A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA: entre o protagonismo judicial e o papel contramajoritário do STF.
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1. RESUMO
O presente artigo busca analisar o caminho que levou o Supremo Tribunal Federal a qualificar por equiparação a homotransfobia ao crime de racismo usando de seu papel contramajoritário, uma vez que os demais poderes da república restaram inertes diante das atrocidades vividas pela comunidade LGBTQIA+. As razões que fundaram a perseguição do tema giram em torno de compreender o que levou o Poder Judiciário a ser provocado e agir diante da sucessiva afronta aos direitos fundamentais de um grupo vulnerável, apesar de haver mandamento constitucional de punição a qualquer forma de discriminação previsto na CF/88. Para tanto, por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, foi explorado o ordenamento jurídico vigente, obras publicadas sobre os temas e artigos publicados em periódicos. Verificou-se que o STF não legislou ao equiparar a homotransfobia ao racismo, considerando que o conceito de raça foi analisado a partir de um aspecto social e não puramente fenotípico, logo, não houve não havendo rompimento com a separação de poderes ou afronta às capacidades institucionais do Poder Legislativo. Concluiu-se que a atuação protagonista do STF foi necessária para efetivação da proteção da comunidade LGBTQIA+, em especial às pessoas homoafetivas e transgêneros.
Palavras-chaves: Criminalização; homotransfobia; protagonismo judicial; racismo; STF
2. INTRODUÇÃO
Questões sobre condição sexual, identidade de gênero e direitos LGBTQIA+[1] sempre causam longos e, por vezes, profundos debates, em especial quando envolve análise que parte de premissas conservadoras. Decisões recentes e históricas do Poder Judiciário reacenderam o debate sobre a homoafetividade, sendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, em especial, a criminalização da homotransfobia os principais deles.
Como o país onde mais se mata pessoas homoafetivas, o Brasil, além disso, ainda restringe direitos a essas populações ao não lhe conferir expressa proteção legal e ao dificultar acesso, por meio de legislação específica, à adoção por casais homoafetivos, o que não deixar de ser mais uma violência.
Alia-se a isso, a suposta liberdade de expressão para violentar, estigmatizar e agredir, tanto física quanto moralmente essas pessoas e a falta de interesse do Legislativo, seja por questões religiosas, morais ou eleitoreiras, em criar normas criminalizadoras contra práticas homofóbicas e de proteção, e do Executivo em criar políticas públicas voltadas à proteção de pessoas desse grupo social.
Embora tenha havido avanços em retirar a restrição de casamentos às pessoas de sexos opostos, a equiparação dos crimes de homotransfobia aos crimes de racismo, e mais recente o veto a proibição de doação de sangue por homossexuais, estas se deram por intermédio do Poder Judiciário que já há muito tempo se mostra sensível aos pleitos sociais, não só do grupo LGBTQIA+, mas de toda a sociedade e de grupos que se sintam estigmatizados, prejudicados em seus direitos, garantias fundamentais e constitucionais.
Pessoas que vivem relações homoafetivas sofrem todos os dias os mais diversos tipos de violência, seja ela física, psíquica, social, institucional e, até então, não encontravam proteção jurisdicional, uma vez que não tinha como punir seus agressores, senão apenas lhes tipificando crimes que, pela síntese da lei, não seriam enquadrados como homotransfobia, portanto crimes comuns sem o fundo de ódio.
A sociedade brasileira ao longo dessas duas décadas do século XXI se transformou completamente e está cada vez mais ativa na vida política e social do país levantando pautas que antes não se pensava em discutir e o combate a homotransfobia, bem como outras formas de preconceitos, estão cada vez mais no cerne da sociedade e suas demandas, que antes ficavam restritas ao pleito das urnas, tronaram-se questões discutidas nos tribunais, já que estes fluem com maior rapidez e eficácia como o caso em tela.
Percebe-se, de outra maneira, que a sociedade hodierna vive em importante complexidade social, com indiscutível eco nas questões que envolvem a proteção de minorias e direitos fundamentais. A repercussão de casos de violência e intolerância a diversidade sexual são grandes e os problemas que dela resultam não são de fácil resolução. Isto posto o trabalho busca saber se o STF invade a competência dos demais poderes ao tipificar a homotransfobia aos crimes de racismo. Para o artigo foi utilizado o método dedutivo, e a pesquisa realizada foi essencialmente bibliográfica, sendo utilizados artigos científicos, livros, pesquisas, notícias jornalísticas, monografias e teses, e análise de jurisprudências do Supremo Tribunal Federal.
O trabalho foi dividido em cinco tópicos sendo o primeiro a introdução. O segundo, os números da violência sistêmica sofrida pela comunidade LGBTQIA+ em que é possível ver a urgente necessidade da propositura das ações apresentadas à Corte. O terceiro, ficará incumbido de falar sobre o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal, sendo que este corrobora e evidencia a importância de suas decisões, uma vez que os demais poderes não cumprem seu dever institucional preconizado na Constituição de 88. No quarto, mostramos os votos dos ministros com seus embasamentos, bem como os motivos alegados pelos autores das ações e de seus amicus curiae e a argumentação do congresso e do poder executivo quanto a causa em que alegam não estarem agindo com mora. E o quinto ficará com a conclusão.
3. PANORAMA DA HOMOTRANSFOBIA NO BRASIL
O Brasil é de longe o país onde mais se mata pessoas LGBTQIA+, em especial pessoas trans[2] (JUSTO, 2020). Aqui, desde que os portugueses chegaram em terras brasileiras, a homoafetividade é perseguida, tendo nas ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), esta última tendo perdurado até 1830, especial atenção, sendo taxada como indecente, pecado nefasto, com penas desde a morte pela queima na fogueira e equiparado ao crime de lesa majestade, com os bens de quem fosse condenado sendo confiscados pela coroa, sendo seus filhos e netos tidos como infames e inábeis (VECCHIATTI, 2012 p. 61).
O professor Roger Raupp Rios (2001) resume bem a situação da homossexualidade no Brasil:
A gravidade das sanções reservadas pelas Ordenações Filipinas à prática de atos homossexuais, então denominados de sodomia, ilustra a intensidade da discriminação experimentada pelas relações homossexuais na tradição jurídica nacional. Apesar da descriminalização da sodomia com o advento do Código Criminal do Império (1830), a homossexualidade ainda hoje é objeto de intenso preconceito e violência em nossa sociedade (RIOS, p. 01, 2001).
Somente em 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homoafetividade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) e apenas em 2018 a transexualidade deixou de ser classificada como doença (VEIGA, 2020).
Apesar da descriminalização com o Código Criminal do Império de 1830, os efeitos de séculos de degradação da imagem das pessoas homossexuais, alicerçada fortemente pela igreja dominante da época, a igreja católica, perduram até os dias atuais, pois está entranhado no seio da sociedade e pessoas públicas encontram um terreno fértil nesse meio a exemplo do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, que mesmo antes da sua eleição já teceu vários comentários homofóbicos como dizer “preferir um filho morto a um herdeiro gay e que ser vizinho de um casal homossexual é motivo de desvalorização de imóvel (TERRA, 2011).
Pensamentos como esse não são exclusividades do atual Presidente, mas também de uma grande parte do seu eleitorado que nele encontram esteio e um forte eco de suas falas preconceituosas.
Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia editou a Resolução 01/99 que veda aos profissionais da Psicologia exercer qualquer atividade que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas. Proíbe, ainda, adotar ação coercitiva que busque orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. A norma impede, portanto, a prática de terapias na linha da “cura gay” (BRASIL, 1999).
Mesmo com a proibição, alguns psicólogos ligados a grupos religiosos ainda ofereciam a “terapia de cura gay” e entraram com uma Ação Popular contra a resolução do Conselho Federal de Psicologia. Em 2020, o STF sacramentou o fim da ação popular mantendo a decisão do conselho (PUTTI, 2020).
Informações levantadas por entidades e associações LGBTQIA+ mostram que em 2020 houve 237 mortes por homotransfobia no Brasil. Nos últimos 20 anos foram mais de 5 mil mortes (NICLEWICZ, 2021) chegando tal violência a atingir até quem não faz parte da comunidade.[3]
Dados como os mostrados evidenciam a violência sofrida por discriminação de gênero e condição sexual, onde pessoas são violentadas, agredidas e assassinadas simplesmente por serem quem são, apesar dos números serem subnotificados (GLOBO, 2020).
E assim o é em todo o mundo, não só no Brasil. Há países que ainda punem a homoafetividade, 70 países para ser mais exato, inclusive com a pena de morte como no Irã, Arábia Saudita e Iêmen. Desses países 33 ficam no continente africano tendo um relatório do Acnur, agência da ONU para refugiados, demonstrado que 89% dos pedidos de refúgio de africanos solicitados ao Brasil por perseguição eram em virtude de sua condição sexual (MANTOVANI, 2019).
A perseguição nesses países é tamanha que no Irã, país onde se usa a lei islâmica (sharia)[4], pessoas homoafetivas sofrem pressão para que mudem de sexo para que possam escapar da pena de morte, mesmo que elas se identifiquem com o sexo de nascimento e isso tudo com orientação forçada de médicos e psicólogos que lhes dizem estarem doentes. Tal permissão para mudança só é possível porque em 1980, o fundador da República Islâmica, o aiatolá Khomeini, emitiu uma fatwa - uma legislação islâmica - permitindo a cirurgia de mudança de sexo. Aparentemente, após ser convencido em um encontro com uma mulher que disse estar presa no corpo de um homem. (HAMEDANI, 2014).
Apesar de ainda existir muitos países que perseguem com prisão e pena capital, há países que incorporaram a proteção e proibição da discriminação por orientação sexual em suas leis e constituições como México, Chile e mais recente o Brasil, via Supremo Tribunal Federal, chegando os países que permitem união homoafetivas triplicar em mais de dez anos (LISBOA, 2019).
Tais avanços foram mais evidentes Nas Américas e Europa, bem como na Austrália, Taiwan e Israel e a África do Sul continua sendo a única nação do continente africano a permitir uniões civis homoafetivas. Isso demonstra que a disseminação dessas políticas em países precursores fortaleceu a luta pela proteção em outras nações criando um efeito impulsionador (LISBOA, 2019).
A proteção, mais que isso, o direito de não ser morto por amar diferente e os altos índices da violência como agressões e assassinatos, tornam premente a tipificação penal, não como se isso fosse resolver o problema, diminuir os espancamentos e crimes de morte, e sim ter o sentimento e a certeza de que a lei punirá no rigor de sua redação os algozes.
Ficou inconteste a acertada e necessária mudança trazida pelo STF na vida da comunidade LGBTQIA+, sendo mais uma vez o impulsionador da história, como bem fala o Ministro Barroso em um artigo de 2018, uma vez que o sentimento de proteção aflorou e que o Estado brasileiro agora conta com a obrigação de punir condutas homotransfóbicas, apesar de não haver legislação especifica para este fim e, com isso, a sociedade como um todo, até mesmo os preconceituosos, sentiram que devem, mesmo que por receio de serem punidos, respeitar a condição sexual das pessoas diferentes das suas.
4. O PAPEL CONTRAMAJORITÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL[5]
Hodiernamente, não é difícil notar a grande importância que o Poder Judiciário tomou na vida brasileira. Inúmeras questões são levadas a justiça quando deveriam ser incumbência dos demais poderes da república. Decisões de todo tipo são proferidas nos tribunais e sua efetivação ocorre com incomparável velocidade e efetividade, uma vez que ordem judicial se cumpre. Por trás dessas decisões estão grupos sociais, minorias ou mesmo, em alguns casos, os demais poderes da República, Legislativo e Executivo, buscando a solução de conflitos ou uma segurança jurídica a determinados atos desses poderes e, no caso das minorias e grupos vulneráveis, a eficácia e aplicabilidade de direitos e deveres conferidos na constituição vigente.
Após a independência, o Brasil entrou na era constitucional, o que se segue até os dias de hoje. Na primeira constituição brasileira, os poderes como conhecidos atualmente foram delimitados, embora não harmônicos e independentes entre si, acrescidos com o Poder Moderador, onde o imperador também detinha o Poder Executivo e a palavra final em todas as questões do império.
Com o passar dos anos e das evoluções políticas pelas quais o Brasil atravessou o Supremo Tribunal Federal teve momentos de liberdade e repressão institucional, tendo sido elevado a cúpula do Poder Judiciário na constituição de 1891, passando a ter sua independência reprimida nos golpes do Estado Novo, encabeçado por Getúlio Vargas em 1937, e no Golpe Militar de 1964, sendo restaurada sua independência e autonomia com a Constituição de 1988, sendo que sua influência e protagonismo foi sendo criado paulatinamente ao longo do recente período democrático pós 88 (DIAS, 2021).
Após a Carta vigente, novos mecanismos foram acrescidos ao seu texto aumentando ainda mais o controle institucional exercido pelo STF, dentre eles a Emenda Constitucional Nº 3 de 1993 que criou a ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo ou lei federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, bem como a Emenda Constitucional Nº 45 que promoveu uma reforma do Poder Judiciário e introduziu a possibilidade do STF, mediante reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar súmula com efeito vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração direta e indireta da administração federal, estadual e municipal.[6]
Aliado a diversos mecanismos e a obrigação constitucional dos tribunais e juízes apreciar qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF), somado a uma extensa constitucionalização de matérias que antes figuravam apenas no âmbito ordinário fizeram com que houvesse um fortalecimento do Poder Judiciário como fiel garantidor dos mandamentos constitucionais, principalmente aqueles de eficácia limitada que dependem de uma legislação complementar para sua execução (REIS, 2020).
Esse fortalecimento das funções do Poder Judiciário brasileiro por meio do poder constituinte originário e, posteriormente, com as reformas que ocorreram, fez com que se viva hoje na chamada era do protagonismo judicial[7] (BARROSO, 2020), onde tal age protagonizando o debate diante das omissões das demais instituições, em matérias que seriam atinentes aos demais poderes da república, sob a ótica constitucional em que todos os fundamentos, atos e leis que regem o Brasil têm de estar de acordo com os preceitos firmados no Texto Maior.
Após esse fortalecimento constitucional, o Poder Judiciário e, em particular, o Supremo Tribunal Federal, tem posição privilegiada na determinação do sentido e alcance da Constituição e das leis, pois tem a última palavra, vinculando a administração pública e as demais esferas do Poder Judiciário.[8] A supremacia judicial na determinação de qual lei é clara diz respeito ao exercício do poder político, com todas as suas implicações para a legitimidade democrática (BARROSO, 2020, p. 451).
Inconteste de que a máxima eficácia das normas constitucionais exige a mais ampla implementação possível de seus valores e dos princípios, porém, no caso de inércia do poder político, deve-se permitir a atuação mais ampla do Judiciário, a fim de alcançar a proteção pretendida (MORAES apud BARROSO, 2020, p. 1437).
Com isso, umas das funções do Poder Judiciário é ser justamente oposto à maioria eleita a fim de resguardar direitos de minorias e vulneráveis, ser contramajoritário, pois a primazia dos direitos fundamentais é sobrepor as leis e ordenamentos que vão contra tais direitos, mesmo que aprovado pela maioria e pelo poder responsável pela edição de leis, o Poder Legislativo, pois a Constituição é superior em sua forma e conteúdo, uma vez que, a constitucionalização plena incorporou a Constituição de muitas questões que anteriormente, o processo político majoritário e o direito consuetudinário foram deixados para a maioria, onde o constituinte ao introduzir no Texto tais matérias, as torna passíveis de serem judicializadas. (BARROSO, 2020, p. 544).
No entanto, quando não estão em jogo direito e garantias fundamentais, deve o Poder Judiciário respeitar a vontade do legislador e a discricionariedade razoável da Administração Pública, tão pouco suprimir a vontade popular e sua voz, balizando-se pela razão pública e pela vontade política. (BARROSO, 2020, p. 544).
Tendo surgido no constitucionalismo americano, sendo o caso Marbury v. Madison o embrião do ativismo judicial (CAMPOS, 2014, p. 34) que se espalhou pelo mundo e, após CF/88, inseriu-se de vez no ordenamento brasileiro. Deve-se ao historiador Arthur Schlesinger Jr. a criação do termo em 1947 em um artigo publicado na revista Fortune, onde além da criação do termo ele diz:
Quanto mais uma corte se apresenta como instituição vital ao país e à sociedade, mais ela e seus juízes deverão sujeitar-se ao julgamento crítico sobre suas motivações, relações internas e externas, enfim, tudo o que possa ser fator das decisões tomadas. Mostrando que os juízes agem como agentes que moldam a sociedade através de suas decisões (CAMPOS, 2014, p. 30- 31).
Seria descabido dizer que o Poder Judiciário invade ou viola a separação de poderes quando é provocado a agir em situações em que houve clara infringência aos direitos fundamentais, pois a competência do Estado Neoconstitucional não se limita à mera aplicação da lei formal, sendo também sua competência dar uma resposta a quem busca uma solução perante a justiça, a fim de conseguir a resolução de seu problema e uma justiça social.
Com isso, o protagonismo judicial nada mais é do que o Poder Judiciário usando de seu poder/dever de interpretação e de resolução de conflitos, nos casos de retração e inação dos demais poderes da república, e de sua capacidade institucional como poder da república, principalmente quando o poder legiferante não implementa os mandamentos constitucionais, seja por pressão política, seja por ideologia, bem como de adequação do caso concreto à norma legal e de seu dever imposto no art. 5°, XXXV, CF, onde a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, devendo o juiz decidir o caso levado à sua apreciação mesmo na ausência de leis ou regras formais, assim como não se prender exclusivamente ao direito estritamente positivado, fato que tornaria profundamente ineficiente os direitos Magnos devido ao fato de omissões legislativas e perene evolução social, a qual não espera autorização da lei para seguir seu curso de constante mudança inerente ao ser humano e a uma sociedade cada vez mais globalizada como no século XXI, em que a informação e a troca cultural são cada vez mais rápidas e assimiladas.
Elival da Silva conceitua o ativismo judicial como:
O exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante as práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes (RAMOS, 2015, p.111).
O autor defende que o Estado-Juiz age para além de suas funções delimitadas pela constituição, invadindo os demais poderes na busca da implementação dos direitos fundamentais, sendo uma disfunção das funções jurisdicionais, mas aqui cabe dizer que só o faz uma vez que os demais poderes da república demoram ou não implementam os mandamentos constitucionais que são impostos a todos os poderes, assim como pensa Luís Roberto Barroso.
Uadi Lammêngo Bulos também se mostra contrário ao ativismo judicial:
Ativismo judicial é o ato em que juízes criam pautas legislativas de comportamento, como se fossem os próprios membros do Poder Legislativo. Trata-se de um perigoso veículo de fraude à constituição, podendo acarretar mutações inconstitucionais, afinal um órgão do Poder adentra na esfera do outro, ao arrepio da cláusula da separação de Poderes (BULOS, 2014, p. 442).
O autor considera que ao resolver demanda jurídica, o juiz estaria adentrando nas competências dos deputados e senadores, tornando-se assim em ativistas judiciais ou juízes legisladores perfazendo uma ultrapassagem demarcatória dos limites da função judiciária.[9]
Já para Luís Roberto Barroso o ativismo é uma causa da inércia do Poder Legislativo:
O ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, ele se instala – e este é o caso do Brasil – em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva (BARROSO, 2020, p. 441-442).
O ativismo parte da falta ou do vácuo legal e normativo deixado pelos demais poderes, em especial o legislativo, e o Poder Judiciário, quando instado, deve decidir com base na interpretação e adequação às normas legais vigentes, principalmente na norma constitucional.
Tal intervenção é justificada quando há violação de direitos fundamentais, não podendo o Poder Judiciário ficar em tais hipóteses inerte e isentar-se de tutelar tais direitos assegurados na Carta Magna, pois não é possível ficar esperando que os demais poderes regulamentem o direito, devendo sempre o Poder Judiciário agir, mediante decisão fundamentada, argumentação jurídica e interpretação conforme à constituição, sendo legítima sua atuação na decisão de situações levadas ao seu crivo, perfazendo assim o ativismo jurídico (CAMBI, 2018).
Sobre isso, Alexandre de Moraes explica a atual posição do Supremo Tribunal Federal sobre o ativismo judicial:
(...) ocorre, porém, que em virtude da inércia do legislador em colmatar as lacunas constitucionais, após 20 anos do texto constitucional, o Supremo Tribunal Federal alterou seu posicionamento e adotando claro ativismo judicial passou a adotar a posição concretista, tanto geral, quanto individual(...) (MORAES, 2018, p. 258).
Demonstrando que o Poder Judiciário está tão somente cumprindo seu papel constitucional frente aos demais poderes que demoram ou fazem pouco caso para salvaguardar os direitos fundamentais, a exemplo da criminalização da homotransfobia onde há expressa ordem, no art. 5º, inciso XLI, onde a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
Elival da Silva e Uadi Lammêgo Bulos veem com certa ressalva e crítica essa intervenção judicial em matérias onde não há uma lei no sentido formal escrita e aprovada pelo poder legiferante, o congresso, porém, quando o Poder Judiciário age o faz alicerçado nos princípios norteadores da constituição, como o da dignidade da pessoa humana. Constituição essa que foi toda baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e podemos ver tal inspiração logo em seus fundamentos, art. 1°, inciso III, e nos objetivos fundamentais, art. 3°, inciso IV da Constituição Federal.
Tais direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerados indispensáveis para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade, não existindo uma lista predefinida de conjunto mínimo de permissões necessárias para uma vida digna. As necessidades humanas variam e dependendo do contexto histórico de um momento, novas necessidades sociais estão legalmente traduzidas e incluídas na lista de direitos humanos (RAMOS, 2020, p. 24).
Nas palavras de Casado Filho:
Os Direitos Humanos são um conjunto de direitos, positivados ou não, cuja finalidade é assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, por meio da limitação do arbítrio estatal e do estabelecimento da igualdade nos pontos de partida dos indivíduos, em um dado momento histórico(...) sendo irrenunciáveis, universais, imprescritíveis e indisponíveis (CASADO FILHO, 2012, p. 21).
Portanto, o ser humano como um ser de direitos não pode ser delimitado e ficar restrito “a letra fria da lei”, mas a princípios, que também estão positivados, e que são norteadores e tais princípios estão em constante evolução ganhando novas roupagens e definições. Os princípios de direitos humanos são dinâmicos, a letra de lei não.
Esses mesmos direitos fundamentais são usados como desculpa e proteção de grupos e pessoas que usam da liberdade de expressão para oprimir pessoas ou grupos sociais que são contrários a seus ideais de normalidade, como no caso dos homossexuais e não raras vezes a negros e pessoas não brancas.
Acontece que não há direito à liberdade de expressão quando esta é usa para disseminar o ódio, o preconceito, se esse direito viola os demais direitos alheios, muito menos quando inferiorizam, hostilizam e perseguem outras pessoas como no caso Ellwanger (HC 82.424/RS), em que Siegfried Ellwanger Castan (1928 – 2010), utilizando-se de sua editora disseminava publicações antissemitas onde negava o holocausto judeu, sendo posteriormente condenado. Apesar de não ter sido preso, seu pedido de habeas corpus chegou ao STF. No acórdão, a Corte decidiu que o antissemitismo configura como racismo ampliando seu conceito não somente na cor, mas como um conceito político-social, partindo daqui a base do pedido da ADO 26 de criminalização e inclusão da homotransfobia no sentido social do racismo.
No caso do julgamento que culminou na tipificação por equiparação da homotransfobia nos crimes de racismo, cabe salientar que não houve uma decisão baseada em solipsismo, que é a sentença fundamentada na vontade do juiz do que ele considera o direito, mesmo que esse “direito” transgrida o direito real, verdadeiro, uma vez que o tribunal deu voz a todos, note-se a quantidade de amicus curiae que fez parte da ação, inclusive não sendo a decisão do enquadramento unânime com divergência parcial de três ministros.
5. O JULGAMENTO DAS AÇÕES QUE PEDIRAM A EQUIPARAÇÃO DA HOMOTRANFOBIA AO RACISMO
Com o objetivo de também criminalizar por meio de equiparação a homotransfobia como racismo, o Partido Popular Socialista (PPS), hoje sobre a denominação Cidadania, ingressou com ação de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26) e com o mesmo objetivo a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) impetrou um Mandado de Injunção (MI 4733 DF). Como forma de otimizar o julgamento, as duas ações foram reunidas em uma já que tratavam praticamente do mesmo tema.
Na época do julgamento, entidades contrárias, a exemplo da ANAJURE, Associação Nacional dos Juristas Evangélicos, alegavam que já havia reprimenda legal e que “deveria ser aplicado todo o rigor da lei já existente” (ANAJURE, 2019), e que não seria necessário tipificar a homotransfobia como crime.
Acontece que não há nenhuma palavra que remeta a crimes de ódio por homotransfobia no código penal, sendo que crimes de morte cometidos contra pessoas LGBTQIA+ seriam enquadrados como motivo torpe (considerado como imoral, vergonhoso, repudiado moral e socialmente, algo desprezível), homicídio qualificado (art., 121, §2º, inciso II), aqueles homicídios de elevado grau de censurabilidade ou reprovabilidade como, sustentou o então Advogado Geral da União, André Mendonça[10], em que já seria possível tipificar crimes de homicídio, lesão corporal e crimes contra a honra, no entanto, seria extremamente difícil configurar tal motivo uma vez que os registros e investigações desses casos são débeis. Crimes de ódio por homotransfobia transcendem tais definições defendidas pois envolvem o ódio a pessoas que se relacionam fora do padrão da heteronormatividade e a simples existência de tais pessoas LGBTQIA+ já é o suficiente para despertar ódio e repulsa em pessoas motivadas tão somente pelo preconceito, seja ele com fundamento religioso ou não. O ser dominante subjugando o ser minoritário.[11]
O congresso por sua vez argumentou que existem matérias em trâmite nas duas casas, Senado e Câmara dos Deputados, o que mostraria que o Poder Legislativo não seria omisso na matéria (BRASIL, 2019). É bem verdade que há projetos de lei em tramitação, mas até hoje nada de concreto foi aprovado. Uma dessas iniciativas foi o Projeto de Lei 122/2006 de iniciativa da então deputada Iara Bernardi (PT/SP) que ficou conhecido como “lei anti-homofobia” sendo arquivado em 2014 no senado após passar 8 anos em tramitação (BRASIL, 2015). O projeto recebeu tantas críticas que até os movimentos sociais a favor do projeto não contestaram o seu arquivamento uma vez que o projeto ficou estigmatizado decidindo criar uma proposta.
Em 2017, o bárbaro assassinato da travesti Dandara dos Santos[12], que foi espancada até a morte no subúrbio de Fortaleza, Ceará, sendo inclusive a ação gravada pelos agressores, levou a Deputada Luizianne Lins (PT/CE) a propor o projeto de lei 7292/2017 para prever o LGBTcídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, portanto hediondo (BRASIL, 2018). Desde então o projeto encontra-se parado desde 2017 na COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS esperando entrar na pauta de votação.[13]
Apesar de haver tais proposições, o Ministro Relator Celso de Mello em seu voto constatou que havia a mora inconstitucional, pois passados mais de 30 anos da nova constituição o Congresso ainda não aprovou proteção pretendida no Texto e um deliberado movimento protelatório da oposição parlamentarista no sentido de não aprovar qualquer projeto no sentido tipificar crimes contra a população LGBTQIA+ e em suas palavras: “Tenho por inacolhível, por isso mesmo, a alegação de que a mera existência de proposição legislativa no Congresso Nacional afastaria, por si só, a configuração, na espécie, de inércia por parte do Poder Legislativo” (BRASIL, 2019).
De fato, há algumas proposições em “andamento” nas duas casas, mas acontece que muitas não passam das comissões como as de Constituição, Justiça e Cidadania e a Direitos Humanos e Minorias a exemplo do PL 122, chegando a pelo menos 50 projetos sem que nenhum tenha sido aprovado desde a redemocratização do país há mais de 30 anos (BRITO, 2021).
Concluiu o ministro que atos de homotransfobia e transfobia são formas contemporâneas de racismo, para além da cor da pele ou origem étnica, de modo a inserir tais condutas na tipificação penal da Lei nº 7.716/89, a fim de preservar a garantia da dignidade da pessoa humana e afirma que aceitar tese diversa resultaria em tornar mais difícil e frágil a proteção atribuída pelo ordenamento jurídico a pessoas vulneráveis (BRASIL, 2019).
O Ministro Edson Fachin, Relator do MI 4733, seguiu o Relator Celso de Mello em reconhecer que a tramitação de matéria relativa ao tema não desconfiguraria a mora legislativa, julgando procedente o mérito uma vez que o art. 5º, XLI, da CF/88 prevê mandado de criminalização contra a discriminação homotransfóbica, de modo que comporta ao STF, perante a omissão legislativa, a colmatação da legislação de combate à discriminação mediante interpretação conforme, até que esta seja suprida pelo Congresso Nacional e que a proteção de direitos fundamentais pode originar na elaboração de tipos penais próprios já que para reconhecer o direito penal como instrumento adequado para a proteção de bens jurídicos, a Suprema Corte tem usado como base o princípio da proporcionalidade, na forma de proibição de proteção insuficiente (BRASIL, 2019).
Salientou que no caso Ellwanger (HC 82.424) não foi cabível afastar a imprescritibilidade do crime de racismo atribuído ao réu, que teria distribuído obras de conteúdo antissemita, ao fundamento de que os judeus não seriam raça, uma vez que a igualdade está a nos exigir, enquanto intérpretes da Constituição, que se reconheça a igual ofensividade do tratamento discriminatório, seja para afastar a alegação de que judeus não seriam vítimas de racismo, seja para tolerar a apologia ao ódio e à discriminação derivada da livre expressão da sexualidade (BRASIL, 2019).
O Ministro Alexandre de Moraes salientou que nos 30 anos de vigência da Constituição Federal o Congresso editou normas de proteção de direitos e liberdades fundamentais de diversos grupos tradicionalmente vulneráveis, sempre criando tipos penais específicos, bem como normas administrativas e cíveis, demonstrando assim, não haver razão para ignorar a necessidade de proteção dos mesmo direitos e liberdades fundamentais em virtude de condição sexual e identidade de gênero, reconhecendo por estas razões a inconstitucionalidade por omissão e que o princípio da reserva legal impede a condenação por analogia, mas que a colmatação da omissão constitucional por meio de criação de um novo tipo penal não se confunde com o legítimo exercício hermenêutico da Suprema Corte, em sede de jurisdição constitucional, absolutamente necessário, na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico.
Como sua doutrina, Moraes defende que:
A supremacia absoluta das normas constitucionais e a prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento basilar da República obrigam o intérprete, em especial o Poder Judiciário, no exercício de sua função interpretativa, aplicar não só a norma mais favorável à proteção aos Direitos Humanos, mas, também, eleger em seu processo hermenêutico, a interpretação que lhe garanta a maior e mais ampla proteção (MORAES, p. 76, 2020).
Seguiram a mesma linha a favor dos pedidos os demais ministros à exceção de Ricardo Lewandowski, que mesmo embora que o direito à identidade de gênero e à condição sexual são essenciais para a dignidade humana, reconheceu em parte o pedido de mora constitucional, mas considera não ser cabível o enquadramento da Lei 7.716/89 aos atos atentatórios dos direitos fundamentais contra a comunidade LGBTQIA+, por entender que somente o Legislativo pode criminalizar condutas exigindo, assim, lei formal por estar sujeito à reserva legal absoluta e que a extensão da referida lei penal à situações não tipificadas por ela atentar frontalmente ao princípio da reserva legal, que constitui garantia constitucional fundamental contra arbitrariedade estatal gerando segurança jurídica. O Ministro Dias Toffoli seguiu o voto do Ministro Lewandowski (BRASIL, 2019).
O Ministro Marco Aurélio foi o único a votar contra a improcedência dos pedidos. Considerou inadequada a utilização do Mandado de Injunção, uma vez que que não foi demonstrado o direito subjetivo de certa coletividade, que seriam os integrantes da comunidade LGBTQIA+, cujo direito não estaria assistido pela falta de norma regulamentadora que verse sobre criminalização voltada às formas de homotransfobia entendendo ser incompatível com a criação de tipo penal provisório. Entendeu ainda que há uma sistemática violação dos direitos fundamentais dos membros da comunidade LGBTQIA+ com elevados números que tornam o Brasil campeão de mortes violentas, mas que não é cabível aplicação da Lei 7.716/89 uma vez que o mandamento constitucional contido no inciso XLI, do artigo 5º fala que a lei, em seu sentido formal, punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e garantias fundamentais, não sendo admissível a interpretação que contradite o princípio da legalidade. Ficou entendido para o Ministro que a omissão do legislador não pode ser superada por exegese abrangedora de legislação em vigor, que a importância da separação dos poderes com sua harmonia e independência devem ser observadas e que a Carta Magna dispõe que não há crime sem lei que o defina, exigindo que essa lei seja no sentido formal. Assim, diverge dos relatores inadmitindo o Mandado de Injunção, e admitindo em parte o Ação Direta por Omissão, mas sem reconhecer a omissão legislativa sobre a criminalização da homotransfobia e sem estender a Lei do Racismo aos atos contra os homoafetivos e transexuais (BRASIL, 2019).
Superados os votos, ficou entendido que a homotransfobia se enquadra no tipo racismo em sua concepção social, ampliando para além dos aspectos estritamente fenotípicos, uma vez que se configuram como uma manifestação de poder, devendo ser aplicado nos casos de preconceito e discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ a Lei do Racismo, Lei 7716/89, até que o Congresso Nacional aprove lei que criminalize a prática de discriminação ou preconceito por motivo de identidade de gênero e condição sexual.
Esse racismo em sua concepção social não é criação do STF (VECCHIATTI, 2019) e sim, decorre da literatura negra antirracismo. Origina-se, enquanto manifestação de poder, de uma construção histórico-cultural de subjugação de minorias, nesse caso os LGBTQIA+, por grupos sociais dominantes que consideram tais populações indignas, de menor valor humano por não pertencerem a sua visão de ideal social.
Restou entendido também que a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros, é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua condição sexual ou de sua identidade de gênero.
O Ministro Barroso em seu voto sintetiza bem o que passa a comunidade LGBTQIA+ quando disse que “não escapará a ninguém que tenha olhos de ver e coração de sentir que a comunidade LGBTQIA+ constitui um grupo vulnerável, vítima de preconceito, discriminação e violências ao longo da história da humanidade. Violências privadas, praticadas por particulares, e públicas, provocadas pelo Estado. Os números falam por si, como noticiado acima. Nesse cenário, o direito e o Estado têm o dever de interferir na defesa dos direitos fundamentais dessas minorias. Não se está falando apenas do direito de viver a própria liberdade sexual, mas de preservar a integridade física e psíquica, quando não a própria vida, de membros da comunidade LGBTQIA+”. (Grifo nosso).
Com a conclusão dos votos, ficou claro que o Brasil precisa sim proteger tal minoria das agressões que sofrem país afora, como forma de preconceito estrutural e que encontra no congresso vasto esteio, onde políticos envolvidos com a religião e a preceitos moralistas obstam a aprovação de medidas coercitivas e protetivas a população LGBTQIA+.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Casos como o de Dandara dos Santos evidenciam uma latente necessidade da incriminação de práticas homotransfóbicas e que tal pleito não é nem de longe a busca de privilégios em detrimento dos demais como sustentam setores conservadores da sociedade. O que se busca é tão somente o direito de existir e de viver como se é, sem sofrer preconceito, violência, ataques e de não ter seus direitos humanos mais básicos aviltados. Ser respeitado como qualquer cidadão quer e tem direito.
Com visão legalista, humanista e acima de tudo constitucional é que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a mora inconstitucional do congresso nacional, dando- lhe prazo razoável para que se implemente legislação no sentido de combater a discriminação por condição sexual e identidade de gênero, e até que sobrevenha tal proteção restou decidido que a homotransfobia e a transfobia sejam enquadradas na lei de racismo, uma vez que se entendeu que o preconceito homotransfóbico se enquadra na concepção social do termo racismo.
Com base no direito à dignidade da pessoa humana, na sua acepção que não há dignidade se não há proteção da sua integridade física e da vida e em precedente histórico os ministros não inovaram ao tipificar homotransfobia ao racismo, tão somente usaram a exegese do termo racismo como a inferiorização de grupos dominantes sob grupos dominados, sem diminuir ou desconfigurar a discriminação por motivo de cor da pele como alegaram setores contrários ao julgamento da ADO 26.
Portanto, a atuação ativista do STF não invadiu a separação de poderes, nem tão pouco rompeu com o princípio da legalidade estrita, pois não criou tipo penal algum. É evidente que atuações assim não aconteceriam se os demais poderes cumprissem seu papel constitucional e o que manda a Lei Maior da nação.
Esse 2021 completou 10 anos da decisão do STF que reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares equiparando as uniões heteroafetivas, e em 2013 o Conselho Nacional de Justiça determinou a obrigatoriedade dos cartórios de registrarem casamentos de pessoas do mesmo sexo sem nenhum empecilho.
Em 2020 o STF derrubou a restrição que homossexuais tinham de doar sangue, já que não havia motivo plausível para tal, uma vez que toda doação, seja de quem for, passa por rigorosos testes para saber se está apta a ser usada ou não.
O dito protagonismo judicial mostra-se de inegável importância, desde que usado com moderação, para a sociedade como forma de tirar do papel o que o
constituinte original prescreveu, pois, a depender do tema, o Executivo e o Legislativo, como bem assevera Barroso, o ativismo e o protagonismo só existem porque o Legislativo se retrai, se afastando da sociedade e dispensam tratamentos diferentes como no tema LGBTQIA+, retardando ou simplesmente ignorando demandas sociais que não são de seus interesses.
Como no Caso Ellwanger, se o Supremo não tivesse mudado o entendimento de que o racismo é antes de tudo uma realidade política e social, sem nenhuma referência à raça enquanto caracterização física ou biológica, condutas e práticas antissemitas estariam difundidas na sociedade e ninguém, à exceção dos simpatizantes do nazismo, concorda com tais pensamentos nefandos.
Pese-se ainda que os índices da violência LGBTQIA+ sofrem da precariedade da coleta de dados, como no caso de boletins de ocorrência e registros oficiais de órgãos públicos, com muitos casos sendo subnotificados ou simplesmente nem entram nas estatísticas e, mesmo assim, os números que se tem já são altos.
Por fim, os três poderes e a sociedade devem evoluir no sentido de convergir ao bem comum, ao bem social, na luta de uma sociedade realmente livre, justa e solidária como estipula um dos objetivos da República Federativa do Brasil para que o Poder Judiciário não tenha que, praticamente sozinho, implementar os preceitos constitucionais e posteriormente ser considerado ativista. Este trabalho não teve o objetivo de esgotar o tema onde é possível abordar sobre outros enfoques e pesquisa empírica.
7. REFERÊNCIAS
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[1] A diversidade sexual humana é complexa e por isso há várias denominações para pessoas homoafetivas e atualmente a forma que se tem usado é a LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queer, intersexo e assexuais). Nela, o Q vem da palavra inglesa queer e serve para designar quem transita entre os gêneros feminino e masculino e até mesmo para além dessa binaridade. Por fim, o A diz respeito à orientação sexual. Assexuais são os que não sentem atração sexual ou afetiva por outra pessoa, independentemente de orientação sexual e de identidade de gênero.
[2] O termo trans é utilizado para se referir a uma pessoa que não se identifica com o gênero ao qual foi designado em seu nascimento. Dessa forma, podemos utilizar “mulher trans” ou “pessoa transfeminina” para se referir a alguém que foi designado homem, mas se entende como uma figura feminina. Já o termo “homem trans” ou “pessoa transmasculina” é indicado para tratar uma pessoa que foi designada mulher, mas se identifica com uma imagem pessoal masculina. Mais sobre o assunto acessar: https://transcedemos.com.br/transcedemosexplica/trans/.
[3] Essa violência sem limites atinge até pessoas heterossexuais como uma mãe e uma filha que em 2017 foram confundidas com casal lésbico na saída de um cinema em um shopping de Brasília, sendo abordadas por um homem que as agrediu física e verbalmente. Outro caso parecido envolveu dois irmãos gêmeos, na cidade de Camaçari, Bahia, que ao andarem abraçados sofreram agressões, sendo que um dos irmãos não resistiu aos ferimentos.
[4] A Sharia é o sistema jurídico do Islã. É um conjunto de normas derivado de orientações do Corão, falas e condutas do profeta Maomé e jurisprudência das fatwas - pronunciamentos legais de estudiosos do Islã. Em uma tradução literal, Sharia significa "o caminho claro para a água" (REUTERS, 2021).
[5] Além do papel contramajoritário, existe ainda o papel iluminista e representativo que, segundo Barroso, aquele age “empurrando a história”, devendo ser usado com extrema parcimônia, em situações excepcionais, em determinadas questões civilizatórias cruciais cujo o processo político majoritário não é capaz de fazê-lo enquanto este, age quando atende demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas (BARROSO, 2017). Apesar dos demais papéis, optou-se nesse artigo focar somente no papel contramajoritário.
[6] A Emenda Constitucional nº 45 de 2004 introduziu a possibilidade de propositura de uma Ação Direta por Omissão, expressa no art. 103, § 2, que foi disciplinada pela Lei nº 9868/99, com a redação da Lei nº 12.063/09 que acrescentou vários dispositivos, aumentando ainda mais a oferta de mecanismo de proteção efetiva a todas as normas constitucionais de eficácia limitada dependentes de regulamentação, bem como dos direitos fundamentais e sociais, caso os demais poderes quedassem inertes ao que ordena a constituição. Note-se que já havia os mecanismos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (art. 102, I, a, CF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (art. 102, §1º, CF) e o Mandado de Injunção (art. 5º, LXXI, CF). Bem como remodela a estrutura do Poder Judiciário indo desde o ingresso na magistratura até a criação do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, e cria a figura da súmula com efeito vinculante, Art., 1032-A, CF. (HERTEL, 2005).
[7] Existe o termo ativismo que, segundo Barroso (2012, p. 372): o ativismo corresponde a uma atitude. Diz com a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição. Porém, tal termo é carregado de sentido pejorativo, dúbio. Enquanto o protagonismo seria mais benéfico, pois este seria uma atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais.
[8] Para Kelsen (2003, p. 275), uma vez que justamente nos casos mais importantes de violação constitucional Parlamento e governo são partes litigantes, é recomendável convocar para a decisão da controvérsia uma terceira instância que esteja fora desse antagonismo e que não participe do exercício do poder que a Constituição divide essencialmente entre Parlamento e governo. Que essa mesma instância tenha, com isso, um certo poder, é inevitável. Porém há uma diferença gigantesca entre, de um lado, conceder a um órgão apenas esse poder que deriva da função de controle constitucional e, de outro, tomar ainda mais fortes os dois principais detentores do poder, confiando- lhes ademais o controle da Constituição.
[9] Uadi Lammêgo Bulos continua defendo que por meio do ativismo judicial, o Poder Judiciário passa a ser um órgão incontrolável, cujos membros podem até invocar a "doutrina das questões políticas", para, de modo desmensurado, desbordarem as raias da função jurisdicional, proferindo sentenças estapafúrdias, baseadas em interpretações desarrazoadas, construções e manipulações contrárias ao dever ser das normas constitucionais.
[10] Sustentação oral do Ministro da Advocacia Geral da União, André Mendonça, no julgamento da ADO 26 e do MI 4733. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ATOPVRO4eO0. (Acesso em 17 de novembro de 2021).
[11] Nesse sentido, o próprio código penal passou a contar com a qualificadora do feminicídio, que seguindo a mesma linha dos pensamentos contrários à criminalização da homotransfobia, também poderia ser enquadrada como homicídio por motivo torpe, portanto qualificado.
[12] A travesti Dandara dos Santos foi espancada por pelo menos dez pessoas, entre adolescentes e adultos. Após sofrer humilhação, violência física e psicológica, todas registradas em vídeo que foi publicado e amplamente divulgado nas redes sociais, Dandara é erguida pelos seus agressores e colocada em um carrinho de mão. O crime foi filmado e divulgado em redes sociais pelos criminosos. O caso teve grande repercussão nacional e chamou atenção pela falta de tipificação penal para o crime de transfobia. IZADORA, Paula. Há três anos, Dandara dos Santos foi torturada e morta em rua de Fortaleza. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2020/02/15/ha-tres-anos-- dandara-dos-santos-era-torturada-e-morta-em-rua-de-fortaleza.html. (Acesso em 19 de novembro de 2021).
[13] O PL 7292/2017 encontra-se há mais de quatro anos parado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias e Constituição e Justiça, sem qualquer previsão de ser votado até a presente consulta. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2128135. (Acesso em 17 de novembro de 2021).
Publicado por: Caio Ciro Santos Chaves
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