O FEMINISMO PRESENTE EM CASA DE BONECAS: A IMAGEM DA MULHER NO SÉCULO XIX

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1. RESUMO

Casa de Bonecas é um drama de Henrik Ibsen. O objetivo da pesquisa foi analisar o feminismo presente no século XIX a partir da obra citada. Por meio de uma metodologia bibliográfica, o artigo evidenciou que a imagem de mulher que se tinha na época era de pura, frágil, simples, oprimida, falível, fútil, insaciável, um estímulo para os sentidos carnais e portadora da tentação e do pecado, ou seja, um alguém que poderia ser controlada facilmente e usada de qualquer forma. O presente trabalho permitiu concluir que Ibsen não via humanidade na ideia de alguém ser destinado a submissão devido ao fato de nascer mulher. Apesar dele não se considerar feminista, quis mostrar com sua obra, uma visão contraria ao ideal da época. Ser mulher não está relacionado apenas para fins domésticos e ser devota à família; ser mulher não é questão de ser pequena e frágil boneca. Ser mulher é muito mais.

Palavras-Chave: Henrik Ibsen. Casa de Bonecas. Século XIX. Feminismo.

ABSTRACT

A Doll’s House is a drama by Henrik Ibsen. The objective of the research was to analyze the feminism present in the nineteenth century from the cited work. Through a bibliographical methodology, the article showed the image of a woman who was then pure, fragile, simple, oppressed, fallible, futile, insatiable, a stimulus to the carnal senses, a carrier of temptation and sin, a person who could be easily controlled and used in any way. With the work, it was possible to conclude that Ibsen did not see humanity in the idea of being destined for submission due to the fact of being born a woman. Although he did not consider himself a feminist, he wanted to show with his work a vision contrary to the ideal of the time. Being a woman is not just for domestic purposes and being devoted to the family, being a woman is not a question of being a small and fragile doll. Being a woman is much more.

Keywords: Henrik Ibsen. A Doll’s House. XIX century. Feminism

2. INTRODUÇÃO

No ano de 2016 uma jovem aluna – ao mesmo tempo que cursava Letras Inglês na UCSAL, cursava Bacharelado Interdisciplinar em Artes na UFBA – resolveu pegar uma matéria de teatro chamada: Cenografia. Onde nela, conheceu uma obra cuja a mesma mudou completamente sua vida, chamada: Casa de Bonecas.

O que essa obra teria de tão especial? Pensou a leiga jovem, até que suas pesquisas para desenvolver o trabalho a levaram a resposta: muito. Seu primeiro contato foi para desenvolver um seminário, o que a levaria a confeccionar uma bela maquete sobre a sua visão da peça. Nunca pensara que se apegaria tanto a ela, e que no fim das contas, acabaria virando seu tema de TCC. Sentiu uma vontade enorme de focar nessa obra e de pesquisar sobre a situação das mulheres no século XIX.

Casa de Bonecas é um drama de Henrik Ibsen. Separada em três atos, a obra retrata os convencionalismos sociais e a hipocrisia presente no final do século XIX, como por exemplo: o machismo. A trama ocorre na casa da família Helmer, no período do natal. A personagem principal é Nora Helmer – esposa de Torvald Helmer –, que tem um comportamento bastante avançado para sua época, pois quebra alguns paradigmas com relação a ser mulher nesse século. O autor, por si só, já faz essa quebra só pelo fato da protagonista ser uma mulher. Seria a Sra. Helmer considerada uma feminista? Seria o próprio Henrik Ibsen considerado um feminista?

A estética da peça segue uma proposta realista: narrativa lenta, que acompanha o tempo psicológico. Descrições com finalidade de captar a realidade de maneira fidedigna, sentimentos, sobretudo o amor, subordinados aos interesses sociais. Ibsen mostra de forma “simples” a realidade da época.

O contexto histórico da obra é da mesma época em que se passa a vida do autor. Dentro de uma sociedade na qual prevaleciam valores machistas. O livro apresenta uma temática que é atual mesmo nos dias de hoje: a questão de ainda se questionar os valores de uma mulher dentro de um relacionamento. Temos a história inteira se passando dentro da casa dos protagonistas, a mulher Nora e o marido Torvald. No livro, vemos um comportamento machista – considerando os dias atuais – da mulher em relação ao marido e sendo tratado de maneira muito natural; a velha história: mulher submissa que fica presa dentro de casa educando os filhos e o marido autoritário sustentando a família e educando a mulher.

O comportamento machista de Helmer pode ser presenciado logo no primeiro ato da peça, quando Nora emite uma opinião sobre as finanças do marido ele prontamente a rebate: “Nora, Nora! Só podia ser mulher, falando sério, Nora; você conhece minhas ideias a esse respeito [...].” (IBSEN, p. 9, 2007).

O enredo da peça gira em torno do segredo que Nora acha que deve esconder de seu marido: “[...] Ele é tão rigoroso nesse ponto! E depois, eu feriria seu amor-próprio de homem! Que humilhação saber que me devia alguma coisa! Isso teria modificado toda a nossa relação, e o nosso adorável lar nunca mais seria o mesmo.” (IBSEN, p. 22-23, 2007). Ela pega emprestado o dinheiro de um advogado – Krogstad – para fazer uma viagem à Itália, cuja mesma “salvaria” a vida de Helmer e iria restabelecer a sua saúde, pois ele estava doente. Krogstad usa esse empréstimo para chantageá-la para que não fosse demitido do banco onde trabalha e que é presidido pelo marido de Nora. Contudo, o advogado diz a Helmer que Nora fez um empréstimo sem pedir a sua permissão, e que ela também falsificou a assinatura de seu falecido pai. Krogstad ameaça levar esse ocorrido a público, o que pode “acabar” com a reputação de Helmer.

3. SÉCULO XIX: O INÍCIO DE UMA MUDANÇA

A situação da mulher no século XIX era de pura submissão e a infidelidade de qualquer ordem ao marido era algo considerado muito grave. Em 1857 a lei do divórcio foi aprovada, contudo, tinha valores diferentes para mulheres e homens. Um homem poderia obter o divórcio apenas se ele comprovasse a infidelidade de sua esposa, mas, uma mulher não desfrutava dos mesmos privilégios; poderia se divorciar sim, mas a infidelidade do marido não era o suficiente; teria de haver outro motivo associado, como por exemplo, violência.

As mulheres ocupavam um papel secundário tanto na família quanto na sociedade do século XIX, sendo dependente do pai e depois do marido, o que a privava de ser uma figura própria, sendo um mero objeto particular do homem. Sem liberdade de sair por aí e ser ela mesma. Estar solteira depois dos 30 anos de idade era considerado uma desgraça e se isso acontecesse eram chamadas de “velhas solteironas”.

Baseado em um depoimento de Teresa Billington (1877 - 1964) – uma escritora que viveu nessa época – conta-se em sua autobiografia não publicada (1884), como era viver no século XIX:

Nós éramos ensinadas a sermos jovens senhoras católicas na mesma linha da educação dada a nossas avós. Não havia lições orais, não existiam demonstrações, análises ou resolução de problemas. Nós nos sentávamos e ficávamos silenciosas em nossas fileiras de carteiras, aprendíamos dos livros e nossas tarefas eram corrigidas por uma freira, que era a professora naquele momento, a partir das respostas na parte final de um livro similar ao nosso... Nós tínhamos longos períodos de instrução religiosa... Sexta feira a tarde era devotada exclusivamente a comportamento. Os Modos fazem uma dama nos era dito, não o dinheiro ou o ensino, não a beleza. Então praticávamos como abrir uma porta, entrar e sair de um cômodo; a trazer uma carta, uma mensagem, uma bandeja ou um presente; a pedir permissão às mães de nossas amigas para que elas pudessem participar de uma festa; a receber visitas na ausência de nossos pais, e assim por diante! (MACHADO, p.1, 2004).

Foi observado que dessa forma a figura feminina ainda não possuía direitos iguais aos dos homens, eram apenas objetos dos mesmos e serviam somente para satisfazer seus desejos. As vontades femininas do século XIX de ser uma “mulher independente”, não passavam de anseios sem futuro e não eram levadas a diante, pois o que importava mesmo era o casamento, que querendo ou não, era visto como um ato de independência. Na obra Casa de Bonecas, a Sra. Linde vê o matrimônio como um recurso financeiro. Nora – a protagonista – pergunta a ela o motivo pelo qual havia se casado, e ela afirmou que não poderia recusar a proposta por causa de seus irmãos pequenos e de sua mãe doente. Nesse sentido, o casamento era para a maioria das mulheres do século XIX, a resolução de todos os seus problemas, seja no âmbito emocional bem como financeiro.

A imagem de mulher que se tinha na época era de pura, frágil, simples, oprimida, falível, fútil, insaciável, um estímulo para os sentidos carnais, portadora da tentação e do pecado, ou seja, um alguém que poderia ser controlada facilmente e usada de qualquer forma. Eram vistas também como donas de casa, acompanhante dos homens e incapacitadas de viver por conta própria. Assim como a personagem Nora, sempre vista como fraca e inútil, além de devota ao seu marido e seus filhos, isto é, para a época, ela era perfeita. A protagonista atua como um mero objeto de propriedade e decoração de Torvald, sendo submissa aos seus anseios, ou seja, uma boneca, morando em uma casa de brinquedo.

A educação feminina era somente para fins domésticos, deixando-as sem valor algum para o mercado de trabalho da época. Na obra, fica totalmente claro que o trabalho era considerado um ato masculino, quando Nora afirma que trabalhou para conseguir o dinheiro necessário para ajudar seu marido: “[...] No entanto era tão divertido trabalhar para ganhar dinheiro! Sentia-me quase como um homem.” (IBSEN, p. 24, 2007). Nota-se assim, que o fato de Nora poder trabalhar conota um ato de liberdade e alegria acompanhado logo em seguida de um estranhamento.

Louisa Garrett Anderson (1873-1943) foi uma escritora que viveu nesse período. Ela relata em depoimento, escrito em 1839, como era a educação naquele período:

...os pais acreditavam que uma educação séria para suas filhas era algo supérfluo: modos, música e um pouco de francês seria o suficiente para elas. Aprender aritmética não ajudará minha filha a encontrar um marido, esse era um pensamento comum. Uma governanta em casa, por um breve período, era o destino habitual das meninas. Seus irmãos deviam ir para escolas públicas e universidades, mas a casa era considerada o lugar certo para suas irmãs. Alguns pais mandavam suas filhas para escolas, mas boas escolas para garotas não existiam. Os professores não tinham boa formação e não eram bem educados. Nenhum exame público (para escolas) aceitava candidatas mulheres. (MACHADO, p. 1, 2004)

É possível perceber que tais atividades tornavam as mulheres cada vez mais dependentes dos homens, fazendo com que a classe feminina fosse vista sem credibilidade e sendo apenas uma complementação da família, assumindo uma mera parte da organização familiar, porém, não poderia ferir a autonomia que o ideal masculino tivesse na casa.

Era perceptível que não existia uma confiança no potencial feminino, pois também não fazia parte do processo cultural desse período. Durante os diálogos da obra é observada a maneira infantil com que Helmer trata a sua esposa, chamando-a, por exemplo, de: “meu esquilinho”, “doce cotovia”, “minha menina perdulária”, “meu passarinho gastador”. Esse jeito de tratar representa a forma que a mulher era vista na sociedade no século XIX: um ser sem autonomia, inferior, como uma criança. Observa-se outro exemplo dessa infantilização até mesmo na fala da Sra. Linde, sua amiga: “Ora, afinal foram só umas costurinhas e outras coisas do gênero. Você é uma criança, Nora.” (IBSEN, p. 19, 2007); “Ouça bem o que lhe digo, Nora; sob muitos aspectos você é como se ainda fosse uma criança: eu sou um pouco mais velha e tenho também um pouco mais de experiência. [...]” (IBSEN, p. 49, 2007).

Charlotte Despard (1844 - 1939), outra escritora e ativista que viveu nessa época, relatou em suas obras não publicadas, como era viver naquela época:

Era um período estranho, insatisfatório, cheio de aspirações ingratas. Eu a muito sonhava em ser útil para o mundo, mas como éramos garotas com pouco dinheiro e nascidas em uma posição social específica, não se pensava como necessário que fizemos alguma coisa diferente de nos entretermos até que o momento e a oportunidade de casamento surgissem. Melhor qualquer casamento do que nenhum, uma velha e tola tia costumava dizer. As mulheres das classes superiores tinham que entender cedo que a única porta aberta para uma vida que fosse, ao mesmo tempo, fácil e respeitável era aquela do casamento. Logo, ela dependia de sua boa aparência, nos conformes do gosto masculino daqueles dias, de seu charme e das artes de sua penteadeira. (MACHADO, p.1, 2004).

A ideia de comparar a personagem a uma criança conota a impossibilidade de autonomia de uma mulher diante dos valores machistas da época. Porém, Nora rompeu com tal estigma e provou que a mulher é capaz de ser mãe, de cuidar da casa, estudar, trabalhar fora, e que não são seres indefesos, não são objetos, nem tão pouco bonecas de enfeite de uma casa com valores machistas. Esse acúmulo de funções só ratificou a sua força e mostrou que as mulheres não nasceram para serem submissas e nem para serem tratadas como um ser inferior, frágil. Nora é forte e demonstra na narrativa onde pode chegar.

3.1. SERIA A SRA HELMER CONSIDERADA UMA FEMINISTA?

Henrik Johan Ibsen, dramaturgo norueguês, atribui a seus personagens perfis psicológicos complexos e costuma envolvê-los em temas voltados para a crítica social e moral que abarcam sua proposta de uso do realismo como uma forma de abordar o indivíduo e a sociedade, o que se percebe na riqueza dos detalhes e nas reflexões. Em Casa de Bonecas não ocorre diferente. O autor desenvolve a partir da história de Nora – protagonista da obra – muitas das ideias feministas. Nesse sentido, Ibsen mostra à situação das mulheres, fazendo uma crítica às práticas dessa sociedade e coloca na personagem essa representação da sua oposição aos valores morais da época em que eram fixadas como meros objetos do lar.

Ele foi um marco do realismo, muito influente para outros dramaturgos e romancistas. Escandinavo, diretor, produtor e ator. A sua história de vida reflete na sua carreira; muitas de suas peças tiveram controvérsias na época que eram publicadas. A sua história já foi um pouco controversa, o relacionamento de seus pais não foi saudável. Pai falido, alcoólatra e abusivo; mãe muito religiosa e submissa. Talvez por isso, em muitas de suas obras, era muito evidentes questões de valores da mulher.

Quando analisamos obras tais como a de Ibsen, notamos que a luta da mulher pelo o direito de escolher o que quer como quer e onde quer, nem sempre foi bem visto perante a sociedade. De fato, travou-se uma luta para que essa tivesse o direito a fala.

Penso que o ‘feminismo’ poderia ser compreendido em um sentido amplo, como todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual ou de grupo. (DUARTE, p. 197, 2003).

Existem vários olhares para o início do movimento feminista, várias opiniões acerca do assunto. Sabemos, contudo, que em toda a história sempre houve pessoas que já manifestavam atitudes feministas, mas um momento específico da história tornou isso mais claro.

O feminismo é um movimento a favor dos direitos das mulheres. É um grande erro se pensar que todo aquele que for a favor do movimento, será contra os homens em contrapartida. É um movimento que já se faz presente há muito tempo na história, muito embora não se possa dizer com exatidão quando ele veio a existir no mundo. É um movimento de suma importância para as mulheres se libertarem.

O feminismo é um movimento moderno, que surge a partir do contexto das ideias iluministas (1680-1780), com a Revolução Francesa (1789-1799) e Americana (1775-1781), reivindicando direitos sociais e políticos, com maior ênfase para a luta sufragista, através da mobilização de mulheres de vários países. (CASSAB; OLIVEIRA, p. 1, 2014).

Então a partir disso, como definiríamos o feminismo? Mesmo não sabendo exatamente quando se originou o movimento feminista, podemos dizer com exatidão quando a palavra feminismo surgiu. Ela apareceu na França nos anos de 1870- 1880 e que se expandiu para outros países entre o século XIX e XX. Foi em Paris que aconteceu o primeiro congresso feminista no ano de 1978. Desde esse momento, o movimento feminista passou a se propagar com maior força no mundo. Então do que se trata mesmo o feminismo?

É mais fácil para se ter uma definição mais coerente acerca do feminismo analisar o que esse movimento prega, ver as suas ações, seus ideais.

Os primeiros indícios do movimento feminista ocorreram durante a Revolução Francesa, através da publicação do livro “A Vindication of the Rights of Woman”, de Mary Wollstonecraft. O livro reivindicava a legitimação e amplitude dos direitos políticos para as mulheres, colocando em prática a teoria liberal dos direitos inalienáveis do homem, para lutar pelo direito feminino, enfatizando maior atenção ao direito à educação. Porém, também reivindicavam direitos trabalhistas para as mulheres, direito à maternidade, e outros relacionados às expressões da questão social. (CASSAB; OLIVEIRA, p. 1, 2014).

Coincidentemente, a sistematização do movimento nesse período nos faz entender como deve ter sido um choque para a sociedade em geral o lançamento da peça Casa de bonecas. De fato, sua aceitação não foi das melhores e em certos lugares chegou-se a proibir a transmissão da peça, por exemplo, na Alemanha. Desses três períodos muito nos interessa o primeiro, visto ser a época na qual a peça Casa de bonecas foi apresentada ao público. A sociedade era então resistente em aceitar que a mulher possuísse autonomia. A visão da mulher era de uma espécie de joia que adornava o ambiente, mas não tinha função alguma. O tema da peça nos remete a essa ideia, pois imaginamos logo Nora – ou qualquer mulher da época -, como uma boneca que apenas seria exibida. Em contrapartida, Ibsen insere no seu texto indícios de emancipação da mulher, o que contribui para se pensar Casa de Bonecas como sendo uma obra que contribui com a luta feminista.

A história do movimento feminista foi dividida em momentos, os quais chamamos de três ondas. Elas englobam de forma gradual as ações feministas e os direitos adquiridos por meio dessas.

A primeira onda vai do início do século XIX até meados do século XX. O foco principal era na igualdade de direitos contratuais e de propriedade para mulheres e homens. Era contra os casamentos arranjados. Entretanto, no final do século XIX o ativismo focou principalmente na conquista do poder político, especialmente no direito ao voto por parte das mulheres. A primeira onda se preocupou pouco com a questão do aborto. De modo geral, eram contra o mesmo.

As principais lutas concretas referem-se, portanto, a formação profissional e a representação política, reivindicando o acesso à educação formal, ao trabalho remunerado e ao voto. Tal fase é caracterizada como ligada “ao interesse das mulheres brancas de classe média” por apresentar pautas generalizadas de igualdade formal inclusiva que em pouco ferem a estrutura patriarcal historicamente edificada. (BITTENCOURT, p. 199-200, 2015).

A segunda foi a partir da década de 60 até o final da década de 80. Essa onda se preocupou principalmente com a igualdade e o fim da discriminação. As feministas dessa onda visavam a aquisição de direitos para os direitos ao seu próprio corpo.

Inclusive, é nesse período em que se formulam as problematizações acerca das diferenças entre gênero, sexo e orientação sexual, desmitificando a naturalização de papeis sociais que seriam inerentes a homens ou mulheres. Ainda há a importante contribuição do questionamento da dicotomia artificial dos espaços públicos e privados, ressaltando que o “pessoal” ou o privado são espaços políticos e que devem ser desvelados. (BITTENCOURT, p. 201, 2015).

A terceira começou no início dos anos 90. Foi uma resposta as falhas da segunda onda e também foi uma volta as iniciativas e movimentos criados. O feminismo da terceira onda tem a intenção de evitar as definições de feminilidade.

Judith Butler (2010), em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade desconstruiu a concepção de gênero que está ligada a toda teoria feminista. A “separação” sexo/gênero atua como se fosse uma base da política feminista e parte do conceito de que o sexo é algo comum e o gênero foi construído socialmente. Essa é a alegação que Judith Butler problematizava no livro citado. Debater essa dualidade foi o ponto que a autora precisava para começar o questionamento do conceito de mulheres como sujeito do feminismo.

Vale ressaltar que a autora estava problematizando a concepção mulheres, mesmo sendo empregada no plural, com uma tentativa de envolver outros elementos como raça, etnia, idade, etc., ou seja, a associação ao plural não agradava Butler, que observava ainda uma padronização na troca de mulher para mulheres. Apontava para a perspectiva de existir política sem que haja uma necessidade do estabelecimento de identidade fixa. Ao mesmo tempo, ela repensa nas restrições às quais a teoria feminista arca na tentativa de representação das mulheres.

Butler tentaria mover o movimento feminista do campo do humanismo, como uma prática política que presume o sujeito como identidade fixa, para algo que deixe em aberto à indagação de identidade, não organizando essa pluralidade, a qual a desagrada tanto.

A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada. Esse tipo de crítica põe em questão a estrutura fundante em que o feminismo, como política de identidade, vem se articulando. O paradoxo interno desse fundacionismo é que ele presume, fixa e restringe os próprios “sujeitos” que espera representar e libertar. (BUTLER, p. 213,2010).

Criticou também em sua obra a representação da mulher como uma categoria permanente e estável. Através das questões de Foucault a respeito da constituição da subjetividade, a autora entendia que toda representação é uma função normativa, não existindo “a mulher” antes da formação discursiva. Ou seja, é a representação que gera os sujeitos os quais a princípio ela pretende representar. Mas afinal, o que seria uma representação?

As primeiras discussões sobre o tema da representação na cultura clássica grega, que concernem mais ao campo artístico do que ao plano da política, já trazem consigo inúmeras indagações. Se um dos primeiros significados do ato de representar é tornar presente aquilo que está ausente, estar-se-ia, portanto, diante de uma impossibilidade? De que maneira é possível tornar presente o que está ausente? A única possibilidade, parece, seria fazê-lo alegoricamente, no sentido exato da palavra: “dizer o outro”. A representação, no entanto, e é isso que vem a torná-la problemática, não pretende apenas “dizer o outro”, mas “dizer pelo outro”. O representante é, assim, ao mesmo tempo um “lugar-tenente” e um “porta-voz”. (CAMARGO; RABENHORST, p. 982, 2013).

Nesse sentido, se pode pensar em Ibsen como uma peça importante para o movimento feminista, visto que na época ainda havia dificuldade em aceitar a figura feminina se impondo nessas situações. Ele foi um possível representante para o movimento, abordando a libertação da mulher e tornando-a independente em pleno século XIX, onde elas eram meros enfeites familiares. Sua peça foi inovadora, e clareou muito a cabeça das figuras femininas.

Pode-se afirmar que a Sra. Helmer é sim uma figura importante para o feminismo, mesmo que seja da ficção, pois, totalmente diferente de seu marido, ela se liberta de tudo aquilo que lhe é imposto sem se importar com o que os outros iriam pensar.

Essa atitude foi incentivadora para as mulheres, pois elas viram que também poderiam escrever a sua própria história – o que restou dela –, se libertarem dos maridos, escolher o seu destino. Poderiam também se libertar a assumir finalmente a sua identidade, o seu corpo. A construção da personagem Nora, representou, e tornou real o que elas tanto desejavam. A protagonista foi consagrada como um símbolo em todo o mundo para as mulheres que lutam pela libertação e igualdade.

Nora é, de longe, a personagem mais interessante da peça. Muitos críticos apontaram que tal criatura imatura e ignorante nunca poderia ter alcançado as qualidades revolucionárias e de compreensão que ela tem no momento em que sai de sua casa. Ibsen, no entanto, construiu cuidadosamente Nora para que sua independência sempre tenha sido demonstrada através de seus caprichos de adolescente.

As mulheres em Ibsen amam a ponto do auto sacrifício. Os homens jamais o fazem. O conflito, em Ibsen, é entre o homem ambicioso e a humanidade da mulher. Tanto os homens quanto as mulheres falam sobre valores, mas não há nenhuma verdade na conversa dos homens sobre ideias. Mas há na das mulheres. (ADLER, p. 63, 2002).

De acordo com Calahani (p. 56, 2010), a valorização da causa feminista na obra do autor é clara. A partir da narrativa da vida dos personagens ele retrata a mulher da época, em especial da classe dominante, como um artigo de luxo pertencente ao seu marido. A imagem era a preocupação das mesmas e de sua família, para a qual esta tinha um papel limitado e fútil, devendo apenas cumprir seu dever estabelecido para agradar ao marido e à sociedade.

3.2. SERIA HENRIK IBSEN CONSIDERADO UM FEMINISTA?

Quando escreveu Casa de Bonecas, Ibsen não tinha a intenção de ser um agitador feminista, pois ele valorizava a libertação do ser humano de uma maneira geral. Ibsen, após a sua obra receber boas críticas por parte das mulheres e de movimentos femininos, declarou:

Não sou membro da Liga dos Direitos das Mulheres. Tudo que escrevi tem sido sem qualquer pensamento consciente de fazer propaganda. Eu sou mais poeta e menos filosofo social do que as pessoas geralmente estão inclinadas a acreditar. Agradeço o brinde, mas devo renunciar a honra de ter trabalhado conscientemente para o movimento dos direitos das mulheres. Nem sequer estou bem claro quanto ao que é este movimento pelos seus direitos. Para mim, é um problema de humanidade em geral. (NEVES, p. 51, 2017).

"Em primeiro lugar, um ser humano", afirmava ele. Ibsen foi considerado o maior dramaturgo depois de Shakespeare, e um dos motivos da sua grandeza é que ele está mais interessado em seres humanos do que em construções sociais ou sistemas de crença. As limitações morais de Helmer e Nora, e sua tragédia, são resolvidas em relação aos hábitos e crenças de seus tempos.

Torvald Helmer é o protagonista masculino e marido de Nora. Em sua opinião, é o dever divino de uma mulher ser uma boa esposa para o marido e uma boa mãe para seus filhos. Além disso, ele diz a Nora que as mulheres são as únicas responsáveis pela moralidade de seus filhos.

Nills Krogstad é o antagonista da peça, trabalha para Helmer e é considerado um vilão, pois intimida, chantageia e ameaça Nora em um esforço para manter seu emprego no banco: “Esse lugar no banco era para mim o primeiro passo. E agora o seu marido quer empurrar-me de volta à lama.”. (IBSEN, p. 35, 2007).

Os personagens de Ibsen demonstram uma complexidade matizada totalmente ausente, comparados aos personagens dos melodramas populares de seu tempo. Fica bem explícito também os valores deles, visto que os homens da obra ainda são imaturos.

Ainda que Helmer não fosse uma má pessoa, ficava subentendido que algo de bom não aconteceria a Sra. Helmer se seu marido ficasse sabendo do seu feito, mesmo tendo sido uma ação altruísta, pensando exclusivamente no bem estar dele. E é com base nisso que se faz o arco da personagem, onde dois homens decidem o futuro da protagonista na obra.

Ficou claro ao final da obra que nenhum dos dois homens foi realmente fundamental para ela. As ameaças do advogado não adiantaram e foi irrelevante, visto que o Sr. Helmer repensou tudo e mesmo assim, também não foi de suma importância para ela, pois já tinha aberto seus olhos e decidido trilhar o seu próprio destino, deixando para trás aquilo que lhe sufocava.

Mesmo que a peça tenha sido escrita por homem, essa obra foi e é de suma importância para as mulheres, pois lhes deu forças para lutarem por aquilo que acreditavam e apesar dele não se considerar feminista, ele acaba sendo por elas. Ibsen deu às mulheres uma voz vigorosa e forte através da criação de personagens femininas poderosas como Nora Helmer.

4. A BONECA REBELDE

Segundo Zimermann (2015), a ideia de Casa de Bonecas nasceu através de um ocorrido com a romancista Laura Kieler (1849 - 1932), uma norueguesa. Ela foi acusada de falsificar uma letra de câmbio para pagar uma viagem que o marido necessitava para tratar a tuberculose. Quando foi descoberta, o marido achou um absurdo e pediu a separação, e seus filhos foram tirados dela. A notícia saiu em todos os jornais da época, justamente no período o qual o feminismo lutava contra as opiniões conservadoras.

Devido a esse acontecimento, Kieler foi internada em um hospital psiquiátrico. A forma como ela foi tratada pelo marido mostra a estrutura patriarcal e subordinação da mulher daquela época.

O mesmo ocorre em Casa de Bonecas, Nora falsifica a assinatura de seu falecido pai. Lhe veio à cabeça os riscos de sua atitude, afinal, tudo o que ela queria era salvar a vida de seu marido e nunca imaginou que a lei iria puni-la por conta do seu feito. Mas o final de Nora acaba sendo totalmente diferente do de Kieler, ela se liberta, enquanto Laura foi internada, o que a levou ao suicídio. Devido a isso, a obra é considerada realista, além da verossimilhança dos fatos ocorridos com a protagonista.

Não acredito. Então uma filha não terá o direito de evitar a seu velho pai moribundo inquietações e angústias? Uma mulher não terá o direito de salvar a vida de seu marido? Eu não conheço a fundo as leis, é claro; mas estou certa de que deve estar escrito em alguma parte que tais coisas são permitidas. E o senhor não sabe disso? O senhor, um advogado?! Parece-me pouco hábil como homem de leis, senhor Krogstad. (IBSEN, p. 39, 2007).

No ano de 1869 Laura publicou um livro chamado: Brand`s Daughters: a Picture of Life. Após a publicação dessa obra, onde fazia referência direta com a obra “Brand” de Ibsen, que consequentemente foi seu primeiro sucesso e catapultou para a fama mundial, onde foi muito bem recebida por Ibsen.

Por conta disso, começaram uma relação fraternal e passaram a trocar cartas. Eles se conheceram em 1871, ela o visitou durante dois meses em sua casa em Dresden. Ibsen sempre sentiu necessidade em estar cercado de mulheres fortes.

4.1. A LIBERTAÇÃO DE NORA

Após Helmer receber a carta que revela o segredo de Nora, ele exige explicações da esposa. A partir desse momento começa a clarear tudo na cabeça da protagonista, e logo o clímax vem à tona. Helmer então lhe diz que Nora é tão mentirosa quanto seu pai:

Eu devia ter sabido que uma coisa dessas iria acontecer. Devia tê-lo previsto. Com os princípios levianos de seu pai... princípios que você herdou! Ausência de religião, ausência de moral, absoluta ausência do senso de dever... Ah, como estou sendo castigado por encobrir o procedimento dele... Foi por você que o fiz, e é essa a minha recompensa. (IBSEN, p. 90-91, 2007).

Ele só se preocupava com a repercussão do ocorrido, sua reputação e ainda alega que não iria confiar as crianças a ela – exatamente como ocorrido com Kieler –. Após esse momento de tensão, Helmer lê novamente a carta e vê que Krogstad se arrepende do que fez. Ele então comemora e com isso absolve a mulher, retornando à ilusão da “casa de bonecas”. Diz-lhe que o ocorrido irá passar e tudo voltará a ser como antes.

É observado na leitura do texto, que Nora tinha expectativas de que seu marido, quando ficasse sabendo, iria defendê-la. Todavia, Helmer fica preocupado com o fato de “o que as pessoas pensariam” quando soubessem do feito dela.

Isso é tão inacreditável que ainda não consigo entender direito. No entanto, é preciso tentar corrigir. Tire esse xale, tire-o, já disse. Tenho de contentá-lo de alguma forma. O principal é abafar o caso, de qualquer forma. E, no que diz respeito à nossa vida íntima, tem que parecer como se nada tivesse mudado entre nós. Só aos olhos do mundo, é claro. Você continuará aqui na minha casa - não preciso dizê-lo - mas eu não lhe permitirei educar as crianças... não me aventuro a confiá-las a você. Ah, ter de falar assim àquela que tanto amei e que ainda... Mas isso acabou. De agora em diante não se trata de salvar a felicidade, mas o que sobrou dela... destroços... aparências... (IBSEN, p. 91-92, 2007).

As atitudes do marido e o auto esclarecimento dela ao decorrer da obra, foram o suficiente para que ela enfim tomasse uma atitude: “Sim, agora começo a compreender a realidade” (IBSEN, p. 90, 2007). Ao perceber que Helmer não iria defendê-la, decide ir embora, abandonando seus filhos e seu marido. Com este acontecimento podemos notar o brilho feminista clareando em pleno século XIX.

Aceitar a independência de uma esposa e acima de tudo mãe era inconcebível para a sociedade. Isso nos chama a atenção e faz-nos questionar: Nora já era feminista, porém retraída, ou ela tornou-se feminista com as ações do marido e de toda a sociedade que a cercava?

Foi inútil tentar deter Nora, que apesar dos deveres de mãe e esposa, estava decidida, iria partir: “[...] Eu preciso tentar educar a mim mesma. E você não é o homem que pode me ajudar nisso. Eu tenho que fazer isso sozinha [...].” (IBSEN, p. 97, 2007). Ela abandona tudo, pois está decidida a não ser mais uma boneca, já não bastava ter passado boa parte da vida sendo a filha perfeita, cansou de ser a esposa perfeita e imperfeita para ela mesma.

Nora finalmente assume a sua própria identidade, abre mão do seu papel de boneca para se assumir como mulher enquanto ser humano, atendendo seus desejos e ambições, desistindo do seu papel imposto pela sociedade de esposa e mãe devotada. Com esse desfecho, ela assume o status de emancipada, quebrando os padrões aos quais pertence e quebrando sua função social:

Quero dizer que das mãos de papai passei para as suas. Você arranjou tudo ao seu gosto, gosto que eu partilhava, ou fingia partilhar, não sei ao certo; talvez ambas as coisas, ora uma, ora outra. Olhando para trás, agora, parece-me que vivi aqui como vive a gente pobre, que mal consegue ganhar o seu sustento. Vivi das gracinhas que fazia para você, Torvald; mas era o que lhe convinha. Você e papai cometeram um grande crime contra mim. Se eu de nada sirvo, a culpa é de vocês. (IBSEN, p. 96, 2007).

Efetivamente a obra é uma reivindicação da dignidade da mulher que é vista e colocada como uma peça decorativa, evocando ideias para sua emancipação. O papel de Nora mostrado como uma pessoa, sua saída de casa como uma tentativa de crescimento como ser humano e a maturação na formação de sua própria identidade, foi um incentivo à reflexão das mulheres da época e ainda podem incentivar parte das mulheres atuais, que ainda se deixam subjugar, desconsiderando sua própria personalidade para suprir as expectativas do marido ou da sociedade, como defende Calahani, (p. 52-53, 2010).

Casa de Bonecas contribuiu muito, especialmente em promover o inverossímil e com o final inesperado que foi idealizado pelo autor. A protagonista deixa seu lar e com um propósito muito especial, “de modo que sua partida adquire um caráter de ausência de razoabilidade, visto que nenhum amante a espera, deixa atrás de si três filhos que ama”, se tornando responsável pela sua própria sobrevivência através do trabalho, abdicando do conforto material oferecido pelo marido Torvald Helmer. (MAUGUE, p. 588, 1991).

5. O CORPO PERFEITO PARA QUEM?

A comparação da mulher com uma boneca foi muito apropriada e o autor conseguiu chocar as mulheres da época que liam com a obra; estas passavam a compreender a situação em que estavam, a entender as exigências da sociedade e a comparar as suas próprias necessidades e expectativas, conforme defende Calahani (p. 57, 2010).

[...] Fui sua boneca-esposa, como fora boneca-filha na casa de meu pai. E os nossos filhos, por sua vez, têm sido as minhas bonecas. Eu achava engraçado quando você me levantava e brincava comigo, como eles acham engraçado que eu os levante e brinque com eles. Eis o que foi o nosso casamento, Torvald. (IBSEN, p. 96, 2007)

Sendo assim, seu cotidiano era o tempo todo representado pela Nora boneca, possuindo uma identidade genérica e sendo subordinada a seu pai e marido. Para haver a recuperação da sua identidade, foi necessário romper a “identidade inculcada, [...], que só define o eu feminino em relação ao outro, às suas necessidades e aos seus desejos, sem acabar em si mesma com a preocupação primeira do outro.” (MAUGUE, p. 588, 1991).

A protagonista sempre foi tratada como uma criança por seu pai e seu marido. A realidade dela são os filhos com quem brincava como se fossem bonecos. Ela própria é como um “bibelô” que apenas enfeita a sala. Possuía um corpo silenciado.

Conforme Perrot (p. 14, 2003), a mulher era vista como um espetáculo do homem nos muros da cidade e nos palcos do teatro. A mulher a ser educada, desde o século XIX, para cumprir o destino de boa esposa, mãe e dona de casa. Virtudes de submissão e silêncio. Ainda Perrot (p. 22, 2003), em sua bela leitura sobre o silêncio do corpo feminino na história: “A mocinha, essa personagem criada pelo século XIX ocidental, devia ser pura como um lírio, muda em seu desejo”.

É perceptível a composição do corpo de Nora na obra: esposa submissa. Mas afinal como seria esse corpo? No texto Performances Culturais de Capel (p. 5-6, 2011), é um corpo distante, não no sentido da inconsistência, mas no da subserviência, um corpo contido e refreado que finge estar, um corpo que mente. Ou seja, uma boneca, exatamente o estereótipo das mulheres da época. Ela fazia todas as vontades de Helmer: “(acercando-se da mesa à direita) Eu seria incapaz de fazer qualquer coisa que lhe desagradasse.” (IBSEN, p. 12, 2007). Inclusive se expôs a ponto de manchar a sua reputação – nos contextos na época – em prol do bem estar dele. Já Torvald, por amar a sua esposa, a deixava de fora de todas as suas preocupações, para poupar a sua beleza: “Agora já não fico aqui sozinho, aborrecido, assim como você já não precisa estragar seus olhinhos tão lindos e esses queridos dedinhos.” (IBSEN, p. 13, 2007).

No livro Traduções da Cultura: perspectivas críticas feministas (1970- 2010) – mais precisamente na parte: “Por que as mulheres parecem mais próximas da natureza?” –, a visão de corpo é basicamente: o corpo feminino parece condená-la à mera reprodução da vida. Enquanto era perfeita para o Helmer, seu interior era cheio de dor, tristeza, angústias e inquietações citadas no decorrer desse artigo. E quando Nora se dá conta de sua submissão, perde a identidade de “corpo perfeito para seu marido” – afinal, já havia lhe dado filhos mesmo –, e quer se tornar perfeita para ela mesma, ter a sua própria identidade. (BRANDÃO, p. 101, 2017)

Eu tornei a ser uma avezinha canora, a sua boneca, que você passaria a proteger com muito mais cuidado, pois percebeu quanto era delicada e frágil! (Erguendo-se) Ouça Torvald: nesse momento tornou-se evidente para mim que vivi oito anos nesta casa com um estranho, a quem dei três filhos ... Ah, nem vou continuar falando para não ter que lembrar disso. Tenho vontade de partir-me em mil pedaços. (IBSEN, p. 101, 2007).

Nora precisava entender quem era ela de verdade, ser ela, se conhecer melhor e nunca conseguiria se continuasse com Helmer. O corpo doía. Se fez em mil pedaços para tomar essa decisão, o corpo frustrou-se quando em nenhum momento o homem que dizia que a amava a defenderia, afinal, só o que importava era a reputação. Era mesmo necessário guardar esse segredo por tantos anos? No fim das contas a Sra. Helmer se deu conta de que não. Ele ficaria revoltado até mesmo se soubesse por ela.

Torvald nunca pensara que a sua cabecinha de vento se tornaria uma mulher emancipada, livre, pois afinal o corpo dela era ingênuo, gastador, alegre, frágil, saltitante, esquilinho, avezinha, cotovia. Essa era Nora para Helmer:

Estou ocupado. (Um momento após abre a porta e, de pena na mão, percorre a sala com a vista) Você diz que comprou tudo isso? Então a minha cabecinha de vento encontrou mais uma ocasião de esbanjar bastante dinheiro? (IBSEN, p. 8, 2007).

Em sua obra, Brandão (p. 91-92, 2017), questiona: “Está à mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?”. Era uma questão cultural a mulher estar para o homem e servir a ele o tempo todo, elas não possuíam vontade própria. Em Casa de Bonecas, no começo Nora é a esposa submissa, ela está totalmente para o homem, serve somente a ele e é totalmente infiel ao seu corpo, mente para si mesma o tempo todo: “[...] Ah, se você soubesse como tenho sido feliz nesses últimos oito anos! [...]”. (IBSEN, p. 14, 2007).

Campos (p. 4, 2009/2010), em Uma luz que vem do Norte ou uma Nora emancipada, destaca Nora como símbolo da feminilidade na vertente da vaidade, que fica endividada por não resistir ao consumismo. Ela é a representação da realidade feminina do século XIX, e ao bater à porta e negar as suas funções de mãe e esposa, a Sra. Helmer destrói esse estereótipo de mulher submissa.

Ibsen quebra a figura de Nora com as prerrogativas que ocorrem na sociedade e ele atua como o defensor da liberdade, principalmente a liberdade feminina, com a representação da emancipação feminina e suas reivindicações. Nora representa os desejos das mulheres do século XIX que elas não conseguiram alcançar.

Então, diante disso podemos observar que o movimento feminista não é só a luta para a obtenção de direitos numa dada sociedade, mas também uma conscientização de todos de que elas (as mulheres) merecem tais direitos. É o questionar o papel da mulher na sociedade e não diminuí-lo somente pelo seu sexo biológico.

(Caindo numa cadeira junto à porta e cobrindo o rosto com as mãos) Nora! Nora! (Ergue a cabeça e olha em tomo de si) Está vazia, ela não está mais aqui! (Com um vislumbre de esperança) "O maior dos milagres!"

Ouve-se, vindo de baixo, o bater do portão. (IBSEN, p. 103, 2007).

6. UMA RESPOSTA À CASA DE BONECAS: OS ESPECTROS

A maior crítica recebida na obra Casa de Bonecas foi o fato de Nora ter abandonado o seu lar. Cansado disso, Ibsen resolveu escrever outra obra em resposta à Casa de Bonecas, chamada: Os Espectros, que mostra o que teria acontecido se ela tivesse ficado.

A protagonista é uma mulher que não deixa o seu casamento já acabado, unicamente porque se submete aos valores sociais da época. Tendo como vítima o seu filho, herdando a sífilis do pai, acabando na loucura. Sabemos nos dias de hoje que a sífilis não é transmitida através da hereditariedade, mas naquela época, com o surgimento do naturalismo e falando-se muito sobre a influência genética, foi natural que Ibsen fosse seduzido pelas ideias científicas.

Ibsen acreditava e muito no compromisso que o ser humano tem com ele mesmo e com a sociedade de verdade. Ele considerava a libertação como o maior valor da vida, acima de qualquer paradigma, pois unicamente a pessoa poderia fazer algo benéfico para ela mesma.

Continuou chocando e escandalizando a plateia, até que a emancipação criasse forma e a medicina e a ciência esclarecessem as leis da hereditariedade. A sociedade atacada por ele em Casa de Bonecas e Os Espectros se foi em muitos países com a Primeira Guerra Mundial. Porém, o século XX encontrou o Ibsen romântico e simbólico, e a sua influência no teatro alemão da década de 20 foi imensa.

7. CONCLUSÃO

Ibsen não via humanidade na ideia de alguém ser destinado a submissão devido ao fato de nascer mulher. Apesar dele não se considerar feminista, quis mostrar com sua obra uma visão contraria ao ideal da época. Ser mulher não é apenas para fins domésticos e ser devota à família, ser mulher não é questão de ser pequena e frágil boneca. Ser mulher é muito mais.

O autor mostrou através de Nora o mundo das mulheres do século XIX, e como aquilo o chocava. Então Ibsen a fez crescer, tornando real o sonho que todas elas idealizavam: ser livre. O universo das mulheres não poderia ser limitado à casa e os filhos ou obedecer cegamente, e as suas escolhas não podiam ser tomadas pela sociedade. Henrik Ibsen foi um grande marco e ainda é.

Nora foi uma feminista, mesmo tendo desabrochado mais no final da história. Ela quis essa mudança. Não foi um erro ter falsificado a assinatura de seu pai para salvar a vida de seu marido, errada foi a maneira que ela foi tratada, afinal, qual é o mal existente em querer o bem-estar dele? Na época nenhum dos críticos via isso, eram cegos.

É possível observar a transposição que Ibsen dá a identificação, não defendendo no palco a ideologia desse drama. O objetivo da trama era de reflexão, colocar a sociedade da época para pensar se aquilo era realmente certo, o que leva a perceber que essa peça tem tendências épicas. Mesmo que Ibsen mantenha uma estrutura mais fechada, a temática é divergente, com o final que surpreendeu as pessoas da época, tanto de forma positiva quanto negativa.

Observa-se na obra, uma situação que ainda é encontrada com frequência na sociedade contemporânea: mulheres sendo vistas como meras bonecas, porém sem esboçar reação de cortar as cordas as quais as prendem e a submetem.

Nora desafia e quebra os paradigmas da época hipócrita em que a Noruega se encontrava e essa hipocrisia está presente até os dias atuais, pois ainda há mulheres e homens vivendo as vidas que Nora e Helmer viviam. Vivendo de aparências, sem perceberem que são meras bonecas dentro de suas próprias casas.

As ideias feministas contidas na obra de Ibsen, que podem contribuir para a emancipação da mulher na sociedade contemporânea, são aquelas que evidenciam que as mulheres, como todos os seres humanos, não devem buscar se encaixar nas expectativas alheias, mas enxergar-se como um indivíduo autônomo e capaz, libertando-se dos estereótipos formados a partir da sociedade machista que considera o homem como o centro de tudo.

O zelo por essa igualdade de gênero nunca termina e se notarmos todos os direitos hoje obtidos – mulheres nas universidades, no local de trabalho, o direito de voto, antes de tudo o direito da fala, altos cargos políticos – todos são frutos de uma luta de anos e que eram apenas um mero sonho fantasioso para alguns, e hoje é algo comum. No entanto essa luta passou por evoluções até chegar à era contemporânea. Na contemporaneidade o feminismo tem outras preocupações, como mostrar que classe, gênero, raça e sexualidade não podem ser tomadas separadamente na análise sobre os mecanismos de reprodução das desigualdades nas sociedades contemporâneas.

A luta feminista embora seja antiga, ainda se encontra com igual, ou maior força. Assim como todos os movimentos sociais na história, ela também passou por mudanças. Cabe a nós entendermos as mudanças existentes e notarmos as possíveis semelhanças do feminismo contemporâneo com o daquela época.

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Publicado por: Ana Américo

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