A RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL CORPORATIVA DAS EMPRESAS TABAGISTAS QUANTO AS BITUCAS DE CIGARRO

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1. Resumo

Esse trabalho tem como finalidade propor alternativas de responsabilização corporativa às empresas tabagistas em relação às bitucas de cigarro, uma vez que estas são um dos resíduos mais descartados em todo o mundo, e o mais encontrado nos oceanos, sendo extremamente tóxico e perigoso ao meio ambiente e à saúde humana. Crescentes movimentos da sociedade civil - como movimentos sociais e ONGs - assim como outras empresas de diferentes setores, organizadas em redes transnacionais, alarmam sobre a gravidade do impacto do resíduo e pressionar uma resposta responsável tanto dos Estados quanto das empresas tabagistas em relação às bitucas de cigarro, a fim de reduzir, alterar ou erradicar sua utilização.

Abstract

This paper aims to propose alternatives of social and ecological corporative responsibility to tobacco companies in relation to cigarette butts, since these are one of the most discarded waste in the world, and the most found in the oceans, being extremely toxic and hazardous to the environment and human health. Increasing movements of civil society - such as social movements and NGOs - as well as different kinds of enterprises, organized in transnational networks, alarm on the seriousness of the impact of the residue and pressing a responsible response from both States and tobacco companies in cigarette butts in order to reduce, alter or eradicate its use.

2. INTRODUÇÃO

Os efeitos do consumo do cigarro à saúde humana já são bem conhecidos e divulgados por todo o mundo. Entretanto, muito pouco é abordado em relação aos impactos socioambientais dos produtos derivados do tabaco, em especial se tratando das bitucas de cigarro.

Preocupado com a gestão específica desse resíduo, em 2018 comecei a estudar sobre os perigos das bitucas de cigarro no meio ambiente e à saúde humana e como reverter seus impactos. Nesse quadro, fundei o movimento Bitucar, com o objetivo de promover a educação ambiental sobre o resíduo, assim como procurar alternativas para o seu descarte e subsequente reciclagem.

Apesar de ainda não ter tanta visibilidade como um dos principais resíduos responsáveis pela poluição do meio ambiente, segundo a Ocean Conservancy, a bituca de cigarro é o resíduo mais encontrado nos oceanos, estimando que, dos 5.6 trilhões de cigarros produzidos anualmente, dois terços são descartados de forma irregular, podendo ser levados pelas chuvas e intoxicando os mais diversos ecossistemas do globo (MERRAN, 2018).

De forma a alarmar sobre a gravidade do impacto socioambiental das bitucas de cigarro, diferentes movimentos da sociedade civil se organizam em redes transnacionais para pressionar uma resposta responsável dos Estados e das indústrias tabagistas em relação às bitucas, a fim de reduzir, alterar ou erradicar sua utilização.

Este trabalho tem como finalidade, portanto, expandir a proposta inicial de meu projeto ambiental acerca do descarte das bitucas de cigarro, e analisar através da perspectiva de atuação desses diferentes atores – Estados, Organizações Internacionais, empresas tabagistas, movimentos da sociedade civil e outras empresas do setor privado – como, por meio da governança ambiental global de um dos resíduos mais descartados do mundo e com impactos transnacionais, podemos propor um modelo de responsabilização às indústrias tabagistas, de forma semelhante como já é feito com outros resíduos, como embalagens, eletrônicos ou plásticos em geral.

3. A BITUCA DE CIGARRO

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), existem cerca de 1,6 bilhão de fumantes no mundo que consomem em média 7,7 cigarros por dia (ECYCLE, 2013). Ou seja, aproximadamente, 12,3 bilhões de bitucas de cigarro são descartadas diariamente, sendo que, se descartadas de forma inapropriada, podem contribuir para enchentes e queimadas. Não obstante, a bituca de cigarro é o resíduo mais encontrado nos litorais por todo o mundo, segundo a Ocean Conservancy, representando um terço de tudo que é retirado dos mares. Além disso, essa mesma organização encontrou resíduos de cigarro em 70% das aves marinhas e 30% das tartarugas marinhas.

Apesar de alguns estudos afirmarem que uma bituca de cigarro pode se decompor entre 5 a 15 anos, pelo seu filtro ser feito em 95% de acetato de celulose um plástico – ele não é, portanto, biodegradável e carrega com si mais de 4.700 substâncias tóxicas que dentre essas 48 são cancerígenas (ECYCLE, 2013). Segundo Thomas Novotny, professor de Saúde Pública da Universidade Estadual de San Diego, muitos dos químicos tóxicos presentes no tabaco do cigarro, como flumetralina, pendimetalina, trifluralina e etil fenol (pesticidas e flavorizadores), após sua queima, ficam retidos nos filtros e, se descartados incorretamente, podem contaminar o meio ambiente, e consequentemente toda a cadeia alimentar (NOVOTNY, 2014). Com o tempo, esse material se decompõe em micropartículas plásticas que contaminam o solo e a água, se concentrando principalmente nos lençóis freáticos e oceanos.

A OMS ressalta a importância de pensarmos a bituca de cigarro além de simplesmente seu filtro de acetato de celulose. Ela é composta também por um papel tratado com uma série de químicos para não alterar o sabor e não grudar nos lábios, além da tinta da impressão que também é tóxica. Não obstante, também é parte da bituca de cigarro o resquício de tabaco e as cinzas que ficam na bituca. As folhas de tabaco são tratadas com diversos pesticidas e agrotóxicos que são carregados por todo o ciclo de vida do cigarro (WHO, 2017).

A OMS também alerta para mais do que o impacto isolado da bituca como resíduo, ressaltando que o processo produtivo da indústria tabagista também implica em diversas ameaças ambientais como desmatamento; pesticidas e fertilizantes a base de petróleo; embalagem plástica e outras embalagens para distribuição; bem como produção de CO2 e metano pelo consumidor final, e também ameaças sociais como a expropriação de territórios de agricultura familiar; segurança alimentar; contaminação dos produtores pelos agrotóxicos e pesticidas; e intoxicação pela queima e maturação da folha do tabaco (WHO, 2017). Segundo a Imperial Tobacco, "(o) seu maior impacto direto sobre o meio ambiente vem de nossas atividades de fabricação de produtos" (Imperial Tobacco Group PLC, 2006).

Portanto, as bitucas de cigarro se enquadram no perfil de microlixo, que seriam resíduos que a maioria das pessoas acredita que não causariam tamanho impacto ambiental. São eles: gomas de mascar, papéis de bala, garrafas, canudos, anéis de latas, embalagens, dentre outros (BECKER, et al., 2013). Mas para este trabalho atribuiremos o conceito de microrresíduos, a fim de evitar a expressão “lixo” que guarda uma conotação negativa, como um produto sem serventia, sem valor ou desprezível.

Fluxograma 1 – Ciclo de vida do tabaco – Do cultivo ao resíduo.
Fluxograma 1 – Ciclo de vida do tabaco – Do cultivo ao resíduo.

Fonte: OMS, 2017 (tradução própria).

Além de ser uma ameaça ambiental, o descarte incorreto das bitucas de cigarro também acarreta em impactos sociais, recaindo principalmente sobre a população de baixa condição socioeconômica, que, na maioria das vezes, habita em regiões com baixa infraestrutura.

De acordo com a National Fire Protection Agency, itens para o fumo, como cigarros, cachimbos, e isqueiros, causam aproximadamente 90.000 incêndios todo ano nos Estados Unidos, e são a causa número um de mortes relacionadas ao fogo (MARTIN, 2018).

Não obstante, as bitucas também são responsáveis por entupimento de bueiros e enchentes. Como tratamos de um item que carrega diversas toxinas em seu filtro, em contato com a água, seu impacto à saúde ambiental e humana é direto, e as regiões com maior precariedade de saneamento sentem os efeitos da bituca de cigarro de maneira mais intensa.

Ou seja, é possível perceber que as bitucas de cigarro também estão relacionadas a alguns perigos urbanos e sociais como os citados acima, tendo impactos em algumas localizações específicas demandando respostas locais. De tal forma, podemos notar algumas iniciativas governamentais para prevenir os impactos das bitucas de cigarro, como por exemplo, nos Estados Unidos, onde mais de 17 estados já aprovaram leis que proíbem o fumo nas praias, que são locais de uso público cuja responsabilidade de manutenção e limpeza recai sobre o estado e município. No Estado da Califórnia, um projeto de lei que proibiria o fumo em todas as 64 praias e parques estaduais foi indeferido em 2010 pelo então governador Schwarzenegger argumentando ser “uma intrusão inapropriada do governo na vida das pessoas” (BARNES, 2011). Novamente, em 2014 o projeto foi indeferido por dois votos no Senado estadual, mas está atualmente em processo de revisão.

Em São Francisco, em 2009, uma taxa de US$0,20 foi adicionada ao preço dos maços de cigarros vendidos na cidade, como uma forma de desincentivo econômico ao consumo do tabaco. Além disso, o retorno econômico dessa taxa adicional aos cofres públicos seria aplicado para apoiar a educação pública quanto aos resíduos, em especial para os provenientes do consumo do tabaco, e também ajudar a custear a limpeza urbana.

Diferentemente, na França, em 2018, o Primeiro Ministro Edouard Philippe demonstrou intenções de forçar as empresas tabagistas a limparem os resíduos derivados do tabaco em todo o território nacional. Em consonância, a Ministra do Meio Ambiente, Brune Poirson, solicitou uma posição imediata das empresas tabagistas naquele mesmo ano, e tem encabeçado propostas que consideram a reciclagem das bitucas. "Se nenhum compromisso efetivo for proposto até setembro (2018), o governo forçará a indústria a se envolver na coleta e eliminação de seus resíduos. (...) O Ministério não será brutal quanto ao método, mas será firme sobre os objetivos. A poluição é imensa, por isso os compromissos não podem ser menores" (POIRSON, 2018).

A iniciativa francesa teve grande repercussão na Comissão Europeia, e em dezembro de 2018, em Bruxelas, os seus membros se reuniram para construir uma estratégia de responsabilização a, não somente os consumidores, mas também aos produtores em relação a bituca de cigarro para os próximos dois anos. Os fabricantes deveriam desempenhar um papel significativo no custeamento da coleta e limpeza do resíduo, assim como seu tratamento e reciclagem. É esperado reduzir o número de bitucas em 50% em 2025 e em 80% em 2030 (VICTORIA, 2018).

No entanto, o poder de lobbying das empresas tabagistas fez com que esse projeto fosse ofuscado e seus debates fossem postergados. Younous Omarjee, um deputado francês do partido La France Insoumise, publicou um relatório contendo dez sugestões destinadas a reduzir a influência do lobbying do tabaco na União Européia (EU). O relatório, intitulado “O Livro Negro da Indústria do Tabaco na Europa”, expõe a influência que a indústria do tabaco exerce sobre a Comissão Europeia, em especial pela Confederação dos Produtores de Cigarro da Comunidade Europeia [Confederation of European community Cigarette Munacturers (CECCM)], e como o lobbying dessas empresas os protegem de suas responsabilidades enquanto poluidores do meio ambiente. Apesar do silêncio da Comissão Europeia quanto ao relatório de Omarjee, o deputado romeno Cristian Busoi envolveu um grupo de ONGs relacionadas à saúde pública no debate de uma reforma geral quanto às políticas para os produtos derivados do tabaco no nível da EU. Sonja von Eichborn, diretora da Unfairtobacco, uma ONG anti-tabaco, salienta a necessidade de se manter atento sobre os fabricantes. "A indústria do tabaco é conhecida por suas táticas para minar as políticas de saúde pública, e eles vão fazer o mesmo com as políticas ambientais” (EICHBORN, 2019).

Dado o exposto, é fácil identificar que os Estados sentem diretamente o impacto das bitucas de cigarro como um resíduo altamente perigoso ao meio ambiente, à saúde humana e ao espaço urbano, procurando maneiras de reduzir seu impacto. Entretanto, por tratar-se de um resíduo que impacta principalmente em espaços transnacionais, como os oceanos e corpos d’água, transbordando a autonomia dos Estados, é mais difícil de coordenar uma política conjunta entre as diferentes autoridades legais em determinada região.

Sendo assim, percebemos que há um avanço maior em relação à gestão do resíduo pelos governos municipais e estaduais, com foco local, uma vez que estes são os responsáveis pela limpeza e, sobretudo a administração dos resíduos, mas também, por muitas vezes ser difícil de aplicar uma política a nível nacional ou supranacional quando existem conflitos de interesses com outros atores do tema, em especial quando relacionados a temas econômicos, dificultando a coordenação um projeto de responsabilização às empresas tabagistas pelos resíduos derivados do tabaco.

Portanto, apesar de as bitucas serem consideradas como irrelevantes pela cultura global em geral, alguns movimentos da sociedade civil, ONGs e empresas começaram a alertar de seus perigos e pressionar algumas posturas das empresas tabagistas, Estados e instituições internacionais para evitar maiores impactos socioambientais como os abordados acima.

4. UM PROBLEMA TRANSNACIONAL

Para entendermos as bitucas de cigarro como um problema transnacional é fundamental explorarmos como elas transpassam a territorialidade e soberania dos Estados, impactando o meio ambiente e populações que não necessariamente se restringem a um determinado território ou governo.

Apesar de o Estado ser considerado um ator central na definição de políticas ambientais – por sua capacidade de articulação e implementação normativa - os problemas ambientais vem confrontando sua conceituação clássica e nosso entendimento sobre soberania, além de buscarem novas formas de propor e coordenar respostas aos seus impactos por meio de uma governança coletiva a fim de mitiga-los. No cerne da questão estão as limitações do Estado per se, como um ator fundamental para entregar políticas ambientais, enquanto do outro lado vigora a

transnacionalidade das mudanças ambientais globais. “O Estado – sua autonomia, capacidade e legitimidade – está sendo desafiado, pela própria natureza dos problemas ambientais o qual não respeita limites territoriais” (ELLIOTT, 2004. In:. HARRIS, 2014).

A ideia de Estado é fundamentada em uma entidade político-legal, soberana e normativa sobre um determinado povo e território. Entretanto, quando tratamos de fronteiras, nações, soberania e Sistema Internacional (SI), abordamos tipos ideais que não refletem as verdadeiras dinâmicas dos espaços e dos povos, assim como a interdependência dos ecossistemas que transpassam as barreiras dos Estados.

A atual estrutura do SI reside na independência e autonomia dos Estados na definição de suas políticas e normas. Entretanto, quando confrontados com a transnacionalidade dos problemas ambientais – que exige uma administração coletiva pela causa – coloca-se em xeque a soberania e autonomia dos Estados em definir as políticas ambientais dentro de suas fronteiras legais, por meio da submissão desses às instituições e normas internacionais que reflitam o propósito da responsabilidade ambiental compartilhada.

Por outro lado, quando analisamos os Estados além da ótica realista clássica, ou seja, admitindo os diferentes atores que participam na definição de políticas, perceberemos maior complexidade ao imputarmos a submissão a uma normatividade supranacional, uma vez que, possivelmente existam resistências dentro dos Estados pelo setor privado, ONGs e a própria Sociedade Civil. Um bom exemplo recente foi o surgimento do movimento Gilets Jaunes na França em 2018 contestando as decisões das negociações ambientais da COP24. “O Estado se mantém como uma fonte de identidade humana, e é um meio significativo de expressão política, que dá respaldo à soberania nacional quanto a sua credibilidade moral” (DYER, 2014 In:. HARRIS, 2014). Se os Estados democráticos estão sujeitos à opinião pública e demanda popular, no lugar de uma iniciativa exclusiva governamental, não podemos ignorar a importância da opinião pública na criação e definição de políticas estatais para o meio ambiente, assim como o papel da opinião pública na definição dessas políticas a nível global.

Deste modo, a partir da governança ambiental coletiva, entende-se que existem responsabilidades compartilhadas. Os Estados ainda podem apresentar resistência a algumas mudanças e perda de sua autoridade, mas é inegável o papel influente e decisivo que outros atores não governamentais têm na governança ambiental global, como abordaremos nos próximos capítulos.

Portanto, entendendo que as bitucas de cigarro são protagonistas de um problema socioambiental que transpassa a soberania dos Estados, mas também não se encontrando em um espaço internacional, vale explorar a problemática como um fenômeno transnacional.

Primeiramente, devemos destacar que o espaço transnacional não é um nível como quando tratamos dos níveis de sujeito, Estado ou Sistema Internacional, por exemplo. “O transnacional é um fenômeno que se estende através, e conecta assim como transcende diferentes níveis” (APELDOORN, 2004). Ou seja, o transnacional inclui Estados, supra Estados, sub Estados, em uma concepção de múltiplos níveis que também pode acomodar fenômenos não territoriais. Ou seja, devemos entender que não existe um local específico onde ocorre o transnacional. Ele ocorre em diversos contextos nacionais simultaneamente.

Ademais, quando analisamos o caso das bitucas de cigarro, além de nos depararmos com seus impactos socioambientais, que se refletem fisicamente a nível local, encontramos também impactos político-econômicos, uma vez que gera influência direta na economia dos países, como já abordamos, mas também para os consumidores e empresas tabagistas, que movem uma gigante economia pelo mundo. Não devemos ignorar também a ligação direta da economia do tabaco com o forte poder de lobbying das empresas tabagistas, que desde sua origem, mesmo que de forma discreta, vem trabalhando próximo dos Estados, para se manter no mercado e desviar os discursos antitabagista provenientes da sociedade civil.

4.1. Governança global

Uma vez que temos claro o caráter transnacional da temática ambiental, ou seja, ultrapassam as barreias dos Estados e interdepende de atores não estatais, podemos definir como pertencentes a uma governança global, que, segundo Keohane e Nye, “é um estado mundial envolvendo teias de interdependência a distâncias multicontinentais. [...] Essas teias podem ser ligadas através de fluxos e influências de bens de capital, informação e ideias, pessoas e poder, assim como substancias relevantes ao meio ambiente e à biologia” (KEOHANE; NYE, 2001).

Para tal, faz-se necessário a criação de instituições e processos capacitados a guiar e restringir atividades de cunho coletivas de um grupo, buscando resolver dilemas coletivos com abordagem global. Essas instituições e processos da governança global podem ser organizadas tanto por iniciativas privadas quanto por Estados soberanos (KEOHANE; NYE, 2001). Ou seja, a governança não necessariamente é conduzida exclusivamente por governos e pelas Organizações Internacionais (OIs) as quais delega autoridade. Firmas privadas, associações de firmas, organizações não governamentais (ONGs) e associações de ONGs são todos engajados, frequentemente em associação com organismos governamentais, para criar governança, às vezes sem autoridade governamental (KEOHANE; NYE, 2001).

A governança global gira em torno da ideia de bens comuns, bens que são de uso comum entre os atores, sendo não rivais e não exclusivos, e considerando as suas externalidades, acredita-se que estes podem ser mais bem administrados em acordos de cooperação, ou seja, através da atuação política (BUCK, 1998).

Tendo em vista as próprias dificuldades de coordenação geradas pela governança global, Keohane e Nye, a compreendem como “[...] os processos e instituições, tanto formais como informais, que guiam e restringem as atividades coletivas de um grupo” (KEOHANE; NYE, 2001). Ademais, Uma questão central que Karns, Mingst e Stiles vão destacar é que, “uma das principais dificuldades nas políticas da governança global reside em quem participa dos processos decisivos, que vozes são escutadas, quem é excluído e a qual preço e que interesses algumas instituições privilegiam” (KARNS; MINGST; STILES, 2015, p. 35). Dessa forma, no âmbito internacional existe maior complexidade dos processos de construção de normas e princípios para a governança global que serão compromissadas entre os atores.

Segundo um pronunciamento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em 2009 “A boa governança ambiental leva em conta o papel de todos os intervenientes que impactam o meio ambiente. Dos governos para as ONGs, o setor privado e a sociedade civil, a cooperação é fundamental para alcançar uma governança eficaz que possa nos ajudar a avançar no sentido de um futuro mais sustentável”. (PNUMA, 2009). Todavia, ainda é muito difícil para as instituições internacionais e outros regimes superarem os interesses particulares dos Estados a fim de que esses cooperem na manutenção de regimes e instituições ambientais internacionais.

Outro ponto a destacar é o papel das Organizações Intergovernamentais (IGOs), que são organizações de três ou mais estados em sua estrutura, que tem atividades em diversos Estados, e que foram criadas através de um acordo formal intergovernamental, como um tratado ou estatuto (KARNS; MINGST; STILES, 2015). As IGOs desenvolvem um papel importante na governança global, no que concerne a coordenação de cooperações entre Estados e na criação e fortificação de normas e princípios internacionais. Segundo a perspectiva neoliberal, “as IGOs são criadas por Estados de forma a reduzir os custos de transações com a cooperação internacional, coordenando encontros, coletando informações, realizando operações diárias, e criando mecanismos que garantam a transparência e accountability” (O’NEIL, 2014).

Dentre as IGOs podemos destacar o PNUMA como uma das principais na temática ambiental, criada em 1972 na conferência de Estocolmo sobre o Homem e Meio Ambiente. A conferência surgiu no intuito de aproximar os Estados e discutir a implementação de um sistema legal coordenado para abordar temas ambientais transnacionais. Também foi responsável pela criação do relatório ‘Os Limites do Crescimento’, que popularizou, de maneira nunca antes pensada, a questão ambiental.

Apesar de o PNUMA ser o principal espaço internacional para tratar a temática ambiental, por ser um programa subsidiário da Assembleia Geral da ONU, ele possui uma série de limitações institucionais que levam a sua ineficiência em definir políticas ambientais. Muitos estudiosos consideram que um dos principais fatores também para sua ineficácia é a falta de apoio entre seus Estados membros, em especial pelos Estados Unidos, (IVANOVA, 2010). Segundo Ana Flávia Araujo de Abreu, et AL:

Os Estados determinaram o design do PNUMA, que foi constituído como um programa, ao invés de uma agência especializada para evitar competição com outros órgãos das Nações Unidas, o que incapacita sua ação sobre as outras agências autônomas da ONU, uma vez que não possui autoridade formal sobre elas. Isto porque, na hierarquia estabelecida pela ONU, os programas têm menor independência e autoridade, porque eles são órgãos auxiliares da Assembleia Geral, enquanto agências especializadas, por outro lado, são organizações intergovernamentais autônomas e possuem autoridade universal independentes do Secretariado e da Assembleia Geral da ONU.

Apesar de ser uma organização falha, com um formato ineficaz politicamente e financeiramente, ainda é a principal organização internacional para o meio ambiente e teve sucesso ao criar normas, padrões e políticas internacionais, catalisar ações ambientais e coordenar atividades ambientais. Podemos destacar seu sucesso na criação de acordos internacionais como a Convenção de Viena, de Montreal, de Basel, de Rotterdam, de Estocolmo, entre outras, que abordaram temas como a proteção da camada de ozônio, regulamentação do comércio internacional e ao controle de químicos perigosos. Também não podemos ignorar seu papel de monitoramento e acesso aos Estados, como o incentivo da criação de ministérios ambientais dentro dos Estados e na ratificação de acordos ambientais multilaterais (IVANOVA, 2010).

Ainda que seja a principal organização internacional para o Meio Ambiente, muito pouco foi discutido em relação às bitucas de cigarro. Em seus poucos relatórios que abordam o resíduo, eles reconhecem que a bituca é um dos resíduos mais descartados no mundo e extremamente tóxico, porém não foi proposta qualquer política a fim de reverter ou minimizar os seus impactos (UNEP, 2015).

Outra forma de organização que vem ganhando a atenção dos analistas políticos são as IGOs regionais, para a governança ambiental regional. São caracterizadas por tratarem de problemas ambientais transnacionais, mas que afetam uma região específica. Geralmente são formadas baseando-se em ecossistemas ou corpos d’águas compartilhados (BALSIGER; VANDEVEER, 2012. In:. Harris, 2014). O rápido crescimento dessa forma de organização a partir da década de 1980 não é surpreendente, uma vez que temas ambientais ganharam maior visibilidade pelos Estados, e que a efetividade de políticas ambientais transnacionais possa ser maior se endereçada a pequenos grupos de atores que compartilham características comuns, que posam se mobilizar coletivamente (CONCA, 2012. In:. Harris, 2014).

Dentre as IGOs regionais, podemos destacar o Plano de Ação para o Mediterrâneo do PNUMA (PNUMA/MAP), o primeiro programa marítimo regional do PNUMA, incluindo 21 países que contornam a região, reunidos para prevenir e diminuir a poluição proveniente de navios, aviões e fontes terrestres no Mar Mediterrâneo. Foi fundado pela Convenção de Barcelona em 1975, e seu objetivo é de proteger a vida marinha e costeira da região, assim como implementar planos nacionais e regionais para o desenvolvimento sustentável.

Esse plano de ação gerou um dos relatórios do PNUMA que mais destacam o impacto ambiental das bitucas de cigarro em especial sobre a poluição no Mar Mediterrâneo publicado em 2015, graças ao empenho e cooperação com a Comissão Europeia que nos últimos anos vem trazendo destaque à questão dos resíduos nos oceanos e ressaltando o impacto das bitucas de cigarro como principal poluente.

O relatório salienta que a bituca de cigarro representa 47% de todos os resíduos encontrados nas praias da região mediterrânea, e que seu impacto é agravado nessa região em comparação com outras áreas costeiras do mundo principalmente pelas atividades recreativas, necessitando de uma estratégia regional para a gestão específica desse resíduo (UNEP/MAP, 2015).

Diferentemente do PNUMA, um programa da ONU, a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma agência da ONU criada em 1948, tem relatórios bem mais desenvolvidos em relação à problemática das bitucas que transbordam as análises exclusivas ambientais, para também seus impactos sociais e à saúde humana.

Para discutir sobre o consumo de tabaco, a OMS criou a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (FCTC), a qual, em sua COP 8 foi muito discutido a problemática das bitucas de cigarro e elaborado um relatório sobre o impacto socioambiental do ciclo de vida do tabaco, no qual foram agrupados dados técnicos e estratégias para evitar e mitigar esse impacto, bem como recomendar políticas e orientações práticas que beneficiem a saúde pública e o meio-ambiente (WHO, 2017).

O relatório problematiza desde o processo de cultivo e cura das folhas do tabaco, abrangendo a utilização da terra, desmatamento e seus impactos sociais, a produção e distribuição do produto, seu consumo, até os resíduos pós consumo, calculando todos os custos econômicos, sociais e ambientais gerados pelo ciclo de vida do tabaco, seja pelas mudanças climáticas, a utilização da terra, ou mesmo seus impactos socioeconômicos. Por fim, o relatório também propõe alguns modelos de responsabilidade corporativa para as indústrias tabagistas, que abordaremos mais adiante.

Portanto, fica evidente que, nos recentes anos, a problemática das bitucas de cigarro ganhou destaque em grandes fóruns internacionais para ser discutida como um problema transnacional que requer uma resposta rápida dos Estados e das Indústrias tabagistas. Esses debates surgiram graças à pressão de recentes movimentos da sociedade civil, empresas e ONGs que trouxeram ênfase para as bitucas de cigarro como um grande poluidor que por muito tempo foi ignorado.

5. A INDÚSTRIA TABAGISTA

As indústrias tabagistas, de uma forma geral, sempre procuraram se eximir da responsabilidade quanto aos resíduos derivados do consumo do tabaco, transferindo a responsabilidade para o consumidor e o Estado. Entretanto, devido a fortes pressões durante a década de 1990, quando debates ambientais ganharam força internacionalmente, as indústrias e acadêmicos ambientalistas desenvolveram alguns estudos sobre a viabilidade da substituição das bitucas de cigarro, ou de alguma outra forma de suavizar seus impactos ambientais.

Um estudo da Philip Morris USA de 1992 reconhece o filtro do cigarro como constituído por acetato de celulose, um polímero não biodegradável. Nesse mesmo documento

, ainda ressalvam que estavam cooperando com a Eastman Chemical Products Company and Celanese Fibers Company no desenvolvimento de um método para a degradabilidade do acetato de celulose (MORRIS, 1992. In: BARNES, et al, 2009).

Outras alternativas ao acetato de celulose também foram procuradas por Brown & Willians Tobacco Company – uma empresa membro da British American Tobacco (BAT) que lidera o mercado global do tabaco, detentora das marcas Lucky Strike, Dunhill e Kent – e pela R. J. Reynolds Tobacco Company (RJR) – segunda maior empresa tabagista, detentora das marcas Camel, Winston e Salem – que em 1996 apresentaram cinco protótipos de filtro em testes. Entretanto, estes filtros foram rejeitados pelos fumantes: “todos os modelos apresentavam sabor artificial, menos aroma de tabaco, (...) e mais sensação de secura”. (DUBE,1996. In: BARNES, et al, 2009).

No início da década de 1990 as companhias tabagistas coordenaram uma força tarefa em pesquisa para a degradabilidade de seus filtros, formando a CORESTA (Cooperation Centre for Scientific Research Relative to Tobacco), uma organização internacional de pesquisa da indústria do tabaco. Segundo um estudo de Novotny sobre os relatórios da CORESTA, se um filtro biodegradável fosse vendável essas companhias já teriam lucrado muito pelo marketing positivo gerado pelo fumo “ecologicamente correto” (NOVOTNY; SMITH, 2009). Entretanto, o relatório final da força tarefa definiu que o seu objetivo “era mais difícil pelo fato que a maioria dos trabalhos disponíveis se empenhavam em procurar estabilidade e não degradabilidade, e eram aplicados a produtos de um único componente, e não sistemas compostos de diferentes tipos de materiais” (DEUTSCH,1999. In: BARNES, et al, 2009). A força tarefa foi abandonada em 2000 depois que CORESTA concluiu que “não era provável que o nível de interesse pudesse justificar a escala do esforço” (DEUTSCH,1999. In: BARNES, et al, 2009), que requereria muitos mais dados e desenvolvimento de instrumentação para estabelecer um teste padrão para a degradação de filtros de cigarro (NOVOTNY; SMITH, 2009).

Em 2000, a Philip Morris realizou uma pesquisa com os consumidores sobre seus resíduos provenientes do consumo do tabaco, e encontraram que a problemática dos resíduos não era uma preocupação central para os fumantes, que existe um comportamento ritualizado quanto ao descarte da bituca e que “adultos que escolhem fumar precisam de alternativas convenientes para o descarte da bituca” (MORRIS, 2001. In: BARNES, et al, 2009). Como resultado desta pesquisa, a Philip Morris propôs a distribuição de bituqueiras de bolso, bituqueiras fixas, assim como a comunicação direta com os fumantes para encoraja-los a descartar suas bitucas de maneira ambientalmente responsável. Da mesma forma, a Philip Morris se tornou um dos maiores apoiadores da campanha Keep America Beautifil Campaingn (KAB, uma ONG), que trabalha na conscientização individual sobre a responsabilidade com o descarte correto da bituca, assim como de outros resíduos. Os esforços da KAB se apoiam na educação pública e na crescente disponibilidade de bituqueiras, incluindo os de bolso, mas esses projetos só são possíveis graças ao apoio de grandes empresas. Em 1992 a RJR também foi um grande apoiador desse mesmo movimento, sob a fachada do projeto “Don’t Leave Your Butt On The Beach”. Na ótica das empresas tabagistas, investir nessas campanhas é uma forma de promover um marketing positivo, criando uma imagem de empresa com preocupação socioambiental. Isso mostra que de certa forma a empresa ainda tenta transferir a responsabilidade dos resíduos provenientes do consumo de seus produtos para o consumidor.

Em um encontro internacional da Philip Morris onde discutiam o “Project Natural” em 1990, a questão da degradabilidade do filtro foi posta em pauta e o apresentador disse: “para prevenir este problema, a solução mais simples seria eliminar o filtro! Mas isso com certeza desviaria a preferência dos consumidores e dificultaria o controle do alcatrão e o nível de nicotina” (MORRIS, 1990. In: BARNES, et al, 2009).).

Em 2006, a RJR em um encontro sobre o tabaco pronunciou uma mensagem final: “Nossa opinião é que o presente estado de arte na tecnologia de materiais ainda não produziu um produto que é comercialmente viável. Enquanto alguns materiais degradáveis foram identificados, eles são inaplicáveis devido ao sabor pobre, curta validade e instabilidade física durante o fumo, produção e/ou variabilidade material. A companhia continua olhando todas as soluções tecnológicas para a biodegradabilidade” (REYNOLDS, 2006. In: BARNES, et al, 2009).).

Existem evidências de diversas formas que as empresas tabagistas tentaram amenizar os impactos causados pelos resíduos derivados do consumo do tabaco. Desde avisos de perigo em seus maços, a programas de reciclagem do filtro, ou mesmo encorajar novas leis sobre o resíduo (NBC, 2018). Entretanto, segundo alguns estudos, nos quais Novotny foi coautor, mostram que existe outro problema que os projetos iniciais não haviam previsto: A maioria dos fumantes prefere jogar suas bitucas. “Seus esforços – campanhas sobre o descarte e bituqueiras portáteis – não afetaram os fumantes substancialmente quanto ao comportamento de jogar a bituca no chão” afirma Novotny (NOVOTNY e SMITH, 2009).

Uma pesquisa da RJR mostra que os fumantes detestam ver os resíduos do cigarro. Também acham as bitucas repugnantes quando descartadas em cinzeiros ou bituqueiras de bolso, comentando que “um cinzeiro cheio de bitucas é nojento”. Também preferem não descarta-los dentro de seus carros. (REYNOLDS, 1993. In: BARNES, et al, 2009).).

Muitos fumantes relatam se sentirem culpados por fumarem e queriam se livrar do resíduo o quanto antes, e consequentemente não se davam ao trabalho de procurar uma lixeira. Na mesma linha, muitos fumantes alegaram que jogar bituca é tão comum por todo o mundo que é quase aceitável. Não obstante, tanto fumantes quanto não fumantes concordaram que jogar bituca é mais aceitável do que jogar uma lata ou garrafa. Alguns fumantes achavam que eles tinham permissão pra jogar na rua, porque as bitucas não eram vistas como uma causa significante para danificar o meio ambiente. (MORRIS, 2001. In: BARNES, et al, 2009).)

De toda forma, a indústria tabagista ainda demonstra alguns esforços na procura de soluções biodegradáveis da bituca. Um estudo da RJR junto aos consumidores propõe a criação de filtros comestíveis feitos de doce de menta, bolacha, papel ou mesmo serragem: “fazer com que trabalhe com a natureza no lugar de ir contra ela” (SMITH e NOVOTNY, 2011). Mas ainda há uma grande resistência dos fumantes quanto a esses novos protótipos. “Apesar de os fumantes se mostrarem desconfortáveis com as bitucas nos seus quintais e nos seus cinzeiros, eles não aparentavam preocupação com elas no chão, lixões ou rios” (NOVOTNY e SMITH, 2009). Em contrapartida, segundo Mervyn Witherspoon, químico britânico que já trabalhou em uma das maiores indústrias de filtros de acetato, disse que o foco das industrias em achar um filtro biodegradável “foi e voltou, porque nunca houve pressão para se fazer isso.” (...) “Nós trabalharíamos nisso e encontraríamos alguma solução, mas a indústria encontraria alguma coisa mais interessante para se preocupar e isso iria ser arquivado novamente”. Eles se encontram confortáveis com a atual condição até que lhes seja cobrada uma mudança.

6. MOVIMENTOS DA SOCIEDADE CIVIL

Diferentes movimentos da sociedade civil – movimentos sociais, ONGs e indivíduos – atuam em torno da problemática das bitucas de cigarro de maneira coordenada com diferentes Estados e OIs, criando redes transnacionais de advocacy. Segundo Keck e Sikkink são redes que “incluem os atores relevantes que trabalham internacionalmente em um problema, conectados por valores compartilhados, discurso comum, e densos compartilhamentos de informação e serviços” (KECK; SIKKINK,1998).

Por sua vez, os atores sem fins lucrativos que participam das redes transnacionais de advocacy, geralmente são atores com baixa representatividade em seu país de origem (STEINBER; GARCIA-JOHNSON, 2001. In:. HARRIS, 2014).

Seus impactos na governança são possíveis por meio de boas conexões com outros movimentos sociais, OIs e instituições do Estado, que podem mobilizar seus ideais nos discursos nacionais e internacionais (VANDEVEER; STEINBERG, 2014. In:. HARRIS, 2014). Segundo Paul Wapner (1995), a melhor maneira de pensar nos ativistas transnacionais é por meio do conceito de políticas civis globais, a partir das quais ativistas, por meio da constante troca de informações, atuam para mudar as condições sem necessariamente terem que persuadir os Estados diretamente (WAPNER, 2015).

Robert Cox já debatia sobre o novo papel da sociedade civil no mundo contemporâneo, como um agente transformador e emancipatório nos dias atuais, substituindo o antigo modelo revolucionário. Essa percepção de atuação organizada e politizada da sociedade civil com contornos globais é fundamental para compreender as redes transnacionais e seu papel na busca por representatividade das demandas populares frente às divergências com a classe política dos Estados (COX, 1999). Por meio da conexão desses diferentes atores, eles multiplicam as oportunidades para diálogos e trocas, mudando a prática da soberania nacional para a governança ambiental e social.

Apesar de os movimentos em torno das bitucas de cigarro ainda se apresentarem tímidos e com recente projeção, já podemos identificar diversos atores da sociedade civil que, se valendo das facilidades da internet e a rápida disseminação pelas mídias sociais, estão se movimentando a fim de propor soluções conjuntas ao resíduo, pressionando mudanças aos governos por novas políticas públicas para as bitucas, assim como uma resposta responsável das indústrias tabagistas.

7. Movimentos sociais e ONGs

Um dos maiores movimentos sociais em relação às bitucas de cigarro é o Leo Not Happy, um movimento que surgiu em 2016 em Bruxelas, na Bélgica, visando chamar a atenção de Leonardo DiCaprio – além de ator, um ambientalista – coordenando coletas populares de bitucas de cigarro, assim como de outros resíduos por diversas cidades do país, promovendo a conscientização sobre os perigos das bitucas, bem como provendo bituqueiras de bolso que, por sua vez, são financiados pelo Ministério do Meio Ambiente da região de Bruxelas.

Figura 1: 270.000 bitucas coletadas em Bruxelas em 2019 por 240 voluntários em menos de três horas.
Figura 1: 270.000 bitucas coletadas em Bruxelas em 2019 por 240 voluntários em menos de três horas.

Fonte: Emile Akiko, 2019.

O movimento possui parceria com outros movimentos sociais, empresas, eventos locais, e ONGs relacionadas à problemática dos resíduos, coordenando eventos conjuntos, soluções para o descarte dos resíduos e rodas de conversas para discutir a questão. Alguns exemplos de ONGs parceiras são a Zero Waste, Greenpeace e Sea Shepherd que possuem atuação em diversos países e começaram a chamar a atenção para as bitucas de cigarro. Dentre os principais fóruns públicos que participaram podemos citar o AVPU na França e o Wallonie na Bélgica que tratam sobre a limpeza urbana em coordenação com líderes de governos e do setor empresarial.

O movimento tem um bom relacionamento com o governo que se demonstrou solícito em cooperar com a causa visando principalmente a limpeza das cidades. Em uma reunião com a Ministra do Meio Ambiente, Céline Frémault e a Secretária de Estado da Região de Bruxelas, Fadila Lanaan, o movimento conseguiu que fossem instalados mil bituqueiras fixas em Bruxelas e direcionaram os custos às indústrias tabagistas. Da mesma forma, foi acordado um valor de €100.000,00 por ano, pagos pelas empresas tabagistas, para financiar a limpeza da cidade. As empresas tabagistas, por sua vez, se demonstraram solícitas em cooperar com o governo para a limpeza das ruas, mas não foi apresentaram nenhum projeto para a reciclagem do resíduo (SAEBI, 2019).

Outro grande movimento em parceria é o No Más Colillas En El Suelo, que surgiu em Barcelona em 2016, e desenvolveu seus próprios projetos locais em mais de 30 diferentes cidades, trazendo destaque para os de Maiorca, Poznânia, Bogotá, Cancun e Barcelona. O projeto também possui parceria com grandes ONGs como Greenpeace e WWF, que ajudam na estruturação dos eventos de limpeza coletiva, assim como a divulgação da causa. Mas o foco principal é chamar a atenção popular para a conscientização sobre o descarte das bitucas de cigarro, sobretudo mobilizando o público jovem, projetando-a como o resíduo mais descartado no mundo, e pressionando uma resposta responsável dos governos.

Figura 2 – Manifestação de jovens em Maiorca, em 2019, contra as bitucas de cigarro e alarmando sobre a mudança climática.

Fonte: Miquel Ginard, 2019.

No Brasil também existem movimentos que buscam soluções para as bitucas de cigarro como os movimentos Mundo Sem Bitucas (MSB) – com foco em educação ambiental, e limpeza coletiva – e o Não Existe Bituca em SP (NEBESP) – com foco em pesquisa para a reciclagem das bitucas de cigarro. Apesar de serem dois movimentos diferentes, o compartilhamento de informações fortifica a projeção e alcance dos movimentos sociais para desenvolver projetos cada vez maiores e estruturados, além de ter maior influência quando negociar com o Estado ou empresas na procura por novas políticas públicas para os resíduos derivados do tabaco.

O MSB surgiu em 2015 no Rio de Janeiro, focando na limpeza das praias em parceria com outros movimentos que focam principalmente na questão do plástico nos oceanos. São eles: ReciclaSurf, 100 Plástico, Route Brasil, Meu Copo Eco, entre outros. Ou seja, nas palavras de Natália Goettlicher, líder do movimento, “por mais que o foco inicial seja as bitucas de cigarro, acabamos falando bastante de outros tipos de resíduos e seus impactos, principalmente, os plásticos” (GOETTLICHER, 2019), formando redes para atingir o maior número de pessoas e transmitir a mensagem central de responsabilidade com os resíduos.

Natália é membro da Associação Brasileira dos Profissionais pelo Desenvolvimento Sustentável (ABRAPS) dentro do Comitê Lixo Zero, onde conseguiu se aproximar de líderes políticos e trazer relevância para a problemática das bitucas. Mas não há ainda indícios de mudanças decorrentes dessa proximidade com o setor governamental. Por outro lado, o movimento aproxima diferentes empresas que trabalham na gestão do resíduo, como a Poiato Recicla – empresa de reciclagem especializada em bitucas de cigarro – e a Bitukeiro Nosso – empresa de bituqueiras de bolso – para construir uma resposta conjunta de diferentes setores da sociedade civil para a gestão do resíduo.

7.1. Iniciativas empresariais para a gestão do resíduo

Diversas empresas atuam na procura por soluções às bitucas de cigarro, desde seu descarte, à sua reciclagem e disposição final. Apesar de receberem pouca atenção em estudos como participantes do processo de formulação de políticas públicas, abaixo listamos algumas empresas que de alguma maneira atuam de forma a minimizar ou erradicar o impacto das bitucas, além de pressionarem uma resposta dos Estados e empresas tabagistas para o resíduo.

Na busca de uma solução aos filtros plásticos, a Greenbutts, uma empresa americana, criou um filtro feito a partir de materiais naturais, como cânhamo e algodão, que rapidamente se degradam e evitaria, portanto, a fragmentação dos filtros convencionais em micro plásticos tóxicos, que se disseminam pelo meio ambiente e consequentemente, afetaria a saúde humana. O CEO Tadas Lisauskas afirma que seu produto está pronto para o mercado e pode ser entregue por um preço acessível se produzido em grande escala. Mas o seu maior objetivo no momento é firmar uma parceria com o governo para que incentivem o uso de seu produto ou mesmo o torne mandatório para a indústria tabagista (LISAUSKAS, 2019). Por outro lado, o fato de ser um produto biodegradável não o exime de liberar as toxinas retidas do tabaco no meio ambiente, o que o torna uma solução parcial às bitucas tradicionais.

Já a Brain Garden, uma empresa canadense, sediada em Vernon, produz bituqueiras de bolso personalizadas, e desenvolve conjuntamente um programa de educação ambiental tanto para o descarte correto do resíduo quanto para a prevenção de acidentes. O projeto iniciou com foco em distribuir bituqueiras de bolso para os fumantes em festivais de música, como Shambhala e Lightning in a Bottle, mas logo outras empresas, movimentos e governos se interessaram pelo produto, e hoje o CEO Jack Elliman, possui parceria em mais de 15 diferentes países, vendendo, em 2018, mais de 150.000 unidades, com projeção de dobrar este número em 2019.

Com os altos custos para a limpeza das bitucas de cigarro e também a fim de evitar incêndios espontâneos, diversas prefeituras no Canadá e nos Estados Unidos se interessaram em distribuir bituqueiras de bolso em parceria com parques e eventos com grande circulação pública. Elliman afirma que o bom relacionamento com os governos é uma de suas prioridades no projeto e “fundamental para encontrar uma solução às bitucas de cigarro e pressionar uma resposta responsável das indústrias (tabagistas)” (ELLIMAN, 2019).

Em 2019 a Brain Garden iniciou uma parceria com a Terracycle – líder global em soluções para resíduos de difícil reciclabilidade – em uma campanha conjunta para incentivar o descarte consciente e consequente reciclagem das bitucas de cigarro.

A Terracycle iniciou em 2012, em Vancouver seu projeto piloto de reciclagem de bitucas de cigarro, transformando-as em placas de plástico rígido, que futuramente se transformarão em outros objetos de utilidade comum no dia a dia como bancos de praças, ou mesmo novas lixeiras. Hoje o programa de reciclagem de bitucas de cigarro se desenvolveu também para a Alemanha, Austrália, Estados Unidos, França, Japão e Reino Unido. Além de firmar parceria com as prefeituras locais para a instalação de lixeiras em locais de grande circulação, a empresa recebe os resíduos pelo correio sem custo adicional ao público, uma vez que todo o custo operacional, desde a coleta, até a transformação em novo produto, é custeado pelas empresas parceiras. No caso das bitucas de cigarro, o programa de reciclagem é financiado pela Japan Tobacco International (JTI), um dos maiores produtores de cigarros do mundo, onde muitos argumentarão que essa parceria seria uma forma de greenwashing da indústria tabagista (ELLIMAN, 2019), entretanto, não se pode negar o modelo inovador da Terracycle em pressionar uma resposta das empresas a se responsabilizarem pelo custo operacional da gestão de seus resíduos, ou mesmo a forçar uma mudança no design de seus produtos, em troca de um marketing positivo para a marca.

Outra empresa orientada para a reciclagem das bitucas de cigarro é a Poiato Recicla, sediada em Votorantim, no Brasil, que, junto com a Universidade de Brasília, foi pioneira no desenvolvimento de um processo de desintoxicação e reciclagem dos resíduos de cigarro, e em 2016 inaugurou a primeira usina de reciclagem de resíduos de cigarro do Brasil. A Poiato Recicla possui uma estrutura completa desde a captação do material em suas caixas coletoras, para o transporte, tratamento e destinação final do resíduo acompanhado de sua certificação pelos órgãos nacionais como CETESB e IBAMA, assim como pela certificação internacional ISO 14001.

As certificações ISO designam normas técnicas que estabelecem um modelo de gestão de qualidade a fim de melhorar a organização, produtividade e credibilidade, por meio de vantagens competitivas e melhoria contínua que refletirão no mercado, mudando a demanda por produtos e serviços certificados, que, por sua vez, se estenderão por toda a cadeia produtiva. É outra forma de pressionar padrões ambientais ou sociais responsáveis às empresas através da prática do mercado, mas que ainda é muito flexível e abrangente, principalmente se formos considerar para um resíduo de alta periculosidade, como já abordado, como as bitucas de cigarro.

Além da preocupação com as certificações, a Poiato Recicla também realiza palestras e workshops para discutir o impacto dos resíduos no meio ambiente, assim como estimular novas formas de reciclagem e reaproveitamento dos resíduos por meio de programas de reeducação ambiental.

Após analisar como alguns dos principais movimentos da sociedade civil e outras empresas se organizam em torno da problemática das bitucas de cigarro, nota-se que, cada vez mais, a conscientização sobre os impactos desse resíduo ganha capilaridade pela sociedade civil, que já demanda uma nova postura dos governos e das empresas tabagistas.

Consequentemente, esses atores organizados em redes conseguem ter maior poder de influência na governança sobre o resíduo e na formulação e implementação de normas para o mesmo. Novotny acredita que, a coordenação de diferentes movimentos da sociedade civil, incluindo alguns com maior prestígio como a Ocean Conservancy e o Greenpeace, em torno da causa das bitucas, aliado a outros movimentos da área da saúde, como a American Cancer Society, poderiam acelerar a formulação de políticas e mudanças para a gestão do resíduo. Entretanto, os grupos ambientais ainda seguem quase que exclusivamente no debate em questão. (NOVOTNY, 2018).

8. RESPONSABILIDADE CORPORATIVA

Após entender a complexidade dos atores envolvidos na questão das bitucas de cigarro, existem algumas formas de transferir a responsabilidade sobre o resíduo

  • que hoje é destinada aos consumidores e o Estado – para as empresas tabagistas. Nesse trabalho estudaremos duas principais formas de responsabilização, Extended Producer Responsability e Product Stewardship, que foram, inclusive, sugeridas pela OMS (2017), assim como alguns exemplos de soluções de responsabilização que já foram aplicados a outros resíduos com problemas semelhantes aos das bitucas de cigarro.

8.1. Extended Producer Responsability (EPR)

O conceito de Extended Procucer Responsability (EPR) foi originado durante a década de 1990 por Thomas Lindhqvist para o Ministério do Meio ambiente da Suécia, de maneira a transferir completamente a responsabilidade sobre a administração dos resíduos para os produtores. Lindhqvist vai definir o conceito de EPR como “uma estratégia política de proteção ambiental para alcançar um objetivo ambiental da redução do impacto total ambiental causado por um produto, por meio da responsabilização do produtor do produto em questão pelo ciclo de vida completo do produto e especialmente pela coleta, reciclagem, e disposição final do produto” (LINDHQVIST, 2000).

Ou seja, através desse princípio ele propõe a transferência dos custos ambientais de coleta, transporte de produto tóxico, tratamento do  resíduo, disposição final do produto e conscientização ambiental – que hoje recaem sobre os governos, indivíduos e pagadores de impostos – para os produtores, que por sua vez, internalizarão esses custos no valor de venda de seus produtos, e reconsiderarão os impactos ambientais no design de seus produtos.

Esse modelo de EPR já teve sucesso em mais de vinte estados norte americanos, com embasamento legal e mecanismos de multa obrigando os produtores de produtos tóxicos ou com alto potencial de impacto ambiental a se responsabilizarem pelo ciclo de vida completo desses produtos em questão. Foram casos de sucesso com tintas, baterias, embalagens de bebidas, embalagens de pesticidas, eletrônicos, embalagens, celulares, laminas, carpetes, luzes fluorescentes, termômetros de mercúrio, equipamentos radioativos, motores de combustão, sacolas plásticas, filme fotográfico e detectores de fumaça, por exemplo. Entretanto, até o momento presente esse modelo não foi considerado a nível federal nos Estado Unidos, sendo implementados individualmente por cada estado e para cada produto.

EPR também foi aplicado em outros países como Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Suécia, Noruega, e incorporado na política ambiental da União Europeia em 2002 e no Brasil em 2010 através da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), mas tanto na EU quanto no Brasil, a política de responsabilização encontra baixa aplicabilidade, pois são aplicados a uma alta gama de produtos, requerendo mandatos diretos e específicos às indústrias quanto a utilização de certos materiais ou químicos para que possam ser substituídos no design dos produtos (BARNES, 2011).

Um desafio a esse modelo de responsabilização para o problema das bitucas é que um de seus princípios é baseado na reconsideração do design do produto para evitar impactos ambientais. Entretanto, quando abordamos os produtos derivados do tabaco, existe uma limitação, uma vez que esses produtos contém substâncias químicas que estão no topo da cadeia de toxidade segundo a Agencia para o Registro de Substâncias Tóxicas e Doenças (ATSDR), como uma das substâncias mais perigosas e com maior potencial cancerígeno. Essas mesmas substâncias também estão presentes na Proposta do Estado da Califórnia de 65 químicos reconhecidos como causadores de câncer que tem prioridade em serem tratados pela agência ambiental do estado. Os resíduos derivados do tabaco continuarão presentes nesta lista não importa como o produto ou o filtro sejam modificados (CURTIS, 2014).

8.2. Product Stewardship (PS)

Também na década de 1990, foi sugerida a ideia de responsabilidade compartilhada, e que esta poderia também ser aplicada à responsabilização sobre o ciclo de vida dos produtos. Diferentemente do EPR, o modelo de Product Stewardship (PS) propõe a inclusão de outros atores participantes no ciclo de distribuição do produto como responsáveis pelo ciclo de vida do mesmo. Mas de forma semelhante, também prevê a transferência dos custos ambientais dos resíduos, que recaiam exclusivamente sobre o governo e pagadores de impostos, para as indústrias, e agora também os distribuidores, revendedores e consumidores. Clifton Curtis sugere que esta proposta de compartilhamento de responsabilidade foi introduzida pelas indústrias como uma forma de diluir os custos e responsabilidades anteriormente propostos pelo modelo EPR focados no produtor, para também os distribuidores, revendedores e consumidores (CURTIS, 2014).

Dessa maneira, o modelo de PS seria fundamentado em maior vontade voluntária por parte de outros atores, demandando maior sincronia entre as partes, para que seu resultado final seja alcançado de forma eficiente, diferentemente do modelo EPR que concentrava todos os custos e responsabilidades do processo em um único ator.

Até hoje a indústria tabagista se negou a qualquer tipo de responsabilidade quanto aos resíduos derivados do tabaco, transferindo quase que completamente todos os custos para o consumidor e governos. Em uma nota de 1998, a Philip Morris Companies, Inc descreveu sua posição quanto ao EPR:

“A Empresa se opõe ao conceito de responsabilidade do fabricante / produtor quando definido para significar que o fabricante / produtor deve aceitar a responsabilidade única e completa por um produto/embalagem ao longo de seu ciclo de vida. Especificamente, é a posição da Empresa que essas práticas de gerenciamento de resíduos criam um sistema altamente ineficiente devido ao fato de que a responsabilidade continua mesmo depois que o fabricante tenha perdido o controle sobre o produto e/ou embalagem. Em consonância com nossos Princípios Ambientais, nos comprometemos a fornecer aos consumidores informações apropriadas e úteis sobre o meio ambiente e seu papel, bem como das comunidades e negócios, para se tornarem parte de soluções ambientais, incluindo aquelas que afetam o gerenciamento de resíduos sólidos”.

Da mesma forma, em um pronunciamento, o diretor da BAT na França, Eric Sensi- Minautier, disse: “não é responsabilidade das companhias, fumantes ou cidadãos pagar, através de taxas adicionais, pelos custos relacionados à limpeza das bitucas de cigarro”. (CLERCQ, 2018).

8.3. Outros princípios que podem ser aplicados aos resíduos derivados do tabaco

8.3.1. Poluter Pays Principle

O Poluter Pays Principle (PPP) se resume na ideia de, como o próprio nome sugere, que o poluidor deve arcar com os custos de prevenção e controle de resíduos em moldes predefinidos por uma autoridade pública. O conceito foi primeiramente introduzido na OCDE na década de 1970, evoluindo para uma resolução de 1989 sobre poluição acidental em especial sobre os resíduos tóxicos. O princípio prevê proteção ambiental, desenvolvimento social e econômico, se valendo de instrumentos informativos e regulatórios para garantir que empresas e indivíduos poluentes arquem com os custos e responsabilidades socioambientais provenientes de suas atividades, refletidos no preço de seus produtos e serviços. Com o tempo o PPP foi de forma geral aceito como princípio de políticas e leis ambientais internacionais, talvez com aplicação avançada na EU, que deu maior atenção no mapeamento e responsabilização de fontes de poluição. Da mesma forma que o EPR, não há indícios que o PPP tenha sido aplicado para os produtos derivados do tabaco.

8.3.2. Princípio de Precaução

Outro princípio básico de ampla aplicação é o Princípio de Precaução, baseado no cuidado e prevenção de qualquer risco que um produto possa causar à saúde e ao meio ambiente. Por anos esse princípio vem alertando sobre algumas substâncias químicas tóxicas que, se não devidamente tratadas, são uma grave ameaça à saúde humana e ao meio ambiente. Desta forma, o princípio prevê medidas de antecipação e prevenção de riscos, mesmo quando a sua relação de causa e efeito não forem comprovadamente estabelecidas. Esse princípio se aplicaria perfeitamente ao caso das bitucas de cigarro, uma vez que já são conhecidos os perigos das toxinas presentes nos produtos derivados do tabaco, com potencial cancerígeno, classificando-os como uma grave ameaça à saúde humana e ambiental. Não obstante, uma política ad hoc para tratar os resíduos já descartados deveria ocorrer concomitantemente com o princípio acima descrito.

8.4. Políticas relacionadas a EPR/PS para prevenir, reduzir e mitigar o resíduos derivados do tabaco

Em um relatório sobre as possibilidades e meios de responsabilização das empresas tabagistas quantos os resíduos derivados do consumo do tabaco, Clifton Curtis (2014) sugere algumas políticas que poderiam ser tomadas a fim de minimizar os custos ambientais relacionados ao consumo de seus produtos. São algumas delas:

8.4.1. Leis e programas

Para conseguir alcançar as metas de prevenção, redução e mitigação dos produtos derivados do tabaco, podem ser criadas leis que estabeleçam quem são os atores responsáveis pelo tratamento dos resíduos derivados do tabaco, assim como na definição de taxas ou multas quanto ao descarte do produto. Da mesma forma, é importante a articulação conjunta de programas que estimulem a limpeza voluntária, ou mesmo que facilitem o descarte apropriado do resíduo. É essencial a criação de uma agência pública que regulamente e monitore o processo administrativo do resíduo, de forma a exigir transparência e acompanhar o processo, propondo melhorias contínuas.

8.4.2. Banir os filtros descartáveis

Assim como é feito para mitigar a utilização de latas de bebidas e garrafas PET, poderia ser proposta a utilização de filtros reutilizáveis, uma vez que é o item mais descartado no mundo, segundo a Ocean Conservancy, e tem um alto grau de toxidade.

8.4.3. Proibir o fumo em locais públicos

Diversos estados norte americanos já aplicam esse princípio, onde fumar é proibido em locais fechados, e determinadas áreas de circulação pública, como praias e parques. Vale destacar o empenho do estado de Nova Iorque que proíbe o fumo também em algumas praças e calçadas a fim de proteger sua população do fumo passivo.

Depois da aplicação das leis que proíbem o fumo em ambientes fechado, as bitucas de cigarro dominaram as vias públicas, onde, se em contato com a água das chuvas, é uma forte ameaça ao meio ambiente e à saúde, podendo facilmente ser levados para os rios e oceanos.

8.4.4. Descritivo nas embalagens dos produtos

Alguns produtos já possuem em sua embalagem algumas recomendações sobre o seu descarte, mas isso nunca foi aplicado aos produtos derivados  do tabaco. Além de perigos à saúde já advertidos em suas embalagens, deveria também ser alertado seu perigo ao ser descartado inapropriadamente.

8.4.5. Litigar a indústria do tabaco

Até hoje toda forma de contestação à indústria do tabaco foi com o foco nos custos à saúde. De forma semelhante, a indústria tabagista poderia responder processualmente pelos custos ambientais associados aos resíduos derivados do tabaco, assim como é recorrente a utilização de instrumentos legais para denunciar outras empresas que agridem o meio ambiente.

8.4.6. Multas pelo descarte irresponsável

Os custos e responsabilidade de limpeza e tratamento de resíduos recaem sobre os municípios. As autoridades locais poderiam aplicar impostos adicionais para a limpeza dos resíduos inapropriadamente descartados, e também multas para quem descartar inapropriadamente, a fim de amenizar os custos com limpeza, educação pública e administração do programa de gerenciamento de resíduos.

8.4.7. Impostos Avançados para a Reciclagem (ARF)

Os impostos avançados para a reciclagem (Advanced Recycling Fees) são taxas que podem estar inclusas no preço de venda do produto a fim de facilitar o gerenciamento do resíduo tendo a reciclagem como finalidade.

8.4.8. Pontos de coleta

De maneira similar com os programas recorrentes de troca e retorno de embalagens metálicas e plásticas, poderia ser realizado um programa semelhante em relação às bitucas, com pontos de coleta específicos, assim como o transporte devidamente seguro até o centro de tratamento e reciclagem.

8.4.9. Mudar as normas sociais

Mudar a percepção da sociedade quanto as bitucas que acreditam ser um resíduo inofensivo ao meio ambiente não é uma tarefa fácil. De maneira progressiva, o cigarro vem se tornando um item cada vez menos aceitável socialmente, assim como seu descarte indevido. Devemos reconhecer a externalidade do ato de descartar inapropriadamente os resíduos derivados do cigarro, que agridem não só ao meio ambiente, mas também todos os membros da sociedade, em especial as camadas mais pobres, se classificando como um problema de justiça social.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, é inegável o impacto negativo que as bitucas de cigarro causam ao meio ambiente e à sociedade, sendo um dos resíduos mais descartados no mundo, extremamente tóxico e o principal poluidor dos oceanos.

As empresas tabagistas tentaram e falharam diversas vezes em procurar uma alternativa às bitucas de cigarro e na prevenção de seu descarte incorreto. Como não houve pressão suficiente e falta de interesse por temas ambientais a partir dos anos 2000, o tema foi deixado de lado. Entretanto, novos movimentos da sociedade civil, recentemente, aliados a ONGs e outras empresas, voltaram a alertar sobre os perigos do resíduo e se organizaram em redes transnacionais de forma a pressionar uma nova postura dos Estados e das empresas tabagistas, propondo um novo modelo de governança para o resíduo.

Alguns governos, com destaque para os municipais, por sua vez, já se demonstram solícitos em cooperar pela causa, propondo modelos de responsabilização corporativa, tal como de gestão para as bitucas. Porém, é necessário que essas políticas transbordem as fronteiras locais, para serem aplicadas, em efeito cascata, a nível nacional e supranacional.

Para isso, conforme constatado pelas entrevistas com movimentos da sociedade civil e outras empresas relacionadas à gestão do resíduo, a formação de redes transnacionais é fundamental para a projeção do impacto das bitucas de cigarro, assim como para propor novos políticas públicas aos líderes governamentais.

Dessa forma, tanto o modelo de Extended Producer Responsability quanto de Product Stewardship seriam modelos adequados de responsabilização corporativa aplicáveis às empresas tabagistas em relação às bitucas de cigarro. Não obstante, a formação de alianças entre o setor tabagista com movimentos ambientalistas seria essencial para criar políticas públicas responsáveis que abordem a gestão do resíduo, assim como a mudança de sua estrutura.

Portanto, apesar de os movimentos transnacionais em torno da problemática das bitucas de cigarro ainda se apresentarem de forma tímida, todo esforço feito no sentido de reduzir, alterar ou erradicar sua utilização, ou quanto à responsabilidade no descarte e gestão desse resíduo, nos levará a um passo mais perto de mitigar essa ameaça, pois os custos financeiros, humanos e ambientais são enormes, e não podem mais se prolongar.

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Publicado por: Leonardo de Camargo Nascimento

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