A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NA INDÚSTRIA DA MODA
índice
- 1. RESUMO
- 2. INTRODUÇÃO
- 3. BREVE HISTÓRIA DO TRABALHO E DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS
- 3.1 A Exploração do Trabalho Escravo no Brasil
- 3.2 A Exploração do Trabalho Escravo na Indústria da Moda Brasileira
- 4. A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO FEMININO E INFANTIL NA INDÚSTRIA DA MODA
- 5. AS POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA O COMBATE E PREVENÇÃO DA ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA
- 6. CONCLUSÃO
- 7. REFERÊNCIAS
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1. RESUMO
A escravidão ainda se encontra presente em nossa sociedade, e muito mais presente do que sabemos. O número aproximado de escravos contemporâneos no mundo ultrapassa os 40 milhões, sendo que 71% dos escravos são mulheres e meninas menores de idade. O presente trabalho abordou a exploração do trabalho escravo contemporâneo na indústria da moda brasileira e a sua afronta aos direitos humanos, assim como a nossa responsabilidade social, enquanto consumidores, para combatermos a continuidade dessa prática extremamente abusiva, iniciando pela análise histórica da exploração do trabalho humano, relatando e mencionando os marcos legais da evolução da proteção ao trabalhador, passando pelas formas de exploração do trabalho e qual a eficácia da legislação vigente e das políticas públicas do nosso país no combate a essa exploração. O Brasil adotou a democracia a partir da Constituição Federal de 1988 e, garantir que o princípio da dignidade da pessoa humana seja respeitado acima de tudo, é o seu maior dever enquanto Estado Democrático de Direito.
Palavras-Chave: Escravos. Exploração. Trabalhador. Moda. Direitos. Proteção. Escravidão.
ABSTRACT
Slavery is still present in our society, and much more present than we know. The approximate number of contemporary slaves in the world exceeds 40 million, with 71% of slaves being women and underage girls. The present work dealt with the exploration of contemporary slave labor in the Brazilian fashion industry and its affront to human rights, as well as our social responsibility as consumers, aiming to combat the continuity of this extremely abusive practice, starting with the historical analysis of human labor exploitation, reporting and mentioning the legal frameworks of the evolution of workers protection, through the exploitation of labor and the effectiveness of current legislation and public policies in our country in order to avoid such exploitation. Brazil has adopted democracy since the Federal Constitution of 1988, and ensuring that the principle of the dignity of the human being is respected above all, is the greatest duty as a Democratic State of Right.
Keywords: Slaves. Exploration. Worker. Fashion. Rights. Protection. Slavery.
2. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tratará sobre a exploração da mão de obra escrava na indústria da moda, haja vista o número de pessoas encontradas em situação análoga à de escravo está velozmente em expansão emesmo o Brasil sendo um dos primeiros países a admitir internacionalmente a existência da escravidão contemporânea, o trabalho em condições semelhantes à escravidão ainda é uma realidade enfrentada por muitos trabalhadores na indústria de vestuário brasileira.
Há inúmeros exemplos de pessoas que são resgatadas de situações degradantes no local de trabalho, assim como crescentes denúncias de exploração de mão de obra escrava, inclusive de lojas e marcas renomadas, como é o exemplo da Renner, Riachuelo, Marisa, Le Lis Blanc, Luigi Bertolli, entre várias outras, que exploram seus empregados das mais variadas formas, desde a retirada de seus documentos pessoais a fim de evitar que possam escapar, até a privação de sono em função de cumprir a meta diária de produção, vivendo em condições sub-humanas. Diante disso, têm-se um problema: qual a eficácia da legislação vigente e das políticas públicas do Brasil no combate a essa exploração dos trabalhadores e qual a nossa responsabilidade social, enquanto consumidores, para prevenirmos a continuidade dessa prática extremamente abusiva?
A linha que difere a escravidão de antigamente com a de hoje em dia é muito tênue, os escravos contemporâneos têm sua mão de obra explorada a fim de gerar lucro para seus novos “senhores”, mas em uma escala global. Cerca de 36 milhões de homens, mulheres e crianças – 0,5% da população global – encontra-se em condição de escravo no mundo, conforme levantamento publicado no ano de 2014 pela organização de direitos humanos Fundação Walk Free. Alguns elementos que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo são o trabalho forçado, a jornada exaustiva, servidão por dívida, coação, restrição de liberdade e exposição a condições degradantes no ambiente de trabalho.
Essa nova escravidão pode ser gerada das mais diversas formas, desde o pagamento de dívidas até por imigrantes que chegam ao Brasil em busca de emprego e de uma melhor condição de vida – como no atual caso dos venezuelanos – e acabam por ser confinados e obrigados a servir em troca de um prato de comida ou um lugar para dormir, independentemente de sua precariedade.
A miséria é um dos, se não o maior, fator que leva à continuidade da escravidão nos dias de hoje.
Assim, se reveste de relevância as discussões sobre a proteção dos trabalhadores e a sua dignidade no ambiente de trabalho, no intuito de tentar assegurar que tenham garantidos os seus direitos fundamentais. A importância da proteção ao trabalhador torna-se mais evidente diante dos recentes episódios de resgate de pessoas exploradas como escravas em linhas de produção de vestuário e outros produtos da moda.
O Brasil é o país da América Latina que tem os maiores índices de escravidão contemporânea, cerca de 369 mil pessoas vivem essa situação, conforme a Fundação Walk Free, em seu relatório Índice Global de Escravidão 2018. Há uma estimativa de que o Brasil tenha 1,8 pessoa escravizada para cada 1 mil habitantes, e existem aproximadamente 300 mil bolivianos, 70 mil paraguaios, 45 mil peruanos vivendo só na região metropolitana de São Paulo, a maioria sujeita a condições de trabalho análogas à de escravo, segundo Renato Bignami, que é coordenador do programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em São Paulo.
Esse número não é demonstrativo da realidade de todos os trabalhadores escravizados, existem muito mais pessoas nessas condições do que temos conhecimento, sendo incontáveis os estrangeiros em busca de oportunidades de emprego e de uma vida melhor, como no caso dos venezuelanos que estão se tornando as vítimas mais recentes da escravidão, já que acabam nas mãos de aliciadores de trabalho escravo.
Todavia, há parcos inquéritos criminais concluídos contra pessoas que são suspeitas de submeter outras à escravidão, segundo dados do Ministério Público Federal, demonstrando o porquê é tão importante que nós, enquanto sociedade, tenhamos conhecimento de que ainda há muitos abusos existentes em nosso país em relação aos direitos dos trabalhadores e que, de certa forma, mesmo que indiretamente, podemos estar contribuindo com essa prática, para que assim possamos refletir e observar se o que estamos consumindo é derivado ou não de trabalho escravo, objetivando o combate dessa conduta desumana.
Como este trabalho tem como objetivo aproximar-se da realidade para melhor analisá-la e, subsequentemente, produzir transformações, a discussão sobre os impactos do uso de mão de obra escrava no mundo, reveste-se de importância para o meio acadêmico. Nesse contexto, uma maior produção de estudos e conteúdos sobre a escravidão nos dias atuais pode ser o início de um processo de transformação que começa na academia e estende seus reflexos para a realidade social. Para o curso de Direito e a área de conhecimento que envolve os direitos humanos fundamentais e direitos do trabalhador, pesquisas sobre a realidade vivida por muitas pessoas nessas condições degradantes são cada vez mais necessárias e pertinentes, a fim de que possamos idealizar uma forma precisa de combater esse problema social que permanece através dos séculos.
Os objetivos deste trabalho são de, além de analisar a incidência de casos de exploração do trabalho humano na indústria da moda, avaliar dados e denúncias acerca deste problema a fim de conhecer quais suas causas e buscar reflexões sobre como combatê-lo, considerando os fatores que desencadeiam ou predispõem as crescentes ocorrências de trabalhadores escravizados, assim como identificar quais os tipos de explorações sofridas e sob que circunstâncias estão submetidos os trabalhadores, o porquê de a maioria dos casos de exploração envolverem mulheres e meninas e qual a influência do gênero nos abusos sofridos por elas, avaliar a realidade socioeconômica e o que acaba levando os trabalhadores a envolverem-se nessas situações, assim como conhecer as principais causas e possíveis soluções para a sua erradicação.
Outrossim, vale mencionar a relevância da concepção de um material que sirva de parâmetro para contribuir com que a sociedade reconheça a importância da valoração do trabalho humano, repensando-se a forma de consumo e dando visibilidade à essa questão, facilitando, assim, a diminuição do número de casos de violação dos direitos humanos no referido tema.
Importante acrescentar que em nossa Constituição Federal de 1988 há diversas passagens que se referem à valorização do trabalho, como seu artigo 1°, incisos III e IV, que trazem como direitos fundamentais a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, respectivamente, tendo este último como objetivo assegurar a todos uma existência digna no meio laboral. Porém, mesmo fazendo parte de direitos fundamentais previstos em nossa Lei Maior, ainda existem casos de pessoas que são exploradas em seu meio de trabalho em todo o Brasil, tendo seus direitos fundamentais violados, como a dignidade da pessoa humana e o cerceamento de sua liberdade.
Conforme dados do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, desde 1995 cerca de 49.816 (quarenta e nove mil oitocentos e dezesseis) pessoas foram resgatadas em condições de trabalho análogo a de escravo no Brasil. Essas ocorrências estão presentes em todo o país, não tendo importância o quão é economicamente desenvolvida a localidade em que surgem. Tocante ao assunto, importante ressaltar que a maioria das vítimas da escravidão atual, nos meios de produção da indústria da moda, são mulheres e crianças, devido a sua maior fragilidade e facilidade de aliciamento por seus exploradores.
Para a abordagem da pesquisa, considerando o problema proposto, será utilizado o método indutivo, por esse nos permitir, através da observação de alguns fenômenos gerais, chegar a determinadas considerações, as quais possam fundamentar o questionamento central da investigação. Quanto aos procedimentos investigativos, serão usados os métodos histórico, comparativo e estatístico. O histórico, por levar em consideração o contexto do fato investigado, permitindo comparar o conjunto característico dos elementos pertinentes ao seu objeto na atualidade com o que era em suas origens históricas, assim estuda-se não só tal fenômeno hoje e no passado, mas esse fenômeno em relação ao seu contexto histórico atual e anterior, no caso específico dessa pesquisa, os estudos relativos à escravidão e trabalho e toda a evolução dos direitos humanos fundamentais para uma vida digna.
O método comparativo, por confrontar elementos levando em consideração seus atributos, pois a comparação promove o exame simultâneo para que as eventuais diferenças e semelhanças possam ser constatadas e as devidas relações estabelecidas, sendo necessário, inicialmente, definir e conhecer os dois campos que serão analisados para que se possa obter uma gama de informações que possam ser traduzidas em concepções mais amplas e generalizadas sobre o assunto pesquisado, já que será analisado como a escravidão contemporânea se estabeleceu no Brasil em contraposição a legislação trabalhista vigente e suas ocorrências na indústria da moda e vestuário, bem como qual nossa contribuição enquanto consumidores para com essa prática.
E, o método estatístico, por efetuar predições com base nos dados coletados, proporcionando a confecção de uma representação numérica quantitativa e, ao mesmo tempo, de uma explicação sistemática da observação sobre a escravidão contemporânea na indústria da moda no Brasil.
O trabalho será dividido em três capítulos, sendo o primeiro sobre a história da trabalho - mencionando os marcos legais referentes à proteção do trabalhador -, o segundo capítulo versa sobre a exploração do trabalho escravo na indústria na moda - abarcando desde a exploração do trabalho infantil e da mulher, até um recorte acerca da desigualdade de gênero no mundo do trabalho - e, o terceiro, trata das possíveis soluções para o combate da escravidão contemporânea na indústria da moda.
O levantamento dos dados será efetuado por meio de documentação indireta, que abarca a pesquisa bibliográfica em artigos científicos, doutrinadores, por meio de livros, jornais, revistas, jurisprudências, teses e dissertações, e a pesquisa documental (escritos ou não, de primeira mão, isto é, que não foram usados, ainda, para o embasamento de uma pesquisa), tais como índices do Ministério do Trabalho, reportagens e processos sobre o tema.
A presente temática, por possuir grande relevância social, tem como intuito mostrar o quanto é necessário expormos os horrores praticados pela indústria da moda aos seus trabalhadores, noticiando tanto os abusos sofridos por essas pessoas como também divulgando as marcas que exploram o trabalho humano na indústria de vestuário, sem oferecer condições dignas de trabalho a seus funcionários, reduzindo-os a uma condição análoga ao de escravo. Como consumidores, cabe a nós nos questionarmos se devemos continuar consumindo dessas empresas que ignoram direitos humanos fundamentais.
3. BREVE HISTÓRIA DO TRABALHO E DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS
A história do trabalho humano é uma história de terror, conforme teóricos desse campo de pesquisa. A própria palavra trabalho origina-se de tripalium, um instrumento utilizado como forma de tortura na antiguidade, ou seja, trabalhar era sinônimo de sofrer. Talvez por isso o trabalho fosse destinado aos escravos, os quais não eram encarados como seres humanos, mas sim como uma “coisa” pela qual os donos tinham total controle, podendo torturá-los e castigá-los das mais diversas, e comumente cruéis, formas. (BODART, 2010).
O alastramento do trabalho escravo na Antiguidade ligado à ideia do trabalho como mercadoria é causador da relação escravo-propriedade. Segundo Alice Monteiro de Barros: “O escravo assemelhava-se a uma coisa que pertencia ao amo ou senhor, a partir do momento em que entrava em seu domínio [...]”. (BARROS, 2017, p.).
Com o tempo, fomos atribuindo valor ao trabalho humano, surgindo assim normas jurídicas que visam proteger o trabalhador. Na época da Revolução Industrial – de 1670 até 1840 –, foram ocasionadas transformações no setor produtivo, surgindo, então, a Classe Operária onde, ainda segundo a autora (BARROS, 2017, p.51):
[…] surgiu daí uma liberdade econômica sem limites, com opressão dos mais fracos, gerando, segundo alguns autores, uma nova forma de escravidão. […] O emprego generalizado de mulheres e menores suplantou o trabalho dos homens, pois a máquina reduziu o esforço físico e tornou possível a utilização das ‘meias-forças-dóceis’, não preparadas para reivindicar. Suportavam salários ínfimos, jornadas desumanas e condições de higiene degradantes, com graves riscos de acidente.
As constantes revoluções da referida época em busca de melhores condições de trabalho criaram a necessidade de um ordenamento jurídico, com leis que visam a proteção do trabalhador, momento em que o Estado deixou de ser um mero observador de acontecimentos e contraiu o dever de intervir nas relações de emprego para que pudessem ser garantidos os direitos fundamentais dos trabalhadores, surgindo, então, o Direito do Trabalho.
Brunna Rafaely Lotife Castro (2013, s.p.) refere que:
No meio deste fervor de precárias condições de trabalho, desemprego e exploração, os trabalhadores começaram a se unir na busca de melhores condições de emprego e contra os abusos cometidos pelos patrões, com o propósito de regulamentar as condições mínimas de trabalho. É neste cenário que nasce o Direito do Trabalho, como consequência das razões política e econômica da Revolução Francesa e a Revolução Industrial, respectivamente.
Posteriormente, foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que motivou os povos para que adotassem certas garantias fundamentais pertencentes à figura humana, e tem como objetivo que todo ser humano tenha direito à liberdade e a segurança pessoal, sem ser submetido a castigos ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Em seu artigo 4° está explícita a proibição de que qualquer pessoa seja mantida em condição de escravidão ou servidão. A escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas. Com isso, nota-se a grande importância da proteção ao ser humano, enquanto trabalhador, no mundo todo.
No Brasil, a Constituição do Império de 1824, acompanhando os conceitos da Revolução Francesa, aboliu as corporações de ofício, propiciando independência ao trabalho. Posteriormente, a Constituição da República de 1934 em seu art.121 determina, in verbis:
Art 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País.
§ 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:
a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil;
b) salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador;
c) trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei;
d) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres;
e) repouso hebdomadário, de preferência aos domingos;
f) férias anuais remuneradas;
g) indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa;
h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte;
i) regulamentação do exercício de todas as profissões;
j) reconhecimento das convenções coletivas, de trabalho.
§ 2º - Para o efeito deste artigo, não há distinção entre o trabalho manual e o trabalho intelectual ou técnico, nem entre os profissionais respectivos.
§ 3º - Os serviços de amparo à maternidade e à infância, os referentes ao lar e ao trabalho feminino, assim como a fiscalização e a orientação respectivas, serão incumbidos de preferência a mulheres habilitadas. [...]
Após, as Constituições brasileiras seguintes, e finalmente a de 1988 – vigente em nossos dias -, arrolaram os direitos dos trabalhadores e empregados urbanos e rurais, sendo que em nossa Lei Maior restaram conservados e estabelecidos direitos trabalhistas em seus arts.7°, 8°, 9°, 10°, 11°, 111, 112, 113, 114, 115 e 116. No ano de 1943, por meio do Decreto-lei de n° 5.452/43, surgiu a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, visando sistematizar as normas relativas ao Direito do Trabalho. (CASTRO, 2013).
Ainda, conforme relatado pelo Desembargador Federal, Dr. Georgenor de Sousa Franco Filho (2013, s.p.):
Muitos desses direitos já existiam no ordenamento constitucional anterior e outros foram acrescentados ou constitucionalizados, como a proteção da relação de emprego contra despedida arbitraria ou sem justa causa; a proporcionalidade do piso salarial; 13º salário; salário-mínimo garantido para quem recebe remuneração variável; salário família; a criminalização da retenção dolosa do salário, que é irredutível, salvo negociação coletiva; jornada semanal reduzida para 44 horas; adicional de horas extras de no mínimo 50%; turno ininterrupto de revezamento com jornada de seis horas; licença paternidade; atividades insalubres, perigosas e penosas; assistência gratuita em creches e pré-escolas; proteção decorrente da automação; fixação de prazo prescricional; garantia de acesso ao emprego para o portador de deficiência; dentre outros.
Já a CLT, é a legislação que define as relações de trabalho, coletivas e individuais, tendo o fito de reunir as leis trabalhistas do País, vedando expressamente algumas práticas comuns na exploração da mão de obra escrava em seu art.462, §§1°, 2°, 3° e 4°, dentre outros. Em seu art.156, o qual versa acerca da competência das Delegacias Regionais do Trabalho, está disposto sobre a fiscalização, orientação, adoção de medidas que visam proteger o meio ambiente de trabalho e, no caso de descumprimento das normas, quais penalidades devem ser impostas.
Impende destacar o art.200, sendo este um dos mais importantes da CLT no que se refere aos trabalhadores escravizados pois, conforme abordado por Matheus Malta Valada (2018, s.p): “Incumbe ao Ministério do Trabalho a “elaboração de normas gerais e específicas sobre segurança, medicina e higiene no trabalho, cujo resultado é a Portaria n° 3.214/77, com várias – NR’s (Normas Regulamentadoras)”.
As NR’s são classificadas por regras gerais de segurança do trabalho e próprias para trabalhos e riscos no ambiente de trabalho. Algumas das NR’s que se aplicam ao caso da escravidão atual, são as NR’s 01 (disposições gerais que devem ser observadas pelas empresas e órgãos privados e públicos); 03 (sobre riscos ao trabalhador); 05 (dispõe sobre a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes – CIPA –, tendo como objetivo prevenir a vida e viabilizar a saúde do trabalhador); 07 (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional); 08 (traz os requisitos mínimos das edificações do local de trabalho); 5 (trata das operações insalubres); 17 (visa estabelecer critérios para que as condições psicofisiológicas dos trabalhadores sejam respeitadas); 24 (condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho); 28 (fiscalização e penalidades a serem adotadas) e a n° 33 (segurança e saúde no trabalho em espaços confinados). (VALADA. 2018, s.p.).
Contudo, após a reforma trabalhista em 2017 (Lei 13.467/2017), houve o que muitos chamam de retrocesso dos direitos trabalhistas, e um passe livre para que haja mais impunidade aos atuais escravagistas.
Com toda repercussão negativa, o Ministério do Trabalho voltou atrás e divulgou outra portaria que aborda o trabalho em condições análogas à de escravo. A Portaria MTB 1.293/2017 oferece uma nova deliberação de jornadas exaustivas e condições degradantes, trazendo o entendimento de que é desnecessária a coação direta da liberdade de deslocar-se para que haja de fato o trabalho escravo. (ROVER, 2017).
Transcrevo, a seguir, os artigos 1° e 2° da referida portaria, in verbis:
1º Para fins de concessão de benefício de seguro-desemprego ao trabalhador que for encontrado em condição análoga à de escravo no curso de fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos da Portaria MTE n.º 1.153, de 13 de outubro de 2003, bem como para inclusão de administrados no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH n.º 4, de 11 de maio de 2016, considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a:
I - Trabalho forçado;
II - Jornada exaustiva;
III - Condição degradante de trabalho;
IV - Restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho;
V - Retenção no local de trabalho em razão de:
a) Cerceamento do uso de qualquer meio de transporte;
b) Manutenção de vigilância ostensiva;
c) Apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Art. 2º Para os fins previstos na presente Portaria:
I - Trabalho forçado é aquele exigido sob ameaça de sanção física ou psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou no qual não deseje permanecer espontaneamente.
II - Jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados a segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social.
II - Condição degradante de trabalho é qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho.
IV - Restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida é a limitação ao direito fundamental de ir e vir ou de encerrar a prestação do trabalho, em razão de débito imputado pelo empregador ou preposto ou da indução ao endividamento com terceiros.
V - Cerceamento do uso de qualquer meio de transporte é toda forma de limitação ao uso de meio de transporte existente, particular ou público, possível de ser utilizado pelo trabalhador para deixar local de trabalho ou de alojamento.
VI - Vigilância ostensiva no local de trabalho é qualquer forma de controle ou fiscalização, direta ou indireta, por parte do empregador ou preposto, sobre a pessoa do trabalhador que o impeça de deixar local de trabalho ou alojamento.
VII - Apoderamento de documentos ou objetos pessoais é qualquer forma de posse ilícita do empregador ou preposto sobre documentos ou objetos pessoais do trabalhador.
Como podemos observar, a escravidão contemporânea é difícil de ser percebida, e a liberdade pode ser limitada através de coação moral, psicológica e não necessariamente física.
Segundo Rosa Weber, ministra do Supremo Tribunal Federal (2017, s.p.): “a violação do direito ao trabalho digno, com impacto na capacidade da vítima de fazer escolhas segundo a sua livre determinação, também significa reduzir alguém a condição análoga à de escravo.”.
3.1. A Exploração do Trabalho Escravo no Brasil
Lamentavelmente, referir-se sobre o trabalho escravo no Brasil como se fosse parte do passado é um erro. A Lei Áurea foi certamente um passo essencial para que o Brasil caracterizasse como ilícito o direito de domínio de alguém sobre outra pessoa, agindo como se fosse seu dono. O problema ainda perdura, ainda que se manifeste de uma forma distinta da que acontecia no século XIX. Em 1888, ao ser sancionada a lei Áurea a fim de garantir a liberdade dos escravos, não foi criada ou cogitada a criação de condições dignas à sobrevivência dos escravos libertos. A partir daí, origina-se uma desigualdade histórica, com efeitos nocivos que recaem sobre os descendentes de escravos, gerando um abismo social que perdura até os dias de hoje. (TRT-RS, 2017).
Para a Fundação Instituto de Direitos Humanos (1969), um aspecto ainda bastante negativo em relação ao Brasil é o total desrespeito à dignidade humana, se tratando do trabalho em condição análoga a de escravo, mesmo que a Convenção Americana de Direitos Humanos (em seus artigos 3°, 4° e 5°), juntamente com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, estabeleçam que ninguém poderá ser submetido à escravidão.
A escravidão contemporânea ou moderna não se trata mais da compra e venda de pessoas, mas ainda coisifica a pessoa, viola sua dignidade e seus direitos mais intrínsecos.
Orson Camargo (201-, s.p.), mestre em sociologia, ao se referir ao conceito de escravidão afirma que:
Os meios de comunicação em geral utilizam a expressão para designar aquelas relações de trabalho nas quais as pessoas são forçadas a exercer uma atividade contra a sua vontade, sob ameaça, violência física e psicológica ou outras formas de intimidação.
Para ele, a escravidão é todo trabalho forçado, “o uso da coação e da negação da liberdade” são suas principais características; muitas vezes somando-se a trabalhos humilhantes e com a negação de liberdade, pondo o trabalhador em uma qualidade de vida degradante.
Apesar de o trabalho rural ainda ser o maior contribuinte da escravidão moderna, Orson também afirma que a escravidão urbana ocorre principalmente na região metropolitana de São Paulo pois, aqui no Brasil, há um grande número de imigrantes latino-americanos, principalmente bolivianos, venezuelanos e demais estrangeiros que chegam em busca de uma condição de vida melhor e acabam caindo nas garras de aliciadores, culminando em trabalhar dezenas de horas diárias, não possuindo direito a folga e, ainda, recebem salários baixíssimos.
Para exemplificar o caso dos imigrantes, o trecho a seguir, retirado do site do Senado Federal (2013, s.p.), mostra como os empregadores se aproveitam da situação do trabalhador para torná-lo escravo, e afirma que:
Os exploradores dos escravos urbanos se aproveitam da fragilidade desses trabalhadores, distantes de casa e, geralmente, em situação irregular no Brasil, para pagar salários irrisórios por jornadas de trabalho extensas, oferecendo condições sub-humanas de residência e alimentação.
Atualmente, estamos recebendo vários venezuelanos que entram no país – na maioria vezes ilegalmente –, em busca de uma situação de vida melhor do que a que encontram em seu país, o qual é palco de uma enorme e crescente crise social e econômica.
Conforme Ana Magalhães, integrante da ONG Repórter Brasil (2018, s.p.):
No ano passado, de acordo com a Polícia Federal, mais de 70 mil venezuelanos entraram no Brasil apenas por Roraima. Cerca de 29 mil cruzaram a fronteira em sentido contrário, já que muitos vêm para comprar remédios e comida e outros retornam à Venezuela pelas dificuldades que enfrentam em Roraima. O fluxo está em crescimento, só nos dois primeiros meses deste ano, mais de 24 mil venezuelanos entraram no estado.
Ainda, em alusão a mesma reportagem de Magalhães:
“Nós recebemos muitas denúncias de exploração do trabalho de venezuelanos. Infelizmente, esse número tem aumentado devido a essa situação do aumento no número de imigrantes venezuelanos”, afirma Andreia Donin, coordenadora da operação de fiscalização.
Impende destacar que, muitas vezes, os imigrantes explorados não estão cientes disso, achando que é algo normal. O chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo – DETRAE –, Maurício Krepsky Fagundes, em entrevista concedida a repórter Talita Marchão (2018, s.p.), afirma que:
Muitos [venezuelanos] desconhecem o que é a própria condição, que aquilo não é permitido. Um dos que foi resgatado nesta semana não sabia que não poderia ficar morando no próprio local de trabalho, fazendo suas necessidades no mato, sem acesso a banheiro, água potável, vivendo embaixo de um barraco de lona e preparando sua comida ali.
Além dos imigrantes no Brasil, os caminhoneiros e trabalhadores marítimos também podem ser considerados categorias vulneráveis às condições de trabalho degradantes, pois trabalham excessivamente e, diversas vezes, ficam isolados do resto da população devido a grande exigência e produtividade.
Uma das formas de escravidão mais encontradas no Brasil é a da servidão, que é caracterizada por trabalhar para saldar uma dívida, ou para ao menos ter onde ficar, a outra é quando os trabalhadores, que muitas vezes vêm de regiões muito distantes, não encontram outro meio de sobrevivência e acabam caindo nessa armadilha.
Segundo Leonardo Sakamoto (2013, s.p.): “a escravidão contemporânea é diferente daquela que existia até o final do século 19, quando o Estado garantia que comprar, vender e usar gente era uma atividade legal”. Ele rotula esse ato como uma atividade perversa aos trabalhadores, já que além de roubar a sua liberdade, fere também a sua dignidade enquanto humano. Na escravidão contemporânea não importa se o indivíduo é negro, amarelo ou branco, idoso ou criança, todos são tratados como insignificantes, descartáveis, independentemente de sua raça ou idade.
Consoante Rodrigo Garcia Schwarz (2008, p.73), a escravidão contemporânea:
Está intrinsecamente relacionada à persistente vulneração dos direitos sociais, especialmente – mas não apenas – dos direitos vinculados às relações de trabalho subordinado, estranhado, ínsitas aquilo que se denomina ou caracteriza como “contrato de trabalho”. Decorre da própria ineficácia da lei, em um jogo de resistência e conflito (construção e desconstrução) em que se enfrentam, historicamente, empregados e empregadores: uns resistindo à opressão e buscando alguma melhoria nas suas condições materiais; outros buscando maximizar a produção e o lucro.
Schwarz ainda explana que o problema da escravidão no Brasil é claro na dificuldade na constituição de normas sociais e trabalhistas eficazes, por causa das inúmeras diversidades e especificidades do nosso mercado de trabalho e dos nossos modelos de relações trabalhistas. Para ele, “o sistema escravista foi praticado usualmente na Antiguidade, especialmente em Roma e na Grécia, que tinham sua base econômica fundamentalmente sustentada por esse sistema.” (SCHWARZ, 2008, p.89).
No nosso dia a dia parece impossível haver escravos em um país no qual tanto se fala em seu crescente desenvolvimento e modernização como o nosso. Porém, no dia 27/11/2014, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgataram trabalhadores que produziam para as lojas Renner e que eram mantidos em condições análogas às de escravidão. A Renner está sendo investigada por cometer “dumping social”, que é quando se obtém proveito financeiro ao desvalorizar a mão de obra para obter lucro, sonegando os direitos dos trabalhadores, explorando-os para seu próprio benefício. (Agência Brasil, 2014).
Com essa notícia foram fomentadas discussões acerca da utilização da mão de obra escrava na indústria da moda e vestuário brasileiros, dando início à divulgação de numerosos casos de exploração e trabalho forçado.
3.2. A Exploração do Trabalho Escravo na Indústria da Moda Brasileira
O Brasil possui a quinta maior indústria têxtil e a quarta maior indústria de confecção do mundo. Contudo, devido à alta competitividade nesse setor e a busca incessante por lucro, as empresas são pressionadas pela globalização e, também, como refere Fernando Caulyt (2017, s.p.) “[…] pela concorrência traiçoeira de alguns países asiáticos que utilizam da mão de obra escrava, o que acaba tendo um efeito perverso sobre as condições de trabalho no Brasil.”.
Renato Bignami, instituidor e membro do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP), relata que o sistema de produção no setor têxtil é excessivamente fracionado e torna os domicílios em células produtivas, dificultando, assim, o controle pelas autoridades competentes. No mais, essas fábricas, além de não obedecerem as regras dispostas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), contam com a precariedade da fiscalização para que possam persistir com essa conduta. (CAULYT, 2017).
Conforme denota-se dos eventos noticiados pela mídia nos últimos anos, referente às descobertas de mão de obra escrava nas indústrias da moda, os escravos contemporâneos estão sujeitos à má alimentação, condições precárias de higiene, ter de dormir no chão e/ou em quartos muito pequenos para um grande número de pessoas, jornadas extenuantes de trabalho, falta de assistência, entre outras coisas, que demonstram que as condições de vida desses trabalhadores são degradantes e, por mais que seja fornecido alojamento e alimentação, é comum ser descontado dos rendimentos, como, por exemplo, no caso transcrito abaixo, na decisão do Desembargador Jorge Luís da Costa, em processo que tramitou no TRT da 5° Região:
DANO MORAL. TRABALHADOR MANTIDO EM ALOJAMENTO, EM CONDIÇÕES DEPLORÁVEIS DE HABITAÇÃO, ALIMENTAÇÃO E HIGIENE. CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO CARACTERIZADA. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Demonstrado que o trabalhador era mantido por sua empregadora, em alojamento, em condições deploráveis de habitação, alimentação e higiene, caracterizado está o trabalho em condição análoga à de escravo, a tipificar o crime previsto no art. 149 do Código Penal e a induzir o deferimento de indenização por danos morais, uma vez que o trabalhador, em tais condições, tem violada sua dignidade, protegida pelo art. 1º, III, da CF, de modo a sentir-se desvalorizado e humilhado, como uma verdadeira coisa, que pode ser jogada e mantida em qualquer canto e em qualquer condição, sem nenhum problema. Recurso da reclamada a que se nega provimento. Recurso do reclamante parcialmente provido, para aumentar o valor da indenização por danos morais. (TRT-15 - RO: 10029 SP 010029/2010, Relator: JORGE LUIZ COSTA, Data de Publicação: 05/03/2010) (GRIFOS DA AUTORA)
No caso acima exposto, a demandada teve que pagar indenização no valor de R$ 20.000,00 referente aos danos morais sofridos pelo autor.
A Riachuelo, loja bastante conhecida, foi sentenciada a pagar uma indenização de 10 mil reais a uma funcionária que recebia um salário de apenas R$ 550,00 por mês e era obrigada a cumprir uma meta diária de colocação de 500 elásticos em calças por hora ou 300 bolsos no mesmo espaço de tempo. Quando ela sentia dores nas mãos e braços, devido à grande demanda de trabalho, era medicada com analgésicos na enfermaria da empresa e enviada de volta ao trabalho. (TANJI. 2016).
Ainda, em setembro 2017, a Riachuelo foi condenada pelo Ministério Público do Trabalho a indenizar seus funcionários, no valor de R$ 37 milhões, por pagar salários menores aos empregados das confecções no interior do Rio Grande do Norte, no entanto, as remunerações dos empregados da mesma loja em Guararapes, Natal, eram visivelmente superiores, incitando a exploração do trabalho escravo. (RBA, 2018).
E não para por aí, como vemos na notícia abaixo, também disponibilizada por Tanji (2016, s.p.):
Casos mais graves envolvendo grandes marcas também foram registrados quando, em 2011, uma inspeção conduzida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontrou imigrantes bolivianos e peruanos expostos a condições análogas à escravidão trabalhando em uma oficina de roupas que produzia peças para a Zara na cidade de São Paulo.
Além das longas jornadas de trabalho, que chegavam a até 16 horas por dia, os trabalhadores precisavam pedir autorização para sair de casa. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pela Assembleia Legislativa de São Paulo em 2014 para discutir o trabalho escravo contemporâneo, a Zara admitiu a contratação de fornecedores irregulares para realizar os serviços de confecção.
Em 2014, o Ministério Público do Trabalho entrou com uma ação civil pública contra a marca M.Officer, já que no ano de 2013 foram descobertos imigrantes bolivianos e paraguaios morando em uma oficina que produzia exclusivamente para a marca e tinham uma jornada de trabalho que começava às 07 horas e ia até as 22 horas, sendo remunerados conforme o número de peças que produziam. “As condições de trabalho, saúde e segurança eram péssimas: instalação elétrica em más condições e material altamente inflamável sem a devida segurança. Na única janela existente e que tinha visibilidade para a rua, havia um pano cobrindo a vista”, diz o processo. O processo ainda corre na justiça. (TANJI. 2016).
Atualmente, no final de 2017 e durante o ano de 2018, foram descobertos mais casos de trabalhadores em situação análoga ao de escravo na indústria da moda brasileira. Em dezembro de 2017, as grifes de luxo Animale e A.Brand foram alvo de vistoria pelos fiscais do trabalho, onde foram encontrados imigrantes bolivianos em 3 oficinas de costura na capital paulista. (BERTÃO, 2018).
Conforme Taís Laporta relata em sua reportagem para o portal de notícias G1 (2017, s.p.):
Eles faziam jornadas de mais de 12 horas por dia costurando roupas para as grifes de luxo Animale e A.Brand, ambas do grupo Soma.
Em vez de um salário, os bolivianos recebiam em média R$ 5 por peça produzida. Algumas delas depois chegavam a ser vendidas nas lojas por até R$ 698, segundo os fiscais.
Outras peças levavam uma manhã inteira para ficarem prontas, contou um dos trabalhadores à equipe da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo e auditores da Receita Federal, que fez a investigação em setembro.
Ainda, conforme Piero Locatelli (2017, s.p.):
A marca, que define "luxo e sofisticação" como suas "palavras de ordem", tem mais de 80 estabelecimentos pelo país, muitos em shoppings de alto padrão. Os costureiros subcontratados trabalhavam mais de 12 horas por dia no mesmo local onde dormiam, dividindo o espaço com baratas e instalações elétricas que ofereciam risco de incêndio.
As jornadas de trabalho, segundo o Ministério do Trabalho, se aproximavam de 70 horas semanais, sendo constatado o trabalho escravo devido as condições degradantes e as jornadas exaustivas, o que caracteriza o crime, conforme o Código Penal. (LOCATELLI, 2017).
Em outro caso, a proprietária das grifes M. Officer e Carlos Miele – a M5 –, restou condenada pela Justiça de São Paulo por submeter seus empregados ao trabalho análogo ao de escravo, após flagrantes no ano de 2014. A repórter Naiara Bertão (2018, s.p.), informa que “A M5 pode ser a primeira empresa a ser enquadrada na Lei Paulista de Combate à Escravidão (conhecida como Lei Bezerra).” Segundo a lei, caso a M5 seja condenada em segunda instância, será impedida de atuar no estado pelo período de dez anos.
De acordo com a ONG Repórter Brasil, nos últimos 8 anos, subiu para 37 o número de grifes de roupa que estão implicadas com a exploração da mão de obra escrava, dentre elas, estão algumas renomadas no país, como o caso da Renner, Seiki, Le Lis Blanc, Bo.Bô, Emme, Luigi Bertolli, Gangster, Zara, Pernambucanas, Marisa e, até mesmo, a empresa vencedora da licitação para confecção dos uniformes do IBGE. (LAPORTA. 2017, s.p.).
Estima-se que cerca de 161.100 mil pessoas se encontram em situação de escravidão no país, sendo que, na indústria têxtil, entre 85% e 90% da mão de obra e feminina, de acordo com dados disponibilizados pela OIT.
4. A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO FEMININO E INFANTIL NA INDÚSTRIA DA MODA
O processo de industrialização foi marcado por explorar as chamadas “meias-forças”, referentes à mão de obra feminina e infantil. No dizer de Barros (2017, p.705): “[...] a mão de obra da mulher e do menor foi solicitada na indústria têxtil, tanto na Inglaterra, como na França, porque menos dispendiosa e mais ‘dócil’.”.
Como as mulheres e crianças são o laço mais frágil na relação de trabalho, com o tempo foram pensadas normas exclusivas que objetivam tutelá-las, tanto na nossa Constituição, em seus arts.7°, inc.XX, XXXIII e 227, §3°, inc.I, II, III, na CLT, no Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto pela Organização Mundial do Trabalho. As questões socioculturais que pesam sobre a mulher são as maiores responsáveis pela necessidade de normas especiais, destinadas a reverter as opressões sociais, mais até de qualquer eventual limitação física.
Amauri e Sônia Mascaro Nascimento (2014, p.927), conceituam que:
A proteção aos menores, diz Mario de la Cueva, é o ato inicial do direito do trabalho, pois foi o Moral and Health Act, expedido por Robert Peel, em 1802, a primeira disposição concreta que corresponde à ideia contemporânea do direito do trabalho. Ao manifesto de Peel, traduzido no protesto ‘Salvemos os menores’, lema de campanha pela proteção legal, culminou a redução da jornada diária de trabalho do menor, para 12 horas.
Muitas Convenções da OIT falam da idade mínima para o trabalho, realizando esforços para que possa ser evitado o trabalho infantil, já que poderá ocasionar no comprometimento da saúde e desenvolvimento dos jovens. A crise econômica em que as famílias se encontram tem sido a grande causadora da exploração do trabalho infantil. Na antiguidade, o trabalho infantil era preponderantemente doméstico, contudo, a Revolução Industrial no século XVIII ocasionou um cenário de total desamparo às crianças e adolescentes ao usufruir do seu trabalho em larga escala. (NASCIMENTO, 2014).
Apesar das restrições legais impostas, como a proibição de trabalho noturno ao menor de dezoito anos, penoso e em locais perigosos e insalubres (arts.404 e 405 da CLT) e as demais pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, quando se trata da escravidão contemporânea, isso se torna irrelevante, pois tais regramentos são totalmente desrespeitados pelos empregadores em busca de lucros. (BARROS, 2008).
No ano de 2016, após uma inspeção do Ministério do Trabalho em uma oficina da empresa de roupas femininas Brooksfield Donna, foi descoberto trabalho infantil. Segundo a reportagem de Ricardo Senra, publicada pelo jornal A Folha de São Paulo (2016, s.p.):
Cinco trabalhadores bolivianos – incluindo uma menina de 14 anos – foram encontrados na pequena oficina no bairro de Aricanduva, cuja produção era 100% destinada à marca. Sem carteira assinada ou férias, eles trabalhavam e dormiam com suas famílias em ambientes com cheiro forte, onde os locais em que ficavam os vasos sanitários não tinham porta e camas eram separadas de máquinas de costura por placas de madeira e plástico.
E a maioria da mão de obra escrava infantil é proveniente da indústria têxtil, como afirma Raquel Marques (2017, s.p.):
Um recorte produzido a partir de dados levantados em 2015 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) identificou que de quase três milhões de crianças e adolescentes que trabalham no Brasil, 114 mil (3,8%) estão na indústria têxtil. Em sua maioria, atuando em pequenas unidades familiares, prática que contribui para a invisibilidade do problema.
O caso se agrava quando se trata de famílias de imigrantes irregulares no Brasil, já que, por medo, acabam submetendo-se a condições inumanas de trabalho, junto a seus filhos.
Ainda, na visão da autora:
Tudo começa quando as marcas terceirizam a fabricação de suas peças para baratear os custos de produção. A partir daí os fornecedores contratados transferem o serviço para oficinas menores e assim sucessivamente, até chegar a uma pessoa física que termina desenvolvendo esse trabalho de forma artesanal, muitas vezes em lugares improvisados, como em suas próprias residências. A consequência é uma precarização do trabalho e envolvimento de outras pessoas da família, como as crianças, que terminam exploradas nesta situação.
Como se verifica, no caso dos imigrantes, a situação tende a piorar. Após entrarem no país, além de aceitarem empregos com uma remuneração ínfima, uma vez que estão beirando a inanição, também são mais suscetíveis de serem aliciados e explorados por oportunistas, principalmente se estiverem em situação ilegal no Brasil, suportando ter que trabalhar sem registro e serem forçados a viver em lugares em condições desumanas, sem o mínimo de comodidade e higiene. (CAMARGO, 2006).
No Brasil, conjuntamente com o Ministério Público do Trabalho, OIT e o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), há o movimento Fashion Revolution, o qual realiza campanhas com o fito de conscientizar e tecer iniciativas para erradicação do trabalho infantil na indústria da moda, tendo como principal objetivo fazer os consumidores repensarem a origem de seus produtos. (MARQUES, 2017).
No interior de Pernambuco, por existir muitas confecções familiares, há um aumento da exploração do trabalho das crianças e adolescentes.
É o que relata Guilherme Soares Dias (2018, s.p.):
Tanto na capital paulistana quanto no interior pernambucano a informalidade e as confecções familiares são determinantes para a continuidade da exploração de crianças e adolescentes para o trabalho. Sheila avalia que, apesar da melhora do quadro nos últimos anos, a quebra de investimento para fiscalização e monitoramento de violações fragilizam a situação.
A Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABvtex), ressalta que os varejistas precisam prestar atenção especial ao adquirirem de pequenas empresas. Para o diretor executivo da ABvtex, Edmundo Lima (2018, s.p.):
Combater o trabalho infantil tem graus de complexidade e dificuldade grandes. Geralmente, pequenas empresas informais apresentam algum tipo de irregularidade, como sonegação, sem focar nos direitos do trabalhador. Elas alimentam o trabalho infantil e o trabalho escravo.
Os efeitos do trabalho das crianças e adolescentes são vários, prejudicando a aprendizagem da criança, a pondo em situação de vulnerabilidade em múltiplos pontos, englobando a saúde, exposição ao abuso, assédio sexual, esforços físicos impetuosos, incidentes com maquinários, entre outros, elucidado pela Campanha ANA - Aliança Nacional dos Adolescentes. (ANA, 2018).
Não há como negar que as crianças e adolescentes estão mais suscetíveis a ter sua mão de obra explorada no mundo dd trabalho, principalmente quando se trata da indústria fashion, o que deve ser veementemente fiscalizado e combatido.
4.1. O Trabalho da Mulher e a Desigualdade de Gênero no Trabalho Escravo Contemporâneo: A Influência da Discriminação Feminina no Mundo do Trabalho
Outrora, o trabalho feminino era destinado às atividades domésticas, como a tecelagem, preparo de alimentos, agricultura e vestuário. Após a Revolução Industrial, as mulheres começaram a laborar na indústria têxtil com péssimas condições de trabalho, salários ínfimos e jornadas extenuantes, sendo um dos fatores que desencadeou o surgimento de leis de proteção ao trabalhador. Historicamente, o trabalho da mulher sempre apresentou uma importância menor do que o exercido pelo homem. (ALVES, 2011).
Um relatório da OIT, de 2018, dispõe que mulheres e meninas são as vítimas predominantes do trabalho escravo e, geralmente, em condições desumanas e suscetíveis ao abuso moral, físico e sexual.
Conforme Beatriz Camargo (2006, s.p.):
Das cerca de 12 milhões de pessoas que realizam trabalhos forçados, 56% dos explorados economicamente por meio de coação física ou psicológica são mulheres ou meninas, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Ainda, conforme exemplifica Maria Aparecida Mendonça Toscano De Melo (2011, s.p.):
Por mais que se lute pela igualdade entre os gêneros no mercado de trabalho, é incontestável que a mulher necessita de um amparo legal maior, e não se trata de preconceito ou discriminação, mas de uma adequação à estrutura física e psíquica da mulher. Daí a necessidade de uma legislação diferencial, que as ampare em seus direitos.
Desde a Constituição Federal de 1932 até a Constituição Federal de 1988, podemos perceber a evolução da legislação quanto a proteção do trabalho da mulher, sendo que a nossa carta magna atual nos traz direitos como o da licença gestante de 120 dias, sem prejuízo do emprego ou salário, vedação de diferenças salariais, consignação de preceitos de admissão e desempenho de função pelo gênero e igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres. Estes foram alguns dos avanços basais que a nossa Constituição atual proporcionou às mulheres, sem contar as normas estabelecidas pela CLT e, sobretudo, pelas Convenções da OIT mas, infelizmente, mesmo sendo direitos básicos, ainda não são respeitados. (MELO, 2011).
Léa Elisa Silingowschi Calil (2000, p.4 e 5), demarca o desenvolvimento dos direitos do trabalho da mulher em três grandes etapas:
[...] a primeira transição entre a proibição e a proteção, época em que a mulher era excluída de qualquer legislação trabalhista. É o período que cronologicamente começa junto com o início da República e vai até a implantação do Estado Novo, pouco antes da promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho; a segunda, da proteção à promoção da igualdade, em que a legislação protegia a mulher trabalhadora, proibindo a de exercer inúmeras atividades, proibições estas que vão sendo suprimidas com o decorrer do tempo. Delimitamos este período entre a promulgação da CLT até o início dos trabalhos da Constituinte de 1985. Foi um período de intensas mudanças: sociais, econômicas, políticas, todas elas afetando o mercado de trabalho da mulher; e a terceira, que é o direito promocional propriamente dito, que começa com a promulgação da Constituição de 1988 e vai até os dias de hoje. É o tempo do direito promocional propriamente dito, onde se busca promover a igualdade entre os gêneros.
O caso é que, a despeito de ter existido grandes avanços no mercado de trabalho dos últimos tempos, isso se aplica mais na prática do que na realidade, já que é notável a disparidade entre homens e mulheres.
Na indústria têxtil essa disparidade ocorre mais corriqueiramente, pois, desde o início da industrialização, a mão de obra feminina é explorada em larga escala. Em verdade, a confecção de vestimenta desde a Antiguidade “[...] era uma produção totalmente feminina, competindo à mulher tosquiar as ovelhas e tecer a lã.” (BARROS. 2017, p.704 e 705).
Em meados do séc. XIX, na França, as operárias das indústrias têxteis laboravam sem repouso e auferiam aquém do aceitável para arcar com suas necessidades. De acordo com Rafaella Britto (2016, s.p.): “O ambiente das fábricas era degradante, fazendo com que muitas operárias contraíssem doenças. Algumas, impelidas pela fome, submetiam-se aos constantes abusos de seus empregadores.”. Para Ricardo Antunes (2009, p.202):
Primeiro a incorporação da mulher no mercado de trabalho é, por certo, um momento importante da emancipação parcial das mulheres, pois anteriormente esse acesso era muito mais marcado pela presença masculina. Mas, e isso me parece central, o capital fez isso à sua maneira. E de que maneira fez o capital? O capital reconfigurou uma nova divisão sexual do trabalho. Nas áreas onde é maior a presença de capital intensivo, de maquinário mais avançado, predomina os homens. E nas áreas de maior trabalho intensivo, onde é maior ainda a exploração do trabalho manual trabalham as mulheres. É isso que têm mostrado as pesquisas, por exemplo, da pesquisadora inglesa Anna Pollert. E quando não são as mulheres são os negros, e quando não são os negros são os imigrantes, e quando não são os imigrantes são as crianças, ou todos eles juntos. (GRIFOS DA AUTORA).
Ainda, como caracteriza Britto (2016, s.p.): “A indústria da moda escraviza a mulher que consome e, mais fortemente, a mulher que produz [...]. Dos 40 milhões de empregados na indústria da moda em todo o mundo, 85% são mulheres.”.
No ano de 2013, o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, ocasionou um alvoroço internacional, pois o prédio abrigava fábricas autônomas, com aproximadamente 5.000 trabalhadores – em sua maior parte, mulheres – que manufaturavam para marcas como Zara, H&M, Primark, Benneton, Walmart, Carrefour, The Children’s Place, dentre outras. Os empregados permaneciam em condições análogas à escravidão. (BRITTO, 2016.)
No Brasil, o ocorrido impulsionou a Marcha Mundial das Mulheres a organizar um protesto nas portas da Riachuelo, devido às acusações de trabalho escravo sofridas pela marca. Uma das integrantes do movimento, Carla Vitória (2018, s.p.), explicou em entrevista que:
A gente sabe que essa é uma realidade que não é só do Sudeste Asiático, mas do mundo inteiro. A ideia é que as mulheres que estão se mobilizando pelo mundo conectem esse massacre que aconteceu no Rana Plaza com as suas realidades locais. Por isso que aqui no Brasil a gente escolheu uma loja cuja fábrica dessa rede foi um laboratório da reforma trabalhista.
Importante salientar que a instituição do Dia Internacional da Mulher foi motivada pela morte brutal de centenas de operárias em uma fábrica têxtil de Nova York, nos Estados Unidos, quando elas entraram em greve a fim de exigir seus direitos, tais como a licença maternidade e a redução da jornada de trabalho. (SERRANO, 20--).
Para Britto (2016): “O feminismo marxista de autoras como Alexandra Kollontai preconizava a liberdade das mulheres ligada à do proletariado. August Bebel, um dos fundadores do Partido Social Democrata da Alemanha, escreveu: ‘A mulher e o trabalhador têm ambos em comum o fato de serem oprimidos’.”
O feminismo não pode permanecer silente perante a escravização praticada contra mais de 30 milhões de mulheres, as quais representam a base de uma das indústrias centrais do setor econômico do mundo. Devagar, se rompe a falácia da democratização e igualdade da indústria da moda. Impossível debater igualdade quando a moda assume um caráter discriminatório. (BRITTO, 2016).
Conforme asseverou Ricardo Antunes (2009, p.109):
As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que, no universo do mundo produtivo e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os homens e as mulheres que trabalham são, desde a família e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo tem sabido apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho.
Ainda, nos dizeres de Antunes (2009, p.202 e 203):
Além das formas de opressão de classe, dadas pelo sistema do capital, a opressão de género tem urna existência que é pré-capitalista, que permanece sob o capitalismo e que terá vida pós-capitalismo, se essa forma de opressão não for radicalmente eliminada das relações entre os seres sociais, entre os homens e as mulheres. A emancipação frente ao capital e a emancipação do gênero, são momentos constitutivos do processo de emancipação do gênero humano frente a todas as formas de opressão e dominação.
As condições de trabalho das mulheres só terão chances de melhora se sua mão de obra for devidamente valorizada e justamente remunerada. (SAKAMOTO, 2017).
Conforme dados da Organização Internacional do Trabalho, aproximadamente 21 milhões de trabalhadores no mundo estão expostos a trabalhos forçados. Dentre eles, 11,5 milhões são mulheres. “Não há um consenso definido sobre o conceito de exploração do trabalho, mas podemos dizer que ele está presente em todos os setores da economia”, diz Hans Von Rohland (2016, s.p.), porta-voz da OIT.
Alice Monteiro de Barros (2008, p.83) discorre que:
É bom lembrar que, de acordo com os dados fornecidos pela OIT, as mulheres ainda têm uma participação significativa entre os pobres e analfabetos, logo, a saúde, a educação e a formação profissional constantes são fatores decisivos à igualdade da mulher em vários segmentos sociais, principalmente no campo do trabalho subordinado. A política de igualdade de gênero deve compreender também outros possíveis motivos de discriminação, como a raça, a etnia, a religião, entre outros, o que escapa do tema objeto dessa exposição.
Com isso, podemos perceber o quão importante é a repercussão e exposição dos abusos sofridos pelas mulheres na indústria da moda, para que se possa punir as empresas que propiciam essa forma de usurpação e inibir suas ocorrências no futuro.
5. AS POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA O COMBATE E PREVENÇÃO DA ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA
Ante todo o exposto, podemos observar que todo trabalhador possui garantias mínimas, como jornada de trabalho limitada, salário-mínimo, horas extras, período descanso, higiene, saúde e segurança no ambiente de trabalho, adicional de insalubridade, entre outras, garantias essas que são inexistentes no dia a dia vivenciado pelos trabalhadores escravizados nas fábricas de vestuário, haja vista chegam a trabalhar, por exemplo, por até aproximadamente 70 horas semanais, sem períodos de descanso e em condições desumanas. (BERTÃO, 2018).
É inaceitável que essa prática persista, que seres humanos em busca de uma vida melhor sejam tratados como algum objeto descartável quando perdem a “serventia” para seus patrões, que sejam subjugados a fim de gerar lucro, já que o trabalho escravo é mais fácil do que garantir ao trabalhador carteira assinada para que possa dispor de direitos mínimos, como salário digno, descanso e liberdade. Não podemos permitir que os direitos trabalhistas conquistados através lutas árduas ao decorrer dos séculos sejam descartados apenas para aumentar o capital das grandes marcas. (RIBEIRO, 2016).
Para amparar esses trabalhadores, a Declaração Universal dos Direitos humanos, prevê a proteção dos direitos da pessoa, como podemos ver nos seguintes artigos transcritos da mesma:
Artigo 4°: Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas são proibidos.
Artigo 5°: Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Artigo 8°: Toda pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes conta os atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Artigo 23°: 1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatória de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.
3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.
4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.
Mesmo assim, o Brasil avançou em relação a criação de políticas públicas visando evitar novas ocorrências de trabalho escravo pelo país, mostrando a preocupação do Estado com esse problema social.
Segundo informações do site do Senado Federal, foram libertados 40 mil brasileiros de trabalho análogo a de escravo desde a criação do grupo Especial de Fiscalização Móvel e do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, os dois de 1995. No ano de 2003, foi lançado o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, que teve sua segunda edição no ano de 2008 e, para o seu acompanhamento, foi criada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), contando com instituições da sociedade civil que são pioneiras nas ações de combate ao trabalho escravo no país. Em informação retirada do Setor de Comunicações do Tribunal Superior do Trabalho: “Segundo a OIT, o país já cumpriu quase 70% das metas estabelecidas. Dentro disso, a Justiça do Trabalho atua para que se garantam os direitos dos trabalhadores assegurados pela Constituição Federal e pela Consolidação das Leis do Trabalho.’. (Secom, TST. 2014).
No mês de dezembro de 2003, o Congresso aprovou uma mudança no Código Penal para melhor identificar o crime de “reduzir alguém à condição análoga a de escravo”, que começou a ser estipulado como aquele em que há submissão a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida contraída, a chamada servidão por dívida. Esse crime pode ser punido com prisão de 2 a 8 anos, e a pena pode chegar a 12 anos se tratar de criança ou por preconceito. (Senado Federal, 2011).
No ano de 2012 foi aprovada a PEC do Trabalho Escravo, que prevê a expropriação dos imóveis rurais e urbanos onde forem encontrados trabalhadores em situações análogas à de escravos.
Para João Oreste Dalazen (2012, s.p.):
A aprovação do texto deve ser comemorada. Mas a legislação penal ainda precisa de ajustes para tornar mais claras definições como jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho. A falta de especificidade dos termos dificulta, em alguns casos, a diferenciação entre desrespeito às normas trabalhistas e prática de trabalho em condições análogas às de escravos, e consequentemente, a repressão dessa prática que ele considera intolerável.
Ano passado, a PEC 14/2017 entrou em análise pela Comissão de Constituição, tendo por objetivo tornar o trabalho análogo a escravidão em crime imprescritível. (SENADO, 2017).
As leis são claras, e se for devidamente fiscalizado e policiado para que sejam cumpridas, talvez mais casos como o das lojas Renner, M. Office, Animale, e tantas outras, possam ser evitados. As marcas da indústria da moda devem ser responsabilizadas pelo monitoramento da sua cadeira produtiva. A união das leis anteriormente mencionadas com a “Lista Suja”, criada pela União em 2003, para divulgar os nomes de empregadores flagrados usando de mão de obra escrava, parece que já está mostrando resultados, já que, segundo dados do site do Superior Tribunal do Trabalho do Rio Grande do Sul (TST/RS, 2017, s.p.), o número de trabalhadores resgatados do trabalho escravo é o menor em 16 anos:
O número de pessoas resgatadas do trabalho escravo no Brasil foi o menor dos últimos 16 anos. Segundo dados do Ministério do Trabalho, em 2016, 677 trabalhadores que eram mantidos em situações análogas à escravidão foram libertados. Minas Gerais é o estado com o maior número de resgates pelos órgãos do governo: 141 libertações. Em seguida aparece o Mato Grosso do Sul com 82 e o Pará com 77. Para chamar a atenção sobre a importância de mudar essa realidade no País, o dia 28 de janeiro foi escolhido como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Em 2004, nessa mesma data, 3 auditores fiscais do trabalho e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados enquanto investigavam denúncias de escravidão na cidade mineira de Unaí. O caso foi julgado em 2015 e os donos da fazenda investigada por suspeita de trabalho escravo foram condenados por serem os mandantes dos assassinatos.
Hoje em dia, já existe um aplicativo que foi desenvolvido pela ONG Made In a Free World, conhecida pelo combate contra a escravidão. Segundo a jornalista Débora Spitzcovsky, o aplicativo, chamado Slavery Footprint, contém um teste, no qual consiste algumas perguntas que questionam o consumo diário da pessoa e a partir das respostas mensura, aproximadamente, o quanto de mão de obra escrava utilizamos em nosso dia a dia, e não é pouca. (SPITZCOVSKY, 2014)
Durante o teste o aplicativo informa ainda acerca do trabalho escravo pelo mundo. Além disso, ao fazer check-in em lojas, é possível questionar se a mesma está ou esteve envolvida em casos de submeter seus empregados ao trabalho análogo ao de escravo. Com isso, pode-se compartilhar a informação nas redes sociais para que mais pessoas se informem acerca do fato. (FRANCO, 2016).
Sakamoto, em sua palestra sobre “Diagnóstico do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil” (2014), diz que: “um papel fundamental no combate ao trabalho escravo é o do consumidor: na medida em que ele tem acesso à informação e rejeita produtos provenientes do trabalho análogo à escravidão, a prática é desestimulada”. Ele dirige a ONG Repórter Brasil, fundada em 2001, a qual tem a finalidade de promover um movimento para a reflexão sobre os abusos sofridos pelos trabalhadores brasileiros e a violação de seus direitos fundamentais.
Devemos procurar nos informar e incentivar outros a mudarem seus hábitos de compra, buscando verificar se o que cada um consome provém de trabalho escravo. E não é muito difícil já que, além da Lista Suja, existem aplicativos que ajudam nesse quesito, como mencionado anteriormente. Uma das organizadoras brasileiras do Fashion Revolution, organização que opera com a conscientização do consumo da moda, Eloisa Artuso (2016, s.p.), fala que: “Quando o consumidor tem acesso a informações, ele se torna mais responsável e escolhe para qual marca quer dar seu dinheiro”.
Quando se é exigido pelos consumidores uma maior transparência acerca da produção dos produtos, as empresas são forçadas a mostrar o que ocorre por trás da sua produção e, para que isso aconteça, devemos repensar as roupas e demais acessórios que escolhemos usar, afinal, se nós, enquanto consumidores, não contribuirmos comprando dessas marcas que exploram os trabalhadores, as chances da indústria da moda mudar nesse quesito irão aumentar ao passar por mutações efetivas para diminuir o trabalho forçado. (TANJI. 2016).
A Conatrae elaborou o 2º- Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, o qual traz uma gama de instruções para a luta contra a escravidão moderna. As denúncias são essenciais para que possa haver fiscalizações e, consequentemente, identificação dos responsáveis e adequada punição.
Para Ronaldo Lira, vice coordenador da Coordinfância - Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes – o boicote e o consumo consciente são as principais ferramentas para o combate à escravidão, o que resta facilitado pelo surgimento de aplicativos que acusam as marcas flagradas promovendo a exploração do trabalho análogo a escravidão, como é o caso do Moda Livre, lançado recentemente.
LIRA (2018, s.p.), explica que:
Disponível para qualquer celular, o aplicativo Moda Livre identifica as marcas que foram flagradas em trabalho escravo. Onde tem trabalho escravo, possivelmente tem trabalho infantil. É uma reação em cadeia”, diz o procurador. “Se o consumidor evita marcas que têm trabalho escravo ou infantil, elas vão ter que fazer alguma coisa, se não vai ser excluídas do mercado.
Visando trazer um maior nível de conscientização e proporcionar a moda sustentável, o consumidor deve ter conhecimento de que é quem financia a nova escravidão, já que por trás da produção do seu vestuário há uma enorme quantidade de homens, idosos, mulheres e crianças explorados, e o boicote às marcas exploradoras são, de pronto, a melhor forma de ajudar a derrotar esse ato execrável.
No dizer de Fernanda Simon (2018, s.p.):
O consumidor é quem financia uma cadeia produtiva ética ou não e muitas vezes ele nem imagina que aquela peça foi produzida por uma criança. Quando ele vivencia a problemática de uma maneira mais próxima, consegue ser tocado de um jeito que o transforma. Queremos promover uma mudança de mentalidade que sirva para qualquer esfera com a intenção de que ele se pergunte não apenas de onde vem a roupa que ele veste, mas também a comida que ele consome ou os objetos que ele compra.
Abaixo, trago um gráfico demonstrando o número de autos de infrações de trabalho escravo lavradas pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social em 2016:
Podemos perceber que o número de infrações vem sofrendo uma leve queda através dos anos, contudo, é de suma importância que se continue com luta contra a exploração da escravidão contemporânea, considerando que as maiores chances de isso acontecer é através de repensarmos nosso sistema jurídico e as políticas públicas envolvidas na luta contra a escravidão moderna, sendo necessário proporcionar, também, oportunidades para que os trabalhadores resgatados possam tornar-se capazes de conhecer seus direitos e laborar em um ambiente digno, tornando as leis, fiscalizações e punições mais severas. (RIBEIRO, 2016).
Além do exposto, há também a necessidade de proporcionar à população uma maior leva de conteúdos e debates visando a conscientização do seu consumo, repensando o uso das marcas acusadas de utilização da mão de obra escrava e, sobretudo, planejar boicotes à essas marcas, já que a única linguagem que as mesmas compreendem é a do lucro acima de qualquer coisa, inclusive da vida e dignidade humana.
6. CONCLUSÃO
Como a liberdade e a dignidade da pessoa humana são pressupostos de nosso Estado Democrático de Direito, o trabalho análogo ao de escravo é originador de diversos problemas, ferindo princípios constitucionais, e nós, enquanto cidadãos, devemos reforçar e garantir a efetividade desses direitos, auxiliando para exterminar com o sofrimento de milhares de homens, mulheres, idosos e crianças encontrados em situações tão precárias e desumanas, não tolerando tratamentos cruéis infligidos a eles, buscando, assim, um mundo melhor para todos e o fim desse problema jurídico, social e econômico, nos livrando das amarras da escravidão de uma vez por todas.
Desse modo, podemos verificar que para o meio acadêmico a abordagem do assunto é essencial, haja vista que, até então, a forma mais eficaz ao combate do trabalho forçado – mais até que as leis, comumente negligenciadas - é a conscientização da população a respeito do assunto, motivo pelo qual o debate acerca da exploração da escravidão contemporânea deve ser fomentado, já que é responsável por trazer à tona questões relevantes que devem ser analisadas com o intuito de criar formas de combate e repressão à essa indignidade, resguardando, assim, os direitos humanos fundamentais dos trabalhadores.
Primeiramente, vimos a história do trabalho humano, analisando como ocorreu seu desenvolvimento e a evolução do direito do trabalho, visando proteger os trabalhadores da exploração de sua mão de obra, passando pela história do trabalho escravo no Brasil e seus episódios na indústria da moda brasileira.
Após, no segundo capítulo, foi tratada através de uma breve passagem pela história a exploração da mão de obra escrava feminina e infantil na indústria têxtil, trazendo um breve apanhado das principais leis regulamentadoras dos seus direitos, já que são a parte mais frágil nas relações de emprego e, consequentemente, presas fáceis dos aliciadores de escravos contemporâneos, sendo concluído com um recorte de gênero, versando sobre a influência da discriminação contra a mulher no mundo e ambiente de trabalho.
No último capítulo, frente ao problema proposto, foram expostas as atividades que buscam dirimir a exploração do trabalho forçado na indústria da moda, passando pelas possíveis soluções e formas de combate, desde a reformulação do nosso sistema jurídico e das políticas públicas, até a necessidade da conscientização da população para que repense seu consumo das marcas acusadas de viabilizarem a condição análoga a de escravo aos funcionários que produzem para as mesmas, a fim de chamar a atenção para esta prática e diminuir, quiçá exterminar, esses casos e a impunidade que ainda reina em nosso país.
Quanto aos objetivos propostos, foram concluídos plenamente, uma vez que compreendiam, principalmente, em aproximar-se da realidade vivenciada pelos trabalhadores escravizados para melhor analisá-la e, através dos dados de incidência e casos expostos no decorrer do trabalho - notadamente acerca da exploração da mão de obra escrava da mulher, crianças e adolescentes - propiciar o conhecimento dos fatores que predispõem as ocorrências e apontamentos de sugestões para sua erradicação e prevenção.
Outrossim, é oportuno compreender que todo conteúdo exposto no transcurso do trabalho importa em propiciar uma maior reflexão social acerca do tema, através da expansão da temática para as pessoas que terão acesso a esta obra.
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Publicado por: Emily Vielmo de Lima
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