimento legal.

Forte nos argumentos apresentados, a lavratura do TC pelo policial militar é não só um procedimento legal, mas uma garantia do cidadão em não ser conduzido à delegacia de polícia caso flagrado no cometimento de infração penal de menor potencial ofensivo, constituindo-se evidente abuso de autoridade caso assim o seja, instigando-se as demais Polícias Militares [10] do Brasil que passem a lavrar o TC, por imposição legal, visando a celeridade exigida pelo JECrim. (COSTA, 2009).

Desse modo, diante de uma situação de infração penal de menor potencial ofensivo, está o policial militar autorizado a lavrar o respectivo termo circunstanciado, não sendo necessária a prisão em flagrante, isso, após fazer cessar o ilícito.

Porém, caso o autor do ilícito não assuma o compromisso de comparecimento no Juizado, é cabível o auto de prisão em flagrante.

O parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.0099/95 deve ser interpretado de forma extensiva, pois nestas infrações, como já afirmado, poderá ocorrer a prisão em flagrante, como realidade prática, ou seja, a captura e a apresentação ao Delegado de Polícia de alguém que está cometendo ou acaba de cometer uma infração penal. Mas não poderá haver a prisão em flagrante como realidade formal, ou seja, apresentado o autor do fato, não será lavrado o auto de prisão em flagrante, mas apenas o termo circunstanciado de ocorrência e o termo de compromisso. No entanto, caso não assuma o compromisso de comparecer ao Juizado, o auto de prisão em flagrante será lavrado nos termos do artigo 304 do Código de Processo Penal. (PAULA, 2017).

No entanto, a possibilidade de sujeitar o indivíduo à prisão em flagrante, para os crimes de menor potencial ofensivo, parece descabida, uma vez que é proporcionado ao autor do fato o mero comprometimento de comparecimento no JECrim.

Ação indenizatória. Danos morais e materiais. Responsabilidade Civil objetiva. Culpa da vítima. Legitimidade do ato. Domicílio violado por força policial. Possibilidade. Posse de pequena quantidade de drogas. Flagrante delito que legitima a investida da policia. Legalidade da conduta. Sentença mantida. Recurso desprovido. O Estado não está obrigado a indenizar em qualquer caso em razão da responsabilidade objetiva. A adoção de tal teoria somente desobriga a vítima da prova de culpa do agente da Administração, sendo atribuição desta provar a culpa do lesado no evento danoso, para que fique livre do dever de indenizar. A legitimidade de ação policial na casa do indivíduo, sem mandado judicial, está fundamentada na flagrância do delito, não tendo nenhuma correlação com a gravidade da infração penal, circunstância, inclusive, abrangida por crime de menor potencial ofensivo. Nesta acepção, delito é entendido como crime em sentido amplo, não se fazendo qualquer diferenciação entre infrações penais de maior ou menor potencial ofensivo. (SANTA CATARINA, 2011)

Verifica-se, no julgado acima, que mesmo se tratando de crime de menor potencial ofensivo, legitima-se a ação policial na residência do autor pelo estado de flagrância.

DECISÃO: ACORDAM os Desembargadores integrantes da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em conhecer e negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. EMENTA: APELAÇÃO CRIME. CONTRAVENÇÃO DE PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO (ARTIGO 42, DO DL Nº 3688/41) E DESACATO (ARTIGO 331 DO CÓDIGO PENAL). CONDENAÇÃO. INSURGÊNCIA. NEGATIVA DE AUTORIA. INOCORRÊNCIA. DEPOIMENTOS POLICIAIS VÁLIDOS COMO PROVA. PRECEDENTES. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. INOCORRÊNCIA. FLAGRANTE DELITO. ART. , INC. XI, DA CF. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO (PARANÁ, 2016).

Diante do exposto, restaria afastada a ilegalidade na invasão do domicílio para fazer cessar a contravenção de perturbação do sossego, uma vez configurado o flagrante delito.

No mesmo sentido, o julgado abaixo aponta para a legalidade da invasão do domicílio para a contravenção penal de jogo do bicho.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.464.860 - SP (2014/0158731-7) RELATORA : MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA RECORRENTE: TIAGO CARLOS PESSOA DA SILVA ADVOGADOS: GUILHERME LOUREIRO BARBOZA ROBERTO SIMÕES GOTTARDI RECORRIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 333 DO CÓDIGO PENAL E ART. 58, § 1º, 'D', DO DECRETO-LEI N.º 6.259/44. ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. DEPOIMENTO DE POLICIAIS. VALIDADE. MODIFICAÇÃO DO JULGADO. SÚMULA 7/STJ. ANULAÇÃO DAS PROVAS COLHIDAS SEM MANDADO JUDICIAL. INVIABILIDADE. CONTRAVENÇÃO PENAL. NATUREZA PERMANENTE. REGIME INICIAL SEMIABERTO E INDEFERIMENTO DA SUBSTITUIÇÃO DA SANÇÃO RECLUSIVA POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. PENA-BASE. MÍNIMO LEGAL. FUNDAMENTAÇÃO. GRAVIDADE ABSTRATA E ELEMENTOS INERENTES ÀS INFRAÇÕES PENAIS. DIREITO AO REGIME MENOS GRAVOSO E À SUBSTITUIÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. [...] Alega que as provas que fundamentaram sua condenação são ilícitas e, como tal, deveriam ser desentranhadas dos autos. Aduz que os policiais militares adentraram em sua residência sem o competente mandado judicial, o que demonstra a ilegalidade das provas ali obtidas. [...] Depreende-se dos autos que o recorrente foi denunciado pela suposta prática dos crimes previstos nos arts. 58, § 1º, b, do Decreto-Lei n.º 6.259/44 e 333 do Código Penal, porque, no dia 21/2/2013, possuía e tinha sob sua guarda, listas com indicações de jogo do bicho, bem como material próprio para a contravenção em apreço. [...] Nunca foi preso ou processado anteriormente. A contravenção penal está bem demonstrada nos autos. Primeiro que o próprio réu confessou a sua prática, dizendo que somente fazia porque acreditava que ninguém vai preso por praticar contravenção penal. Além disso, os policiais confirmaram a prática do delito, bem como está demonstrado através dos documentos apreendidos na residência do réu, de que realmente fazia apostas ilicitas. Apesar de o réu tentar desqualificar a diligência policial, afirmando que quebraram o cadeado de sua casa e adentraram sem qualquer autorização, fato é que na presença de seu advogado, ainda nas dependências da Delegacia de Polícia, não reproduziu tal conduta dos policiais. Demais disso, encontraram documentos provenientes do jogo do bicho, o que caracteriza a lisura na conduta dos policiais. O que chega a ser incompreensível é a alegação de que ninguém vai preso por praticar contravenção penal. No Brasil, realmente a legislação aponta para a despenalização de condutas de menor potencial ofensivo, mas isto não quer dizer quer que o infrator contumaz possa simplesmente agir ilicitamente e jamais ser preso. Em lugar nenhum está escrito isso. [...] A privacidade do domicílio, constitucionalmente assegurada, encontra limites na própria Carta da Republica, que inclui no rol das escassas hipóteses de mitigação do direito fundamental a possibilidade de ingresso no domicílio dos particulares, mesmo sem mandado judicial, nos casos de flagrante delito, nos moldes preconizados pelo artigo 5o, inciso XI, da Constituição Federal. A contravenção penal apurada nestes autos trata de figura penal permanente, sujeitando o autor da conduta ao estado de flagrância enquanto perdurar a prática penal. Neste diapasão, é legítima a ação de agentes policiais que penetram na casa do indivíduo para realizar a captura e condução ao distrito policial, fazendo cessar a atividade apurada em estado de flagrância. [...]. (BRASIL, 2015a).

Dessa forma, a ação policial de invasão domiciliar encontra respaldo mesmo que em caso de contravenção penal, desde que caracterizado o estado de flagrância.

Nesse prisma, ao considerar tratar-se a violação de domicílio de crime de menor potencial ofensivo, há que se fazer um sopesamento entre a infração praticada e a ação necessária para fazer cessar o ilícito.

APELAÇAO CRIMINAL ART. 42, DA LCP - PERTURBAÇAO DO SOSSEGO ALHEIO - COMPROVADA EXISTÊNCIA DE VIZINHOS PRÓXIMOS AO LOCAL DOS FATOS E O ESTORVO CAUSADO PELO ALTO VOLUME DO SOM DO VEÍCULO DO RÉU - CONDENAÇAO MANTIDA - ART. 150, 1º, DO CP - VIOLAÇAO DE DOMICÍLIO - BAR LOCALIZADO NO QUINTAL DA CASA DA VÍTIMA QUE SE ENCONTRAVA FECHADO - POSSIBILIDADE DE SE ESTENDER A PROTEÇAO LEGAL, AMPLIANDO-SE O CONCEITO DE CASA PARA FINS PENAIS - CONDENAÇAO BASEADA APENAS EM DEPOIMENTOS DE MEROS INFORMANTES - INOCORRÊNCIA - VIA DE REGRA, ATRIBUI-SE TEOR PROBATÓRIO AO DEPOIMENTO PRESTADO POR POLICIAL MILITAR - PENA DE MULTA EXACERBADA - INOCORRÊNCIA - NAO PROVIMENTO DO RECURSO. 1. Descabida a alegação no sentido de que não há falar-se em violação de domicílio tendo em vista que o local supostamente invadido pelo acusado se trata de um bar, não podendo ser compreendido no conceito de "casa" para efeitos penais, a teor do disposto no art. 150, 5º, inciso II, do Código Penal, haja vista que os Tribunais pátrios já excepcionaram tal entendimento, assentando que configura o delito em apreço quando o agente entra em estabelecimentos que, embora se incluam no rol do citado preceito legal, encontravam-se fechados, exatamente como ocorrido na hipótese vertente. 2. A inviolabilidade domiciliar abrange não só os limites da casa propriamente dita, incluindo-se também nesse contexto as suas dependências, ou seja, "lugares que complementam, que se incorporam funcionalmente à moradia, como jardim, terraço, quintal, garagem, pátrio, adega, etc. (...)" (MIRABETE, Júlio Fabrini, in"Código Penal Interpretado", Atlas, São Paulo, 1999, p. 859). [...]. (ESPÍRITO SANTO, 2007).

Sendo assim, também na perturbação do sossego alheio é cabível a flexibilização da inviolabilidade domiciliar para fazer cessar o ilícito, desde que configurado o estado de flagrância.

Já que no tange à alegação de violação ao domicílio, não verifico sua efetiva ocorrência. No caso concreto, ocorreu verdadeira perseguição decorrente de flagrante delito (mesmo que o crime cometido seja de menor potencial ofensivo). Destaco que o ocorrido está tutelado na própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XI, nos seguintes termos: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. Ademais, pontuo que os Policiais Rodoviários Federais agiram no estrito cumprimento do dever legal, sem qualquer ilegalidade, portanto. (BRASIL, 2015e).

Novamente, no julgado acima nota-se a possibilidade de invasão de domicílio em crimes de menor potencial ofensivo, decorrente de flagrante delito.

A paz jurídica e a ordem social devem ser preservadas e resguardadas nas devidas proporções, razão pela qual não se poderá afastar a possibilidade da realização da captura do autor de crime ou infração de menor potencial ofensivo em situação de flagrância por quem quer que seja. Não devemos confundir a prisão em flagrante com autuação em flagrante. A primeira possui caráter material, previsto no ordenamento processual penal e na própria Constituição Federal. A segunda se refere tão-somente ao seu aspecto formal e, somente será procedida em não havendo a possibilidade de adotar-se o procedimento especial previsto na Lei 9.099/95. (PAULA, 2017)

Logo, a questão do flagrante evidencia-se como balizador da legalidade ou não da inviolabilidade domiciliar.

Diante dos julgados colacionados, apresenta-se clarividente o entendimento jurisprudencial no sentido de ser cabível a violação do domicílio nos casos de infrações penais de menor potencial ofensivo e contravenções penais, desde que presente a situação de flagrante delito.

Portanto, vê-se que é absolutamente possível a decretação de prisão em flagrante, seja pela leitura da própria lei de regência (Lei nº 9.099/95), pela doutrina, jurisprudência ou ainda pela interpretação sistêmica que todo operador do direito deve proceder, já que o ordenamento jurídico é uno e indivisível, não podendo ser lido isoladamente, mas sim em um constante ir e vir dentro dos diversos ramos do direito, numa dialética que encontra na Constituição Federal a sua pedra fundamental e suporte de validade. (ARRAIS SOBRINHO, 2014).

Desse modo, estando caracterizada a situação de flagrante delito, não haveria qualquer impedimento para a violação domiciliar, até porque a própria Constituição permite tal conduta através das hipóteses anteriormente mencionadas.

Além disso, convém recordar o papel singular desempenhado pelo representante do Estado, em especial, o Policial Militar, tendo em vista suas responsabilidades com a sociedade.

O policial militar, pela sua própria condição de agente público responsável pela segurança pública em caráter ostensivo, tem o dever de agir quando presencie flagrantes de infração penal, seja ela de que categoria for – crime, contravenção penal e até mesmo ato infracional -, sendo tal ônus uma obrigação legal expressamente prevista no art. 301 do Código de Processo Penal (qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito), de modo que sua inação, diante do cometimento de um crime, ensejaria, para si, a responsabilidade penal na condição de autor, conforme cláusula de extensão prevista no art. 13, § 2º, alínea “a”, do Código Penal vigente. (ARRAIS SOBRINHO, 2014).

Diante de tudo que foi apresentado, em relação à inviolabilidade domiciliar, faz-se imperioso asseverar que a conduta policial, respaldada pelas hipóteses constitucionais que afastam a inviolabilidade do domicílio, permite a ação do agente estatal, resguardado pela legalidade de seus atos, ainda que praticados em relação aos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais.

Portanto, há legalidade nos casos em que agentes de segurança, representantes do Estado, adentram domicílios para a prisão em flagrante delito, nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais.

6. CONCLUSÃO

A sociedade vive em uma época em que as garantias constitucionais permitem ao indivíduo uma série de direitos inerentes ao ser humano. No entanto, pode-se observar uma inversão de valores quando o indivíduo faz uso desses direitos individuais para cometer ilícitos, tendo em mente estar acobertado por uma série de garantias, que seriam supremas à legislação penal.

Assim, fruto de uma transformação social que ocorreu nas últimas décadas, a evolução de um regime conhecido como ditatorial para um modelo democrático trouxe inúmeras mudanças, entre elas a percepção do indivíduo como ser social, que possui direitos inatos a sua condição de ser humano. Isso possibilita ao indivíduo praticar ações que seriam impensáveis no modelo adotado anteriormente.

Entretanto, não se pode olvidar que nenhum direto é absoluto, de modo que deve existir uma flexibilização quando entram em conflito situações divergentes.

Nesse contexto, foi possível observar a disciplina da Carta Magna sobre a inviolabilidade domiciliar e as situações em que são flexibilizadas.

Dessa forma, o que poderia gerar algumas incertezas quanto a legalidade da atuação policial seria o fato de o indivíduo se resguardar no manto constitucional da inviolabilidade do domicílio para a prática de crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais, a exemplo da perturbação do trabalho ou do sossego alheio.

Em contrapartida, a atuação da Polícia Militar, em especial, é a mais ampla e variada possível. O atendimento miliciano abrange todas as idades, raças, classes sociais, sexo, gênero, nos mais variados contextos sociais. Engloba desde uma simples discussão, ou atrito verbal, até mesmo casos de homicídios, passando por roubo, furto, lesões corporais, estelionato e uma série de delitos devidamente tipificados na legislação penal.

Além disso, atua também nos crimes de menor potencial ofensivo, em especial as contravenções penais, como é o caso da perturbação do sossego alheio. Esse tipo de ocorrência possui enorme incidência dentro da realidade policial, exigindo da Corporação recursos que poderiam ser empregados em outros tipos de delitos, muitas vezes, mais graves.

Não são raros os chamados dos agentes milicianos para solucionar as questões de reduzido potencial ofensivo, mas que devem ser atendidos com a mesma qualidade técnica e profissional de qualquer outro tipo de delito, ainda que de maior gravidade.

Nesse contexto, muitas vezes é necessário o uso da força para deter o agente que resiste à ordem legal, sendo necessária, inclusive, a invasão do domicílio para fazer cessar o delito em tela.

Desse modo, apresentados neste estudo a evolução constitucional brasileira, suas garantias fundamentais, e o conceito de inviolabilidade domiciliar, além da identificação da infração penal, esta análise permite identificar sua relação com os crimes de menor potencial ofensivo e as contravenções penais.

Diante do que foi demonstrado, assim como a doutrina e jurisprudência, permite-se verificar, na existência do flagrante delito, além das demais hipóteses excepcionadas pela Constituição de 1988, a possibilidade de flexibilização da inviolabilidade do domicílio, ainda que diante de crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais.

Conforme explicitado, em relação à inviolabilidade domiciliar, faz-se imperioso asseverar que a conduta policial, respaldada pelas hipóteses constitucionais que afastam a inviolabilidade do domicílio, permite a ação do agente estatal, resguardado pela legalidade de seus atos, ainda que praticados em relação aos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais.

Sendo assim, quando o policial, de forma necessária, se vê obrigado a invadir o domicílio para fazer cessar o delito, está acobertado pela situação de flagrante delito, ainda que haja menor lesividade no delito praticado pelo infrator.

Por corolário, há legalidade nos casos em que agentes de segurança, representantes do Estado, adentram domicílios para a prisão em flagrante delito, nos crimes de menor potencial ofensivo e nas contravenções penais.

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Publicado por: FABIEL DOS SANTOS ESPINDOLA

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