O TERROR FANTÁSTICO VERSUS A REALIDADE NA OBRA (LITERÁRIA) DE STEPHEN KING

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1. Resumo

Escrever sobre um trabalho do grande Stephen King é, no mínimo, ousadia de quem realiza tal intento. Contudo, é inquietante também encontrar trabalhos tão pertinentes e ricos de uma observação como leitor que não poderíamos deixar nossa passagem pela vida acadêmica sem fazermos uma pesquisa que nos dignificasse ao escrevê-lo. Por tudo que consideramos quem seja o escritor Stephen King, buscamos apresentar uma narrativa concernente ao olhar poético do autor, roteirista, e ensaísta do gênero terror, apontando paralelos de uma escrita com interseções em comum em 03 (três) de suas maiores obras: O iluminado, A Dança da Morte e Sombras da Noite. Para desenvolvermos nosso trabalho, trouxemos autores como: Gancho (2002), Candido (2007), Todorov (1970) e Martins e Nicolini (2017) que permearam nosso referencial teórico, conduzindo-nos a relatar este estudo dividido em 03 (três) capítulos. No primeiro capítulo, falamos do gênero épico (narrativo) e sobre o terror no gênero épico; já no segundo capítulo, trouxemos um olhar sobre o fantástico e suas vertentes, o gótico na literatura fantástica e alguns aspectos da vida e obras de Stephen King; e, por fim, no terceiro capítulo, apresentamos nossa análise dos dados que nos condicionou a concluir que Stephen King é, de fato, um grande gênio da literatura mundial. Esperamos poder dar continuidade a esta pesquisa que muito tem a investigar sobre as obras de King, almejando que este trabalho também sirva de fonte para futuras pesquisas nesta área.

PALAVRAS-CHAVES: Stephen King. Terror. Fantástico. Gótico

2. Abstract

Writing about a work by the great Stephen King is, to say the least, bold from someone who carries out such an attempt; however, it is also disquieting to find works so pertinent and rich in observation as a reader that we could not leave our academic life without doing research that would dignify us in writing it; for everything we consider who the writer Stephen King is, we seek to present a narrative concerning the poetic look of the author, screenwriter, and essayist of the terror genre, pointing out parallels of writing with common intersections in 03 (three) of his greatest works: The Shinning, The Stand and Night Shift; to develop our work, we brought authors such as: Gancho (2002), Candido (2007), Todorov (1970) and Martins and Nicolini (2017) who permeated our theoretical framework, leading us to report this study divided into 03 (three) chapters: in the first chapter we talk about the epic genre (narrative) and about terror in the epic genre; in the second chapter we take a look at the fantastic and its aspects, the gothic in fantastic literature and some aspects of the life and works of Stephen King; and finally, in the third chapter, we present our analysis of the data that led us to conclude that Stephen King is, in fact, a great genius in world literature. We hope to be able to continue with this research that has a lot to investigate about King's works, while we hope that this work also serves as a source for future research in this area.

KEYWORDS: Stephen King. Terror. Fantastic. Gothic

3. Tabela de Abreviaturas Siglas

a.C – Antes de Cristo.

4. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A literatura tem desempenhado um papel significativo na sociedade ao longo dos séculos, refletindo pensamentos, ideais e preocupações humanas. Com uma ampla gama de gêneros, a literatura consegue alcançar diferentes públicos e camadas da sociedade. O gênero narrativo do terror, por exemplo, tem conquistado um público estabelecido nos dias de hoje e tem sido adaptado para o cinema, atraindo ainda mais pessoas para esse segmento.

Stephen King possui uma vasta produção literária, com mais de sessenta livros, duzentos contos e vendas de quatrocentos milhões de cópias de suas publicações, predominantemente nos gêneros narrativos de terror, ficção e suspense. Sua escrita singular é caracterizada pela inserção de pessoas comuns em situações extraordinárias, assim como personagens extraordinários enfrentando problemas ocultos ou comuns da sociedade. Essa mescla entre realidade e ficção abre portas para que o autor explore a imaginação dos leitores, ao mesmo tempo em que os faz refletir sobre questões reais.

A partir dessa linha de raciocínio, foi-se necessário obter a resposta aos seguintes questionamentos: como as temáticas do terror e da realidade são exploradas na obra de Stephen King e quais são suas implicações na narrativa literária e o impacto na perspectiva do leitor? O uso do terror como elemento narrativo permite uma reflexão sobre aspectos entrelaçados com a nossa realidade? O terror contribui na criação de uma tensão psicológica? O fantástico mantém o interesse do leitor em acompanhar a narrativa?

Esta pesquisa teve como objetivo observar a realidade literária dentro de um estilo de terror fantástico na obra de Stephen King: para dentro de uma realidade cotidiana com foco no gênero do terror, como o uso dos aspectos do terror, das vertentes do fantástico e da realidade na obra de Stephen King que se cruzam, e como esses elementos impactam diretamente nos leitores, que, muitas vezes, têm uma interpretação livre. Assim, neste trabalho, examinamos 3 (três) das maiores obras do autor. São elas: O Iluminado, que aborda o alcoolismo; A Dança da Morte, que apresenta versões políticas e (a)morais do ser humano; e Sombras da Noite, que aborda de forma subliminar transtornos psicológicos. Além disso, analisamos previamente publicações relacionadas a essa temática do terror. Desse modo, por meio deste estudo, buscamos compreender como as temáticas do terror e da realidade influenciam a experiência literária, o envolvimento emocional dos leitores e a reflexão sobre questões reais abordadas nas obras de Stephen King.

Ao investigar essas implicações, pretendemos contribuir para uma melhor compreensão da obra de Stephen King, destacando seu papel como autor relevante no gênero narrativo do terror. Exploramos como suas obras transcendem os limites do entretenimento, proporcionando reflexões profundas sobre a condição humana e os desafios enfrentados pela sociedade.

5. CAPÍTULO I: BASE TEÓRICO – EMPÍRICA

5.1. O GÊNERO ÉPICO (NARRATIVA)

Para realizar esta pesquisa, foi necessário abordar todas as camadas da temática do projeto. Começaremos com uma breve introdução aos gêneros literários, cujas teorias norteiam este estudo. De acordo com Gancho (2002, p. 6), “gênero é um tipo de texto literário, definido de acordo com a estrutura, o estilo e a recepção junto ao público leitor ouvinte.” Sendo assim, o gênero traz consigo características únicas que conectam o texto a quem tem acesso a ele. Há três tipos de gêneros literários: o épico, o lírico e o dramático. O gênero épico (narrativo) aborda a narrativa ou ficção que se estrutura sobre determinada história; o gênero lírico pertence à classe da poesia lírica; e o gênero dramático (ou teatral) é aquele que engloba os textos teatrais, tendo em vista que os espetáculos, em si, não estão diretamente ligados à literatura. (GANCHO, 2002).

Como delimitação teórica para o objeto de estudo desta pesquisa, aprofundaremos nossa abordagem no termo "gênero épico" (ou "gênero narrativo"), considerado a forma mais antiga de manifestação literária, originada do grego "epikós" por volta do século VII a.C. Um dos grandes nomes desse gênero é o poeta grego Homero, criador de "Odisseia". Desde então, o gênero épico se ramificou em diferentes formas, como novelas, contos, romances, crônicas e fábulas. Tendo em vista o amplo campo de estudo que é a narrativa, iremos referenciar os seus tipos.

Dentre os tipos de narrativa, destacam-se as de prosa, como o romance, a novela, o conto e a crônica. O romance traz consigo as características mais marcantes nas narrativas, sendo dificilmente confundidas com as demais devido aos seus elementos de enredo, personagens e temáticas abordadas. Gancho (2002) afirma que o romance

é uma narrativa longa, que envolve um número considerável de personagens (em relação à novela e ao conto), maior número de conflitos, tempo e espaço mais dilatados. Embora haja romances que datem do século XVI (D. Quijote de La Mancha, de Cervantes, por exemplo), este tipo de narrativa consagrou-se sobretudo no século XIX, assumindo o papel de refletir a sociedade burguesa (GANCHO, 2002, p. 7).

A novela, segundo Gancho (2002), é um romance mais curto, no qual os eventos ocorrem em um espaçamento de tempo mais reduzido. Da mesma forma, a quantidade de personagens, conflitos e espaços também é reduzida se comparada ao romance. A autora aponta também a importância de não confundir o termo “novela” com as novelas que vemos na televisão, pois as duas funcionam sobre estruturas diferentes. Quanto ao conto, conforme a mesma autora, é considerado uma narrativa mais curta, na qual todos os elementos que a compõem são ainda mais reduzidos do que na novela. O conto também foi amplamente adotado por diversos autores dos séculos XVI e XVII e, nos dias de hoje, passou por algumas alterações, abandonando o caráter moralizante e adotando o uso do fantástico ou do psicológico para desenvolver seu enredo. O último tipo de narrativa, de acordo com Gancho (2002), a crônica, é considerado um texto híbrido, já que nem sempre apresenta uma narrativa completa. A crônica pode contar, comentar, descrever ou analisar algo. Embora possua essa característica hibrida, a crônica possui alguns aspectos característicos, como textos curtos e leves, que normalmente abordam problemas do cotidiano (GANCHO, 2002).

Com essa introdução em mente, passamos a definir como poderíamos analisar uma narrativa. Conforme defende Gancho (2002), ao analisar uma narrativa, devemos considerar todos os aspectos que a compõem. Ao analisar o enredo, por exemplo, dois pontos devem ser levados em consideração: sua estrutura, ou seja, as partes que o compõem, e sua natureza ficcional. Gancho também destaca a importância de não ter uma visão limitada do termo "ficção", pois ele possui um significado mais abrangente. A ficção permite ao autor e ao leitor explorarem todo o potencial da imaginação.

Partindo desse pensamento, podemos assumir que não há limites para o que um autor pode fazer com sua obra. Como é pré-definido na literatura fantástica, de acordo com Todorov (1970), a definição de fantástico seria simplesmente a mescla entre aquilo que é real e aquilo que é imaginário, elementos que podem ser observados no cotidiano e, ao mesmo tempo, elementos que só existem na imaginação do leitor e do escritor.

A decisão entre uma narrativa completamente fantástica e uma completamente realista, ou mesmo um meio-termo entre os dois, é possível. Segundo Candido (2007), devemos ter em mente que existem diferenças e semelhanças claras entre seres vivos e seres fictícios. Essas semelhanças e afinidades são o que criam um sentimento de verdade, ou seja, a verossimilhança. A identificação do leitor com a obra, no entanto, não se faz suficiente para estudar os aspectos de uma narrativa, pois, ao fazer esse estudo, é necessário observar os aspectos que a compõem. Candido afirma que:

Conclui-se, no plano crítico, que o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo. Mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente (CANDIDO, 2007, p. 75).

Diante disso, é possível concluir que, durante um estudo narrativo, é preciso observar os aspectos de forma individual e coerente, não se prendendo apenas ao que está escrito de forma direta. É necessário ir além do que está descrito na obra.

6. O TERROR NO GÊNERO NARRATIVO

Definimos como terror a sensação de experienciar muito medo, sentir algo angustiante devido a uma experiência real ou fictícia. Segundo o dicionário de Figueiredo (1913), o terror significa “grande susto. Pavor. Qualidade do que é terrível.” (FIGUEIREDO, 1913, p. 1941). Apesar de ser uma sensação física sentida pelo ser humano, o terror também é abordado em diferentes camadas da sociedade. Para este estudo, discorreremos sobre o terror no gênero narrativo.

O terror no gênero narrativo vem sendo aclamado por diversos leitores desde sua primeira aparição durante o século XVIII até os dias de hoje. Sem dúvidas, o gênero se expandiu e tomou proporções imensas, extrapolando as páginas e alcançando as telas de cinema e até mesmo as telas das televisões. Segundo Martins e Nicolini (2017),

as narrativas de terror fazem parte dos gêneros da ficção maravilhosa, nelas são narradas acontecimentos da ordem do sobrenatural. No entanto, os fatos narrados precisam ganhar a credibilidade do leitor, a ficção maravilhosa também precisa criar efeitos de realidade (MARTINS; NICOLINI, 2017, p. 186).

O gênero do terror atingiu diversas pessoas desde sua criação, inspirando histórias, contos e romances. Ao mencionarmos o gênero, sem dúvidas, um dos nomes que se destaca é o de Edgar Allan Poe. Allan Poe (1809 – 1849) foi um escritor, poeta, editor norte-americano e crítico literário. Criador de poemas como “The Raven” (O Corvo) e contos como “The Black Cat” (O Gato Preto), as obras de Poe definiram uma geração, caracterizando-se pelo sofrimento causado pela morte.

Poe é também reconhecido como o criador do conto policial, incorporando elementos reais e ficcionais em suas histórias. No poema “O Corvo”, testemunhamos a história de um jovem (sem nome apresentado) que sofre pela perda de sua amada Lenora. Ele recebe a visita de um corvo falante em sua casa. O corvo, porém, só consegue repetir as palavras “nunca mais”, levando o homem a um estado de quase loucura. A escrita de Poe é amplamente reconhecida entre os escritores do gênero, sendo citada até os dias de hoje quando se trata do gênero narrativo de terror na literatura.

Outro grande nome do terror é o escritor estadunidense conhecido como H. P. Lovecraft, pioneiro do gênero terror cósmico. Uma de suas obras mais conhecidas é “The Call of Cthulhu” (O Chamado de Cthulhu), que conta a história de uma investigação com base nas anotações de um caderno, relatando a existência de um ser considerado uma espécie de deus por alguns povos. Essa entidade era um ser cósmico que, junto à sua volta a terra, traria o fim da humanidade. Esta era a principal característica do terror cósmico de Lovecraft: a ideia de que a humanidade é insignificante em comparação com a imensidão do cosmos e que a humanidade poderia ser varrida por essa vastidão a qualquer momento.

Assim como Poe, Lovecraft inspirou diversos escritores ao redor do mundo, incluindo o próprio Stephen King. “O Chamado de Cthulhu” possui uma grande temática de tensão psicológica criada durante o desenvolvimento de sua narrativa. A exposição dos fatos anotados no caderno investigado cria uma expectativa de terror que aumenta a cada página lida. Lovecraft acreditava que a maior forma do medo era o medo do desconhecido, um aspecto que pode ser observado em diversas de suas obras. Essa fórmula foi seguida por diversos autores ao longo dos anos, incluindo Stephen King.

A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos contestarão esses fatos, e a sua verdade admitida deve firmar para sempre a autenticidade e dignidade das narrações fantásticas de horror como forma literária (LOVECRAFT, 1973, p. 10).

7. CAPÍTULO II: STEPHEN KING E O FANTÁSTICO ALÉM DO AUTOR

7.1. A LITERATURA FANTÁSTICA E SUAS VERTENTES

Neste seguimento, para obtermos um maior entendimento sobre seu conteúdo, torna-se necessária uma definição do significado do termo fantástico, bem como uma introdução à literatura fantástica e suas vertentes. De acordo com o dicionário de Figueiredo (1913), o termo fantástico significa “que só existe na fantasia. Imaginário. Caprichoso. Extraordinário. Incrível. Aquilo que só existe na imaginação.” (FIGUEIREDO, 1913, p. 856). O gênero fantástico representa um dos diversos gêneros da literatura, e atualmente não é estranho para aqueles que estão inseridos no ambiente literário. É importante destacar que o fantástico está inserido em diversas obras literárias ao redor do mundo. No entanto, foi o filósofo e linguista franco-búlgaro Tzvetan Todorov quem popularizou o termo “literatura fantástica” com o lançamento do seu livro “Introduction a litterature fantastique” (1970).

Na obra “Introdução à Literatura Fantástica”, Todorov reúne estudos de diversos autores que discutiram acerca do tópico do fantástico e explora suas perspectivas, ao mesmo tempo que oferece sua própria visão sobre do assunto. Todorov (1970) afirma o seguinte a respeito do fantástico:

Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra. O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural. O conceito de fantástico se define, pois, com relação ao real e imaginário... (TODOROV, 1970, p. 15-16).

Com isso, Todorov (1970) explica que o fantástico reside nesta incerteza entre o real e o imaginário, e a partir do momento em que se escolhe um dos dois fatores, somos apresentados a dois conceitos: o estranho e o maravilhoso. Esses dois subgêneros costumam estar presentes nas obras de literatura fantástica. O mesmo autor explica que o maravilhoso seria um evento desconhecido, algo que ainda não aconteceu, e que pode ou não vir a acontecer no futuro. Já sobre o estranho, ele indica que tal subgênero se refere a algo conhecido, acontecimentos considerados normais, mesmo que surpreendentes, comumente residindo no passado. E, por fim, Todorov (1970) explica que a incerteza presente no fantástico deve estar situada em um ocorrido presente. Todorov (1970) conclui então sua introdução ao estranho e o maravilhoso com a seguinte menção:

Examinemos com mais atenção estes dois vizinhos. Advirtamos que em cada um dos casos surge um subgênero transitivo: entre o fantástico e o estranho, por uma parte, e o fantástico e o maravilhoso, por outra. Estes subgêneros compreendem as obras que mantêm comprido tempo a vacilação fantástica, mas acabam finalmente no maravilhoso ou o estranho (TODOROV, 1970, p. 25).

Tendo isso em mente, podemos observar que o estranho e o maravilhoso muitas vezes trabalham em conjunto com o fantástico, criando algumas subdivisões. Segundo o diagrama de Todorov (1970), elas são:

Quadro 1

Estranho-Puro

Fantástico-Estranho

Fantástico-Maravilhoso

Maravilhoso-Puro

Fonte: Todorov (1970, p. 25)

Após nos apresentar as vertentes existentes no gênero do fantástico, Todorov (1970) nos dá uma definição de cada uma delas. Como mencionado anteriormente, o estranho-puro, na visão do autor, seriam ocorridos aos quais se pode explicar de uma forma inteiramente racional, mesmo que sejam acontecimentos que levem o leitor a ficar surpreendido com a ordem dos fatos. O fantástico-estranho, de acordo com o autor, é quando nos deparamos com uma obra que possui uma série de eventos que parecem ser de origem sobrenatural, mas na realidade possuem uma explicação baseada na lógica. Já o fantástico-maravilhoso, na visão de Todorov (1970), seria quando ao ler uma obra nos vemos diante de diversos ocorridos que não possuem uma explicação lógica. Seriam acontecimentos extraordinários, que acabam levando a uma aceitação daquilo que é extranatural. De acordo com Todorov (1970), esse é o conceito mais próximo do fantástico puro, pois a falta de explicação dos ocorridos corrobora com a existência de algo além do nosso conhecimento. Por último, voltamos ao maravilhoso puro. Como explicado anteriormente, seria a ausência de esclarecimento dos ocorridos na obra, algo que pode ou não ocorrer no futuro. Por fim, Todorov nos dá uma última relação a respeito do sobrenatural e do fantástico. Todorov (1970) diz o seguinte:

Pode referir-se ao fantástico, quer dizer, a uma certa reação ante o sobrenatural; mas também ao sobrenatural em si. Neste último caso, será necessário distinguir entre uma função literária e uma função social do sobrenatural; (...) para muitos autores, o sobrenatural não era mais que um pretexto para descrever coisas que jamais se atreveram a mencionar em termos realistas; (...) pode ficar em dúvida que os acontecimentos sobrenaturais não sejam mais que pretextos; mas esta afirmação contém, por certo, uma parte de verdade: o fantástico permite franquear certos limites inacessíveis em tão não se recorre a ele. Se conforme retomarem os elementos sobrenaturais tais como foram anteriormente enumerados, poderá adverti- la legitimidade desta observação (TODOROV, 1970, p. 82-83).

Diante disso, podemos concluir que o fantástico possui uma série de características únicas, permitindo ao autor lidar com questões reais ao mesmo tempo em que utiliza de acontecimentos extraordinários. A presença dessa linguagem peculiar possibilita que aspectos absurdos da realidade, como a violência e a repressão ditatorial, sejam revelados e denunciados de forma velada, por vezes encobrindo os objetivos ocultos em atos que demandem total atenção do leitor ou expectador a partir do processo criativo do autor. É importante relembrar que, para King, existe uma linha bastante tênue entre a realidade e sua mágica com o fantástico.

7.2. O GÓTICO NA LITERATURA FANTÁSTICA

Agora que abordamos o fantástico e suas vertentes, iremos, nesta instância, discorrer a respeito do gótico e o seu papel na literatura fantástica. A palavra “gótico”, de acordo com o dicionário de Figueiredo (1913), é um derivado da palavra “Góthia” (antigo povo germânico). Diversos estudos apontam que a literatura gótica teve início no século XVIII com o lançamento da obra “The Castle of Otranto” (O Castelo de Otranto) (1764) de Horace Walpole. A obra possuía alguns dos aspectos característicos da literatura gótica, como a presença de elementos sobrenaturais e inexplicáveis, além de conter diferentes aspectos psicológicos reais dos personagens (outras características do gótico são: a loucura, o mal interior, personagens melodramáticos, cenários antigos como castelos ou cemitérios, segredos do passado, profecias e maldições).

De acordo com o livro de Andrew Smith, “Gothic Literature” (Literatura Gótica) (2007), Walpole inicialmente lançou a primeira edição afirmando que a obra seria uma tradução de um manuscrito italiano criado originalmente entre os anos 1095 e 1243. No entanto, devido ao sucesso da obra e às críticas recebidas, Walpole lançou uma segunda edição em 1765 com segundo prefácio no qual admitia ser o verdadeiro autor da obra. Com relação aos prefácios da primeira e segunda edição, Smith (2007) expõe o seguinte:

Isto significa que o primeiro prefácio ajudou a situar o romance como um romance antigo, lidando com histórias fantásticas e improbabilidades, enquanto o segundo prefácio enfatizou que o romance pode ser lido “realisticamente”. Walpole afirma, portanto, que, na segunda edição, o romance é realmente sobre como os ‘agentes morais’ agiriam “de acordo com as regras da probabilidade”, de modo que a ambição central era “fazer com que eles [seus personagens] pensassem, falassem e agissem, como poderia ser suposto que meros homens e mulheres fariam quando colocados em posições extraordinárias' (SMITH, 2007, p. 19 – Tradução minha).

O gótico na literatura fantástica possui algumas vertentes que valem a pena ser mencionadas: o terror gótico e o horror gótico. O terror gótico está presente em obras que possuem aspectos como o medo, a antecipação de algo que está por vir. No fantástico, esses elementos são utilizados em conjunto com o sobrenatural, ajudando na criação do sentimento de antecipação. O horror gótico é diferente. Primeiramente, é importante frisar a diferença entre os dois: o terror é o medo; o horror seria o sentimento de repulsa ou nojo, algo gráfico, muitas vezes visceral. O horror gótico, então, utiliza esses aspectos na sua construção para causar impacto em seus leitores.

Como mencionado anteriormente, um dos que se destacou no gênero de terror/horror gótico foi o autor Edgar Allan Poe. Suas obras eram carregadas de melancolia, sentimentalismo, angústia, aspectos sobrenaturais e irracionalidade. Uma das obras do autor que possui diversos aspectos do gótico é “The Fall of the House of Usher” (A Queda da Casa de Usher), um conto que nos apresenta a história de dois irmãos gêmeos, Roderick e Madeline Usher. A história é narrada por um amigo de infância de Roderick (cujo nome não é mencionado), esse amigo vai à casa a pedido de Roderick, pois, ao se sentir doente e sozinho, ele pede que seu amigo venha a sua casa com urgência. Um dos aspectos do gótico presentes na obra está relacionado à casa Usher em si. Segundo Cabral (2018):

Outra característica gótica na ficção de Poe é que quase sempre há locais remotos ou assombrados nos quais a ação ocorre. Geralmente, esses locais assombrados se entremeiam à morte e à loucura e aumentam o tom sobrenatural dos contos. Dessa forma, o gótico contribui para a construção das narrativas de horror de Poe, e assim o faz a partir do espaço narrativo e da ambientação. Um dos melhores exemplos é justamente o trabalhado neste estudo monográfico. Em “A Queda da Casa de Usher”, a morte, a loucura, o espaço e a ambientação estão interligados. A casa, por exemplo, é descrita como um espaço em forma de cabeça, com uma rachadura, e se associa ao estado mental de Roderick: a casa é sua cabeça, sua mente, sua sanidade. A rachadura é a insanidade que levará a linhagem dos Usher à ruína. Assim, a casa ecoa o estado mental do morador e, quando ela vem abaixo, o sujeito também cai (CABRAL, 2018, p. 20).

Diante disso, podemos estabelecer uma relação entre “A queda da Casa de Usher” e “O iluminado” de Stephen King. O Hotel Overlook possui algumas características da escrita gótica, justamente por ser um ambiente antigo e fantasmagórico, onde diversas pessoas faleceram ao longo de sua construção. Os fantasmas daqueles que morreram durante a história do hotel se tornaram parte daquele lugar, não só no sentido literal da palavra, mas também no sentido figurado. É possível observar que os espíritos do hotel formaram uma espécie de consciência única, como se o hotel possuísse um grande cérebro sobrenatural (embora seja importante mencionar que alguns espíritos receberam mais destaque, como a senhora Massey do quarto 217). Durante o clímax final do livro, é possível observar que quando o hotel é destruído, a consciência que habita aquele local também se esvai e lentamente desaparece.

Em seguida, voltemos então a mencionar outro autor importante no gênero, Howard Phillips Lovecraft, ou como é popularmente conhecido: H. P. Lovecraft. Como mencionado anteriormente, Lovecraft, assim como Poe, tornou-se um dos grandes nomes do gênero do terror devido ao seu “horror cósmico”. O horror cósmico de Lovecraft tinha como principais características o medo do desconhecido, a loucura, profecias de seres antigos e a imensidão do universo. Essas características são atreladas aos princípios do gênero gótico, tornando Lovecraft um dos maiores do gênero.

Embora atualmente a relevância de Lovecraft seja irrefutável para todos aqueles que buscam discutir sobre o gótico, é válido apontar que o autor não obteve reconhecimento em vida. Suas obras só atingiram proporções mundiais anos após a sua morte. “O Chamado de Cthulhu” é provavelmente a sua obra mais conhecida, tendo passado por diversas traduções ao longo dos anos e atingido as mídias do cinema e dos jogos de entretenimento.

É compreensível que essa obra tenha se tornado tão importante ao longo das décadas. Afinal, para nós leitores, a ideia de que a nossa existência é inferior comparado à infinitude do universo, e que existem criaturas além de nossa compreensão, é simplesmente assustadora. As criaturas descritas nos contos de Lovecraft possuem aspectos grotescos, reforçando novamente a relação entre suas obras e o gótico fantástico. O próprio Cthulhu é descrito como uma criatura gigantesca, que possui aspectos humanoides em conjunto com aspectos de polvo e dragão, causando terror em quem esteja próximo a sua presença.

O poderoso Cthulhu deslizou viscosamente para a água e saiu em perseguição do navio com braçadas de uma potência cósmica e tão imensas que chegavam a formar ondas na superfície do mar. Briden olhou para trás e enlouqueceu, rindo histericamente, e assim seguiu rindo, com intervalos, até que a morte o encontrou, certa noite, na cabine, enquanto Johansen perambulava delirante pelo navio (LOVECRAFT, 1928, p. 58-59).

Stephen King aplicou o conceito de “medo do desconhecido” presente no terror/horror gótico em diversas obras, incluindo nas que serão mencionadas ao decorrer deste trabalho. Em diversos momentos, podemos observar os personagens se deparando com coisas que estão além de sua compreensão, personagens cuja existência transcende o nível do que é considerado ser humano. Além de aplicar um dos aspectos importantes do gótico, que são os aspectos sentimentais/morais, em diversos momentos vamos nos deparar com os personagens questionando suas éticas, seus princípios e até mesmo lutando contra seus desejos mais sombrios.

Logo, o gótico na literatura fantástica continua existindo, mesmo após 259 anos após a sua origem, sendo um gênero ainda mais valorizado atualmente, com suas obras literárias recebendo diversas adaptações para diferentes tipos de mídia, incluindo cinema, televisão, teatro e até mesmo na indústria musical. O gênero influenciou diversos autores ao longo dos anos e várias outras obras foram criadas a partir de seus princípios, incluindo as do mestre Stephen King.

  1.  

7.3. BIOGRAFIA DE STEPHEN KING – NARRATIVAS HISTÓRICAS

Neste capítulo do nosso trabalho, abordaremos alguns detalhes revelados pelo próprio Stephen em convenções, palestras e entrevistas, com uma breve introdução sobre sua vida e obras que se faz necessária para melhor conhecermos sua forma escolhida para produzir suas obras, visto que os seus trabalhos têm implícitos muito de sua vida. Para tanto, utilizar-nos- emos de informações sobre a vida dele, descritas no livro “On Writing” (Sobre a Escrita) (2000) e em seu site oficial.1

Nascido em Portland, uma cidade do estado do Maine, nos Estados Unidos, em setembro de 1947, Stephen Edwin King é filho de Donald Edwin King e Nellie Ruth Pillsbury e irmão de David King. De acordo com registros históricos, dois anos após o seu nascimento, seu pai abandonou a sua família, deixando-os somente com a mãe para cuidar deles. Sendo essa uma parte de sua infância na cidade de Fort Wayne, no estado de Indiana, que já trazia significados nas suas futuras produções por se tratar do local onde a família de seu pai morava na época. Ele afirmava que a sua paixão pela escrita e pelo fantástico possuíram uma grande influência paterna, apesar de ter convivido pouco com seu pai. Mas essa influência pode ser resultado de uma ausência, também, que tinha essa lacuna preenchida com sua dedicação aos textos.

Tudo começa quando ele ainda era apenas um garoto. Sua primeira descoberta acontece quando, em uma visita à casa de sua tia, assim como toda criança curiosa, ele decide vasculhar o sótão da casa e encontra uma caixa com alguns pertences diversos. Um dos itens nessa caixa era um livro de histórias de H. P. Lovecraft, e na capa do livro era possível observar um monstro verde saindo de um cemitério. Futuramente, para sua grande surpresa, Stephen descobre que aquela caixa pertencia ao seu pai. Isso foi revelado em uma entrevista no programa “Sunday Morning”, da emissora CBS. Nessa conversa, o escritor descreve esse acontecimento com as seguintes palavras: “É isso, eu encontrei algo que ressoa com a minha alma”. Durante a entrevista, o autor também ressalta a importância que a sua mãe teve em sua carreira. Quando ele tinha apenas doze anos, sua mãe o presenteou com uma máquina de escrever. Enaltecendo esse feito, ele afirma que a sua mãe nunca menosprezou o sonho que ele tinha de escrever histórias e era sua maior incentivadora. Apesar de o jovem não ter tanta idade, já mostrava um talento nato para escrever de forma livre e deixar no papel o seu pensamento criativo, que seria uma de suas características mais marcantes adiante. De acordo com King (2021), sua mãe deu espaço para ele ser aquilo que ele queria ser, e que ela nunca riu da sua ambição de escrever histórias.

A partir dos doze anos de idade, Stephen tem uma nova vida em Durham com sua mãe e seu irmão, de volta ao seu estado de nascimento. Tempos depois, após concluir o ensino médio, King recebe um prêmio nacional para jovens escritores, que concedeu uma bolsa de estudos para cursar inglês na Universidade do Maine. Foi durante esse período que ele começou a publicar uma coluna própria no jornal do campus, o “The Maine Campus”, intitulada “King´s Garbage Truck” (Caminhão de Lixo do King). Nessa coluna, assim como em sua participação nos interesses políticos dos alunos do campus, o autor deixava sua marca popular pela universidade.

Ainda durante esse período na Universidade, King vendeu para uma revista seu primeiro conto por apenas $35.00 (trinta e cinco dólares), no ano de 1967. Foi nas suas idas e vindas à biblioteca da universidade que ele conheceu uma estudante chamada Thabitha Spruce, que futuramente viria a ser sua esposa. Ele se formou em 1970, obtendo o diploma que se chama “Bachelor of Arts in English”, (Bacharelado em inglês). No Brasil, esse diploma é equivalente ao diploma que se obtém ao se graduar em Letras Inglês. Foi nesse mesmo ano que King e Thabitha tiveram sua primeira filha, Naomi King, e em 1971 se casaram.

Depois de se formar e passar um tempo lecionando inglês e literatura na escola “Hampden Academy”, a vida de Stephen virou de cabeça para baixo. No ano de 1973, as coisas começaram a mudar. Um dia, enquanto ele estava em casa escrevendo um romance, ele considerou tudo como puro lixo e literalmente jogou tudo o que tinha escrito no lixo. Ao observar a cena e recuperar os papéis da lixeira, ele mostrou à sua esposa, que demonstrou interesse e disse que gostou do que viu. Ela insistiu para que ele continuasse desenvolvendo a obra que ele desprezava, mas ela via um grande trabalho surgindo ali. Ela se ofereceu para ajudar a desenvolver uma personagem feminina. Foi assim que nasceu o primeiro romance de Stephen King, publicado em 1974 e intitulado "Carrie".

Eu não conseguia me ver perdendo duas semanas, talvez um mês, em um romance de que eu não gostava nem conseguiria vender. Então joguei tudo fora. Na noite seguinte, quando voltei da escola, Tabby estava com as páginas nas mãos. Ela tinha visto o texto enquanto esvaziava a lata de lixo, espanara as cinzas de cigarro das bolas de papel amassado, alisara as páginas e começara a ler. Tabby queria que eu continuasse a história. Queria saber o resto. Eu disse que não sabia nada de nada sobre meninas adolescentes. Ela disse que me ajudaria com essa parte. Tabby estava com o queixo inclinado e abriu aquele sorriso arrasadoramente lindo. — Você tem coisa boa aí — disse ela. — Tenho certeza disso (KING, 2000, p. 48).

A partir desse momento, uma possível parceria e um novo apoio moral e intelectual passaram a marcar os novos ideais de Stephen King. Ele via em sua esposa visionária a possibilidade colaborativa de imergir no mundo da ficção, preservando a ideia do autor, com as lapidações de um novo olhar que ele não tinha desde a separação de sua mãe, que era sua maior inspiradora. Esse apoio foi o que mais deu forças para que Stephen continuasse a escrever. Em muitas de suas obras, percebemos essa ramificação que se cruza em alguns momentos, tornando seu trabalho uma leitura prazerosa e compulsiva que vai da ficção à realidade, com abordagens que permeiam até o fantástico.

7.4. OBRAS DE STEPHEN KING – TEMÁTICAS QUE SE (INTER) CONECTAM

Após a publicação e o sucesso de vendas de “Carrie”, Stephen King decidiu se dedicar completamente à carreira de autor, publicando “Salem´s Lot” (Salem) em 1975, e “The Shining”, ou, na sua versão brasileira, “O Iluminado”, em 1977. Essa obra é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores e mais consagradas obras de King, pois, em sua narrativa, o autor traz para esse romance a vida de Jack Torrance, um ex-professor e aspirante a escritor que aceita um emprego temporário como zelador para cuidar da manutenção do Hotel Overlook durante o inverno. Jack vê esse emprego como uma oportunidade de recomeço para ele e sua família, pois há tempos enfrenta o alcoolismo e alguns episódios de raiva.

No desemaranhar da obra, King insere o leitor, já se conectando com as previsões do que pode acontecer com essa família, ao narrar que o protagonista, junto de sua esposa Wendy e seu filho Danny de cinco anos, passará a temporada de inverno isolados nesse hotel, supostamente normal. O que nenhum deles sabe é que esse hotel é infestado de espíritos malignos que tentam incorporar em seu filho Danny, um garotinho aparentemente com grandes poderes sobrenaturais. King (1997) narra que Danny viu a palavra “REDRUM” refletida vagamente na redoma de vidro, agora refletida duas vezes, e viu que formava “MURDER” (assassinato). Não sendo tão fácil quanto previram, é quando esses mesmos espíritos decidem usar as fraquezas do Jack, que passa a sofrer com os assédios da espiritualidade ali manifestada.

Nessa obra, assim como em muitas outras, King utiliza do fantástico para abordar temas reais, como o alcoolismo e a violência doméstica vivida pela Wendy, esposa de Jack, que enfrenta um grande terror ao se ver em uma situação em que terá que se proteger e proteger seu filho de seu marido que não resiste à tentação do álcool, ao mesmo tempo que sucumbe à possessão dos espíritos malignos. Esses espíritos têm apenas um objetivo: matar Danny e conseguir tirar proveito de suas habilidades sobrenaturais.

A linha entre a realidade e ficção mantém-se bem clara nessa obra, como na passagem em que o próprio Danny, mesmo sendo um garotinho de cinco anos, possui uma incrível sensibilidade às situações entre o pai e a mãe, ficando no meio de suas discussões e lidando com elas de forma sensata, espelhando o crescimento precoce que muitas crianças experienciam ao ter que lidar com um ambiente caótico em suas casas. Sem dúvidas, “O Iluminado” impacta o leitor com suas personagens bem construídas em um ambiente frio (a estação atual é o inverno), longe da civilização (tudo se passa em um antigo hotel) e uma atmosfera aterrorizante (com a presença dos espíritos malfazejos). É possível perceber que se trava uma luta do bem (a família unida) contra o mal (álcool, violência).

Um ano após o sucesso estrondoso de “O Iluminado”, Stephen King lançou aquilo que seria futuramente um de seus maiores romances, tanto em questão de conceito quanto em volume. “The Stand” (A Dança da Morte)2 foi lançado em 1978 e traz consigo uma premissa um tanto quanto aterrorizante. Na obra, podemos ver uma sociedade em colapso quando o Departamento de Defesa dos Estados Unidos falha em conter um paciente contaminado por um vírus. A maior parte da população mundial é exterminada por um supervírus da gripe chamado “Capitão Viajante”. Em questão de meses, todos os sistemas essenciais da humanidade são desabilitados, bilhões de pessoas são mortas devido ao caos pandêmico, e a humanidade se vê à beira da extinção, restando apenas uma pequena porcentagem da população.

Nesse romance, podemos observar a luta e sobrevivência daqueles que, por algum motivo, foram imunes à epidemia. Vemos diversas personagens se encontrando, estabelecendo territórios, criando laços e compartilhando experiências diversas. No entanto, não é só de sobreviver ao colapso do mundo que a obra é feita; há também uma grande batalha entre as forças do bem e do mal. Aqueles que restaram têm apenas duas opções: unir- se à doce Mãe Abagail, uma senhora centenária e fiel a Deus, com o objetivo de reestruturar a sociedade como a conheciam e reestabelecer a ordem; ou aliar-se ao Randall Flagg, um homem cheio de misteriosas habilidades sobrenaturais, que busca estabelecer a sua própria sociedade por meio de um governo tirânico e extremista, visando o caos e a desordem.

A temática sobrenatural da obra está presente nesses dois personagens, Randall e Abagail, que são vistos como dois opostos. Abagail é descrita como uma doce senhora negra de cento e oito anos de idade, que tem uma forte conexão com Deus, agindo como uma espécie de profeta e usando seus dons para unir aqueles que têm bom coração. Por outro lado, Randall Flagg não é um simples homem, mas sim uma entidade sobrenatural com grandes poderes, sendo descrito como a personificação do mal. Randall utiliza de sua grande influência e poderes para atrair diversos seguidores para seu lado, prometendo algo para cada um deles.

A obra aborda temáticas como religião, fanatismo religioso, anarquia, sociedade, política, sobrevivência e relações humanas. “A Dança da Morte” conquistou um espaço entre as maiores obras de King, utilizando seus aspectos realistas e sobrenaturais para causar impactos morais em seus leitores. A batalha entre o bem e o mal é abordada de forma brilhante, e, diversas vezes, os leitores são confrontados com dilemas morais, devido aos personagens incrivelmente humanizados diante das situações extraordinárias do livro. Conforme lemos:

É, na verdade, sempre que dois ou três de vocês se juntam, algum outro vai perder a merda da vida. Precisarei lhe dizer o que a sociologia nos ensina sobre a raça humana? Eu lhe direi isto em poucas palavras. Mostre-me um homem ou uma mulher solitários e lhe mostrarei um santo. Dê-me dois e eles se apaixonarão. Dê-me três e eles inventarão essa coisa encantada que chamamos de “sociedade”. Dê-me quatro e eles construirão uma pirâmide. Dê-me cinco e eles transformarão alguém num pária. Dê-me seis e eles reinventarão o preconceito. Dê-me sete e em sete anos eles reinventarão a guerra. O homem pode ter sido feito à imagem e semelhança de Deus, mas a sociedade humana foi feita à imagem e semelhança de Seu oposto, e está sempre tentando voltar para casa (KING, 1978, p. 430).

No mesmo ano, King lançou a sua primeira coletânea de contos, intitulada “Night Shift” ou, como foi traduzida aqui no Brasil, “Sombras da Noite”. A coletânea trazia consigo um total de vinte contos, cada um tratando de uma temática específica. O autor descreve no prefácio do livro que a narrativa do terror tem a habilidade de manter o leitor interessado no desenrolar da história, criando uma sensação de expectativa para o desenrolar dos eventos.

Em “Sombras da Noite”, King escreve sobre diversos tipos de situações sobrenaturais, apresentando situações aterrorizantes que não veríamos acontecer no mundo real. Ao mesmo tempo, alguns aspectos dessas histórias são um tanto quanto familiares para nós. No conto chamado “O Bicho-Papão”, vemos a história de um pai enfrentando sérios problemas psicológicos ao perder seus três filhos para algo que ele mesmo não consegue explicar: uma criatura sobrenatural que chama de Bicho-Papão. No conto “Às Vezes Eles Voltam”, presenciamos uma batalha entre o bem e o mal na história de um professor que, ao retornar à sua terra natal para lecionar na escola local, vê-se perseguido pelos fantasmas dos assassinos de seu irmão.

“Sombras da Noite” conquistou sua marca registrada na cultura popular devido aos seus contos que foram adaptados para o cinema, sendo até hoje uma das coletâneas mais famosas de King.

À noite, quando vou para a cama, ainda me esforço para ter certeza de que as minhas pernas estejam debaixo dos cobertores quando as luzes se apagam. Não sou mais criança, mas... Não gosto de dormir com uma perna para fora. Porque se uma mão fria sair de sob a cama e agarrar meu tornozelo, sou capaz de gritar. Sim, sou capaz de gritar a ponto de acordar os mortos (KING, 1978, p. 12).

8. CAPÍTULO III: METODOLOGIA

Esta pesquisa se fundamenta em um estudo bibliográfico qualitativo de cunho interpretativista, com base nos trabalhos de Gancho (2002) e Candido (2007), os quais estão relacionados ao estudo da narrativa literária. O objetivo é abordar as temáticas do terror e da realidade nas obras do Stephen King, investigando como as duas se alinham e impactam os leitores de forma direta. De acordo com a visão de Karl Erik Schøllhammer,

a obra se torna referencial ou “real” na medida em que consegue provocar efeitos sensuais e afetivos parecidos ou idênticos aos encontros extremos e chocantes com a realidade em que o próprio sujeito é colocado em questão (SCHØLLHAMMER, 2002, p. 82 apud MARTINS & NICOLINI, 2017, p. 184).

O enfoque interpretativista se torna necessário, uma vez que o pesquisador, assim como os demais leitores de determinado autor ou obra, possui a capacidade de criar seu próprio ponto de vista sobre as obras e o mundo nelas retratado. Dessa forma, o pesquisador não apenas analisa objetivamente, mas também interpreta as razões subjacentes ao que está escrito. Conforme afirma Kayser (1970):

Na verdade, na lírica fala-se também de motivos. Como tais designam-se, por exemplo, a corrente do rio, o túmulo, a noite, o erguer do sol, a despedida etc. Para que, na realidade, sejam motivos autênticos, têm que ser entendidos como situações significativas. A sua transcendência não consiste, neste caso, no desenvolvimento da situação de acordo com uma ação, mas sim em se tornarem vivência para uma alma humana, em se prolongarem interiormente na sua íntima vibração (KAYSER, 1970, p. 86).

Seguindo essa linha de pensamento, observam-se aspectos estratégicos semelhantes em diferentes obras de Stephen King que abordam a mesma temática. O autor utiliza sua escrita para criar uma atmosfera de tensão psicológica, ao mesmo tempo em que proporciona espaço para gerar um sentimento de verossimilhança entre seus leitores. Esse enfoque permite reflexões sobre dilemas reais entrelaçados na vida cotidiana da sociedade.

A necessidade de realizar este estudo surgiu da percepção de que o autor criou obras muito complexas e personagens bem construídas. Uma leitura superficial e descomprometida não é suficiente para apreciar toda a riqueza literária que o autor incorpora em suas obras. Portanto, é crucial dedicar uma atenção mais profunda aos detalhes que compõem as obras. Por exemplo, um ambiente com um frio intenso, propício a distúrbios de comportamento, pode ser ainda mais impactante quando elementos como o álcool e a violência se somam às manifestações paranormais e à realidade que ocorrem nesse contexto. Isso exige uma abordagem mais ativa para extrair todo o potencial implícito sugerido pelo autor por meio de sua escrita prolixa e contagiante.

De acordo com King (2000): “Palavras formam frases, frases formam parágrafos e, às vezes, parágrafos acordam e começam a respirar” (KING, 2000, p.78).

Este estudo, portanto, baseou-se nos fundamentos do estudo da narrativa literária, incluindo a observação de todos os pontos das obras de King. Isso envolveu a análise desde a escrita até a investigação dos pontos diretos e subliminares presentes nas obras. O foco não se limitou apenas à estrutura, mas também buscou compreender os motivos ocultos por trás da narrativa. Além disso, procurou-se destacar como a temática do terror está presente nos aspectos da realidade e como essa verossimilhança afeta o leitor, muitas vezes alcançando seus pontos mais pessoais.

Além disso, adotamos os princípios de Todorov (1970) sobre os aspectos característicos da literatura fantástica presentes nas obras de Stephen King. Também observamos quais são os aspectos do terror com base nos princípios de Martins e Nicolini (2017), que abordam como as estratégias da narrativa literária do terror são utilizadas para criar o efeito de verossimilhança junto aos leitores.

Para compilar esses dados, foram feitas anotações dos pontos em comum identificados nas obras: “O Iluminado”, que aborda temáticas como alcoolismo e violência doméstica (cuja temática tem sequência na obra “Doutor Sono”, embora não faça parte do nosso estudo atual), “A Dança da Morte”, que trata de aspectos políticos e sociológicos, e “Sombras da Noite”, que aborda de forma sutil alguns transtornos psicológicos e situações vivenciadas no cotidiano. A partir disso, fizemos apontamentos sobre como essas temáticas enriquecem o texto produzido pela mente criativa de King e a narrativa literária fantástica, trazendo à tona aspectos meramente normais de uma estória bem narrada.

Os pontos em comum entre as obras foram observados com base na relevância do desenvolvimento na narrativa, no impacto causado no leitor e nas semelhanças com as situações vividas no cotidiano. Tomando como base dois aspectos presentes nas três obras — o terror fantástico e a realidade — foram identificados pontos em comum.

Na obra “O Iluminado”, destacou-se como o alcoolismo, os problemas conjugais, a pressão da vida adulta e o sobrenatural são habilmente utilizados ao longo da trama, culminando no seu clímax final:

A coisa berrava; gritava, mas agora estava sem voz e só gritava pânico, danação e desgraça em seu próprio ouvido, se dissolvendo, perdendo o pensamento e a força. A trama se desintegrava, buscando sem encontrar caminho, saindo, saindo, voando, saindo para o vazio, o nada, se esfarelando. A festa acabou (KING, 1977, p. 454).

Em “A Dança da Morte”, foram identificados alguns elementos específicos, como a origem da pandemia mundial e seu tratamento na obra, a maneira como os personagens lidam com o fim do mundo e uma sociedade em colapso, o papel da religião e política durante o desenvolvimento da trama, e a presença de elementos fantásticos: “Então o homem escuro voltou-se para ele, e Nick sentiu um medo terrível. Esta criatura, o que quer que fosse, não realizava milagres de graça” (KING, 1978, p. 414).

E, por fim, na obra “Sombras da Noite”, foram examinados três dos vinte contos que mais se destacaram entre o público devido às suas adaptações para o cinema e sua atmosfera sombria. Esses contos abordam situações como problemas psicológicos, fantasmas do passado, criaturas sobrenaturais e questões religiosas. Os contos escolhidos foram: “Último Turno”, “O Bicho-Papão” e “As Crianças do Milharal”: “Mas ela também o temia. Lá fora, na noite, alguma coisa caminhava, e via tudo... até os segredos guardados nos corações humanos” (KING, 1978, p. 356).

Todas as obras foram examinadas com base nos princípios deste trabalho, como o estudo das temáticas do terror e da realidade em diferentes obras de Stephen King e como essas temáticas afetam a narrativa literária. Além disso, foram considerados os objetivos específicos da pesquisa, que incluem identificar como as temáticas do terror e da realidade impactam o leitor e estabelecer uma relação entre o terror e a realidade, investigando como essa relação atinge os dilemas contemporâneos.

9. ANÁLISE DOS DADOS

Para abordarmos este ponto da nossa pesquisa, precisamos recapitular o que foi dito anteriormente sobre a obra “O Iluminado". Em nosso entendimento, este livro é narrado por um ser onisciente, em um ambiente onde vemos uma família conflituada, confinada em uma localidade isolada da civilização durante uma temporada cruel de inverno, e, segundo a sinopse, em um hotel assombrado e repleto de espíritos malignos.

É importante mencionar que os conflitos da família Torrance não se iniciaram durante a sua estadia no Hotel Overlook. O pai da família, Jack Torrance, possuía um histórico infeliz com o álcool e ataques ocasionais de raiva. O vício e os transtornos da personagem são abordados ao longo de toda a obra, com uma sequência lógica de fatos narrados de maneira muito bem editada na ótica de Stephen King.

Neste ponto da pesquisa, abordaremos as 3 (três) obras já mencionadas: “O Iluminado”, “A Dança da Morte” e “Sombras da Noite”. Observaremos os momentos narrativos das obras, nosso entendimento da narrativa e como o autor consegue, em cada uma delas, abordar pontos distintos com situações em comum. Será perceptível também identificar os elementos comuns que King incorpora às obras ao utilizar o terror fantástico na sua construção poética.

De início, no primeiro trecho examinado, identificamos que há uma parte do livro intitulada "Introdução", na qual temos um vislumbre do passado de Jack. Um ano antes dos acontecimentos do livro, Jack estava lecionando inglês em uma das melhores escolas preparatórias da Nova Inglaterra. Contudo, devido a um incidente com um de seus alunos, Jack acaba perdendo o emprego devido à gravidade da situação. Inicialmente, não temos uma noção exata do ocorrido, mas a situação não demora muito a ser revelada.

Vemos então uma explicação do porquê alguém aceitaria um emprego com particularidades tão atípicas quanto as de zelador de inverno do Hotel Overlook. Jack considerava aquele emprego uma nova chance, não só para si mesmo, mas também para sua família. Afinal, o seu casamento estava à beira do colapso e, devido a esses infelizes incidentes, sua esposa Wendy queria o divórcio.

Um dos primeiros acontecimentos descritos no livro, que levou a personagem Wendy a considerar o divórcio, foi quando Jack quebrou o braço do próprio filho durante um episódio de raiva. Danny havia derramado a cerveja do pai sobre um manuscrito de uma peça que ele estava criando há pelo menos uns três anos. Embora ainda atordoado, Jack não teve uma noção clara de como a situação chegou a esse ponto, pois não sabia exatamente o que estava fazendo. Ele não tinha controle de suas ações durante seus acessos de raiva.

O patriarca da família não era só um ex-professor; Jack também era um escritor. Embora não muito bem-sucedido, já tinha conseguido publicar alguns contos em revistas que lhe proporcionaram bons pagamentos. Durante os acontecimentos do livro, Jack nutre a ambição de concluir uma peça teatral, na esperança de que, ao finalizá-la, possa se transformar em um escritor famoso ou, pelo menos, obter um retorno satisfatório com a sua publicação.

Podemos observar aqui uma das primeiras conexões com a realidade. Embora não tenha sido mencionado no capítulo sobre sua biografia3, King possuía sérios problemas relacionados ao uso de álcool e drogas. O autor alega em seu livro “Sobre a Escrita” que escreveu livros como “Cujo” (1981) e “The Tommyknockers”4 (1987) sob o efeito de psicotrópicos, e que não possui lembrança do processo de escrita desses livros. É possível notar que a obra “O Iluminado” possui um leve toque autobiográfico. Seriam Jack e King os mesmos, compartilhando certas semelhanças? No livro “Sobre a Escrita”, o próprio King (2000) menciona esse paralelo entre ficção e realidade da seguinte forma:

[...] eu era, no fim das contas, o cara que tinha escrito O iluminado sem nem mesmo perceber (pelo menos até aquela noite) que estava escrevendo sobre si mesmo. Minha reação à ideia não foi de negação nem discordância, mas o que chamo de determinação aterrorizada. Eu me lembro claramente de pensar: “Você precisa ter cuidado. Porque, se fizer merda...” se eu fizesse merda, capotasse de carro à noite em alguma estradinha ou estragasse uma entrevista ao vivo na TV, alguém me diria que eu precisava maneirar na bebida, e dizer a um alcoólatra para maneirar na bebida é o mesmo que dizer ao sujeito com a diarreia mais catastrófica da história para maneirar no cocô (KING, 2000, p. 58).

Considerando a leitura anterior, é possível observar que, em consequência disso, embora o autor alegue que essa relação entre ele mesmo e seu personagem fictício não tenha sido algo intencional, não podemos considerar essa conexão como uma mera coincidência. Por outro lado, não seria impreciso supor que esse feito pode ter sido realizado a partir do subconsciente do autor, devido ao relato de suas experiências pessoais, como o vício, o ofício de professor e sua carreira como escritor.

Não cabe ao nosso estudo julgar todas as teorias existentes a respeito do subconsciente e sua influência no processo das ações humanas. No entanto, para reforçar a nossa suposição anterior a respeito da ação do subconsciente na criação de uma relação entre ficção e realidade, podemos ler um fragmento da obra “O Ser Subconsciente” 5, de Gustave Geley (1899), que enfatiza:

No que concerne à inspiração (nos homens de talento ou de gênio), é claro que ela é pura e simplesmente o resultado da sugestão do ser subconsciente. Essa inspiração com frequência passa despercebida e confunde-se com o trabalho voluntário. É o caso em que a colaboração dos dois psiquismos é íntima e estreita. Em muitos casos, contudo, na maior parte dos grandes artistas, escritores, filósofos e sábios, a inspiração é nitidamente distinta do trabalho voluntário (GELEY, 1899, p. 103).

A partir do momento em que estabelecemos uma conexão entre esses aspectos, uma sensação de impacto é criada. Ter conhecimento da carreira turbulenta de King como escritor com vícios e da vida de Jack Torrance como um aspirante a escritor famoso e viciado em álcool acaba nos causando um sentimento de comoção durante a leitura dessa obra. Isso pode suscitar a ideia de que o autor é O Iluminado6. Embora essa não tenha sido uma decisão consciente dele, é importante destacar que o leitor muitas vezes tem uma interpretação livre em relação a essas obras literárias recheadas de criatividade.

Antes de adentrarmos no tópico do sobrenatural na obra, é importante discorrer um pouco sobre o aspecto das dificuldades da vida adulta presentes neste livro. Jack Torrance é um pai de família, um aspirante a escritor famoso que precisa lutar contra o vício e, ao mesmo tempo, prover todos os cuidados que sua esposa e filho necessitam. A obra se passa em meados de 1977, uma época em que a tecnologia ainda não era tão avançada, e as oportunidades não eram tão variadas como atualmente. Jack teve um relacionamento complicado com o próprio pai. Embora não seja justificável, é possível entender como alguém na situação dele poderia se tornar refém de um vício como o álcool, especialmente se considerarmos que esses vícios muitas vezes servem como uma válvula de escape da realidade para muitas pessoas.

A mãe da família, Wendy, é uma dona de casa que ama seu marido e filho, fazendo o possível para criá-lo de forma correta. Contudo, ela não é uma simples dona de casa. A personagem é retratada no livro como uma mulher forte, disposta a fazer tudo para proteger o filho dos perigos presentes naquele hotel, coisas que estão além de sua compreensão. Quando seu marido sucumbe aos espíritos malignos do hotel, ela não mede esforços para cuidar do filho Danny, colocando a segurança dele acima da sua própria e perseverando diante das dificuldades.

(Não fuja dos fatos desta vez, garota. Algumas coisas são reais, por mais louca que a situação possa parecer. Uma delas é que você pode ser a única pessoa responsável que restou neste prédio grotesco. Você tem um filho com quase seis anos para cuidar. E seu marido, não importa o que tenha acontecido nem o quão perigoso ele possa ser... talvez seja parte de sua responsabilidade também...) (KING, 1977, p. 389).

E quanto ao filho dos Torrance? Embora tenha apenas cinco anos, a personagem Danny Torrance possui um certo nível de maturidade psíquica que outros garotos de sua faixa etária não possuem. Isso se deve ao fato de o garoto ser um “Iluminado”. Mas o que isso significa?

Na segunda parte do livro, intitulada "Dia de Encerramento", somos apresentados pela primeira vez ao conceito de "Iluminação" pela personagem Dick Hallorann, o cozinheiro do hotel. Após apresentar a cozinha para os Torrance e se despedir da família, mas não antes de chamar Danny para uma conversa privada em seu carro, o cozinheiro revela que ele é um "Iluminado", assim como o próprio garoto. Dick afirma que Danny possui a maior "Iluminação" que ele já viu, esclarece algumas dúvidas do garoto sobre seu dom e deixa claro que, embora não existam muitos Iluminados, Danny não está sozinho nessa jornada e pode sempre contatá-lo por telepatia se precisar de ajuda. O cozinheiro também adverte Danny para nunca entrar no quarto 217, pois coisas ruins aconteceram naquele quarto, e relata ter visto o que residia nele. O conceito de "Iluminação" é explorado em outras obras do autor, mas é em "O Iluminado" que somos apresentados a uma terminologia para esses dons sobrenaturais. De acordo com Dick, a iluminação seria uma espécie de luz que alguns seres humanos possuem. Alguns têm essa luz de forma mais intensa que outros, e aqueles com uma luz mais fraca não possuem habilidades sobrenaturais, mas têm um sexto sentido mais apurado do que pessoas comuns. Já os Iluminados, como ele e Danny, conseguem realizar feitos que vão além da capacidade humana.

Aparentemente, Danny possui poderes sobrenaturais, como a telepatia e a capacidade de ter visões, pequenos vislumbres do futuro que lhe vêm em sonhos. Devido à sua capacidade de ler mentes, o garoto tem total noção da situação em que a relação dos pais se encontra. Ele sabe que a ideia de divórcio já passou pela cabeça da mãe. No entanto, é importante ressaltar que, por ser um garoto de apenas cinco anos, ele não tem total compreensão do significado dos pensamentos de seus pais. Sendo um garoto muito educado, ele evita a todo custo invadir a privacidade deles. Apesar da situação turbulenta, ele ama os seus pais incondicionalmente e lida com a situação entre os dois como muitos filhos de casais turbulentos lidam na realidade. Ele faz o possível para amenizar conflitos e, acima de tudo, nunca menciona diretamente seus dons para seus pais, pois sabe que eles se preocupam com ele e notam que o garoto tem algo de diferente, algo que não conseguem compreender. O garoto também tem noção dos vícios do pai, referindo-se ao uso de álcool durante o livro como “Coisa feia”. Afinal, ele é apenas um garotinho de cinco anos e não possui um vocabulário muito avançado, embora tenha um vocabulário acima da média para a idade.

Aqui podemos estabelecer outra relação entre o fictício e o real por meio de estudos nessa área da psicocinética, que comprovam que muitos filhos se encontram na mesma situação que o Danny, no meio das discussões entre os pais. Provavelmente, uma boa parte dos leitores de King possui algum drama familiar. O sentimento de impacto está presente na verossimilhança que o leitor sente em relação à situação do pequeno garoto iluminado. Já o fator sobrenatural da iluminação age como uma forma de Danny conseguir assimilar a situação de seus pais de maneira mais madura, indo além do que uma criança normal poderia.

Não podemos discutir sobre “O Iluminado” sem mencionar a presença do fantástico que habita na obra. O sobrenatural está inserido em todos os capítulos do livro. O fator fantástico não reside somente no dom da iluminação, como já mencionado em nosso estudo. O Hotel Overlook é uma grande fonte de energia sobrenatural devido ao fato de que o hotel possui anos de história, e, durante esses anos, diversas pessoas morreram de forma trágica, fazendo com que seus espíritos permanecessem no local anos após suas mortes. Apesar de o hotel ser habitado por espíritos malignos, eles não possuíam poder suficiente para influenciar os acontecimentos de forma intensiva. Durante os anos de sua criação até os eventos iniciais do livro, esses espíritos só conseguiram causar alguns acontecimentos que aos olhos de pessoas comuns eram apenas acidentes ou mortes naturais. Então, o que mudou? Bom, a resposta é simples: a chegada da família Torrance. A iluminação de Danny é o motivo pelo qual os espíritos possuem um interesse especial no garoto. Eles o querem desesperadamente e estão a todo momento agindo para que o garoto se junte a eles eternamente. A iluminação de Danny aumenta as forças sobrenaturais do local, e os espíritos malignos se alimentam dela como uma espécie de bateria sobrenatural.

O garoto possui uma grande força, e por isso o hotel7 não consegue simplesmente se apoderar dele. Os espíritos decidem possuir o elo mais fraco presente no local: o pai de Danny, Jack. Durante todo o livro, percebemos uma atmosfera crescente de tensão, pois o hotel aproveita as fraquezas de Jack para obter controle sobre seu corpo e usá-lo para matar o próprio filho. Aqui, podemos ver como o terror é utilizado na obra para causar uma tensão psicológica nos leitores. O livro é como uma grande panela de pressão, e a pressão ao longo da trama vai aumentando até que tudo explode no final. O medo do desconhecido, a ameaça iminente e a luta contra forças sobrenaturais contribuem para essa tensão, criando uma experiência intensa e impactante para os leitores.

Como mencionado anteriormente, o hotel inteiro possui uma espécie de consciência própria, e alguns espíritos têm destaque maior para a atmosfera de terror da obra. Um exemplo marcante, sem dúvida alguma, é o da senhora Massey do quarto 217. Após a advertência de Dick sobre o perigo que o quarto representa, uma sensação imediata de expectativa é criada, gerando curiosidade sobre o que habita dentro daquele espaço. Em alguns momentos, o personagem Danny se encontra em frente à porta do quarto, e o livro descreve esses ocorridos como uma espécie de “curiosidade mórbida”. Em certo momento, o garoto cede a esse sentimento e decide entrar no quarto. Os acontecimentos que se seguem são conhecidos por todos os fãs do livro e são considerados até hoje por muitos como um dos momentos mais aterrorizantes de toda a obra. A atmosfera de terror que cresce do momento em que Danny abre a porta do quarto até o instante em que o garoto entra no banheiro é algo que causa um arrepio na espinha dos leitores, pois a cena é descrita de forma explícita:

A mulher na banheira estava morta há muito tempo. Estava inchada e roxa, a barriga cheia de gases emergindo da água fria, as bordas congeladas, como uma ilha de carne. Os olhos dela fixos nos de Danny, vidrados e imensos como bolas de gude. Sorria maliciosa, os lábios roxos arreganhados numa careta. O peito flácido. Os pelos púbicos boiando. As mãos geladas nas bordas de porcelana da banheira como garras de um caranguejo (KING, 1977, p. 237).

Outro momento muito famoso é a cena do jardim de topiaria8, ou o jardim de bichos, localizado na varanda da frente do hotel e que possui cinco espécies diferentes de animais: um coelho, um búfalo, três leões, um cachorro e um cavalo. Logo no início do livro, o personagem Hallorann deixa claro que não se sente confortável com aquela parte do hotel, pois sente algo ruim vindo dos arbustos. Temos, então, outra presença do terror na obra, outro suspense crescente, existente para causar uma tensão ao leitor. A cena dos arbustos se mexendo serve para o desenvolvimento do personagem Jack, pois é a forma que o hotel encontra de enfraquecer a mente do pai, levando-o à beira da loucura.

O leão, à esquerda, tinha agora avançado para a cerca; o focinho tocava as bordas. Pareia estar sorrindo maliciosamente para ele. Jack deu mais dois passos para trás. A cabeça latejava, e ele sentia a garganta seca. Agora, o búfalo também se movera, voltando para a direita, atrás e junto do coelho. A cabeça baixa, os chifres de arbusto verde apontados em sua direção. O problema é que não se podia observar todos, não de uma só vez. (KING, 1977, p.228).

“O Iluminado” é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores obras de King, e sua atmosfera aterrorizante conquistou uma legião de fãs ao redor do mundo. A narrativa sinistra e o terror psicológico marcaram o nome de King como um mestre do gênero, especialmente com a adaptação cinematográfica dirigida por Stanley Kubrick. Além dos elementos sobrenaturais, a obra aborda problemáticas do cotidiano, como o alcoolismo, a violência doméstica e as pressões da vida adulta. Esses temas, aliados à habilidade de King em criar uma atmosfera de medo e reflexão, contribuíram para a consolidação da obra como uma das mais assustadoras e impactantes do gênero do terror.

Na sequência da nossa análise dos dados, abordamos a segunda obra, que é: “A Dança da Morte”, um épico pós-apocalíptico escrito por King em 1978. Essa obra retrata um mundo devastado pela gripe; a sociedade, como a conhecemos, não existe mais, e a humanidade, como a conhecíamos, também não existe mais. Um supervírus da gripe eliminou 99,4% da população. As pessoas imunes à doença ficaram à deriva em um mundo gigantesco, onde ecos do passado se encontravam por toda parte.

A obra possui três partes: na primeira parte, podemos ver como a doença se espalhou pelo mundo até eliminar a maior parte da população do planeta, causando colapsos em todos os sistemas mundiais. Na segunda parte, podemos observar a jornada daqueles que foram imunes à doença. De um lado, temos aqueles que lutaram para sobreviver e tentar restaurar a sociedade como a conhecíamos. Do outro lado, encontramos as forças do mal com o objetivo de dominar o mundo por meio de um governo tirânico. Na terceira parte, ocorre o embate das forças do bem e do mal, um confronto mortal para decidir o destino daquele mundo arruinado.

No nosso estudo, ao ler o primeiro capítulo, descobrimos como o vírus se espalhou pelo mundo: após um acidente no Departamento de Defesa dos Estados Unidos, o vírus intitulado “Capitão Viajante” se espalha pelo local. Devido a uma falha na segurança, o departamento não consegue impedir a saída de um dos infectados, um soldado chamado Charles Campion, que, ao perceber a gravidade da situação, foge do local e deserta de seu posto, em vão, pois já tinha se tornado portador do vírus. Ao buscar sua esposa e filha em casa, Campion foge da área do departamento com as duas no seu carro, e é assim que tudo se inicia.

Aqui já podemos identificar o primeiro impacto causado pelo choque entre a realidade e o terror. O desespero de Campion foi tão imenso que ele desertou de seu posto e decidiu fugir com a família para o mais longe possível, pois a possibilidade de uma grande tragédia já passava pela sua cabeça. A tensão vai crescendo até o momento em que ele entra em contato com outras pessoas após sofrer um acidente de carro.

O que quer que estivesse errado com a mulher e a criança no carro, estava igualmente errado com o homem. Seu nariz escorria livremente e a respiração tinha um som subaquático peculiar, uma agitação vinda de algum lugar dentro de seu peito. A pele debaixo dos olhos estava inchando, não enegrecida ainda, mas com um tom púrpura de contusão. Seu pescoço parecia espesso demais, e carne tinha sido impelida para cima, formando dois queixos extras. Ardia em febre; ficar perto dele era como debruçar-se à beira de uma churrasqueira com carvão em brasa (KING, 1978, p. 31).

Nessa passagem, temos uma noção do quão terrível é esse vírus. O estado grotesco em que se encontrava a família do soldado não foi devido ao acidente de carro, mas sim à doença que estava em estado avançado. Os sintomas são descritos de forma bem direta, despertando facilmente a imaginação dos leitores. A cena causa um sentimento de repulsa e inquietação devido ao que pode vir a seguir.

O Capitão Viajante é extremamente perigoso, pois possui uma taxa de contágio de 99,4%, e a taxa de mortalidade é igualmente alta, uma vez que o corpo humano não pode desenvolver anticorpos rapidamente o suficiente devido à constante mudança do vírus. Aqui, observamos a presença do terror e do horror, pois o medo cresce a todo momento, e a forma grotesca como a doença se manifesta causa impacto e inquietação continuamente.

Durante o desenrolar da narrativa, vemos como a epidemia afetou o mundo todo. King descreve as consequências da epidemia do Capitão Viajante de forma abrangente, não apenas mostrando o impacto nos personagens principais ou nos infectados pela doença, mas também em outras pessoas, ou seja, “as pessoas comuns”. São retratadas outras pessoas imunes que não participaram ativamente da história.

Na passagem a seguir, vemos a breve história de Sam, um garotinho de cinco anos, que, após perder toda a sua família para a doença, acabou ficando por conta própria. Conforme aponta a narrativa:

Às 9h45 de 2 de julho, Sam perambulava num campo de amoras silvestres atrás da casa de Hattie Reynolds. Absorto e com o olhar vago, ele ziguezagueou entre as moitas de amora que tinham quase o dobro de sua altura, colhendo as bagas e comendo-as até seus lábios e queixo se tingirem de preto. Os espinhos rasgavam suas roupas e às vezes sua carne nua, mas ele mal notava. Abelhas zumbiam preguiçosamente ao seu redor. Sam jamais viu a velha e podre tampa de poço semienterrada na relva alta de amoras rastejantes. Ela cedeu sob seu peso com um estrondo de estilhaço e rangidos, e Sam afundou seis metros abaixo pelo poço revestido de pedra até o fundo seco, onde quebrou as duas pernas. Morreu vinte horas depois; tanto de medo e sofrimento quanto de choque, fome e desidratação (KING, 1978, p. 394).

"A Dança da Morte" apresenta uma variedade de personagens que são gradualmente mencionados à medida que a história avança. No entanto, para desenvolver este estudo, torna- se necessário fazer uma menção específica sobre esses personagens, uma vez que conhecer seu passado e presente é fundamental para discutir as motivações e camadas presentes na obra. Entretanto, serão mencionados apenas os personagens que possuem um impacto mais significativo no desenvolvimento da trama. Vamos começar mencionando alguns dos personagens que estão do lado das forças do bem.

Primeiramente, vamos novamente mencionar a líder das forças do bem, Abagail Freemantle, ou Mãe Abagail, como é referida pelos personagens da obra. Abagail é uma senhora afro-americana de cento e oito anos que mora na vila de Hemingford, no estado de Nebraska. Ela é retratada como uma mulher gentil, sábia, carinhosa e dotada de um semblante profético devido à sua fé e conexão com Deus.

Abagail desempenha um papel central na reunião dos personagens do lado do bem, sendo o principal pivô para essa congregação. A personagem aparece para os outros sobreviventes diversas vezes em sonho, convidando-os para sua casa na esperança de recriar a sociedade. Abagail se considera uma serva de Deus, agindo de acordo com a Sua vontade e desejo, os quais lhe são revelados por meio de visões ou sonhos. Ela apresenta elementos fantásticos na obra, como suas visões, a capacidade de entrar nos sonhos das pessoas e sua força física acima do normal para uma senhora de cento e oito anos. Abagail é o completo oposto do vilão da obra, Randall Flagg.

 

Logo depois, temos o personagem chamado Stuart Redman, um morador cidade de Arnette9, no estado do Texas. Stu, apelido de Stuart, estava presente na cidade de Arnette durante o acidente de carro do soldado Charles Campion e foi um dos primeiros, após Campion, a ser exposto ao Capitão Viajante. Portanto, a cidade de Arnette foi a primeira a ser afetada pelo vírus. Stu é um viúvo e veterano de guerra. Ele é um homem de atitude séria e possui um caráter excepcional e astúcia que supera a de muitos. Stuart é um dos cidadãos de Arnette que é levado para o Centro de Epidemias de Stovington10, uma cidade do estado de Vermont, para que observem como o corpo dele reage à doença.

Outra personagem a ser mencionada é Frances Goldsmith, ou Frannie, uma jovem mulher de vinte e um anos de idade, residente da cidade de Ogunquit, no estado do Maine. Frannie é introduzida no livro em uma situação delicada, prestes a contar ao seu namorado que está grávida, mas percebe durante o processo que o relacionamento chegou ao fim. Fran é filha única, estava frequentando a faculdade quando tudo começou. Ela é uma mulher forte, linda e muito bondosa, sendo o futuro par romântico de Stuart Redman.

Fran perdeu o pai e a mãe para a doença, tornando-se uma das únicas sobreviventes de sua cidade. Podemos fazer uma pequena pausa na introdução dos personagens para observar um dos primeiros terrores causados pela propagação da doença: uma garota de vinte e um anos, grávida, enterrou o pai, cavando o buraco por conta própria, pois era uma das únicas duas pessoas que restaram na cidade. A cena transmite bem o sentimento de desespero e faz os leitores se perguntarem se teriam a mesma força que a personagem teve durante esse momento tão trágico.

A gravidez da personagem faz parte de um dos questionamentos de peso da obra. Em diversos momentos, os personagens se deparam com uma enorme dúvida: os bebês são imunes à doença? E, se forem, conseguirão sobreviver nesse novo mundo?

Quem, sem sombra de dúvidas, tem sua relevância para trama é o personagem Glen Bateman, um professor de sociologia de cinquenta e sete anos. Ele é responsável por vários diálogos na obra relacionados à sociologia e à humanidade. Glen é um homem bondoso, inteligente e possui uma oratória impecável. Ele é o primeiro humano que Stu Redman encontrou após fugir do centro de epidemias, quando o mundo já havia colapsado, e 99% da população foi exterminada.

Glen está sempre acompanhado de seu fiel companheiro canino, Kojak, um Setter Irlandês. Glen acredita que Kojak é o último cão vivo no mundo, pois nunca chegou a encontrar nenhum outro depois que a sociedade acabou.

Em seguida, quando o vírus tomou conta do mundo, temos Nick Andros, um rapaz surdo e mudo11 de vinte e dois anos. Nick é um personagem que enfrentou diversas dificuldades ao longo de sua vida. Ele nunca conheceu seu pai, que morreu ao sofrer um ataque do coração e, como consequência, sofreu um acidente de carro. Sua mãe faleceu quando ele tinha apenas nove anos, levando-o a parar em um orfanato, onde sofreu bullying dos internos e basicamente se isolou do mundo. No entanto, ele fez um amigo, Rudy, que também era surdo, e acabou ensinando Nick a ler e escrever, tirando-o de seu casulo e abrindo sua mente para o mundo.

Depois de sua maioridade, Nick se tornou um nômade, viajando de cidade em cidade com sua bicicleta. Depois de vivenciar situações traumáticas na epidemia, Nick decide ir à cidade de Hemingford, no estado de Nebraska, após ter certos sonhos sobre um milharal e uma senhora específica que o chama para aquele local.

Temos também o personagem Tom Cullen, que tem quarenta e dois anos e é “mentalmente desafiado”12. Apesar das dificuldades que enfrentou em sua vida, Tom é um cara alegre, de bom coração, leal e muito prestativo. Ele é o primeiro sobrevivente que Nick Andros encontra após iniciar sua jornada, e os dois logo se tornam amigos, decidindo viajar juntos até o estado de Nebraska.

E por último, mas não menos importante, temos Larry Underwood. Antes da epidemia, ele era um músico, embora não fosse famoso. Contudo, pouco antes do início da epidemia, Larry lançou uma música chamada “Garota, você saca o seu homem?”13, que se tornou cada vez mais popular, proporcionando-lhe a possibilidade de viver um estilo de vida mais extravagante. Larry não é uma pessoa má, mas no início da obra, suas atitudes imprudentes e egoístas são influenciadas pela sua ascendente fama.

No entanto, à medida que perde tudo para a epidemia, incluindo sua mãe e a chance de se tornar famoso, Larry se torna um dos sobreviventes mais importantes da obra. Ele passa por uma grande mudança, mesmo que não acredite ser capaz de tal transformação. Durante boa parte do livro, ele não percebe que se tornou um homem diferente. Larry se transforma em uma pessoa responsável e um dos líderes da nova sociedade estabelecida pelos sobreviventes.

Após a exposição dos principais personagens das forças do bem, é evidente que existe um certo padrão compartilhado por todas as personagens mencionadas até o momento. Todas têm um passado turbulento marcado por dificuldades e tragédia. São indivíduos reais que enfrentaram diversas adversidades devido a uma situação extrema e, mesmo assim, continuam seguindo em frente. O leitor não pode deixar de se sentir impactado e, ao mesmo tempo, sentir um enorme respeito por esses personagens que são incrivelmente bem desenvolvidos ao longo da trama.

A seguir, apresentaremos os personagens do lado das forças do mal, que também têm vários membros em seu núcleo. No entanto, vamos nos ater a mencionar apenas as personagens de maior relevância durante a história.

Em primeiro lugar, temos o grande vilão da obra, Randall Flagg, também conhecido como o homem escuro, o homem de preto, turista andarilho, entre outras alcunhas. Flagg é um personagem que possui diversos nomes ao longa da história, e, na obra, não é descrita sua idade. Sabemos apenas que, ao longo da história do planeta, Randall reaparece em diferentes períodos, sugerindo que o vilão seja tão antigo quanto a própria terra. Nem ele mesmo se lembra de sua origem, mas cada vez que reaparece, é com um propósito maligno. Flagg é descrito em outras obras de Stephen King como a personificação física do mal.

O objetivo de Flagg é estabelecer um governo tirânico, no qual ele seria o líder do mundo inteiro. Após o surto, Randall estabelece seu reinado em Las Vegas, Nevada. Assim como Abagail, ele aparece nos sonhos (ou pesadelos) dos personagens, chamando-os para servi-lo e prometendo salvação daquela situação extrema. Randall é a maior representação do terror fantástico na obra, pois, além de não ser um ser humano, possui poderes sobrenaturais, como a habilidade de entrar na mente dos corvos e lobos, além de um alto nível de persuasão.

Logo depois, temos o personagem Lloyd Henreid, um criminoso e ladrão. Antes da epidemia, ele se envolvia em roubos a pessoas e estabelecimentos, mas foi preso após um assalto que saiu do controle, resultando na morte de algumas pessoas, incluindo o parceiro de crime de Lloyd, Poke. Quando a epidemia começou, Lloyd estava preso. Conforme o tempo passava e a sociedade colapsava, ele testemunhava a morte de todos na prisão, sendo o único imune. Lloyd encontrou-se em uma situação desesperadora, pois não tinha como fugir da prisão, enfrentando fome e sede. Ele chegou ao ponto de realizar atos extremos, como devorar um rato morto e beber água da privada. Lloyd estava perdendo a cabeça, culminando no momento em que chegou a comer uma pequena parte da perna de um dos prisioneiros que jazia morto na cela ao lado. Nesse exato momento, Lloyd foi salvo por um misterioso homem vestido de preto.

Outro personagem a ser mencionado é Donald Merwin Elbert, popularmente conhecido como o Homem da Lata de Lixo14, apelido que ganhou da vizinhança de sua terra natal, pois quando criança gostava de atear fogo nas latas de lixo da vizinhança. Lata de lixo é um piromaníaco e apresenta alguns traços de esquizofrenia. Ele é fascinado pelo poder do fogo e deixa isso bem claro em cada cidade que passa. Após o mundo entrar em colapso, Lixo percorre cidades, causando explosões e deixando um rastro de destruição por onde passa. Além disso, ele possui uma obsessão por um homem sombrio e misterioso que aparece em seus sonhos, chamando-o para seu encontro.

A seguir, temos uma personagem que passou por uma grande mudança durante a obra, Harold Lauder, um adolescente de dezesseis anos. Ele foi um dos únicos dois sobreviventes da cidade de Ogunquit, junto com Frannie Goldsmith. Harold era um adolescente alto e corpulento, cheio de espinhas, mas também muito inteligente e criativo. Ele não se encaixava em lugar algum, sofria bullying em casa e na escola, e não era muito popular em sua cidade natal.

Após o surto da doença, Harold e Frannie iniciaram sua jornada juntos, percebendo que, como os únicos sobreviventes de sua cidade, precisavam um do outro para sobreviver. Harold desempenha um papel importante na jornada de Larry Underwood, deixando avisos em todos os locais por onde passam, indicando a situação do local e o destino seguinte. Inicialmente, Harold era considerado um dos "mocinhos", mas ao longo da história, a personagem torna-se amargurada e ciumenta devido ao seu amor não correspondido por Frannie e seu crescente ódio por Stuart Redman. Ele se revela uma pessoa egoísta, passando por cima de tudo e todos devido aos seus problemas com rejeição e baixa autoestima. Harold, então, abandona a comunidade dos sobreviventes em busca do homem escuro.

E finalmente, a última personagem desta enorme lista que vamos mencionar é Nadine Cross, uma mulher de trinta e sete anos, bonita e de cabelos negros. Antes do surto, ela lecionava para o ensino fundamental. Assim como Harold, Nadine inicialmente se encontrava no grupo das forças do bem, mas sofre drásticas mudanças ao longo da história. Ela foi uma das sobreviventes que se juntou a Larry Underwood, por quem desenvolveu uma espécie de interesse romântico/sexual, em sua jornada em direção a Nebraska. Nadine estava acompanhada de um garotinho de doze anos que ela chamava de “Joe”.

A mudança de Nadine, diferentemente da de Harold, não foi devido a sentimentos mesquinhos como ciúme ou rejeição. Nadine nunca conseguiu manter um relacionamento com um homem, pois sempre acreditou que sua virgindade tinha uma importância acima de qualquer desejo próprio. Ela acreditava que estava se guardando para alguém, alguém a quem via em sonhos, um homem misterioso vestido de preto. Sua mudança drástica ocorre porque ela está ligada pelo destino ao grande vilão da obra, Randall Flagg; ela seria a esposa dele. Cada vez que ela sonha com ele ou tem alguma experiência com alguma energia sexual, seu cabelo fica mais branco.

Podemos observar que a obra possui personagens complexos, com diversas camadas, gerando uma leve interseção com “O Iluminado”. As personagens aqui enfrentam problemas reais e são jogadas em situações extraordinárias. A forma como lidam com o fim do mundo e a necessidade de sobrevivência é determinada pelo lado da força15 em que se encontram. Apesar de alguns personagens sofrerem com os conceitos estereotipados de bem e mal, passando por mudanças drásticas de caráter, a tensão psicológica está presente durante toda a primeira parte do livro.

Todos os acontecimentos mencionados até agora são trágicos, sombrios e extraordinários. King faz uso de temas como gravidez acidental, luxúria e até mesmo canibalismo para atordoar seus leitores. Como o efeito poderia ser outro se não o de impacto? Fomos apresentados a uma mulher grávida, solteira e recém-órfã, que teve que enterrar o próprio pai em uma cova que ela mesma cavou. Vimos também um bandido que, após passar por uma situação de extrema fome e sede, acaba cedendo ao impulso de beber água da privada de sua cela, devorar um rato morto e, ainda por cima, comer uma pequena parte da perna de um prisioneiro morto pela doença na cela ao lado.

Temos representações claras de como o ser humano pode lidar perante situações extremas. Os conceitos de certo e errado vacilam entre si durante todo o percurso, fazendo com que o leitor se pergunte o que faria se estivesse na situação de tal personagem.

Uma das características que todos os personagens da obra compartilham entre si é a necessidade de sobreviver. Entretanto, como vão sobreviver em um mundo onde tudo e todos que conheciam já se foram? Cada núcleo encontrou uma solução que dependia de dois personagens já mencionados: Randall e Abagail. Os personagens que se reuniram graças aos sonhos com a Mãe Abagail decidiram restaurar a sociedade como a conheciam. Apesar de terem se reunido em Nebraska, a região onde os sobreviventes se estabeleceram foi Boulder, uma cidade no estado de Colorado. Eles a intitularam de Zona Franca de Boulder.

Após cuidarem das necessidades básicas, como estabelecer moradias, garantir a alimentação e remover os corpos dos falecidos, à medida que a cidade recebia novos moradores, surgiu a necessidade de reestabelecer a ordem. Controlar um alto número de indivíduos seria impossível sem a ajuda das leis e fundamentos da sociedade como a conheciam. Então, criaram um comitê, um grupo de pessoas eleitas democraticamente, encarregadas de governar a cidade e estabelecer as leis necessárias para a sobrevivência. Dentre os membros do comitê estão os personagens do lado do bem mencionados anteriormente, com exceção de Abagail, que alegou não ter interesse em participar dos aspectos políticos da cidade. O comitê tinha como objetivo reestabelecer a Constituição dos Estados Unidos e a Declaração de Direitos para que elas servissem como as fundações legais de Boulder.

As forças do mal tomaram um caminho contrário. Enquanto a Zona Franca de Boulder visava a democracia e ordem, o grupo liderado por Flagg focou em restaurar os confortos pré- epidemia. Essa foi uma das estratégias que Randall encontrou para atrair mais pessoas para o seu lado. A comunidade liderada pelo homem de preto foi a primeira a restabelecer artifícios como o uso de energia elétrica. Além disso, Randall concentrou seus esforços em aumentar o poder militar de sua comunidade, reunindo um número considerável de armas, veículos de guerra e outras “medidas defensivas”. Apesar de Flagg alegar que o poderio militar seria apenas para proteger os seus seguidores, ele tinha um grande interesse em destruir a Zona Franca de Boulder e eliminar todos aqueles que não se submetessem à sua vontade.

É importante esclarecer que, embora Flagg seja um vilão, nem todos os seus seguidores eram pessoas más. Algumas foram atraídas por ele simplesmente pelo seu poder de persuasão e suas promessas de conforto e estabilidade. Na comunidade fundada por Flagg, é possível observas diversas crianças frequentando escolas públicas, por exemplo. Infelizmente, todos esses confortos da sociedade vieram a um preço alto, pois as pessoas estão completamente à mercê das vontades de Flagg. Apesar de possuir um certo charme sedutor, ele é um líder cruel e tirano. O homem de preto possui uma estranha habilidade que lhe permite saber o que se passa no coração e na mente das pessoas. Assim, ele pune todos aqueles em que percebe qualquer traço de deslealdade ou dúvida. Qualquer pessoa que violasse suas leis, como a proibição do uso de drogas, era punida com a morte e crucificada publicamente para que servisse de exemplo aos demais.

Podemos observar também como os aspectos políticos e religiosos foram abordados na obra. Existem dois grupos de sobreviventes, cada um com seu próprio conceito de leis e moralidade. Em um mundo onde somente 0,6% da população sobreviveu, é impressionante que ainda haja aqueles que buscam reestabelecer a ordem e a democracia. Os residentes de Boulder representam o lado mais bondoso da humanidade. Claro que nem todo o núcleo é perfeito, mas, em sua grande parte, a comunidade de Boulder consegue inspirar um sentimento de empatia no leitor.

Por outro lado, na comunidade liderada por Flagg somos apresentados a um lado mais selvagem da humanidade. Embora essa comunidade possua alguns dos aspectos presentes na sociedade de Boulder, a simples presença de Flagg provoca um sentimento de inquietação. Não se sabe quando o personagem tomará alguma medida drástica para impor sua posição como líder. Atos hediondos, como a tortura e a execução pública, são chocantes, independentemente da forma que o autor escolha para demonstrar tais métodos de violência.

As duas sociedades possuem métodos diferentes, mas compartilham um princípio: o de organização. Os moradores de Boulder têm completa noção de que não vão conseguir sobreviver nesse mundo novo sem alguma espécie de liderança ou regulamentação, como podemos ver na seguinte passagem:

Céus, Glen, todos somos americanos...

Não, aí é que você se engana – retrucou Glen, abrindo os olhos, que pareciam encovados e injetados. – Somos um bando de sobreviventes sem qualquer tipo de governo. Somos uma miscelânea de grupos etários, religiosos, sociais e raciais. Governo é uma ideia, Stu. O que realmente é isso tudo, uma vez que se corte a burocracia e a baboseira. Vou mais longe. É uma persuasão, nada senão uma trilha de lembrança embotada através do cérebro. O que temos pela frente agora é uma defasagem cultural. A maioria dessas pessoas ainda acredita em governo por representação, a República, o que imaginam como sendo “democracia”. No entanto, a defasagem cultural nunca dura muito. Após algum tempo, as pessoas começarão a ter as reações corajosas: o presidente está morto, o Pentágono fechou para balanço, nada está sendo debatido no Congresso a não ser pelas baratas e cupins. Em breve as pessoas aqui vão acordar para o fato de que as velhas normas já eram e que elas podem reestruturar a sociedade e qualquer antiga norma a seu bel-prazer. Nós queremos, nós precisamos, capturá-las antes que acordem e cometam alguma loucura (KING, 1978, p. 703).

Embora seja um agente do caos e a personificação do mal, Flagg segue um princípio semelhante ao mencionado por Glen: Randall reconhece que suas habilidades extraordinárias não são suficientes para liderar um grupo de pessoas. Por mais que suas leis sejam distorcidas e perversas, elas o ajudam a manter seus seguidores em cheque. Seus seguidores sentem que não conseguiriam sobreviver sem ele, e ele tem plena consciência disso. Os aspectos políticos da obra são tratados de maneira brilhante pelo autor, fazendo-nos constantemente imaginar que tipo de sociedade os seres humanos estabeleceriam se essa situação se tornasse realidade.

Outra relação interessante que pode ser feita em relação ao paralelo entre realidade e ficção é que,  embora  a obra tenha sido lançada há  mais de quarenta e cinco anos, ela permanece atual nos dias de hoje. Afinal, durante o ano de 2020, o mundo todo enfrentou uma pandemia causada por um vírus da gripe. Embora, devido ao avanço da ciência e tecnologia, a pandemia não tenha atingido proporções gigantescas como na obra, o leitor não consegue deixar de se perguntar “e se tivesse sido diferente?”.

O fator religioso na obra coexiste com elementos fantásticos e serve como justificativa para diversos acontecimentos da trama. A personagem Abagail atua como uma espécie de profeta do Senhor, pois possui uma ligação com o divino. Suas ações são baseadas na enorme fé que possui, levando-a a realizar feitos divinos, como aparecer nos sonhos de diversas pessoas e reunir todas elas para criar um mundo novo. Embora a personagem não tenha interesse em ser considerada líder dessas pessoas, há uma espécie de relação com a terra prometida de Canaã. Mesmo em circunstâncias extremas, os personagens das forças do bem seguem essa senhora desconhecida, pois acreditam nela, mesmo que não compartilhem necessariamente de sua fé. O próprio personagem Glen Bateman é cético por natureza, mas ainda assim reconhece a importância da figura de Abagail e o que ela representa.

Flagg também está inserido no fator religioso da obra. Alguns de seus seguidores o veneram como se fosse uma espécie de Deus, enquanto outros o temem e o enxergam como uma espécie de demônio. A religião em “A Dança da Morte” tem uma função parecida com a iluminação em “O Iluminado”. Ela auxilia os personagens a lidar com a situação extrema ou uma forma de referenciar a luz, como podemos ler:

A beleza do fanatismo religioso é que ele tem o poder de explicar tudo. Uma vez que Deus (ou Satã) seja aceito como a causa primeira de tudo que acontece no mundo mortal, nada é deixado ao acaso. Uma vez que frases encantatórias tais como “vemos agora obscuramente através de um espelho” e “misteriosos são os meios como Ele escolhe seus prodígios a realizar” sejam dominadas, a lógica pode ser alegremente jogada pela janela. O fanatismo religioso é um dos poucos meios infalíveis de responder as fantasias do mundo, porque ele elimina por completo o puro acidente. Para o verdadeiro fanático religioso, isso é tudo que importa (KING, 1978, p. 670-671).

Durante o nosso estudo, já abordamos como os aspectos do terror e horror foram utilizados para causar sensações diversas nos leitores. Agora concluamos a discussão sobre “A Dança da Morte”, concentrando-nos no aspecto do terror fantástico identificado na obra, principalmente nos personagens Randall Flagg e Abagail Freemantle. Ambos possuem habilidades sobrenaturais que são responsáveis por diversos acontecimentos extraordinários ao longo da jornada.

No que se diz respeito ao terror fantástico, essa dimensão é dominada pelo vilão da obra, o homem escuro, um personagem repleto de mistérios e verdadeiramente assustador. As habilidades de Flagg são exploradas na obra não apenas para demonstrar seu imenso poder, mas também para instilar medo nos leitores. "Enquanto via o rosto dele esmaecer para se tornar agora a face de um demônio, pairando acima da sua, um demônio que tinha como olhos brilhantes lâmpadas amarelas, janelas para um inferno jamais imaginado" (King, 1978, p. 1066). A escrita de King descreve as características físicas de Flagg usando elementos fantásticos, evidenciando o quão aterrorizante ele realmente é. Flagg é apresentado como um vilão tão antigo quanto a própria terra, destinado a ressurgir sempre que existir maldade no coração das pessoas. O terror associado a esse personagem é utilizado na obra para expor os segredos mais íntimos e sórdidos da humanidade.

“A Dança da Morte” é um romance pós-apocalíptico que mantém sua relevância mesmo anos após sua primeira publicação. A importância dessa obra na carreira do autor é inegável, sendo recentemente adaptada em forma de minissérie lançada em dezembro de 2020, durante a pandemia da covid-19. A obra aborda aspectos reais como saúde, política, sociedade e religião, utilizando o terror como meio para aterrorizar os leitores e trazer à tona os aspectos mais sombrios e desejos primitivos da humanidade.

A última obra abordada no nosso trabalho é o livro de contos “Sombras da Noite”, uma antologia publicada em 1978 que possuía um total de 20 (vinte) contos, cada um com sua própria temática e narrativa. Para nossa pesquisa, selecionamos os contos a seguir com base em sua popularidade, criada pelas adaptações para o cinema: “O Último Turno”, “O Bicho- Papão” e “As Crianças do Milharal”.

No conto “Último Turno”16, vemos a história de um homem chamado Hall, um nômade que passa de cidade em cidade, pegando qualquer emprego que consiga arranjar. No início da história, Hall se encontra na pequena cidade de Gates Falls, Maine, trabalhando em uma fábrica como operário da máquina desbastadora de fibras. Logo de cara, podemos perceber que Hall não sente nenhum tipo de amargura em relação ao seu emprego, considerando sua vida solitária e o quanto recebe pelo seu trabalho. No geral, ele acredita que está tudo bem. Uma das poucas coisas que Hall não gosta em seu emprego são os ratos; aparentemente, era impossível andar pelo terceiro andar da fábrica sem se deparar com um.

Hall recebe uma proposta de trabalho extra para o feriado de 4 de julho de seu supervisor, Warwick. O trabalho consistia em limpar o porão da fábrica, que, segundo Warwick, estava abandonado há pelo menos uns doze anos. É com essa premissa que o conto se inicia.

Por mais que Hall pareça ter uma atitude imparcial em relação ao seu emprego, não podemos dizer o mesmo sobre o sentimento que o protagonista nutre por seu supervisor. Hall não consegue deixar de sentir uma aversão a Warwick, um sentimento que ele não consegue explicar com palavras exatas. Em um ponto específico do conto, percebemos que Hall relaciona Warwick aos ratos presentes na fábrica, animais dos quais ele não gosta nem um pouco. Chega até a atirar latas de alumínio em todos os ratos que encontra durante seu horário de serviço. Uma passagem importante que vale a pena citar é a seguinte: “E após alguns instantes, os ratos saíram e se sentaram em cima dos sacos da sala cumprida, observando-o com seus olhos pretos, sem pestanejar. Eles pareciam um júri.” (KING, 1978, p. 68).

A história avança para o dia marcado para a limpeza do porão da fábrica. Ao todo, a equipe de limpeza conta com trinta e seis homens, divididos em dois times: a equipe encarregada de usar as mangueiras para a remoção da sujeira e a equipe encarregada de remover o lixo com os carrinhos elétricos. Hall faz parte da segunda equipe.

Neste ponto, podemos ter uma noção do quão inóspita era a situação daquele porão. Era possível sentir o cheiro de podridão e decomposição dos materiais após os doze anos em que o porão ficou abandonado. Outro aspecto eram os ratos. De acordo com o narrador, os ratos do porão eram tão grandes que faziam os do terceiro andar parecerem anões. Esses ratos também eram violentos, chegando a morder os funcionários ao ponto de causar ferimentos absurdos.

O Ray gritou como uma mulher, e eu não o culpo. Sangrava como um porco. E você acha que a coisa largava? Não, senhor. Tive que bater nela três ou quatro vezes com uma tábua para que largasse. O Ray quase endoidou. Pisou no rato até que ele não passasse de uma massa de pelo. A coisa mais medonha que já vi (KING, 1978, p. 71).

Podemos observar que o autor utilizou elementos de horror para alcançar o efeito de repulsa, como em muitas outras cenas escritas por King, essa foi representada de forma explícita. A combinação de elementos, como a ambientação sombria de um porão imundo, os animais de tamanhos anormais e o sangue excessivo, traz para a narrativa os aspectos viscerais do horror. Isso leva o leitor a sentir um certo nojo, ao mesmo tempo em que se questiona se aceitaria trabalhar em condições tão abusivas, mesmo passando por dificuldade financeira.

No clímax final do conto, os funcionários descobrem um alçapão de madeira, indicando a existência de um subporão. Hall aponta esse local como o ninho dos ratos. Após discussões e chantagens, Hall convence Warwick a descer com ele e verificar o que se esconde lá embaixo. No interior do subporão, encontram seu destino final.

O rato ocupava toda a vala na outra extremidade daquela tumba podre. Era uma forma imensa e cinzenta, pulsante, sem olhos, completamente sem pernas. Quando a luz da lanterna de Hall o atingiu, soltou um guincho hediondo. A rainha deles, então a magna matter. Uma criatura imensa e sem nome cuja prole talvez um dia desenvolvesse asas. Parecia maior do que o que restava do Warwick, mas isso provavelmente era só ilusão. Era só o choque de ver um rato do tamanho de um bezerro Holstein (KING, 1978, p. 84).

Nesse conto, podemos perceber a presença de elementos fantásticos. Os ratos mutantes desempenham um papel crucial na construção da tensão e do medo crescente, que se intensificam à medida que os personagens desvendam os segredos do porão da fábrica. À medida que a história se desenrola, torna-se evidente que os personagens também não são pessoas virtuosas. O conto aborda questões como as condições precárias no local de trabalho e o abuso de autoridade.

Partindo para o próximo conto deste estudo, temos o conto intitulado “O Bicho- Papão”17. Nele, somos apresentados a Lester Billings, residente de Waterbury, Connecticut, um homem de vinte e oito anos, divorciado e pai de três filhos. A história se desenrola principalmente no consultório do psiquiatra Dr. Harper. A narrativa consiste em um diálogo entre o médico e o paciente, onde Lester relata como perdeu seus três filhos para uma criatura que ele chama de "Bicho-Papão". Isso gera uma sensação de confusão, já que, após alegar ter matado seus filhos, Lester culpa essa criatura desconhecida por suas mortes.

O conto apresenta uma linha do tempo alternada, abrangendo o passado e o presente, uma vez que o pai está contando, ou, em suas palavras, confessando, como sua negligência causou a morte de seus queridos filhos. O doutor age de maneira imparcial diante dessas afirmações de forma imparcial, como todo psiquiatra, abstendo-se de tomar partido ou julgar se acredita ou não no relato de Lester, mantendo essa postura ao longo de todo o conto.

Inicialmente, podemos notar que o paciente está visivelmente perturbado. No início da seção, Lester demonstra medo em relação ao armário do consultório e exige que o doutor o abra para que ele possa verificar se tudo está no lugar, ou o que não está. Essa reação se deve ao fato de que, de acordo com Lester, o bicho-papão se escondia dentro do armário do quarto de seus filhos. O primeiro de seus filhos a morrer foi um bebê de cinco anos chamado Denny.

O pai do garoto afirma que, na noite anterior à sua morte, o menino apontou para o armário e pronunciou a seguinte palavra: Bicho-Papão. A criança aparentemente sofreu uma morte natural, morte no berço, o que visivelmente perturbou o pai, que jurava que o armário estava fechado na noite que colocou o filho para dormir. Porém, no dia seguinte, a porta estava levemente aberta.

A segunda filha, Shirl, faleceu em circunstâncias semelhantes, mas a causa da morte, desta vez, foi uma convulsão. Lester e sua esposa decidiram mudar-se após as trágicas perdas de seus filhos, buscando virar a página. No entanto, Lester afirma que a criatura encontrou sua nova casa. Um ano depois, tiveram um último filho, Andy, um bebê que inicialmente ele não desejava ter devido aos eventos passados. No entanto, ele se apegou ao garoto. Neste ponto, o relato da cena da morte é mais detalhado.

E uma hora mais tarde, houve um grito. Um grito medonho, como um gorgolejar. Eu soube o quanto o amava porque corri lá para dentro, nem mesmo cheguei a acender a luz, corri, corri, corri, ah, meu Jesus Cristo, a coisa o havia apanhado; sacudia o garoto, como um cachorro sacode um pedaço de pano, e eu pude ver algo com ombros horrivelmente caídos e uma cabeça de espantalho, e pude sentir o cheiro semelhante ao de um rato morto numa garrafa de refrigerante, e ouvi... – ele se interrompeu, então sua voz retomou o timbre de adulto. – Ouvi quando o pescoço de Andy se partiu – a voz de Billings era fria e inexpressiva. – Fez um som como gelo quebrando quando você está patinando num lago no interior, no inverno. (KING, 1978, p. 147)

Aqui podemos observar um padrão: um pai que, todas as noites, coloca seu filho para dormir e fecha a porta do armário após a criança ver algo que a assusta. Devido ao estado perturbado de Lester, é difícil determinar se tudo o que ele descreve em seus relatos é verdadeiro ou fruto de sua mente perturbada. Embora o autor tenha o hábito de inserir criaturas fantásticas em suas obras, é desafiador focar apenas no aspecto sobrenatural do manuscrito. Existe a possibilidade de que a perda de seu primeiro filho tenha sido tão traumática para Lester a ponto de todos os acontecimentos subsequentes relacionados ao bicho-papão serem apenas produtos de sua mente. Pode-se considerar que ele foi o responsável pela morte de seu último filho, mas novamente, essa é só uma das possibilidades, e não podemos assumir isso como verdade.

No final do conto, o doutor sugere que Lester marque uma próxima consulta com a enfermeira. Ela, porém, não se encontrava no balcão e deixou um bilhete que dizia: “Volto em um minuto”. Lester decide então voltar ao consultório para informar o doutor da ausência da enfermeira, e o acontecimento seguinte é uma das cenas mais memoráveis da antologia.

Doutor, sua enfermeira...

A sala estava vazia. Mas a porta do armário estava aberta. Só uma fresta.

Tão bom – a voz do armário disse. – Tão bom.

As palavras pareciam saídas de uma boca cheia de algas podres. Billings ficou imobilizado no lugar enquanto a porta do armário se abriu. Ele sentiu um ligeiro calor na virilha ao urinar nas calças.

Tão bom – disse o bicho-papão ao sair, arrastando os pés.

Ainda segurava a máscara do Dr. Harper numa das mãos apodrecidas, com enormes garras (KING, 1978, p. 148).

Esse conto pode ficar aberto à interpretação; é possível que tudo seja de fato um efeito do sobrenatural, mas também é possível que tudo seja fruto da mente perturbada de Lester, que já estava completamente fora de si. Cabe apenas ao leitor decidir qual explicação é mais apropriada à sua interpretação. O conto utiliza os aspectos do terror fantástico ao longo de todo o seu percurso, assim como as outras obras tratadas neste estudo. O relato de Lester vai aumentando a tensão até o seu desfecho final.

O último conto escolhido, intitulado por Stephen King como “As Crianças do Milharal”18, apresenta como protagonistas Burt e Vicky, um casal em uma viagem em direção à costa, a casa do irmão de Vicky. No entanto, esse propósito é apenas uma fachada, já que o verdadeiro motivo da viagem é tentar salvar um casamento em crise. Burt decide evitar as rodovias principais para desfrutarem da paisagem local de Nebraska. Todavia, percebem que estão perdidos em um dos vastos milharais do estado.

Durante uma discussão, o casal aparentemente atropela um garotinho que emerge do milharal. Assustados, descem para socorrer a criança e Burt percebe que ela já está morta, com a garganta cortada. Decidem então ir em direção à cidade mais próxima para denunciar o que acreditam ser um crime, mas acabam se deparando com uma cidade peculiar. Os únicos residentes são crianças e adolescentes, e eles não estão felizes com a visita do casal.

Não muito diferente dos outros contos apresentados aqui, começamos com uma situação que não difere muito do padrão de normalidade. Temos um casal que, apesar dos conflitos, decide fazer uma viagem juntos na esperança de consertar o casamento. No entanto, à medida que avançamos na história, as coisas se escalonam rapidamente. As crianças desta história são parte de uma espécie de culto, apresentando tendências assassinas e parecendo servir a alguma entidade maligna que reside no milharal.

Após a chegada de Burt e Vicky na cidade, diversas crianças aparecem, todas com um único objetivo: puni-los por seus pecados, em nome de "Aquele que Anda por Trás das Fileiras".

Nesse conto, observamos mais um caso de fanatismo religioso. A ausência de adultos na cidade ocorre porque todos foram mortos por seus próprios filhos. A entidade do milharal, seja lá o que for, exige um sacrifício como forma de expiação dos pecados dos adultos, para que o milho volte a crescer. A narrativa está repleta de cenas violentas, com as crianças cometendo assassinatos a sangue frio contra aqueles que desafiam seus princípios religiosos. Vicky é assassinada assim que chegam à cidade, degolada por um garoto. Burt consegue escapar das crianças, mas comete o erro de adentrar o milharal, onde se depara com a entidade que acaba levando à sua morte.

Pelo que podemos perceber durante a leitura do conto, essa adoração não é unânime entre todos os jovens. Aqueles que atingem a idade de dezenove anos são enviados para o milharal como oferenda à entidade que lá reside. Aqui temos o fanatismo religioso em sua forma mais pura. Os jovens da cidade não hesitam em matar estranhos e muito menos em sacrificar os seus em nome de um ser que alguns deles até mesmo temem, uma criatura que reivindica tudo e todos para si mesma.

– Adeus, Malaquias – gritou Rute. Ela acenava descontroladamente. Seu ventre estava crescido com o filho de Malaquias e lágrimas escorriam silenciosamente por sua face. Malaquias não se virou. Suas costas estavam eretas. O milho o engoliu. Rute se virou, ainda chorando. Ela alimentava uma raiva secreta pelo milharal, e às vezes sonhava em penetrar nele com uma tocha em cada uma das mãos, quando o mês seco de setembro viesse, e os talos estivessem secos e facilmente incendiáveis. Mas ela também o temia. Lá fora, na noite, alguma coisa caminhava, e via tudo... até os segredos guardados nos corações humanos. O crepúsculo se transformou em noite. Ao redor de Gatlin, o milharal farfalhava e sussurrava secretamente. Estava muito satisfeito (KING, 1978, p. 356).

Esse conto nos mostra que o fanatismo religioso possui um preço alto a ser pago e que nem todas as recompensas do mundo podem garantir a felicidade daqueles que recorrem a métodos extremos. A história também é palco de discussão entre diversos leitores de King, pois muitos acreditam que a entidade intitulada de “Aquele que Anda por Trás das Fileiras” seria Randall Flagg em uma das suas versões do multiverso19. “As Crianças do Milharal” se consagrou como um dos contos mais famosos de King, recebendo diversas adaptações para o cinema ao longo dos anos.

Diante da exposição dos aspectos específicos escolhidos das obras, podemos chegar a algumas conclusões. Primeiramente, foi possível observar que o uso do terror como elemento narrativo permitiu o autor abordar temas reais, obviamente recheados de ficção e da criatividade do autor, abrindo  espaço para reflexões sobre o mundo real e causando um impacto direto no leitor. A partir do momento em que o real se junta ao fantástico, é possível atingir esses temas de forma mais direta e explícita. Outro ponto a se considerar é que o uso do terror cria uma atmosfera de tensão psicológica durante toda a obra, fazendo com que o elemento fantástico mantenha o interesse do leitor em prosseguir na leitura, aguçando sua curiosidade e elevando a adrenalina do suspense.

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como objetivo identificar como o uso das temáticas do terror e da realidade se mixam com a escrita literária, além de aguçar o envolvimento emocional dos leitores e suscitar uma reflexão sobre questões reais abordadas nas obras de Stephen King. Para tal, buscamos ter como base referencial autores relacionados ao estudo da narrativa literária, ao uso do terror na narrativa, além de direcionar nossa atenção ao sentido do fantástico e do gótico, a fim de compreender como esses elementos foram abordados pelo autor das obras “O Iluminado”, “A Dança da Morte” e “Sombras da Noite”.

Durante este estudo, foi possível explorar de forma superficial, contudo com o aprofundamento suficiente para ver claramente como King utilizou o gênero do terror fantástico em suas obras para discorrer sobre temas entrelaçados na nossa sociedade. Por exemplo, observamos em "O Iluminado" a realidade da deterioração das famílias ocorrer por pura falta de controle daqueles que são dominados por supostas fraquezas, encontrando uma fuga nas drogas ilícitas, como álcool e psicotrópicos, para superar suas frustrações. Fica óbvio que isso não é ficção, mas a mais pura realidade de muitas famílias pelo mundo.

Assim como em "A Dança da Morte", foi possível ver como a humanidade reagiu diante dos desafios e das situações extraordinárias às quais foram expostos, enfrentando constantemente a luta pela sobrevivência e reconhecendo a necessidade de união para superar as adversidades. Isso não é muito diferente da realidade, onde todos precisam cooperar entre si para alcançar um objetivo comum.

Da mesma forma, não ficamos indiferentes à temática em "Sombras da Noite", onde vimos uma representação do lado mais sombrio da humanidade, seus segredos mais obscuros, e a linha entre o bem e o mal se torna tênue, assim como na vida real, onde os conceitos de certo e errado nem sempre são tão transparentes. Foi nessa abordagem que o autor possibilitou aos leitores refletirem sobre si mesmos e a sociedade onde vivem, além de se beneficiar criativamente das características do terror para manipular uma atmosfera sombria devido à tensão psicológica que aumenta exponencialmente à medida que a narrativa se desenrola, prendendo o leitor à leitura.

Também foi possível reconhecer o valor e contribuição das obras estudadas durante esta pesquisa para o gênero do terror e o mundo do entretenimento, que se estende até mesmo às grandes telas do cinema. Apesar de terem sido lançadas há pouco mais de quatro décadas, as obras criadas por King se mantiveram atuais e são utilizadas como referência em diversas pesquisas relacionadas a esses gêneros literários.

Apesar de possuírem histórias distintas, durante esta pesquisa fomos capazes de identificar diversos pontos em comum entre as obras. Em ambas, Stephen King criou diversas personagens definidas de forma totalmente humanizada, experienciando situações extraordinárias que desafiaram a realidade. Mesmo assim, essas situações possuem diversos aspectos reais, inseridos de forma explícita e impactante.

Logo, temos que reconhecer o valor da riqueza literária de Stephen King, que deixou sua marca no gênero que o define tão bem: o terror. Mesmo sendo de outras eras, o autor permanece relevante na atualidade e continua a publicar suas obras com a mesma dedicação e eficácia. Ao longo dos anos, ele criou diversas histórias marcantes que o consagraram como um dos escritores mais famosos e influentes de todos os tempos.

E, por fim, esperamos poder dar continuidade a essa pesquisa que ainda tem muito a investigar a respeito das obras de Stephen King. Ao mesmo tempo, almejamos que este estudo sirva como fonte de referência para futuras pesquisas na área de estudos literários e que possa contribuir para todos aqueles que compartilham de um interesse acerca do terror fantástico e seus mundos que, vez ou outra, (inter)conectam-se com a realidade, e vice-versa.

11. REFERÊNCIAS

CABRAL, J. O MEDO DO DESCONHECIDO: Um diálogo entre o terror psicológico em “The Fall of the House of Usher”, de Edgar A. Poe, e o horror cósmico em “The Outsider”, de H. P. Lovecraft. Brasil, Rio Grande do Norte: Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, 2018.

CÂNDIDO, A. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011. FIGUEIREDO, C. de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Nova edição, 1913. GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2002.

GELEY, G. O Ser Subconsciente. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Editora: FEB, 1998.

KAYSER, W.; QUINTELA, P. Análise e interpretação da obra literária. Arménio Armado, 1970 [s.l: s.n.].

KING, S. A Dança da Morte. Brasil, Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2013. KING, S. O Iluminado. Brasil, Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2017.

KING, S. Sobre a Escrita: A Arte em Memórias. Brasil, Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2015.

KING, S. Sombras da Noite. Brasil, Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2013.

LOVECRAFT, H. P. O Chamado de Cthulhu e Outros Contos. Jandira, São Paulo: Principis, 2019.

LOVECRAFT, H. P. O Horror Sobrenatural na Literatura. Tradução de João Guilherme Linke. Rio De Janeiro: Francisco Alves, 1987.

NICOLINI, P. P. F.; MARTINS, A. D. O. Diálogo entre Literatura e Cinema: Narrativas de terror - o estudo de estratégias narrativas para “ancorar o efeito do real” na linguagem literária e na linguagem cinematográfica. Literartes, v. 1, n. 7, p. 180, 23 dez. 2017.

SMITH, A. Gothic Literature. United Kingdom, Scotland: Edinburgh University Press, 2007.

TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975.

 

1 Stephenking.com

2 A edição utilizada neste estudo foi a versão revisada pelo autor, lançada em 1990, que apresenta páginas extras em comparação ao manuscrito original.

3 A biografia deste estudo possui apenas os acontecimentos que têm como cronologia o nascimento do autor até a publicação de seu primeiro livro.

4 Os Estranhos.

5 L’Etre subconscient

6 King inconscientemente poderia ser também o Danny Torrance, um garoto que em certo momento se vê refém dos vícios do pai, simbolizando, assim, traços da sua personalidade que sofriam devido ao uso de psicotrópicos.

7 Mencionamos o “hotel” como um personagem, pois o Overlook possui uma espécie de personalidade

própria, devido à sua grande essência sobrenatural e maligna.

8 Topiaria seria a arte de podar plantas em formas ornamentais, criando aspectos artísticos nas plantas a partir do corte da tesoura de podar.

9 Cidade fictícia criada exclusivamente para a obra.

10 Outra cidade fictícia do livro.

11 No nosso estudo, não utilizamos a expressão surdo-mudo, pois é incorreta, uma vez que nem todo surdo é considerado mudo. O personagem Nick, porém, não possui a habilidade de ouvir nem de produzir sons,

nem mesmo sons como grunhidos de dor ou risadas.

12 No original, Mentally Retarded.

13 No original, Baby, Can You Dig Your Man?

14 Durante a obra, os personagens (inclusive ele mesmo) se referem a Donald como Homem da Lata de Lixo.

15 Trocadilho com “A Força”, da franquia de filmes Star Wars, no qual os personagens do bem se encontravam guiados pela luz da força, e os vilões permaneciam no lado sombrio da força.

16 No original, Graveyard Shift.

17 No original, The Boogeyman.

18 No original, Children of the Corn.

19 Stephen King trabalha com o conceito de multiverso em diversas de suas obras. Outras versões de Randall Flagg aparecem nestas, às vezes com um nome diferente, porém sempre com as mesmas características.


Publicado por: David Lucas Souza de Macêdo

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