TECENDO A CIDADE: A POESIA DE VINICIUS DE MORAES E A EXPERIÊNCIA URBANA NO BRASIL DO SÉCULO XX

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1. Introdução

O escopo deste artigo é abordar a poesia de Vinicius de Moraes e a relação com a cidade no âmbito poético em pleno século XX, o estudo desta relação, ao afirmar o lugar da poesia na modernidade, como um espaço histórico e também de pensamento e produção cultural, contribui para a memória cultural brasileira, investigando a cidade do Rio de janeiro textualizada pela poesia, neste caso, de Vinicius de Moraes. Em um primeiro momento buscamos relacionar a poesia moderna e a cidade, verificando de que maneira a tessitura poética compõe uma espécie de memorial cultural que resiste ao tempo e ao consumo desenfreado da modernidade. Em seguida vislumbrando, na poesia de Vinicius de Moraes, aspectos que demonstram a substituição do cenário da natureza para um cenário mais urbano e aos diversos sinais da deteriorioração das fisionomias locais e o distanciamento da ideia tradicional de sociedade dentro de uma cidade. Na continuidade vemos retratos da cidade registrado pela poesia e por fim uma pequena análise da poesia de Vinicius de Moraes voltada para a cidade do Rio de Janeiro, para isto levamos em consideração principalmente, mas não somente, as poesias do livro “Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes”. Esta pesquisa fundamenta-se primeiramente, a partir do lugar da poesia na modernidade desde de Charles Baudelaire, pois foi o primeiro a incorporar a cidade em sua poética, além de ampliar o registro cultural, social e histórico da cidade moderna, por meio do espaço literário. Além de Baudelaire, este artigo estabelece como substrato teórico Walter Benjamim, Giulio Carlo Argan, Stuart Hall, Alfredo Bosi, Ítalo Calvino, Haroldo de Campos, Daniel Gil, que escreve o epílogo de “Roteiro Lírico e sentimental (...)”. Não obstante, é possível ainda identificar a imagem histórica e poética da cidade do Rio de Janeiro através da poesia de Vinicius de Moraes.

2. Desenvolvimento

2.1. Relação entre poesia moderna e a cidade

Historicamente falando, a poesia moderna iniciou-se em 1848 com Charles Baudelaire na França, o marco literário deu-se em “As flores do mal” (1857), o livro reúne poemas com características modernas e simbolistas, Baudelaire foi atacado e questionado ao publicá-lo chegando a ser multado e tendo o livro recolhido em pouco tempo.

“As Flores do Mal” foi dividido em seis sessões que são chamados de ciclos – “Tédio e Ideal” – “Quadros Parisienses – “O vinho” – “As Flores do Mal” – “Revolta” – “A Morte”. Esta informação é importante pois é no ciclo “Quadros parisienses” que Baudelaire vai tratar das cidades e das multidões, tema tão recorrente na poesia de Vinicius de Moraes.

Outra informação importante para o nosso artigo é o conceito de flâneur:

O flâneur era, antes de tudo, um tipo literário do século XIX, na França, essencial para qualquer imagem das ruas de Paris. A palavra carregava um conjunto rico de significados correlatos: o homem do lazer, o malandro, a explorador urbano, o conhecedor da rua. Foi Walter Benjamin, baseando-se na poesia de Charles Baudelaire, que fez dessa figura um objeto de interesse acadêmicos no século XX, como um emblemático arquétipo da experiência moderna. Segundo Benjamin, o flâneur tornou-se um símbolo importante para estudiosos, artistas e escritores. (wikipedia, acesso em 20 de maio de 2019)

Segundo Walter Benjamin (2018) apenas em “O Homem da Multidão”, conto de (ano) de Edgar Allan Poe é que o flâneur assume pela primeira vez os traços de “um lobisomem” a vagar irrequieto em uma “selva social”, o flâuneur “apodera-se frequentemente do simples saber, de dados inertes, como algo experimentado e vivido. Este saber sentido transmite-se de uma pessoa para outra, sobretudo oralmente (BENJAMIN,2018. P.703)

Esse novo conceito nascido nas ruas de Paris e disseminado pela nova poesia moderna de Baudelaire chegou ao Brasil ainda no século XX e influenciou diversos poetas brasileiros, cada um a sua forma e com suas peculiaridades, mas o fato é que o poeta moderno brasileiro, como o carioca Vinicius de Moraes, embebedou-se das influências de Baudelaire.

Vejamos a seguir o famoso poema musicado de Vinicius de Moraes “Garota de Ipanema” e um poema de Charles Baudelaire que faz parte do ciclo “Quadros Parisienses” – “Uma passante”. Em ambos podemos ver a retratação de um amor fugaz, a figura do flâneur, como observador da cidade e de suas multidões, no caso de ambos os poemas, ofuscadas pela figura de uma única mulher.

A UMA PASSANTE

(ciclo: Quadros Parisienses)

A ensurdecedora rua em torno ruivava.
Longa, esbelta, enlutada, uma dor majestosa,
Passava uma mulher, que com a mão faustosa,
O Festão e a bainha erguia e balançava.

Ágil e nobre, com a perna escultural
Eu sorvia, crispado como um beberrão,
Em seu olhar, céu lívido e furacão,
O dulçor que fascina e o prazer mortal

Um raio... a noite cai! – Fugitiva Beldade
Cuja o olhar me causou um renascer dos dias,
Não te verei jamais, senão na eternidade?

Alhures, não aqui! Tarde! Talvez jamais!
Pois não sabes de mim, eu não sei onde vais,
Ó tu que eu amaria, ó tu que o sabias!

GAROTA DE IPANEMA

Olha que coisa mais linda,
Mais cheia de graça
É ela menina, que vem e que passa
Num doce balanço a caminho do mar

Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar

Ah, por que estou tão sozinho?
Ah, por que tudo é tão triste?
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha

Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor

Outro ponto a se observar em ambos os poemas e a efemeridade que toma conta da modernidade que está bem descrita e podemos exemplificar em u trecho de “As cidades Invisíveis de Italo Calvino, 2017:

[...] cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se veem imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.

Em Vinicius de Moraes se reconhecem, como diz Bosi (P.498), a significação dos afetos (imagens, metáforas, símbolos), um processo tão antigo como própria atividade mitopoética do homem. Alguns de seus sonetos deram nova forma à antiga.

2.2. A substituição da natureza pelo cenário urbano

Se olharmos para as produções poéticas dos séculos XVII, XVIII veremos que os cenários, mesmo quando urbanos, invocam em muito a natureza e os fenômenos naturais. Aos poucos por meados do século XVIII e início do século XIX a vida urbana e a cidade começam a ascender na literatura. Utilizamos como marco histórico-literário as produções de Baudelaire e, mais tarde, os conceitos fundamentados por Benjamin. Como a nossa proposta não é fazer análise dos recursos poéticos de cada período literário, foquemos no lugar da poesia na modernidade e na introdução da cidade na poesia moderna, principalmente pela ótica de Vinicius de Moraes.

2.3. O lugar da poesia na modernidade

A poesia aos poucos foi ocupando um lugar na modernidade em qual o pensamento e a produção cultural, contribuiu para a memória da cultura brasileira, na forma poética e como registro de um tempo, de um lugar de um modo de vida. O texto é tecido por discursos que retratam a forma como o poeta vê a cidade, sem a preocupação estética de outrora, mas como um flâneur que transita pela cidade. A poesia de Vinicius de Moraes versifica os laços indissociáveis entre a parte de sua experiencia humana e dos lugares por onde sua poesia nasceu e cresceu. Essa tessitura poético-discursiva compõe a parte de nossa memória cultural que resiste ao consumo, à barbárie, e aos diversos processos de deterioração das fisionomias locais em detrimento da vertigem global, que implica em um distanciamento da ideia local e tradicionalmente sociológica de uma comunidade.

Baudelaire, em seu texto “O pintor da vida moderna”, ironiza o frequentador de museu, enaltece as obras mais clássicas enquanto menospreza os artistas de seu tempo, e então este “falso erudito” comete um grande equivoco ao esquecer-se que cada época produz seus próprios artistas, não sendo estes menores que outros. Será neste cenário, de uma multidão alienada e de um poeta que ao mesmo tempo observa e participa, que nasce o observador/testemunha da realidade ambígua, cheia de um vazio existencial e do tédio que marcam o nosso tempo. E por isso que o eu lírico da poesia e sua arte precisam resistir a um mundo que lhe é hostil e banal e buscar sentindo, inclusive nos seus aspectos mais negativos. Assim nasce o interesse de Baudelaire, que veremos representado mais tarde na “Bohemia” de Vinicius, por indigentes, prostitutas, bêbados, a transfiguração do real, o dom que o poeta tem de observar os fatos e dar a eles outro sentido.

O que iniciou na Paris de Baudelaire, fez-se como marco histórico literário para um novo momento na poesia moderna, e chegou ao Rio de janeiro de Vinicius de Moraes, que inundou grande partes de suas poesias com a cidade, multidão, as transformações, o bêbado, o boêmio e amor fugaz, como vemos nos versos em destaque do seguinte poema:

COPACABANA

Los Angeles , 1948

Esta é Copacabana, ampla laguna 
Curva e horizonte, arco de amor vibrando 
Suas flechas de luz contra o infinito. 
Aqui meus olhos desnudaram estrelas 
Aqui meus braços discursaram à lua 
Desabrochavam feras dos meus passos 
Nas florestas de dor que percorriam. 
Copacabana, praia de memórias! 
Quantos êxtases, quantas madrugadas 
Em teu colo marítimo! 
- Esta é a areia 

Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas 
- Aquele é o bar maldito. Podes ver 
Naquele escuro ali? É um obelisco 

De treva - cone erguido pela noite 
Para marcar por toda a eternidade 
O lugar onde o poeta foi perjuro. 
Ali tombei, ali beijei-te ansiado 
Como se a vida fosse terminar 

Naquele louco embate. Ali cantei 
À lua branca, cheio de bebida 
Ali menti, ali me ciliciei 
Para gozo da aurora pervertida. 

Sobre o banco de pedra que ali tens 
Nasceu uma canção. Ali fui mártir 
Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo 
Aqui encontrarás minhas pegadas 
E pedaços de mim por cada canto. 
Numa gota de sangue numa pedra 
Ali estou eu. Num grito de socorro 
Entreouvido na noite, ali estou eu. 
No eco longínquo e áspero do morro 
Ali estou eu. Vês tu essa estrutura 
De apartamento como uma colmeia 
Gigantesca? em muitos penetrei 
Tendo a guiar-me apenas o perfume 
De um sexo de mulher a palpitar 
Como uma flor carnívora na treva. 
Copacabana! ah, cidadela forte 
Desta minha paixão! a velha lua 
Ficava de seu nicho me assistindo 
Beber, e eu muita vez a vi luzindo 
No meu copo de uísque, branca e pura 
A destilar tristeza e poesia. 
Copacabana! réstia de edifícios 
Cujos nomes dão nome ao sentimento! 
Foi no Leme que vi nascer o vento 
Certa manhã, na praia. Uma mulher 
Toda de negro no horizonte extremo 
Entre muitos fantasmas me esperava: 
A moça dos antúrios, deslembrada 
A senhora dos círios, cuja alcova 
O piscar do farol iluminava 
Como a marcar o pulso da paixão 
Morrendo intermitentemente.
E ainda 
Existe em algum lugar um gesto alto, 
Um brilhar de punhal, um riso acústico 
Que não morreu. Ou certa porta aberta 
Para a infelicidade: inesquecível 
Frincha de luz a separar-me apenas 
Do irremediável. Ou o abismo aberto 
Embaixo, elástico, e o meu ser disperso 
No espaço em torno, e o vento me chamando 
Me convidando a voar... (Ah, muitas mortes 
Morri entre essas máquinas erguidas 
Contra o Tempo!) Ou também o desespero 
De andar como um metrônomo para cá 
E para lá, marcando o passo do impossível 
À espera do segredo, do milagre 
Da poesia. 

Tu, Copacabana, 
Mais que nenhuma outra foste a arena 
Onde o poeta lutou contra o invisível 
E onde encontrou enfim sua poesia 
Talvez pequena, mas suficiente 
Para justificar uma existência 
Que sem ela seria incompreensível

2.4. A cidade como registro escrito da própria história:

Neste contexto, a poesia esparsa de Vinicius de Moraes é relevante e numerosa, imprime um interessante diálogo com certos elementos da cultura popular, a poesia incorpora componentes de um imaginário típico, de cultivo ou espontâneos da cidade do Rio de janeiro. “a cidade é o símbolo capaz de exprimir a tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado da existência humanas” (TODAS AS CIDADES I) Algumas experiências importantes da poesia de VM, expostas nos livros mais conhecidos do poeta, representam a imagem lírica do RJ, como é o caso de “cartão postal”


avião 

v

IO 
Rio                        lua 
DEJA 
NEIRO 
MEURIO 
ZINHODEJANEIRO!MINHASÃOSEBASTIÃODORIODEJANEIRO! 
CIDADEBEM-AMADA!AQUI ESTÁOTEUPOETAPARADIZER- TE 
QUETEAMODOMESMOANTIGOAMOREQUENADANOMUNDO NEMMESMOAMORTEPODERÁNOSSEPARAR. 
Aquiporeisssssssssssssssssssparafingirdomosaicodopasseio 
aquiporeiTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTparafingirdepalmeiras 
Emeponho eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu poraítudo 

Quero brincar com a minha cidade. 
Quero dizer bobagens e falar coisas de amor à minha cidade. 
Dentro em breve ficarei sério e digno. Provisoriamente 
Quero dizer à minha cidade que ela leva grande vantagem sobre todas as
[outras namoradas que tive
Não só em km2 como no que diz respeito a acidentes de terreno entre os
[quais o número de buracos não contitui fator desprezível.
Em vista do que pegarei meu violão e, para provar essa vantagem, sairei 
[pelas ruas e lhe cantarei a seguinte modinha :

MODINHA 

Existe o mundo 
E no mundo uma cidade 
Na cidade existe um bairro 
Que se chama Botafogo 
No bairro existe 
Uma casa e dentro dela 
Já morou certa donzela 
Que quase me bota fogo. 

Por causa dela 
Que morava numa casa 
Que existia na cidade 
Cidade do meu amor 
Eu fui perjuro 
Fui traidor da humanidade 
Pois entre ela e a cidade 
Achei que ela era a maior! 
Loucura minha 
Cegueira, irrealidade 
Pois realmente a cidade 
Tinha, como é de supor 
Alguns milhares de km2 
E ela apenas, bem contados 
Metro e meio, por favor.

E em “avenida rio branco” nos deparamos com o espaço gráfico como suporte visual para os versos, “A cidade construída pelo discurso possibilita visões diversas, leituras e interpretações que dependem do leitor (GOMES,2008. P.24)

AVENIDA RIO BRANCO (1973)

HOTEL AVENIDA
G
A
L
CRUZEIRO
R
I
A
Na Avenida Rio Branco
Antiga central (eu acho)
Passa preto, passa branco
Passa alto, passa baixo
Passa mudo, passa manco
Passa fêmea, passa macho
Só não passa a menininha
Do cabelo dando cacho

2.5. Vinicius e a Cidade do Rio de Janeiro: sobre “Roteiro Lírico e Sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”

Optamos por destacar aqui esta produção, por exemplificar a sua intencionalidade na composição de obras que retratassem a cidade do Rio de Janeiro, seu amor e seu registro. Esta obra reúne a maioria dos poemas citados neste artigo, assim como outros e é uma coletânea dos desejos expressos pelo poeta, em uma linda e atual representação do que Calvino mostrou no livro “As Cidades Invisíveis”, 2017: “ As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma a outra”. “Roteiro Lírico e Sentimental (...)” era um projeto de Vinicius de Moraes que provavelmente o perseguia desde 1940, o qual através de seus poemas o poeta desejava expor em versos todo seu amor pela cidade do Rio de Janeiro (GOMES in MORAES, 2018).

Em 1979, o poeta sofre um derrame cerebral no avião, voltando de uma viagem à Europa e nesta ocasião perdem-se os originais de “Roteiro Lírico e Sentimental(...)” (MORAES, 1998), ainda sim, foi possível saber com certa precisão quais os poemas que comporiam o livro.

“Roteiro Lírico e Sentimental (...)” segue o mesmo bom humor dos poemas “Para viver um grande amor” de 1962, no entanto imprime um interessante diálogo com outros temas da cultura popular e alguns jogos de recursos. Através dos poemas, principalmente dos que destacaremos a seguir nesta seção, podemos ter um novo olhar sobre assuntos de grande relevância histórica e política, visto pois que a poesia de Vinicius de Moraes trata de componentes provenientes da cidade do Rio de janeiro, que nos fazem entender esta cidade, mas também poderiam compor qualquer cidade que o leitor internalize em si, “para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita.” (Calvino, 2017. P.105)

Em um ensaio intitulado “ A cidade-romance em Balzac” publicado pela primeira vez em um prefácio para uma tradução de Ferragus em 1981 Calvino diz que:

Transformar em romance uma cidade: representar os bairros e as ruas como personagens dotadas cada uma de um caráter em oposição às outras; evocar figuras humanas e situações como uma vegetação espontânea que germina do calçamento desta ou daquela rua ou como elementos de tão dramático contraste com elas a ponto de provocar cataclismos em cadeia; fazer com que em cada momento mutável a verdadeira protagonista seja a cidade viva [...]

(CALVINO, 2007. P. 150)

2.5.1. Denúncias e Protestos na Terceira Fase de Vinicius de Moraes

Como mencionado anteriormente, os poemas selecionados possuem grande relevância histórico-politica. São assuntos ligados a cidade do rio de janeiro e que Vinicius discutiu abertamente através de sua obra.

JOGO DE EMPURRA

Os escravos de Gê 
Gostavam de jogar 
Ponto, banca 
Quem jogou em 30, dá 
Parceiro com parceiro 
Pif, pif, pif, paf! 

Os escravos de Gê 
Gostavam de roubar 
Tira, pega 
Vamos deixar como está 
Cartola com cartola 
Zigue, zigue, zigue, zá! 

Os escravos de Gê 
Gostavam de matar 
Tira, tira, 
Tira pronto pra atirar 
Meganha com meganha 
Puque, puque, puque, pá! 

Os escravos de Gê 
Gostavam de ficar 
Tira, bota 
Pega tudo pra capar 
Guerreiro com guerreiro 
Zigue, zigue, zigue, zá!

O CORTA-JACA

Rattus rattus rattus 
(Pelas sarjetas de Ipanema e do Leblon) 
Rattus rattus rattus 
(Estupefatos gatos fogem de pavor) 
Rattus rattus rattus 
A tua louca simetria 
Rói a raiz dos próprios fatos 
Rattus rattus 
E acaba roendo a poesia. 

Rattus rattus rattus 
(Foi o mesmo Deus que fez o lírio quem te fez?) 
Rattus rattus rattus 
(Tu multiplicas dois por quatro igual a dez) 
Rattus rattus rattus 
Impessoal procriador 
Não chegues junto aos meus sapatos 
Rattus rattus 
Porque eu te mato, ó roedor. 

É o rato é o rato 
É o rato criança 
Cujo artesanato 
Lhe vem da lembrança 
Do rato rapaz 
Que guarda o retrato 
Risonho e roaz 
Do rato do rato 
Do rato já velho 
Que fuma charuto 
Se olhando no espelho 
E de quem os atos 
Que a cifra amplifica 
Um bando de ratos 
Sempre ratifica. 
Um rato de preto 
E um rato de branco 
Um rato de frente 
E um rato de flanco; 
Um rato de púrpura 
E um rato de cáqui 
Um rato de feltro 
E um rato de fraque; 
Um rato de imprensa 
Que tem que viver 
É um rato que pensa 
Um rato abstrato 
Que rói por roer; 
Um rato esquisito 
Que vive em Paris 
É um rato erudito 
Um rato de giz; 
E além desses ratos 
Os ratos da terra 
Que servem a outros ratos 
Que não são da terra 
Tem dona Ratona 
E os rato-ratinhos 
Tão engraçadinhos 
Brincando de guerra 
Rattus rattus rattus etc...

TANGUINHO MACABRO

- Maricota, sai da chuva 
Você vai se resfriar! 
Maricota, sai da chuva 
Você vai se resfriar! 
- Não me chamo Maricota 
Nem me vou arresfriar 
Sou uma senhora viúva 
Que não tem onde morar. 

- Maricota, sai da chuva 
Você pode até morrer! 
Maricota, sai da chuva 
Você pode até morrer! 
- Pior que a morte, seu moço 
É ser moça e não poder 
Mais morta que estou não posso 
Tomara mesmo morrer. 

- Maricota, vem comigo 
Para o meu apartamento! 
Maricota, vem comigo 
Para o meu apartamento! 
- Fico muito agradecida 
Pelo generoso intento 
E sem ser oferecida 
Aceito o oferecimento. 

- Maricota, meu benzinho 
Tira o véu para eu te ver! 
Maricota, meu benzinho 
Tira o véu para eu te ver! 
- Ah, estou tão envergonhada 
Que nem sei o que dizer 
Só mesmo a luz apagada 
Poderei condescender. 

- Maricota, esse perfume 
Vem de ti ou de onde vem? 
Maricota, esse perfume 
Vem de ti ou de onde vem? 
- É o odor que se tem na pele 
Quando pele não se tem 
É o meu cheirinho de angélica 
Que eu botei só pro meu bem. 

- Maricota, dá-me um beijo 
Que eu estou morto de paixão 
Maricota, dá-me um beijo 
Que eu estou morto de paixão 
- Satisfarei seu desejo 
Com toda a satisfação 
Aqui tem, seu moço, um beijo 
Dado de bom coração. 

- Maricota, os seus dois olhos 
São poços de escuridão! 
Maricota, os seus dois olhos 
São poços de escuridão! 
- Não são olhos, são crateras 
São crateras de vulcão 
Para engolir e et cetera 
Os moços que vêm e vão. 

- Maricota, o teu nariz 
São duas fossas de verdade! 
Maricota, o teu nariz 
São duas fossas de verdade! 
- Não é nariz não, mocinho 
É uma grande cavidade 
Para sentir o cheirinho 
Dessa sua mocidade. 

- Maricota, a tua boca 
Não tem lábios de beijar! 
Maricota, a tua boca 
Não tem lábios de beijar! 
- Não é boca, meu tesouro 
É um sorriso alveolar 
São quatro pivôs de ouro 
Presos no maxilar. 

- Maricota, tuas maminhas 
Tuas maminhas onde estão? 
Maricota, tuas maminhas 
Tuas maminhas onde estão? 
- Estão na boca de um homem 
E do seu filho varão 
Maminhas não eram minhas 
Eram coisas de ilusão. 

- Maricota, que engraçado 
Onde está seu buraquinho? 
Maricota, que engraçado 
Onde está seu buraquinho? 
- Buraco só tenho um 
De sete palmos neguinho 
Mas é melhor que nenhum 
Pra caber meu amorzinho. 

- Maricota, estou com medo 
Estou com medo de você! 
Maricota, estou com medo 
Estou com medo de você! 
- Não se arreceie, prometo 
Que nada tens a perder 
Mais vale amar um esqueleto 
Que uma mulher, e sofrer. 

E a Morte levou o moço 
Para o fatal matrimônio 
Deu-lhe seu púbis de osso 
Sua tíbia e seu perônio 
Diz que o corpo decomposto 
De manhã foi encontrado 
Mas que sorria o seu rosto 
Um sorriso enigmático.

Os três poemas selecionados fazem parte da terceira fase de Vinicius de Moraes, uma fase bem mais musical, consagrado pelas parcerias, pela música e o teatro. Nos poemas selecionados podemos observar a musicalidade dos versos. Em “jogo de empurra” há um destaque clara para a situação política do país e o caos que se instaurava no Rio de Janeiro, a falta de responsabilidade das autoridades e o descaso com a população.

Já em “O corta jaca” há um destaque para as diferenças de classe dentro do rio de Janeiro. Podemos sentir o tom de denúncia ao descaso as classes socias menos favorecidas, as guerras nas comunidades cariocas, os preconceitos relacionados a cor, e status social.

Em “tanguinho macabro” o poeta, já em um tom ainda mais musical e cômico, mante o tom erótico que foi destaque em sua segunda fase, mas também faz uma pequena reflexão sobre o papel da mulher na sociedade, o status de uma viúva.

No início deste artigo destacamos o amor de Vinicius pela cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes destacando a beleza da cidade, o povo que nela vive e seus encantos e lembranças de quando jovem. Nesta parte, com a seleção destes poemas, vimos que a poesia de Vinicius de Moraes também abriu espaço para as críticas sociais, as críticas políticas, para o “feio” dentro de sua cidade amada. Pois a poesia é local de discussão e de historicidade, de amor e de interpretação.

A cidade do Rio de janeiro, foi personagem protagonista em grande parte da obra de Vinicius, onde nasceu, viveu em trânsito e morreu de amores o poeta.

3. Conclusão

Ao estudar a poesia de Vinicius de Moraes, levando em conta a cidade (do Rio de Janeiro) como estratégica poética, tanto como cenário ao ver as multidões, os temas, o retrato da realidade, tanto no sentindo histórico como na visão do eu lírico, do observador e do artista, nos deparamos com o emprego do espaço gráfico como suporte visual e como ferramenta artística. Igualmente vemos as formas mais consagradas com o cotidiano e com o coloquial que passam por uma enorme variedade de registros; a mistura de um léxico sofisticado com um palavreado boêmio, gírias e linguajar familiar misto com opções formais e rigorosas.

Se o desenho urbano, historicamente em sua realidade, pode-se tornar indecifrável resultante da fúria da burguesia, só nos restas a possível visão através das manifestações culturalmente populares como o carnaval, o futebol e as religiões populares.

A poesia de Vinicius de Moraes traça, além de um registro poético – literário da nossa literatura brasileira, um roteiro lírico-histórico da cidade doo Rio de Janeiro. Através da poesia de Vinicius, podemos ver as mudanças sofrida pela cidade, as mudanças do povo desta cidade e principalmente as mudanças culturais que contrapõem à época anteriores, á época de Vinicius e ao momento atual em que vivemos e relemos sua poesia. Vinicius de Moraes colocou-se como um observador da vida urbana ao mesmo tempo em que a vivia em boemia, tornando-se um autêntico representante da flâneur apresentado por Baudelaire.

Outro papel fundamental que se deu a sua poesia foi o de expor temas relevante a sociedade, enquanto divertia-se com abordagens românticas ou eróticas.

A obra de Vinicius de Moraes não termina em si, mas é continuamente escrita na percepção do leitor.

4. Bibliografia

ARGAN, G.C. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992

Baudelaire, C. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995

____________. As Flores do Mal. São Paulo: Martin Claret, 2014

____________. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010

BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018

BOSI. A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015

CALVINO, I. As cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017

___________. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001

MORAES, V. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1968

___________. Roteiro Lírico e Sentimental da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018

___________. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998


Publicado por: Rossana Moreira do Espirito Santo Teixeira

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