SANTA CRUZ DE BEIRA DE ESTRADA: UM MEMORIAL CRISTÃO DA VIDA E DA MORTE

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1. Apresentação

Ao andar pelo Brasil é impossível não perceber que nas beiras das estradas em meio a agitação da vida moderna ou nos campos mais remotos do interior brasileiro existe cruzes nos lembrando que ali morreu alguém. Nessas nossas caminhadas, em trabalhos de levantamento patrimonial em resultado do licenciamento ambiental, nos chamou a atenção essa peculiaridade tão comum as gentes brasileiras, mas especificamente os campesinos, não podendo abranger todo o Brasil recortamos uma pequena espacialidade, também fruto do trabalho de levantamento patrimonial entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba, na PB-073 e a RN-093.

Figura 1-Recorte espacial da nossa pesquisa.

Nos municípios de Tacima,Campo de Santana/PB e Passa e Fica/RN o arquiteto Everaldo Cristiano Silva e eu, vimos pequenas cruzes bem ornamentadas, alguns com pequenos altares, feitos em cerâmica, outros apenas com uma cruz branca envolto de pequenas coroas de flores, denotando cuidado constantes por anônimos, que levam em si a dor da perda de um ente querido. Além disso, nestes cruzeiros observamos uma quantidade considerável de pedrinhas envolvendo o local, esses locais que muitas vezes servem para descarte de imagens de santos quebrados ou mesmo quando da conversão ao protestantismo, que no seu cerne não vê com bons olhos a veneração aos santos, essa é uma manifestação viva no interior do Brasil.

O que não sabemos é que muitas vezes esses pequenos altares são erigidos ora pelos causadores do acidente, ora pelos parentes outros por algum devoto que alcançou alguma graça aos pés da cruz. O que leva o agraciado a erguer mais uma cruz, esses locais são envoltos de uma sacralidade seja pela morte ou causa de morte, ou mesmo por uma prece atendida.

Muitos acreditam que essas pessoas podem interceder por eles a Deus, quando tombam por obra de alguma maldade, o que torna um lugar de peregrinação, outros acreditam na penação da alma e por isso acendem velas, tiram os chapéus e fazem o tradicional sinal da cruz em respeito ao defunto. Nem sempre um cruzeiro é erguido no local em que a pessoa morre, contudo o fato de ser erguida uma cruz ali denota de alguma forma que ali causou a morte daquela alma.

Como dito outrora, outro fato que se percebe é a presença de pedrinhas pequenas nesses memoriais funerários, empiricamente cheguei a presenciar inclusive blocos de tijolo colocados ao redor. Em diálogo com os moradores o que se percebe é que apesar de vivo, não há uma uniformidade no seu significado, para alguns significa lembra-se daquele cristão que partiu; outros acreditam que aquela pedrinha é como significasse uma vela, já que não podem colocar uma no local em vista das vicissitudes naturais ou ao transitar se coloca uma pedra para pedir intercessão por sua vida aqui na terra.

Figura 2- Santa Cruz em Passa e Fica/RN-Fonte: Registro pessoal do dia 28/01/2016

Por fim, esse costume ainda vivo no interior da Paraíba e do Rio Grande do Norte, local de nossa experiência empírica, mas que poderia muito bem expor um hábito em muitas regiões do Brasil. Será objeto de nossa análise, compreendendo a relação do homem sertanejo com a morte, seu sentido e a representação simbólica desses memoriais em contraste com o dinamismo da vida moderna.

O mundo moderno se coloca por vezes avassalador para com toda tradição dando a impressão de mutabilidade constante sobre os hábitos, porém a história tem nos ensinado que as superestruturas podem muito bem se reajustar, e suas mudanças podem ser lentas ou mesmo lentíssimas como Braudel coloca em “Gramática das civilizações”, quando não são por vezes ressignificados servindo de respostas palpáveis e seguras para dilemas atuais, o que explica sua permanência.

Por isso estudar a tradição religiosa com um olhar histórico é importante, para compreender que sua permanência e sua mutabilidade pode ser fruto de uma longa duração ou curta duração e iluminar cada vez mais as relações humanas, não como juiz das práticas cotidianas, mas como intérprete. As Santa Cruzes são símbolos do presente, mas carregam o peso de toda uma mentalidade coletiva construída socialmente que remete à antiguidade cristã, A relação do homem com a morte e a resposta religiosa herdados dos pais para compreender as contradições da vida moderna.

Ao trazer à baila uma prática comum ainda no presente como as tradicionais cruzes de beira de estrada importa trabalhar, para dar corpo a discussão, conceitos históricos importantes, para que este texto não caia numa mera narrativa sem contextualização histórica e conceitos que corroborem a historicidade do objeto afinal como coloca Fernand Braudel: “A história de uma civilização, por conseguinte, é a procura, entre coordenadas antigas, daquelas que permanecem válidas ainda hoje.” (2004, p.45).

E a pergunta que um historiador deve fazer ao olhar para determinada prática social é perguntar qual a origem dessa prática e por que ela persiste? Para isso trazemos à baila conceitos braudelianos presente na sua obra Gramáticas das civilizações onde o celebre historiador francês concebe que civilizações são continuidades quando ela está envolta de conjunturas que se impõe ao seu ritmo e determina suas variações causando um vaivém e apresentará intermitências que cortará qualquer continuidade tornando uma estranha a outra, Braudel coloca que civilizações são estruturas, complexas redes de determinações compostas de hierarquias socias, espaço, mentalidade coletivas e necessidades econômicas (2004,p.45-48).

Olhar para qualquer movimento historicamente posto, seja no passado seja no presente é compreender essas grandes determinações postas por Braudel, uma que muda ou influência os hábitos, as crenças e mesmo a produtividade de uma civilização. Outra que imbui a sociedade com toda a carga social que lhe é própria, uma é a continuidade e a outra estrutura, por isso essa pequena análise têm consciência que os movimentos históricos não são padronizados e por vezes sequer se movimentam, pois dependem das variações sociais que ora permitem essa mudança e outrora fecham-se preservando seus costumes e impedindo sua transformação.

No primeiro capítulo discorreremos sobre a relação superestrutural do homem com a morte desde tempos que precedem a escrita, passando pelas civilizações da antiguidade até a civilização cristã da antiga a moderna. Com seus ritos, seus dogmas e a moral que envolvem o morrer e como isso os influenciava e nos influência até hoje.

No segundo capítulo compreendemos a mentalidade coletiva trazida pelo império mercantil salvacionista português como parte da civilização cristã europeia da qual somos filhos, a força do cristianismo como ferramenta de colonização e perpetuação da superestrutura cristã como mecanismo moral da conquista do estado português e da igreja católica romana no Brasil, além disso observamos a religiosidade popular que se assenta sobre forte influência do período quinhentista untado a matriz africana e mesoamericana.

No terceiro capitulo trazemos a baila o contexto histórico de ocupação espacial e suas peculiaridades, suas tradições e costumes, a superestrutura religiosa dominante, e aspectos encontrados na região que dão corpo a presente pesquisa e por fim a conclusão bem como a bibliografia que dar notoriedade a essa pesquisa.

Sendo assim, para dar maior clareza a essa prospecção textual serão usados conceitos braudelianos de longa duração para explicar a permanência das cruz de beira de estrada frente a ao dinamismo que a modernidade nos impõe e como esses símbolos trazem em si uma perspectiva tão antiga quanto atual como é a morte para o homem sertanejo, católico e campesino e nesse pequeno espaço compreender sua relação com o mundo que lhe rodeia, e fazer uso de interdisciplinaridade para compreender a mentalidade socialmente posta, bem como o processo de longa duração que se estabelece nessa relação do indivíduo com o meio e por meio disso saber compreender o que este ser que dizer com este gesto.

Bem como o livro do antropólogo Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” e sua noção da formação brasileira, dos impérios ibéricos  e das etnias que surgirão na imersão de povos vindo de África, Europa e mesoamericano.

2. Morte e as respostas superestruturais encontradas pelas civilizações

Morrer é um paradoxo humano, uma problemática que causa aos homens temor pelo processo doloroso que se pode chegar a ela e a ideia do que se pode encontrar após a morte, filósofos, psicólogos, religiosos, biólogos e uma infinidades de ramos da ciência procura compreender a estranheza e a recusa do homem para com a morte, simplesmente porque o ser humano recusa a simples ideia de acabar. Fato esse que incomodou filósofo Epicuro 340 A.C, quando na sua carta a meneceu transcrita no livro X da obra vida doutrina dos filósofos ilustres do historiador Diogénes de Laértios (Silva,1995, p.141), o materialista se insurge quanto a ideia de se pensar algo para além da vida presente e material e recomenda:

Acostuma-te a pensar a morte nada é em relação a nós. Efetivamente, todos os bens e males estão na sensação, e a morte é privação das sensações. Logo, o conhecimento correto de que a morte nada é para nós torna fluível a mortalidade da vida, não por atribuir, a esta duração ilimitada, mas por eliminar o desejo da imortalidade. (EPICURO, apud SILVA, p141)

Entretanto os esforços de pensadores como Epicuro em naturalizar o morrer na vida humana não obteve muito sucesso entre a grandes parcelas da consciência coletiva da humanidade e tão pouco foi capaz de explicar a morte, o que o pensador fez foi pensar a vida e não o grande temor dos homens desde a antiguidade até os dias de hoje frente a morte, o simples opor-se à morte em si não a explica em nada e nem justifica esse temor humano.

Por mais que a humanidade tenha consciência de sua mortalidade, ao longo de sua evolução nossa espécie procurou dar sentido ao fenômeno da morte, os homens não concebem a ideia de acabar, ser esquecido, ou deixar de ter consciência da vida e do mundo que lhe rodeia e desenvolveu as mais variáveis formas de sepultamento, de garantir a sobrevivência de sua individualidade, de não esquecer dos seus semelhantes ou mesmo de se apropriar da individualidade alheia.

Para isso inúmeras civilizações de conceberam respostas para este fato natural, mesmo antes das grandes civilizações se desenvolverem, os homens primitivos já organizavam rituais funerários demonstrando significado para com a perca, registra-se nos anais do tempo que os primeiros a sepultar seus entes foram os neanderthalensis no período pleistoceno médio, e mesmo os povos que lançavam seus defuntos sobre o mar, como os coriacos do extremos oriente russo, não o faziam sem antes preparar um ritual funerário como coloca Morin: “Embora os koriaks do leste siberiano lancem os mortos ao mar, estes são confiados ao oceano, não desprezados” (MORIN apud AZEVEDO, 2014 P.13).

E no desafio de controlar essa força indomável da natureza que é morrer, os seres humanos inventaram formas de lidar com ela, e para isso eles criaram os ritos de passagem, morrer não era apenas findar-se, mas passar para outro estágio, já que não podiam impedir esse destino eles a ilustraram e rodearam de simbologias:

 A ritualização da morte é um caso particular da estratégia global do homem contra a natureza, feita de interdições e concessões. Por isso, a morte não foi abandonada a si mesma e à sua desmedida, mas ao contrário, aprisionada em suas cerimônias, transformadas em espetáculo. (MUNIZ, apud AZEVEDO,2014 P.14)

Mas foi na religião e não na racionalidade, que o aprisionamento da morte mais surtiu efeito, foi por meio da psique coletiva que é “fruto de heranças remotas, crenças, medos [e] inquietações” (Braudel,2004, p.42) que o ser humano achou as respostas para a morte. É por meio dessa antiga e usual estrutura psicológica, que por vezes ignoramos como elemento fundante do espírito humano que os homens se orientarão parar morrer, por isso é de suma importância compreender minimamente como a morte se colocou ao ocidente sobre um processo de longa duração.

Pois é por meio da superestrutura religiosa que as civilizações vão se orientar e estabelecer diferenças que as distinguirão uma das outras, Mesmo para um uma condição tão comum à nossa espécie como é morrer, é na mentalidade coletiva da religião que o valor da morte será trazido aos nossos dias atuais. Mesmo as civilizações complexas que nos influenciaram ao longo da história também estabeleceram regras para o morrer e crenças no além morte.

Os mesopotâmicos sepultavam seus defuntos com base na crença da passagem para o mundo da morte que ficava no subterrâneo e para que essa passagem fosse feita com alegria, era colocado todo os pertences que marcasse sua identidade pessoal e com seus laços familiares (trajes, objetos individuais, alimentos prediletos...), para assim garantir que nada lhe faltasse na travessia para o mundo da morte.

Os gregos ao contrário dos mesopotâmios cremavam seus mortos crentes de que o homem retornava para seu estado existencial, condição social de mortos, mas havia uma diferença no ritual de passagem entre eles, enquanto que as pessoas comuns eram queimadas e jogadas em valas coletivas, pois o eram mortais, quanto aos heróis eram colocados em piras crematórias onde seriam naquele ritual imortalizados, naquilo que chamavam de bela morte, como o poeta Homero descreve na epopeica Ilíada (CAPUTO,2008 P.74).

Para as tribos israelitas a vida é um dom de Deus, os grandes patriarcas, morreram velhos e gozando de suas posses, Abraão morre “em boa velhice” (GN 25, 8) o envelhecer era uma honra, uma dádiva do criador, era desfrutar com esmero o dom da vida, pois é na velhice que se chega a sepultura (Jó 5, 25) e depois de toda a provação e crise existencial ele termina seus dias “Velho e farto de dias” (Jó 42, 17).

Já a civilização cristã trará na sua constituição as crenças judaicas sobre a morte como fruto do pecado de Adão como descreve a Bíblia (Gn 3,19), mas ao mesmo tempo o morrer para o cristão é uma passagem para a vida eterna por meio do seu Salvador Jesus e seu sacrifício que os redimiu, e a crença de que eles ressuscitariam em glória corpórea, e São Paulo descreve que Jesus o Cristo e o adão inverso da nova aliança, pois assim como Adão trouxe a morte aos homens, Cristo trouxe a vida e que por meio dele todos seriam salvos se tornando assim o “Senhor dos mortos e dos vivos “ como coloca os teólogos Brustolin e passa (2013, p.66).

2.1. A morte na tradição cristã

O cristianismo ressignifica a morte na antiguidade ocidental, morrer por mais penoso que fosse, era também um encontro com o seu salvador e em meio a opressão romana que os perseguia, o morrer em tais circunstâncias não seria derrota ou humilhação, mas glória perante o Senhor da vida, como descreve Santo Agostinho:

Quem pensa ser tal perseguidor para vir e dizer: Nega a Cristo se não queres morrer? Por acaso é possível negar a vida pela vida? Por uma breve vida vou negar a vida eterna? Por que querem tirar a fé das pessoas com ameaças de morte? Cristo é que tem em seu poder a morte e a vida. Se a morte não significasse nada, que bem fizeram os mártires ao desprezá-la?. (SANTO AGOSTINHO apud BRUSTOLI e PASA, P.67)

Agostinho vai também pontuar sobre a relação dos mortos com os vivos cogitando uma relação que se mantém mesmo após ter partido, ao se referir a sua mãe, denotando em uma espécie de nota pessoal, mas que sem dúvida expressa um valor cristão ainda predominante até hoje na crença cotidiana cristã.

Tomem como quiserem o que vou dizer. Se deveras as almas dos mortos interviessem nos problemas do vivos, aparecessem e nos falassem durante nosso sono, minha piedosa mãe-Para não falar de outras pessoas-Não me abandonaria uma única noite ela que me seguiu por terra e mar, a fim de partilhar comigo a minha vida. Longe de mim crer, com efeito, que uma vida mais feliz a tornou indiferente, ao ponto de não vir consolar em tristeza um filho que em sua vida foi seu grande amor. (SANTO AGOSTINHO Apud  BRUSTOLI e PASA, P.69)

O cristianismo conseguiu apaziguar a relação com a morte quando ligou a vida terrena com a vida celeste à natureza de um Cristo que era homem e Deus ao mesmo tempo fez com que o zelo com o corpo dos mortos fosse uma preocupação também dos pais da igreja, o zelo com um corpo que por mais que não sentisse nada seria ressuscitado como o Cristo e com isso se estabelece alguns princípios que influenciarão as civilizações no mediterrâneo ou aquilo que se convencionou de civilização cristã.

O cuidado para com os mortos, segundo o testemunho do anjo, atrai sobre Tobias as bênçãos de Deus (Tb 2,9; 12, 12). O próprio nosso Senhor, que ressuscitará ao terceiro dia, divulga a boa ação da santa mulher que lhe unge os membros com precioso perfume, como para sepultá-lo por antecipação (Mt 26,10-13). E o Evangelho lembra com louvores aqueles que, à descida da cruz, lhe recebem piedosamente o corpo, o cobrem com sudário e o depositam no sepulcro (Jo 19,38-42). Tais exemplos em absoluto não provam que os cadáveres conservam qualquer sensibilidade. E sim, que a Providência de Deus vela os despojos dos mortos e esses deveres de piedade lhe são agradáveis, por demonstrarem fé na ressurreição. (SANTO AGOSTINHO, 2017, P.103)

Entretanto no decorrer da idade média, mais especificamente na baixa idade média a partir do séc. XII a morte volta a ser algo estranhada pelos homens medievais, aquela que era no alvorecer do cristianismo uma passagem para se chegar a vida eterna estava agora sendo controlada pela Igreja que já se assentara como grande estrutura civilizacional no ocidente detendo todo saber e toda vontade de Deus e dos homens e sendo intermediaria entre as almas e o paraíso, provocando uma insegurança em relação a morte “Sente-se que a confiança primordial está alterada: o povo de Deus está menos seguro da misericórdia divina, e aumenta o receio de ser abandonado para sempre ao poder de Satanás”(ARIÉS Apud CAPUTO, P. 76).

Essas vai ser a base da superestrutura que dominará a mentalidade coletiva das civilizações cristãs na antiguidade e posteriormente cada ramo do cristianismo seguirá sua tradição e particularidades. E no ocidente, até a reforma protestante, prevalecerá a influência estrutural da Igreja Latina como detentora da ideologia dominante nas relações sociais sobre grande parte da Europa.

3. O império colonial português e a tradição cristã trazida em suas mentalidades

O processo de longa duração emerge de dois conceitos, a continuidade e a estrutural como observado nos objetivos deste presente texto. a continuidade no caso brasileiro é sem dúvida nenhuma a tradição cristã na qual iniciamos uma breve introdução no capítulo anterior e trazida pelo colonizador português, presente no nosso imaginário, “O cristianismo firma-se como uma realidade essencial da vida ocidental...” determinando os valores éticos, as posturas “diante da vida e da morte, a concepção do trabalho, o valor do esforço, o papel da mulher ou da criança” (Braudel, 2004, p.43). É bem verdade que o racionalismo grego será também um traço marcante na vida ocidental onde se fortalecerá com a ascensão de movimentos burgueses como renascimento e o iluminismo, porém e por mais que esse traço social tenha se impondo a vida moderna a religião permanecerá como forma coletiva de compreensão do mundo por parte das massas.

E a estrutura comprometida com os valores da tradição cristã no caso brasileiro além da igreja romana, foi o estado português do qual imbuído na crença de sua missão messiânica resultado das lutas contra os domínios árabes na península ibérica, e tendo os vencido expulsando tanto os árabes quanto os judeus. Expandiram-se pelo mundo em saques, conquistas e evangelização sobre o continente africano e asiático, posteriormente na América e com isso inauguram aquilo que Darcy Ribeiro chama no livro O povo Brasileiro de “Os fundamentos do primeiro sistema econômico mundial” chamando de “império mercantil salvacionista” (1995, p.65).

O então reino português impulsionado pelos novos ares que sopravam no velho continente promove uma revolução tecnológica com suas naus, e unifica todo o reino controlando autonomia feudal e os monopólios mercantis sendo assim o primeiro estado moderno da Europa, livres dos domínios “sarracenos” e da “exploração judaica” e o poderio dos nobres esvaziado, os portugueses bem como os espanhóis lançam as bases do mundo moderno (RIBEIRO, 1995, p.66).

Marshal Berman na sua obra Tudo que é solido desmancha no ar coloca que “ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição” (1986, p. 13), e nada melhor que península ibérica onde alvorecia a modernidade para melhor expressar essa contradição, isso porque a região passava por uma espécie de efervescência espiritual fruto das lutas contra os sarracenos e os judeus, onde o papel da Igreja Romana no fortalecimento dos estados Ibéricos foi decisivo. Também nesse momento que a Europa estava em convulsão com a reforma protestante e o poderio do Bispo de Roma sendo questionado pelos reformadores, emerge nos povos latinos um fervor religioso e o sentimento salvacionista em relação a fé verdadeira, o catolicismo, e surge uma espécie de recusa as contestações protestantes, pois estavam certos de que eram novos cruzados que cumpriam a vontade divina levando sua religião, a católica romana, aos novos povos dominados por esses impérios.

Certos de que eram novos cruzados cumprindo uma missão salvacionista de colocar o mundo inteiro sob a regência católico-romana. Desembarcavam sempre desabusados, acesos e atentos aos mundos novos, querendo fluí-los, recriá-los, convertê-los e mesclar-se racialmente com eles, Multiplicaram-se em consequência, prodigiosamente, fecundando ventres nativos e criando novos gêneros humanos. (RIBEIRO, Darcy 1995, p.67)

E nesse contexto sociocultural que os povos ibéricos se lançam ao mar, novos e viçosos em transplantar-se a outros povos, trazendo consigo um império mercantil que será  semente do capitalismo moderno, subjugando e impedindo autonomia dos povos conquistados, exterminando povos, línguas e culturas, criando novas formas de viver a custos altíssimos, e com os saberes apropriados desses povos que facilitava a adaptação do europeu aos novos domínios para explorar a força de trabalho dessas civilizações (RIBEIRO, 1995, P.65), é em meio a isso que surge o Brasil, ainda um pequeno pedaço de terra a leste da América do sul.

3.1. A ideologia que pavimenta a colonização no Brasil

Não é possível compreender a civilização brasileira sem olhar para a civilização que determinará grande parte da nossa forma de ser seja no campo econômico ou cultural, por isso, foi preciso olhar para a formação ibérica e suas constituições sócios estruturais, bem como a herança cristã católica no extremo oeste europeu, essas peculiaridades serão marcantes também para nós brasileiros até os dias de hoje, afinal essas foram as bases que regularam a colonização do novo continente, que no plano econômico se estabeleceu no Brasil uma fonte de matérias primas para a metrópole que motivava o mercantilismo escravocrata dos povos trazidos da África.

Entretanto a permanência nessas novas terras ocupadas não teria tido sucesso, se não fosse pavimentada pela via ideológica que conseguiu estabelecer no Brasil, com a ajuda da Igreja Romana e suas ordens religiosas, a religião cristã como forma de compreensão do mundo que lhes rodeava, pois uma das primeira coisas feitas pelo colonizador na terra que se prejulgava achada foi rezar uma missa, e no decorrer da ocupação do território a catequização e cristianização dos nativos foi férrea na ânsia de estabelecer a fé verdadeira e libertar os índios de sua gentilidade, o estado português recebeu funções clericais  da Igreja romana para estabelecer e perpetuar os valores apostólicos herdados pelo bispo de Roma, mas questionado pelos reformadores europeus, e com essa missão salvífica Deus lhes recompensavam com riquezas e vassalos.

O próprio estado assume funções sacerdotais expressamente conferidas pelo papa, para cumprir seu destino de Cidade de Deus contra a reforma européia e contra a impiedade americana. Para tanto, chega a transferir às coroas ibéricas o mais importante de seus privilégios, que era o padroado papal, dando-lhes o direito de nomeia, transferir e revogar bispados e outras autoridades eclesiásticas. (RIBEIRO, Darcy, 1995, p.71) 

É bem verdade que a dialética não se estabelece como muitos erroneamente acreditam maquiavelicamente oriunda de maniqueísmos onde o colonizador é mau e os nativo bom esse tipo de mentalidade empobrece a ciência humana. Os indivíduos são frutos de suas vivências sociais, de suas crenças e de sua ética, a superestrutura é algo presente em todo ser, nem por isso, deixaremos de analisar os interesses e as consequências desses valores sobre um crivo ético do presente, mas a verdade é que o catolicismo foi o cimento civilizacional da colonização portuguesa no Brasil.

O colonizador português crente da ideia de serem extensão da civilização europeia, submetem os nativos e posteriormente os povos africanos a ostensiva catequização levando a crer seus destinos de acordo a vontade de Deus levando-os a enxergar-se como homens pecadores, não havendo saída neste vale de lágrima, só poderia vir de “uma eternidade de louvor à glória de Deus no Paraíso”, com isso foram-lhes tirado de suas terras e convertido em mãos de obras para servir aos interesses de uma classe dominante que via-se como messiânica e civilizatória, é que o Ribeiro vai chamar de “Dialética do senhorio natural cristão contra a servidão, natural também, do Bárbaro.” (1995, p. 71-72).

Diante disso se compreende a extensão da tradição cristã à nossa civilidade como grande superestrutura das mentalidades coletivas e por meio dessa longa duração, a colonização portuguesa, iremos estabelecer as estruturas do estado brasileiro bem como apêndice de uma igreja que assim como na Europa será a principal fornecedora de ideologia cimentando as bases da cultura brasileira, controlando as massas e exercendo controle intelectual impedindo o florescimento de qualquer outra ideologia que pudesse ameaçar sua presença.

Uma igreja oficial, associada a um Estado salvacionista, que depois de intermediar a submissão dos núcleos indígenas através da catequese impõe um catolicismo de corte messiânico e exerce um rigoroso controle sobre a vida intelectual da colônia, para impedir a difusão de qualquer outra ideologia e até mesmo do saber científico. (RIBEIRO, Darcy,1995, P.76)

3.2. A Igreja católica e a religiosidade popular no Brasil

A igreja Católica que chega ao Brasil vem por meio do Império real português e sobre seu apadrinhamento. O século XV vai ser o século de grandes avanços tecnológicos e a igreja como grande estrutura da idade média estava atenta a essas transformações e queria estar a par das conquistas da revolução mercantil na qual Portugal despontava, para isso bulas papais outorgadas pela santa sé, antes mesmo da chegada ao Brasil, Romanus pontíficex (1454) e Inter coetera (1493) autorizaram o uso das terras e tudo que nela havia para seu prazer e seus descendentes (Ribeiro,1995, p.39,40).

Isso porque a igreja que antes era uma organização incontrastável que disputava o poder com os reis, agora tinha sua autoridade questionada pelos ventos que a cindiriam, a reforma protestante, que a pesar de estourar em 1517 já vinha insurgindo-se e cobrando uma postura mais adequada para aquela que representava os interesses de Cristo na terra, mas não raramente tinha seus próprios interesses mundanos a frente dos de Cristo, assim esses séculos tumultuosos farão com que a igreja se proteja no estado como forma de sobreviver, assim surge o padroado.

O padroado irá dar poder ao rei sobre assuntos até então espirituais, haja vista indicar o Bispo para as dioceses, e por vezes fará vistas grossas para os interesses mundanos desses impérios que sempre teve primazia sobre crescer e multiplicar conquistando e impondo seus ditames, para a igreja o que importava era a evangelização, levar adiante o seu salvador mesmo diante de um mundo que contradizia muitos dos escritos da bíblia, mas que serviu para interpretações teológicas messiânicas e escatológicas, fazendo crescer aqui uma nossa sociedade cristã diferente do velho mundo corrompido e messianicamente condenado ao fim.

Porém, essa utopia cristã que as ordens evangelizadoras da igreja, Jesuítas, franciscanos entre outras, proporcionaram nada mais foi do que a domesticação desses aborígenes em mãos de obras para os invasores que tinha interesses bem diferente dos da igreja, e quando as ordens religiosas entram em confronto com os interesses dos impérios ibéricos logo providências são tomadas e essas ordens expulsas como descreve Ribeiro:

As coroas optaram, ambas, pelo projeto colonial. Os místicos haviam cumprido já a sua função de dignificar a ação conquistadora. Agora deviam dar lugar aos homens práticos, que assentariam e consolidariam as bases do império maior que jamais se viu. Em lugar de sacros reinos pios, sob reis missionários a serviço da igreja e de Deus, os reis de Espanha e de Portugal queriam é o reino deste mundo. (Ribeiro, Darcy, 1995, p.62 e 63)

Atrelada ao estado e conivente com a exploração das novas terras encontradas, a igreja latina adentra ao Brasil como braço ideológico da dominação determinada a conter os fluxos hereges e pagão que o mercantilismo proporcionava, lutando pela ortodoxia no campo da consciência e assentando o domínio sobre os nativos e os posteriormente os povos vindo de África, fechando os olhos para as atrocidades para se manter de pé em um mundo que já não precisava mais do reino dos céus e sim do capital que a exploração proporcionava e tal ato lhe rendeu o bom fruto de ser semente germinadora da consciência que se estabelecia no novo mundo.

É bem certo que a prática comum da religiosidade brasileira nunca foi das mais pias, a igreja que tinha um Frade em cada navio vindo ao novo mundo, seja da Europa ou África, para observar se alguém estava em desconformidade com os ditames sagrados o famoso herege, porém fechava os olhos para as outros problemas que viam dentro desses navios como descreve Freyre (apud Montenegro, p.23).

Esse cerco para a fé verdadeira, logrou para a religiosidade comum brasileira uma couraça católica, mas internamente havia nela elementos de outras etnicidades que compuseram a formação do povo brasileiro, sempre desde os primeiros homens que aqui ficaram o contato do europeu com os nativos e posteriormente com os africanos foi um dos elementos fundantes na nossa formação social e por mais que que a reforma católica do concilio de Trento tenha sido uma resposta as más condutas da igreja, no Brasil o que se germinou foi justamente a religiosidade tradicional herdada do fim da idade média na região ibérica, atrelada as práticas ameríndias e africanas.

A religiosidade católica popular brasileira, foi uma prática que sempre se mostrou mais pessoal e intimista em relação ao divino e aquém ao controle catequético da igreja, o culto aos santos de suas predileções bem como, aos santos padroeiros, protetores de suas roças e de suas profissões, o cristianismo brasileiro é um cristianismo sincrético, fortemente influenciado pelos povos indígenas e africanos:

O catolicismo brasileiro herdou da cultura portuguesa certa brandura, tolerância e maleabilidade que a exaltada, turbulenta e dura religiosidade espanhola conheceu. De um modo geral e sem descer a detalhes e exceções, a vida religiosa dos católicos brasileiros reduz-se ao culto dos santos, padroeiras das cidades ou freguesias, ou protetores das suas lavouras, de suas profissões ou de suas pessoas, – um culto em grande parte doméstico e que não se conforma muito estritamente com o calendário oficial da Igreja nem com as prescrições litúrgicas; [...] uma delas é que, não raro, associa-se a práticas de natureza mágica aprendidas sobretudo dos indígenas que habitavam o país por ocasião da descoberta e que estão hoje reduzidos a algumas centenas de milhares nas florestas mais afastadas do litoral; outra é o fato das imagens dos santos sofrerem castigos quando tardam ou deixam de atender aos rogos dos seus devotos, o que assimila esse culto a uma idolatria. (AZEVEDO, Thales de, 2002, p.36)

É dessa forma que se assenta a religiosidade brasileira, católica sim pois grande parte dos brasileiros, pelo menos até meados do século XX, se identifica como católico, mas fortemente influenciado pelas práticas xamânicas e ancestrais oriundas das matrizes nativas da américa e dos negros trazidos a força para o novo mundo, a religiosidade brasileira é fervorosa e por influência portuguesa sempre aberta a novos elementos que fortaleçam sua fé.

3.3. A religiosidade sertaneja

Além do litoral fértil que serviu desde as capitanias hereditárias para cultivo canavieiro atendendo as demandas externas no sistema plantation, onde predominou a monocultura e a escravidão. Os sertanistas ao adentrarem o continente logo descobriram que essas terras do interior não eram tão férteis para expandir esse sistema de produção, o que se estabeleceu como forma de sobrevivência foi predominantemente a pecuária e as sesmarias, como forma de ocupação com o território.

Nos vastos sertões que iam de Pernambuco aos Goiás do Maranhão as Minas Gerais, se erigiu um sistema pastoril altamente hierarquizado, com características típicas, como a honra, uma religiosidade acentuada, “...carrancismo de hábitos, por seu laconismo e rusticidade, por usa predisposição ao sacrifício e à violência...” (Ribeiro,p.355) com caraterísticas típicas do grupos étnicos que lidam com o pastoreio como forma de sobrevivência.

A religião sertaneja, é certamente, um dos traços mais marcantes dessa região, onde 72% ainda hoje se declaram católicos, o que por si só já diz muito do traço religioso do nordeste. A região que apenas nos anos 30 do século XX teve início a aberturas de estradas, sempre foi marcada por movimentos de lutas sociais ligados ao cristianismo militante, com o surgimento de lideranças ligadas ao catolicismo, é bem verdade que quase nunca a igreja oficial apoiou tais movimentos ou mesmo seus líderes, o que não invalida a força da fé na percepção da realidade para o homem sertanejo.

O cristianismo para os sertanejos sempre foi a lente pela qual se compreendeu a realidade hostil na qual estavam inseridas, isto beneficiou e desafiou as classes dirigentes em diferentes situações, o que explica movimentos como Canudos, Pedra Bonita, o Boi santo do Caldeirão ou mesmo líderes como os famosos beatos, Padre Ibiapina, José Lourenço, Antônio Conselheiro ou mais famosos deles Padre Cícero.

Com práticas ritualísticas afincoas, e uma religiosidade herdada dos colonizadores, o sertanejo irá manifestar ideologicamente por meio da fé cristã a sua concepção do real, condenável isso ou não, o fato é que a sua religiosidade é a ferramenta mais palpável para lidar com o cotidiano da seca, até o século XX a miséria, o autoritarismo, os desmandos e a desigualdade, nas palavras de Josué de Castro:

O homem do nordeste ignora estas sutilezas dos sociólogos, estes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala de fatores negativos agindo como causa e efeito, dentro do processo social, mas sente na sua carne a realidade da miséria estagnante.... (Castro, Josué,2008, p. 129)

O registro do médico e geografo Josué de Castro em meados do século XX evidência a dureza de se viver nessa região, naturalmente dura pelas estiagens e constante falta de água e estruturalmente acachapante para a sua sobrevivência, e não tendo onde se agarrar, em vista da ausência do império das leis e do estado que durante o período imperial e republicano só chegou na região com tropas para reprimir os movimentos que ali se levantaram, o que explica esse apego a fé cristã do sertanejo, quem melhor definiu isso foi ainda Castro quando registra as ligas camponesas do nordeste que iniciaram suas lutas na anciã de terem direito a se enterrarem após a morte:

“Quem melhor para sentir os sentimentos e as lições de amor do grande profeta da Galiléia, do que esta gente destituída de tudo, sem maiores ambições neste Mundo? Apenas ambicionando um dia se apresentarem bem, diante dos olhos de Deus.” (Castro, Josué, 2008, p.130)

Podemos compreender a religiosidade do homem sertanejo, não como sinônimo de atraso, como muito autores colocam, mas como o mecanismo superestrutural e de longa duração que lhes tem servido de auxílio para compreender o mundo que lhes rodeiam e que estão sujeitos, Braudel fala que o cristianismo permanece no seio das decisões do mundo ocidental e que mesmo o pensamento contrário a essa superestrutura é fortemente influenciado pelo cristianismo.

4. Cruzes na beira da estrada aspectos e particularidades presentes na realidade

4.1. Contexto de ocupação da região de Passa e Fica/RN e Tacima,Campo de Santana/PB

Não muito diferente do contexto de ocupação sertanejo as cidades de Passa e Fica/RN e Tacima, Campo de Santana/RN, se desenvolvem pela grande força da pecuária e do algodão. Dantes foi rota dos sertanistas na procura de Ouro no Rio Grande do Norte posteriormente se tornou rota de boiadas que se dirigiam aos mercados mais rentáveis da Paraíba e Pernambuco e a estrada, que faz divisa com a Paraíba e Rio Grande do Norte, era o condutor entre esses estados e as cidades potiguares de Nova Cruz e Serra de São Bento.

O povoamento de Tacima começou a partir do século XVII. No entanto, historiadores fazem referência a presença de expedições portuguesas e holandesas no período de 1643 a 1645, pois existe registro de que eles foram até o Rio Grande do Norte a procura de célebre Mina de Cunhaú. Desenvolveu-se pelo comércio, atividade essa beneficiada pela localização geográfica, pela imensa cultura de algodão e pela atividade criatória, trazida pelos primeiros moradores do local. (IBGE apud Bernardino, 2018, p. 17-18)

Com o passar dos tempos as estradas que serviam de rotas para boiadas foram substituídas pelas estradas de rodagens levando trazendo caminhões com suas as mercadorias industrializadas para essas regiões que sobrevivem atualmente pela agricultura familiar e pequenos comércios locais.

Outro fato que chama a tenção para essas regiões é sua alta religiosidade, majoritariamente católica com festas dos padroeiros, que movimenta essas pequenas cidades. Além disso se destaca na região a passagem do último grande beato sertanejo, frei italiano Damião Bozzano, que segundo constatei empiricamente com relatos de moradores diziam que entrava nas cidades abriam as cadeias e soltavam os presos, e até mudou o nome de Tacima para Campo de Santana, abaixo segue o relato:

Conforme relato da senhora Maria Nazaré, agricultora, diz que com a visita pastoral do Frei Damião de Bozzano, durante uma festa religiosa realizada no município de Tacima no ano de 1996, pediu publicamente que o local passasse a se chamar Campo de Santana. E por se tratar de um Frei muito respeitado e venerado pela comunidade católica, seu pedido foi atendido. (Bernardino, 2019, p.20)

A religiosidade vai inclusive ser motivadora econômica com essas festas dos padroeiros e peregrinações religiosas, tendo em vista que Frei Damião andou por toda aquela região exortando o povo católico levando renovo a fé da região. Elementos como esses não nega o fato de o nordeste, ao lado do sul, brasileiro serem um dos maiores redutos do catolicismo no Brasil conforme dados do senso de 2010 onde registram mais de 70% de católicos nessas regiões.[1]

4.2. Santas Cruzes encontradas na beira da estrada

O recorte espacial que fizemos, foi fruto de um trabalho de levantamento patrimonial da região, cumprindo a legislação ambiental, e como apresentado anteriormente, em diálogos com comunidades e lideranças locais para levantar e descrever a cultura presente nas áreas impactadas pela linha de transmissão, o que nos chamou a atenção, a mim e ao meu companheiro de trabalho o arquiteto Everaldo Cristiano Silva, em dialogo ao longo do trabalho discutimos sobre essa pratica comum em como isso ainda era presente.

E a sensação quando se passa por uma estrada com seus asfaltos e sinalizações padrões existe um costume que destoa para aquela paisagem contemporânea moderna a todos nós, há cruzes e pequenas capelas, muitas delas com flores, pintadas, com pequenas pedras por cima de suas estruturas físicas, algumas com datas nomes e outras fotos, mas passando rapidamente nos carros podemos perceber olhando para aqueles memoriais que ali morreu alguém.

Considerando que a morte explica muito das relações humanas e levou a humanidade a buscar as mais diversas formas de compreensão, e justamente por não ter uma resposta clara diante desse fatídico destino do homem que é morrer, a religião, no caso do homem sertanejo a religião cristã, mais propriamente o catolicismo popular quinhentista herdado da colonização portuguesa como expressão social vai ser a forma ritualística de compreensão da morte.

Encomenda de rezas no pós morte sempre foi coisa comum no Brasil colonial. Darcy Ribeiro relata diante dos maiores latifúndios erigidos nos sertões brasileiros “... um baiano tão rico que deixou em testemunho, a favor dos Jesuítas, recursos para rezarem missas por sua alma até o fim do mundo” (Ribeiro, p.341), a exemplo exótico deste senhor de terras denota a relação de temor do pós morte e a importância da intercessão pelos que se foram.

No pensamento cristão católico a vida dos mortos e dos vivos estão em constante conexão os que partiram em Cristo rogam pelo que peregrinam na terra, o mesmo ocorre com os vivos que rogam pelos mortos independe de sua salvação. A jaculatória do “Ò meu bom Jesus” que se reza a cada dezena de ave marias expressa bem o rogo dos vivos pelos mortos quando ao interceder por todas as almas sem especificar se estão vivas ou mortas, denotando a perenidade da alma e a conexão da comunidade dos santos tanto quanto os que partiram como os que peregrinam.

“ò meu bom Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu e socorrei principalmente as que mais precisam”  (Prece contida após a dezena das aves marias do terço ou do rosário).

A relação que a comunidade dos vivo tem em relação a comunidade dos mortos se dá como um dever social, uma obrigação de preservar pela memória e pela constante recomendação daquela alma a Deus, independente do destino da alma, por isso se cultiva e conserva anualmente aqueles pequenos memoriais da vida e da morte, para a alma tenha paz e não assombre os vivos, o mesmo se nota que, como base em trabalhos empíricos pelo interior nordestino, que ao passar se reza pela aquela alma, nas palavras da psicóloga Oliveira não é exclusividade do interior nordestino, mas pratica comum ao catolicismo popular:

Desse modo, não só as comunidades rurais do Sertão de Pernambuco seguem uma ética camponesa de trocas e solidariedade, como também é possível encontrar formas de fé que constituem um catolicismo popular voltado para uma forma de existir no mundo e que envolvem as cruzes das estradas simbolicamente. Parto do argumento central de que as cruzes das estradas formam uma economia da salvação para mortes repentinas e uma estratégia de bem lembrar os mortos, sob uma dimensão do catolicismo popular. (Oliveira, 2014, p.110-111)

A seguir seguem alguns dos registros fotográficos do recorte que fizemos, o arquiteto Everaldo Cristiano Silva e eu, como parte desse trabalho, em 2016, essas fotos se devem a nossa curiosidade sobre esses pequenos memoriais de desconhecidos que morreram no trecho da PB-073 e da RN-093, na divisa entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte, mas especificamente entre Tacima-PB e Passa e Fica-RN.

Figura 3-Santa Cruz na Beira de estrada em Passa e Fica-RN-Fonte: Registro pessoal no dia 28/01/2016

Figura 4- Santa Cruz em beira de estrada em Tacima/PB-Fonte: Registro pessoal no dia 28/01/2016

Figura 5-Santa Cruz em Beira de estrada em Tacima/PB-Fonte: Registro Pessoal no dia 28/01/2016

5. Conclusão

A modernidade desde seu alvorecer tem em seu cerne a mudança como forma de ser. Desde as grandes navegações que romperam as fronteiras e os mitos do mundo medieval, ser moderno significa viver sob o signo da transformação. É assim que crescemos sob a égide do mundo burguês: Tudo aparentemente em constante transformação e mudando rapidamente, contudo Braudel nos chama a atenção para as continuidades e os processos de longa duração que permanecem mesmo em toda a agitação que a revolução industrial nos colocou.

Pois a revolução industrial não atingiu a todos os sentidos da vida social, a vida moderna no instante que trouxe mudanças importantes para o mundo, não foi ainda capaz de explicar os mistérios que povoam as mentes dos homens, como a morte por exemplo, e nisso aquela velha muleta que o homem criou para entender o mundo auxilia as gentes a compreender o meio que lhes rodeia.

É certo que as religiões como expressão do ser social também são influenciadas e mudam, mas elas também têm seus dogmas e respostas para perguntas tão antigas quanto o próprio homem. E dentro de suas particularidades elas conservam continuidades que podem ser ressignificadas, mas permanentes dentro de um processo de longa duração.

É certo também, que este artigo é apenas um pequeno recorte de um tema que pode e deve ser mais aprofundado, conforme detectei com a minha própria pesquisa lendo autores altamente qualificados que se debruçaram sobre o tema, mas a necessidade nos urge condensar para ser compreensível.

Chego à conclusão de que as santas cruzes de beira de estrada é a expressão de uma gente que carrega em si o catolicismo popular herdado da colonização portuguesa quinhentista e anterior ao concilio de Trento, com aspectos de cultos aos santos, economia da salvação e rituais simbólicos de encomenda das almas, de respeito ao ritual de passagem da vida para a morte.

Braudel diz em “Gramática das civilizações” ao descrever as civilizações europeias que o cristianismo latino foi e é a grande força superestrutural que motiva os povos da Europa e o do ocidente, mesmo o pensamento racionalista, que o combate, o faz sobre sua esfera (Braudel, 2004,p.309), essa afirmação entra em orbita com o que Ribeiro fala no seu livro “O povo brasileiro” que o Brasil é um pedaço da civilização ocidental com muito mais vigor pelas massas negras e ameríndias que se somam a cultura europeia trazida pelos portugueses (Ribeiro,2011,p.265). E o interior do nordeste conservou pelas condições de isolamento no qual esteve por centenas de anos e ainda conserva dado o baixo fluxo migratório esses aspectos tradicionais do cristianismo ocidental, que podemos chamar sim de catolicismo popular como forma de compreender o mundo.

Por isso concluo afirmando que as cruzes colocadas nas beiras das estradas ou onde alguém supostamente se acidentou ou morreu é a linguagem tradicionalmente posta para lembrar de alguém que partiu, no caso das beiras de estradas essa linguagem pode ser interpretada também como um protesto por algum acidente e por fim acaba por se tornar um memorial dos mortos que conecta os vivos e os mortos em uma só comunidade.

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[1] -Dados Extraído do artigo: Nordeste e sul são os últimos bastiões católicos do Brasil- https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/06/120629_mapa_religioes_jc-Acessado no dia 21/01/2021. 


Publicado por: Robson Nobre da Costa

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