PRODUÇÃO CULTURAL PERIFÉRICA: percepções e perspectivas

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1. RESUMO

Em meio a tanta potência de criação e produção cultural na periferia, o que faz as pessoas agrupadas em coletivos terem tantas fragilidades e dificuldades em dar um paço a frente em termos de organização popular para enfrentamento de suas mazelas? Esta pesquisa trata de algumas angústias e da vontade de tentar de alguma forma contribuir com propostas para se dar um paço à frente.

Palavras-chaves: Cultura; Território; Periferia; Políticas Públicas; Produção Cultural.

ABSTRACT

In the midst of so much creative power and cultural production in the periphery, what makes people grouped in collectives have so many weaknesses and difficulties in giving a front in terms of popular organization to face their problems? This research deals with some anxieties and the desire to try in some way to contribute with proposals to give a step forward.

Keywords: Culture; Territory; Periphery; Public policy.

2. INTRODUÇÃO

“Estamos perdidos, dancemos”.

Selma Barreto

A efervescência cultural nas periferias é algo que saltou aos olhos nas duas últimas décadas. Esta efervescência sempre existiu nas aldeias, nos quilombos, nas favelas, nas quebradas: gente junta faz cultura no dia-a-dia. A produção cultural periférica passa a ter maior visibilidade com os avanços tecnológicos nos meios de comunicação, principalmente por conta da internet e das redes sociais. Também é inegável os avanços trazidos pelo Programa VAI[1], no qual proporciona um apoio financeiro para os coletivos exercerem suas atividades, instigando sonhos mais altos. Juntando a estes dois fatores, outros programas e editais públicos e privados potencializaram novos agrupamentos e produções culturais, alimentando possibilidades de viver de arte até mesmo nas quebradas.

Os agrupamentos de indivíduos em coletivos por uma causa/objetivo em comum, ampliam horizontes para um olhar mais crítico do mundo. Pensar e criar em coletivo é algo mais trabalhoso, com muitos conflitos e contradições, mas também de muitos aprendizados fazendo as pessoas se sentirem vivas e humanas ampliando os sentidos. Diante da realidade do cotidiano, uma gama de pautas e temáticas vem à tona para além do fazer o artístico, tais como: sobreviver, morar, refletir, criar, pesquisar, se alimentar, enfim, um caldeirão em ebulição de processos múltiplos.  O agrupamento de artistas, coletivos, redes, fóruns e movimentos expõe uma rica diversidade e pluralidade de pensamentos e ações, evidenciando assim potências, fragilidades, conflitos, contradições e muitas esperanças.  Neste sentido, uma poesia recitada em um sarau, por exemplo, não é só uma poesia, mas trás consigo situações vividas no cotidiano recheadas de críticas sociais, de dores e alegrias, ou seja, de sentimentos e vida.

Pensar o dia-a-dia, as relações que se estabelecem no cotidiano, seja para reivindicar políticas públicas e ao mesmo tempo a emancipação humana e outros mundos, são contradições inquietantes, mas, assim como a utopia, nos fazem caminhar e sonhar com melhores dias para além das relações do Estado. Na experiência vivida de 11 anos no Coletivo ALMA[2], somado às participações na construção do Fórum de Cultura da Zona Leste e do Movimento Cultural das Periferias, e dentro da construção da lei de fomento à cultura da periferia e de tantos outros debates que extrapolam as caixinhas setorizadas das políticas públicas (mesmo dentro de todas as limitações e contradições), foi possível ver bem de perto toda esta potência destes sujeitos periféricos[3] ,  os modos de vida e as possibilidades de se recriar outros mundos para além da hegemonia imposta.

A questão central desta pesquisa é: diante de tantas fragilidades e potências, de olhares dos mais diversos e plurais, como canalizar as energias para combater o verdadeiro inimigo, mesmo diante da luta pela sobrevivência e de tantas feridas expostas? É uma via de mão dupla com um chamado para entender as opressões para combatê-las[4] e de saber pensar o espaço para nele se organizar, para ali combater (Lacoste, 1988), ou seja, construir esta unidade tão desejada e ao mesmo tempo tão difícil.

3. CIDADANIA, POLÍTICA, TERRITÓRIO E CULTURA

“(...)A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”.

Milton Santos

A trajetória que faz chegar até aqui parte do concreto, num diálogo entre pesquisas, vivências, conceitos, dados, bate-papos e entrevistas, de tentar entende e propor algo para melhorar as formas organizativas da produção cultural periférica.

Com o “boom” da industrialização em São Paulo entre as décadas de 1940 e 1980, as periferias crescem a passos largos, como bem expõe Lúcio Kowarick no livro “São Paulo: crescimento e pobreza”. Pessoas em busca de melhores condições de vida e principalmente de trabalho. Com elas, as desigualdades caminham em passos largos, o conflito e a luta, inevitáveis. Luta por transporte, por moradia, por saneamento básico, por luz e água, por creche, saúde, escolas e serviços básicos são encampados como bem expõe Eder Sader em seu livro “Quando novos personagens entraram em cena”. Muitas conquistas ao logo do tempo, mas a sensação ainda é de incompletude.

Na realidade é como se ainda faltasse tudo. Talvez ainda falte tudo.  É como se os direitos viessem a conta gota. A cada passo uma miragem, é a alegoria da caverna de Platão. É como se o desejo imediato fosse comer, e o utópico sair da caverna. A liberdade, distante.

Voltando para a “realidade”, estas lutas que precederam, trazem consigo novas lutas, e uma delas, categorizando, a luta pelo direito à cultura. Na periferia. Tantas lutas foram travadas em busca desta tal cidadania, ou melhor dizendo, da dignidade de ser humano, e o caminho ainda está tão longe. E não é só isso. No Brasil, nesta ainda jovem e frágil democracia representativa e burguesa, políticas públicas e mesmo as leis não garantem sua execução na plenitude, dependem da vontade política do governo de plantão e, na maioria dos casos, ao bel prazer da elite e do mercado financeiro ditando e distorcendo as regras já desiguais do Capital. Milton Santos, ao falar de um tipo novo de modelo cívico expõe que

Numa democracia verdadeira, é o modelo econômico que se subordina ao modelo cívico. Devemos partir do cidadão para a economia e não da economia para o cidadão. O modelo cívico forma-se, entre outros, de dois componentes essenciais: a cultura e o território. (SANTOS, 1987, p. 5).  

Neste sentido, somente o controle, a participação e a radicalidade popular poderão criar outra estrutura de sistema não baseada no lucro, mas nas pessoas e levando em conta os seres vivos como um todo.  Enquanto não se tem este processo em andamento, sem ilusões, não se pode abrir mão de nenhuma trincheira, tanto a luta reformista e mesmo “setorizada”, quanto a luta revolucionária, os processos são importantes para tomada de consciência à construção da unidade entre os oprimidos, se reconhecendo como tal. O elo entre cultura e território são de fato elementos essenciais para se (re)criar novos modos de vida, pois ainda conservam (mesmo com contradições e fragmentações) as relações comunitárias.

A hipótese defendida nesta monografia, quando se fala em produção cultural periférica, é este vínculo entre o fazer e fruir cultural com os laços de vivência do cotidiano entrecruzados com as complexas relações da vida, envolvendo o território, lugar e a sua cultura, ou, como disse Santos (1987), um modelo cívico-territorial [de civilização territorial] onde

É no território tal como ele atualmente é, que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta. Mudanças no uso e na gestão do território se impõem, se queremos criar um novo tipo de cidadania, uma cidadania que se nos ofereça com respeito à cultura e como busca da liberdade. (SANTOS, 1987)

O território[5] é categoria chave para se descontruir e reconstruir as bases das relações de poder e, o lugar como também categoria chave para manutenção e fortalecimento dos vínculos comunitários e para se criar processos de formação e organização política.

Agora a questão é [angústia]:  para conseguir se organizar é preciso se entender, no sentido de se criar um entendimento entre si, de coletividade, para se ter uma unidade de classe e de identificação do verdadeiro inimigo. Isso porque as opressões de raça, gênero, classe e de território[6] são instrumentos de dominação, pois exploram, segregam e fragmentam os indivíduos deixando feridas expostas no cotidiano, muitas delas seculares, que tardam a cicatrizar. As periferias com um todo são feridas expostas deste sistema desigual. A saída para romper com a dominação é coletiva e o conflito [cedo ou tarde] inevitável.

As chamadas “pautas identitárias” não seriam os desentendimentos necessários e essenciais para emergir uma nova política mais verdadeira de princípios? Não seriam esses processos políticos [a partir da identidade] para criação de uma unidade de consciência a partir do fazer e da prática cotidiana? O desentendimento, segundo Rancière (2018), é parte intrínseca da política, e política é conflito, é não-identitário, é trazer à tona outras perspectivas contra hegemônicas, contra a dominação, olhando o próprio movimento do real, do cotidiano[7]. Thompson (1998) fala da experiência compartilhada concreta, que em certa medida dialoga com Rancière e Milton Santos. Talvez o momento atual [2019] esteja na fase de realinhamento para tomada de uma nova consciência ampliada e complexa, no qual, raça, gênero, classe e território sejam fundamentos essenciais para uma nova esquerda e não apenas “identidade” das chamadas pautas identitárias.

4. PRODUÇÃO ARTÍSTICA E O TRABALHO NA CULTURA

Com a visibilidade que muitos artistas e coletivos culturais periféricos alcançaram nos últimos tempos, essa produção artística tem possibilitado que algumas pessoas possam “sobreviver de arte”. Ou seja, consigam ganhar o básico do seu sustento por meio da criação artística que realiza ou de atividades de apoio e articulação dessa produção.

O período mais intenso de ampliação das políticas culturais para as periferias da cidade de São Paulo que, nas análises desta pesquisa, aconteceram sobretudo entre 2013 e 2016, criaram certa sensação e expectativa de que era possível vislumbrar viver da criação, produção e/ou fruição artística na cidade. Os diversos programas criados neste período, as bolsas, a contratação de arte-educadores para os equipamentos culturais nas periferias, a contratação de apresentações artísticas de muitos coletivos no circuito de programação da Secretaria Municipal de Cultura (SMC) etc., possibilitaram certa circulação de recursos entre os artistas e coletivos que despertou e aguçou o desejo de se “viver da cultura”. Uma das políticas públicas que não foi criada neste período, mas avançou consideravelmente foi o programa Jovem Monitor Cultural[8]. Os jovens recebiam uma bolsa e realizam uma formação por meio de atividades práticas desenvolvidas no interior dos departamentos e serviços da Secretaria de Cultura. Muitos jovens periféricos que experimentaram o programa passaram a vislumbrar essa possibilidade.

As várias unidades do SESC na cidade e outros centros e espaços culturais privados passaram a fazer uso dessa mão-de-obra que se formou nos programas ou no próprio fazer artístico periférico. No entanto, já em 2017, com os atrasos no lançamento dos editais e o contingenciamento de recursos de diversos programas, somado ao desemprego estrutural do país, muitos trabalhadores viram seu sonho de “trampar na cultura” se distanciar. Não poucos artistas e ativistas tiveram que voltar ao mercado de trabalho formal, se aventurar em um “bico” ou se “auto empregar” em algum aplicativo.

Para dar conta dessas condições (e contradições) materiais concretas, alguns coletivos têm se empolgado com a ideia de um “empreendedorismo cultural” ou “periférico”. Fundações empresariais[9] têm financiado encontros com o tema do empreendedorismo na periferia como forma de estimular o surgimento de pequenos negócios que possam “vender a marca periferia”. Livia De Tommasi (2018) aponta que esse estímulo ao empreendedorismo já ocorria desde o governo Lula, mesmo com a economia em franco crescimento. Essa mentalidade teria sido estimulada por meio do acesso ao crédito e de medidas como a criação do MEI – Microempreendedor Individual.

Em São Paulo, talvez por ter um conjunto mais amplo de políticas culturais direcionadas aos jovens periféricos (Programa VAI, Fomento à Cultura de Periferia, Jovem Monitor Cultural etc.) o discurso do empreendedorismo tenha ficado mais encorpado nos últimos anos, sobretudo na zona leste. A pesquisa não deu conta de uma investigação mais aprofundada, mas há sinais de que na zona sul o discurso e prática do “empreendedorismo periférico” já acontece há mais tempo.

Na entrevista realizada com os ativistas Dede e o mestre José Soró[10] (ambos da Comunidade Cultural Quilombaque), eles comentaram que um conceito que utilizam muito lá pela região de Perus é o da “SeVirologia”. O artista periférico é aquele que “se vira nos 30”. Ou seja, dá um jeito de buscar a sobrevivência de algum modo. Eles rechaçaram qualquer debate teórico em torno do tema do “empreendedorismo”, afirmando que são formas de buscar a sobrevivência que as camadas populares sempre fizeram. A forma como se nomeia consideraram um debate inócuo.

De todo modo, mesmo com ou sem o apoio direto das políticas culturais, o trabalho na cultura sempre contou com uma alta dose de precarização. As relações trabalhistas sempre foram frágeis, caracterizadas por uma acentuada “pejotização”, recheada de “recibos de ajudas de custos” e marcada pela “sobrevivência por projetos”. Aliás, essas características comuns das precárias relações de empregabilidade na ação cultural vêm pautando as contrarreformas do trabalho formal no país.

Na pesquisa sobre as ações empreendedoras (ou seja lá como deve-se nomeá-las) de alguns grupos ou ativistas, percebe-se a ausência de uma prática historicamente marcante nas camadas populares que são as cooperativas ou outras formas de buscar caminhos por meio da solidariedade e ação coletivas. Por vezes, os caminhos encontrados do “empreender” têm um peso no indivíduo bastante acentuado que a coletividade acaba não sendo pensada também como uma possibilidade de “saída”.

A ação do trabalho focada no indivíduo (independentemente se ele se percebe ou não “patrão” de si) cria uma dificuldade bastante útil para o sistema que é a falta de uma consciência de “classe”. Ao não se perceber como pertencente à “classe trabalhadora” o/a trabalhador/a tem dificuldade de se engajar em lutas mais coletivas. Neste aspecto, a pesquisa suscitou algumas perguntas que requerem respostas coletivas e mais investigações e estudos: Em relação à produção cultural periférica, como é desenvolvida a identidade do “trabalhador” da cultura? O “artista” se vê como aquele que tem “um dom natural e excepcional” ou entende o seu processo criativo como uma forma de trabalho que deve receber remuneração, que está envolvido em determinadas relações, que deve acionar direitos etc.? Como voltar a pensar formas coletivas de autogestão que promovam geração de renda para os trabalhadores da cultura?

A pesquisa também suscitou reflexão sobre outro aspecto que diz respeito mais estritamente à produção artística propriamente dita. De um modo geral, é sabido que o conteúdo ético que compõe a maioria das produções de arte periférica gira em torno da denúncia da realidade em que se está inserido, da crítica às desigualdades raciais e de gênero, do combate aos genocídios etc. Porém, uma questão que se desponta, sobretudo neste contexto de maior radicalização da luta de classes no país, é: há algum projeto de sociedade que vem sendo transmitido e anunciado na arte periférica? há alguma possibilidade desse tipo de arte ser portadora de um projeto mais amplo e radical de transformação societária?

5. PRODUÇÃO CULTURAL PERIFÉRICA: PERCEPÇÕES E PERSPECTIVAS

Para além da vivência do cotidiano, diversas conversas informais, entrevistas e participações como ouvinte em palestras e encontros com a temática da cultura, foi pensado em levantar algumas percepções e perspectivas partindo do olhar de trabalhadores e militantes da cultura. O trabalho, como eixo central da sobrevivência, é um ponto crucial para os trabalhadores da cultura, pois, praticamente em todas as conversas esta temática aparece nas discussões, a cultura como modo de vida e como alternativa de sobrevivência e a preocupação de como se manter produzindo arte. Dentro dessa discussão, a organização popular, em coletivo, em redes, fóruns e movimentos locais e regionais para se criar uma unidade continua sendo o grande desafio. Isso porque a principal dificuldade centra-se nas condições materiais que se remetem ao trabalho e sobrevivência. Outro ponto é a formação política e de consciência de classe, ainda não equalizado e em processo de formação. Das experiências ouvidas, o fazer na prática e todos os processos de debates e militâncias acabam sendo a formação na prática, porém, embora com algumas críticas à academia, não se nega a teoria e a importância da academia.

Durante as entrevistas, em opiniões em comum, se aponta a chave da organização da sociedade civil para garantir a disputa pelo orçamento público para a cultura, pois, com investimentos públicos na área, se pode gerar trabalho e contribuir com a movimentação da economia. Ao questionar sobre a questão de se reivindicar mais Estado ou menos Estado, notou-se que o momento ainda é de reivindicar mais Estado e as políticas culturais são elementos a serem reforçados para ampliar o acesso e fruição dos bens culturais, com garantias em lei e com mecanismos de participação e monitoramento popular.

Os conflitos organizativos dentro destes movimentos culturais giram em torno principalmente das chamadas pautas identitárias, que hora se fragmentam e hora se unem, fortalecendo os movimentos e as ações. Nas palavras do mestre José Soró, um dos entrevistados, “(...) o movimento [cultural] era muito imaturo para fazer um enfrentamento de frente que a nova conjuntura impôs”.

No entanto, o que se percebe é que não é só o movimento cultural periférico que se vê imaturo para fazer os enfrentamentos necessários neste novo contexto, mas mesmo os movimentos históricos também estão “perdidos” em relação ao nível de radicalização e autoritarismo que vem ganhando força na sociedade brasileira. Ademais, o que se apresenta é que o movimento cultural periférico parece estar no centro dos conflitos simbólicos que tomam conta do país atualmente. O debate sobre questões raciais, relações de gênero, diversidade sexual, direitos humanos, a crítica à violência policial, as formas alternativas de pensar a vida para além de qualquer padronização religiosa ou eurocêntrica etc.

Tudo isso são conteúdos fundamentais da produção cultural que caracteriza as bandeiras de luta do movimento periférico. E exatamente estes temas estão na ordem do dia da “ofensiva conservadora”. Ou seja, o movimento de periferia está no centro da “guerra cultural”[11] que se estabelece no Brasil atualmente. No entanto, como todos os demais movimentos de caráter progressista, o movimento cultural está com dificuldades de articulação para romper a fragmentação imposta pelo atual cenário político. Esse incômodo parece ser geral.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de maturidade dentro das organizações em coletivos, fóruns e movimentos locais e regionais ainda são o grande entrave para uma articulação mais ampla. Isso porque o trabalho é o tema central que pauta vossas vidas, no qual contribui com a alienação. A luta número um é a luta pela sobrevivência e a formação política se dá na maioria das vezes na prática. De que forma pode-se criar condições materiais para o “viver da cultura” e ter uma participação mais ampla e aprofundada para construção de um novo projeto de sociedade? Ao mesmo tempo em que fazer arte pode propiciar uma visão mais humana e crítica da realidade, mais difíceis são as condições para se garantir a sobrevivência. É como se o Capital desse a corda para se enforcar. Se você quiser ser livre terá que pagar um alto preço de sacrifícios por isso e muitos vão ficando pelo caminho. Estes sacrifícios se abatem incisivamente com o passar do tempo e com o avançar da idade, os boletos que vão surgindo e não cessam, só aumentam, o aluguel, a alimentação, a vestimenta, o lazer etc., milhares de talentos e potências sendo descartadas diretamente.

Durante as conversas é muito evidente que o fator sobrevivência sempre pesa mais, resistir, antes de tudo, é sobreviver na Sevirologia como já dizia o mestre Soró. Garantindo a sobrevivência, o ato de resistir implica em destruir alguma coisa para construir outra coisa (CABRAL, 1974, p. 11). Então de que forma pode-se destruir o que não serve nessa sociedade para se construir outras formas de vida carregando secularmente dentro das ancestralidades diferentes formas de mutilação [como exemplo as segregações em raça, classe, gênero, território] na qual impede passos mais amplos rumo ao progresso da sociedade. Essencialmente não há outro meio se não pelo sacrifício. Criar a consciência de que o sacrifício hoje poderá trazer bons frutos para o amanhã. E este sacrifício tem que ser organizado de forma lúcida para não desperdiçar energia e desviar do foco de criar condições para desenvolver toda a capacidade humana rumo a sua emancipação, no qual, dentro do sistema capitalista isso é impossível. O medo das incertezas do amanhã também é outro fator impeditivo do desenvolvimento das capacidades de progresso humano.

O Movimento Cultual das Periferias, como exemplo, que ao longo de sua trajetória desde 2013 não conseguiu consolidar uma carta de princípios para se seguir com mais objetividade suas bandeiras de luta. A cidadania incompleta exposta por Milton Santos (1987) reverbera na vida das pessoas e consequentemente nas suas tentativas de organização. As mutilações e o tempo da dor não estão equalizados, ainda falta tempo e empatia para entender o outro e dar o passo seguinte que é a ação coletiva e solidária reconhecendo os elementos que os une na resistência e luta política. É preciso acolher as contradições como processo de formação política e aprimoramento da cultura. Dentro da luta reformista, a disputa pelo orçamento da cidade voltado para a produção cultural periférica com acompanhamento da execução das políticas culturais é fundamental, pode criar condições materiais de trabalho e renda para a sobrevivência e liberar corpos e mentes para a ação política.

Por fim, esta monografia de caráter ensaístico ainda está longe de propor soluções para as angústias apresentadas e expõe apenas divagações introdutórias para começar a pensar caminhos. Como já bem disse a camarada Selma Barreto: “Estamos perdidos, dancemos!”. E lembre-se: dançar é muito bom!

Arte da Sevirologia – Flyer de divulgação da Usina de Valores.

7. REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Renato S. Juventude e Participação – novas formas de atuação juvenil na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). São Paulo: PUC-SP, 2009.

CABRAL, Amílcar. Análise de alguns tipos de resistência. Lisboa: Seara Nova: 1974.

D’ANDREA, Tiarajú Pablo. A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo. Tese de Doutorado, USP, 2013.

HAESBAERT, Rogério. Território e Multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia – Ano IX – nº 17, 2007b.

KOWARICK, Lúcio (org.). São Paulo 1975: crescimento e pobreza. São Paulo: Loyola, 1976.

LACOSTE, Yves. A geografia – Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra; tradução Maria Cecília França. – Campinas, SP: Papirus, 1988.

POLATO, Leandro. Cultura e Igualdade: Perspectivas do Direito à Cultura no Brasil. 2018.

RANCIERE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes – São Paulo: Editora 34, 2018 (2ª Edição).

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo: 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.

SANTOS, Milton. Por Uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência universal.  Rio de Janeiro: Record, 2011.

RAIMUNDO, Silvia. Território, Cultura e Política: Movimento cultural das periferias, Resistência e cidade desejada. (Doutorado em Geografia) USP, 2017.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

TOMMASI, M. Livia de. Culturas de periferia: entre o mercado, os dispositivos de gestão e o agir político. In Política e Sociedade – revista de sociologia política da UFSC. Florianopólis, v. 12, n.23, 2013.


[1] Programa de Valorização de Iniciativas Culturais, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

[2] Coletivo ALMA (Aliança Libertária Meio Ambiente)

[3] D’Andrea (2013) denomina sujeito periférico como quem “tomou posse de sua condição de periférico, quem se transmutou de ser passivo a ser ativo dessa condição, de periférico em si para periférico para si". Tese de doutorado “A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na Periferia de São Paulo”.

[4] Luís Felipe Miguel. https://blogdaboitempo.com.br/2017/11/10/entender-as-opressoes-para-combate-las/ [Acesso em 06/09/2019]. 

[5] (...) a partir da concepção de espaço como um híbrido – híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e “idealidade”, numa complexa interação tempo-espaço, como nos induzem a pensar geógrafos como Jean Gottman e Milton Santos, na indissociação entre movimento e (relativa) estabilidade – recebam estes os nomes de fixos e fluxos, circulação e “iconografias” [na acepção de Jean Gottman], ou o que melhor nos aprouver. (...) o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT, 2004a: 79 apud HAESBAERT, 2007, p. 27).

[6] Partindo da provocação feita pelo orientador Tiarajú no qual eu concordo. Porem não sei se este trabalho dará conta de aprofundar essa discussão.

[8] Até 2013, o Programa restrito ao Centro Cultural da Juventude (CCJ). Depois, ampliou para todos os equipamentos e departamentos da Secretaria Municipal de Cultura.

[9] Ver https://gife.org.br/projeto-negocios-de-impacto-periferico-fomenta-empreendedorismo-na-base/

[10] Entrevista realizada em 02/10/2019.

[11] James Hunter [Culture wars: the struggle to define America] cria o termo “guerras culturais” para se referir ao embate entre “progressistas” e “conservadores” sobre temas de diversidade sexual, controle de armas, legalização das drogas e do aborto que ganharam força na década de 1990 nos Estados Unidos. 


Publicado por: Marcello Nascimento de Jesus

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