O cinema e a reconstrução do personagem. Um estudo sobre a reapropiação da celebridade Kurt Cobain a
RESUMO
Este trabalho realizou uma análise do filme Last Days, do cineasta Gus Van Sant, a partir da história dos últimos dias de vida do personagem midiático Kurt Cobain. Para tanto, foi feito um embasamento teórico a partir de discussões de personagens que se tornam mitos na modernidade, e com a aura consagrada pela mídia, se tornam olimpianos. Foi realizada ainda uma discussão sobre os elementos do cinema para se compreender como a linguagem cinematográfica é representativa na construção dos roteiros. O principal objetivo foi analisar de que forma o cinema reconstrói a imagem de Cobain sob a perspectiva de seus últimos dias de vida, retratados pelo personagem Blake, criado pelo diretor Gus van Sant no filme Last Days. Concluiu-se que que Kurt Cobain de fato foi alvo de dissecação da imprensa na época em que fazia sucesso com o Nirvana, nos anos de 1990. Ele conquistou uma legião de fãs e ganhou a aura heróica criada pelo olimpo midiático. O filme de Gus van Sant foge aos padrões de cinebiografias tradicionais. O diretor não deixa pistas sobre a morte de seu personagem que é notoriamente semelhante à Cobain. Last Days é construído para apresentar uma face de Cobain que nunca foi mostrada. No roteiro, o mito é humanizado e é trazida à tona a sua angústia e solidão, como um ser humano comum, longe do mundo das celebridades. Pode-se dizer que, em Last Days, Cobain sofre o processo de desmistificação, quando apenas os seus sentimentos humanos são ressaltados.
Palavras-chave: olimpiano; Cobain; Last Days.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho aborda a morte de Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana, a partir da narrativa do diretor Gus Van Sant no filme Last Days (2005). Trata-se de estudo sobre o personagem criado pelo diretor, o qual conta, através de uma narrativa cinematográfica, fatos baseados nos últimos dias do mito do rock americano nos anos 1990.
O interesse pelo filme e pela carreira de Kurt Cobain motivou essa pesquisa, aprofundada a partir de uma associação entre indústria cultural e o personagem midiático. Assim, o principal objetivo é analisar de que forma o cinema reconstrói a imagem de Cobain sob a perspectiva de seus últimos dias de vida, retratados pelo personagem Blake, criado pelo diretor Gus van Sant no filme Last Days.
Outro motivo que incentivou a pesquisa foi a curiosidade despertada em assistir Last Days e perceber que embora fale do personagem midiático Cobain, diferencia-se de todas as cinebiografias que contam histórias de outros músicos. Em conversas informais com os fãs, a maioria esperava assistir a um desfecho explicativo para a polêmica morte do músico. Por isso também o interesse em entender melhor um dos primeiros filmes sobre Kurt Cobain.
O objetivo é entender os mecanismos conceituais e cinematográficos que, de um lado, embora aproximem Last Days de Cobain, de outro, apontam rupturas na maneira tradicional de contar uma biografia no cinema. Após assistir Gus Van Sant narrando os últimos dias de Cobain, faz surgir a dúvida se o diretor, ao ir contra os modelos de cinebiografia que exaltem o protagonista, tem interesse em desmistificar a imagem de um personagem anteriormente exaltado pela mídia, tornando-o um ser humano comum.
Para essa pesquisa foi necessário estudar conceitos teóricos de autores que falam sobre a indústria cultural e o papel do olimpiano na sociedade. Assim se faz possível entender a representação de Kurt Cobain, bem com como a repercussão da sua morte. É preciso compreender, ainda, a questão do suicídio e o papel da imprensa na espetacularização da morte do personagem midiático.
Para falar de Last Days, além de estudar conceitos teóricos sobre o cinema e a construção do personagem, algumas cenas são analisadas para que possa se tornar claro como os elementos cinematográficos são tão relevantes em um roteiro incomum, e como eles são capazes de construir uma narrativa.
No primeiro capítulo é realizado um embasamento teórico sobre as discussões de personagens que se tornam mitos na modernidade, e com a aura consagrada pela mídia, se tornam olimpianos. A opinião dos autores se faz necessária para concluir a representação que Cobain tinha na sociedade, não obstante a repercussão que a sua morte causou em veículos midiáticos.
No segundo capítulo encontra-se uma discussão teórica a partir de elementos do cinema para se compreender como a linguagem cinematográfica é representativa na construção dos roteiros. Outros autores irão embasar a discussão sobre a construção de personagens no cinema e como ela é feita a partir da seleção dos roteiros e diretores. Há também, ainda neste capítulo, a concepção de cinebiografias para se compreender se o filme obedece ou não a uma narrativa cronológica, como é apresentado tradicionalmente em filmes que contam a história de outros músicos. Essa idéia se faz fundamental para classificar o gênero e o objetivo de Van Sant em Last Days.
No terceiro e último capítulo, os conceitos dos autores sobre olimpianos, descritos em capítulos anteriores, servirão de base para compreender o personagem que Cobain se tornou na mídia. A partir do conhecimento da história de vida do músico, abre-se a discussão sobre a espetacularização da carreira do Nirvana e da morte de Cobain.
Os elementos teóricos cinematográficos também serão aplicados aos recursos utilizados por Gus Van Sant ao dirigir o filme Last Days. O contexto dos personagens e a criação do conteúdo, criados às vezes através de estratégias cinematográficas, serão aqui interpretados.
Finalmente, serão analisadas algumas cenas de Last Days para perceber como os recursos de câmera, a duração de cena, a trilha sonora ou mesmo características do personagem podem construir uma forte narrativa do diretor, em um roteiro que quase não tem diálogos.
2 DE MITOS A OLIMPIANOS: ARTE E INDÚSTRIA CULTURAL
Neste capítulo é realizada uma discussão teórica sobre os personagens que se tornam mitos na sociedade, e por que eles passam a exercer, no ser humano comum, o papel de ídolos ou olimpianos, graças à aura consagrada pela mídia. A opinião dos autores se faz necessária para concluir sobre a representação que Cobain exerceu em vida, bem como a repercussão causada pela mídia após a sua morte.
2.1 Arte e Indústria Cultural
O conceito de arte é definido por vários autores em diferentes épocas. Entre diferentes pontos de vista, o cinema pode ser classificado como arte e/ou como um produto da indústria cultural. Jorge Coli (1995) argumenta, em seu livro O que é arte, a idéia de que um objeto não é mais arte do que outros, porque o olhar e os critérios de julgamento de um crítico não são suficientes para se definir uma obra de arte. O autor exemplifica o seu pensamento acerca da situação de um carpinteiro que pode apreciar ou criticar a qualidade de um móvel baseado no conhecimento concreto que se tem sobre como é fabricado um bom mobiliário, sendo que as chances de acerto são praticamente garantidas; já com o crítico é bem mais complexa essa questão, pois não dispõe do recurso da objetividade.
Coli (1995) aponta que é importante conhecer o estilo de um autor para reconhecer com facilidade a sua produção. Para ele, mesmo que todo artista mantenha um mesmo estilo durante toda a vida, ele transforma as suas constantes estilísticas com o passar do tempo. Ao falar de estilos, na maioria das vezes, é atribuído um valor excessivo a essa palavra, fazendo com que as pessoas passem a rotular tanto o autor, quanto a obra.
Segundo Coli (1995), há uma distinção entre o crítico e o historiador; sendo que o crítico é quem analisa as obras e sua função é seletiva. É como se fosse o juiz que valoriza ou desvaloriza o objeto artístico, utilizando-se da história das diferentes produções artísticas para a elaboração de seus critérios. Por sua vez, o historiador da arte procura em princípio evitar os julgamentos de valor, não conseguindo por vezes deixar inteiramente os critérios seletivos, pois o conjunto de objetos que estuda supõe uma escolha.
Para Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1978), o conceito de arte se depara com a discussão da indústria cultural, que surge quando a cultura se mercantiliza, através do desenvolvimento tecnológico e da capacidade de reprodução. Para eles, não é uma cultura que surge das próprias massas, como forma contemporânea da arte popular, mas é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Eles acreditam que a arte é realizada como uma forma de negócio com intuito lucrativo, e que os filmes nascem como produtos de um dos meios dessa indústria cultural, no caso, cinematográfica.
Adorno e Horkheimer (1978) dizem que os bens culturais inseriam-se numa lógica de produção industrial, logo como uma mercadoria igual a outras – seriação, padronização, divisão de trabalho. O padrão da criação artística é semelhante ao padrão de produção de um qualquer bem industrial. Ambos autores estavam vinculados à Escola de Frankfurt, que apresenta como centro da discussão da cultura de massa, o conceito de obra de arte não reprodutível possuidora de aura.
A concepção de Adorno e Horkheimer dispensa o princípio da reprodução, como Walter Benjamin (1985) escreveu em A obra de arte na era da sua reprodução técnica. O autor mostra que a arte do cinema só se concebe no estágio da reprodução, da multiplicidade de cópias, tornando confusa a idéia de arte como peça única. Benjamin observa que grande parte dos bens culturais que se fundamentam na reprodutibilidade técnica têm a potencialidade de encaminhar o indivíduo ao mundo dos sonhos, podendo assim externar elementos significativos da sociedade moderna.
Edgar Morin (1997), por sua vez, apresenta as suas contribuições conceituais da teoria culturológica a partir da idéia de cultura de massa emergente no mundo moderno. O objetivo do autor não é exaltar a nova cultura que se instala na sociedade, mas diminuir o preconceito de pensadores da Escola de Frankfurt que apontam a cultura de massa como algo manipulador e a mercadoria cultural tratada de forma simplesmente mercadológica.
Segundo Morin (1997), a cultura de massa é uma terceira cultura, que é construída pelos meios de comunicação de massa, derivados da imprensa, do cinema, do rádio e da televisão. Para ele, o conceito de cultura está relacionado a normas, símbolos, mitos e imagens que trabalham com a intimidade do indivíduo em seus instintos e emoções.
Embora Morin se posicione mais otimista em relação à indústria cultural, ele concorda que os filmes, telenovelas e estilos musicais tentam manter o caráter lucrativo da indústria cultural, dito antes pelos frankfurtianos. Alguns filmes levam em conta o modelo comercial, industrial, burocrático e padronizado, além do espaço de criação de arte. Logo, há uma oportunidade de criação na cultura de massa e que não necessariamente há uma padronização.
Douglas Kellner (2001) discute a criação de símbolos sobre a indústria cultural. Em seu livro A Cultura das mídias, Kellner parte da indústria da moda e do universo das celebridades como forma de propagação dos produtos culturais. De acordo com Kellner (2001), a moda tem a força de criar materiais que constroem identidade porque a cultura das sociedades tradicional e moderna faz com que o traje e a aparência indiquem a classe social e o status da pessoa. O autor afirma que, na modernidade, a moda determina como cada indivíduo será visto ou aceito. Além da identidade, a moda ainda cria novos gestos, estilos, trajes e práticas. Com isso, a moda passa a ser a inquietude da modernidade porque a sociedade passa a ser escrava da procura por aquilo que é novo e admirado, enquanto foge daquilo que é velho e ultrapassado.
Kellner cita o exemplo da década de 1960, quando o mundo acompanhou a intensa tentativa de destruir os códigos culturais através de uma nova moda, que criou novas identidades acompanhadas do sexo, drogas e do rock. Naquele tempo, a moda era a “antimoda” que enfeitiçava os jovens pelo fato de sentirem o prazer de se acharem “contra o sistema”.
Segundo o autor, enquanto a sociedade criava novas modas, a cultura da mídia ia se transformando em uma fonte prazerosa porque colocava à disposição modelos de aparência, comportamento e estilo. Os astros do rock, por exemplo, usavam cabelos longos e se vestiam de modo pouco convencional, influenciando, entre as décadas de 1960 e 1970, as mudanças nos cortes de cabelo, no modo de vestir e no comportamento, ao mesmo tempo em que as atitudes às vezes rebeldes serviam de sanção para a revolta social.
Para Kellner (2001), o surgimento de novos grupos como Beatles e Rolling Stones impulsionavam a revolta contracultural e a adoção de novos estilos comportamentais. O autor afirma que a associação entre o rock, cabelo comprido, rebeldia social e inconformismo em moda continuou por toda a década de 1970 com ondas de heavy metal, punk e new wave1.
Enquanto isso, a mídia televisiva, a indústria do cinema e grupos musicais ofereciam outros padrões à juventude. Kellner (2001) afirma que, graças à cultura e à divulgação da moda pela mídia, os conservadores passam a ter seus próprios modelos e estilos, assim como os rebeldes culturais.
Em contrapartida, a arte contemporânea, ao destruir a aura da obra, em virtude da difusão em série, proporciona o valor de exposição. Esse fato, que abala o conceito tradicional de arte, não é visto pelo autor Walter Benjamin como algo totalmente pernicioso, pois isso facultava com que a obra ficasse mais próxima das massas, como era o desejo dos surrealistas.
Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, a imagem, ou antes, na sua cópia, na sua produção (…) Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o “semelhante no mundo” é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no momento único (BENJAMIN,1994, p170).
Benjamin considerava não somente o fato de que a reprodutibilidade técnica nega a aura artística, mas que o próprio status da arte se modifica, assim como a sua função, que deixa de fundar-se no ritual e passa ter uma função política, ou potencialmente política, porque permitiria a um contingente maior de pessoas o acesso aos bens culturais.
2.2 De mitos a olimpianos
Roland Barthes (1989) é uma das referências na discussão sobre a emergência dos mitos na era moderna. O autor detalha o conceito de mito sob uma perspectiva semiológica. Para ele, o mito não pode ser um objeto, um conceito ou uma idéia, mas sim um modo de significação, uma forma. O autor acredita que não há como definir o mito pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo como ele profere.
1 Estilos de música rock nascidos na década de 1970, e que tiveram como protagonistas bandas de heavy metal como Led Zeppelin, AC/DC e Deep Purple, new wave como A-ha e The Smiths, e punk como Sex Pistols, The Clash e Patti Smith.
A sociedade industrial usa o mito como expressão de fantasia. Barthes (1989) define a estrutura mitológica como qualquer forma substituível de uma verdade que esconde outra verdade ou talvez uma verdade profunda da mente do ser humano. Segundo o autor, muitos vêem no mito somente os significantes, ou seja, a parte concreta do signo. O autor diz que o ideal seria ir além das aparências e buscar-lhes os significados, ou seja, a parte abstrata, o sentido profundo.
De acordo com Umberto Eco (1987), a personagem do mito deve ser previsível e pode-se notar uma diferença fundamental entre a personagem mítica e a personagem romântica. Se por um lado, a personagem do mito deve ser previsível, a personagem do romance busca assemelhar-se aos humanos reais, assumindo o que o autor chama de "personalidade estética", ou seja, uma capacidade de tornar-se termo de referência para comportamentos e sentimentos que também pertencem a todos nós, mas que não assume a universalidade própria do mito. É justamente esta "personalidade estética" de que fala Eco que encontramos nos mitos, por exemplo, de Marilyn Monroe, James Dean e Leila Diniz. Evidentemente essas figuras não são mitos para todos nem simbolizam o sobrenatural, mas os três possuem características que fizerem com que eles - e não outros - fossem imortalizados e tomados como padrões de comportamento.
Para Eco, as personagens míticas da cultura de massa constituem a soma de certas aspirações coletivas. A estas aspirações, o pensador italiano denomina arquétipos. Tal noção, no entanto, difere da famosa interpretação do inconsciente coletivo. Enquanto esta sugere a possibilidade de transmissão da experiência, aquela noção de Eco pressupõe a vivência em grupo, no presente. São exatamente as aspirações coletivas, conscientes ou inconscientes, que as personagens midiáticas corporificam e por isso tornam-se mitos, figuras aglutinadoras do imaginário de determinada época. A identificação necessária entre a personagem midiática e o público se dá justamente na "humanidade" daquela.
Edgar Morin (1989) em seu livro As estrelas mescla sua condição de cientista social e cinéfilo, ao realizar a análise da versão sociológica do mito criado a partir das personalidades que conquistaram o estrelato. O autor preocupa-se em analisar especificamente os mitos cinematográficos. Ele percebe que, ao redor das estrelas, instaura-se um culto assim como havia um culto aos deuses antigos. O autor diz que Hollywood passa a ser o novo “Olimpo”, e a celebração aos atores toma às vezes um caráter de religião, assim como acontece com os papas nas cerimônias em que os fiéis entram em estado de êxtase, como se estivessem de fato em um ambiente religioso.
Da mesma forma como fiéis faziam oferendas aos deuses antigos e, em troca, faziam pedidos, os fãs fazem as mais diversas ofertas e os mais diversos pedidos para seus ídolos. Morin assinala alguns pedidos mais curiosos: o papel usado para limpar o batom da estrela, pedaço de chiclete mastigado, ceroulas autografadas, guimbas de cigarro, um pedaço do rabo de cavalo e até um cheque em branco para fazer supermercado.
De acordo com Morin, o estrelato e o glamour celebrados sobre a aura dos grandes mitos faz com que os fãs não consigam distinguir o ator do personagem. Segundo o autor, a base está num processo de projeção-identificação. O fã se identifica com seu ídolo e, ao mesmo tempo, projeta nele seus desejos, o que ele gostaria de ter ou de ser.
Entretanto, segundo Morin, não basta a projeção. As estrelas precisam ser também um pouco humanas para que seu público possa se identificar com elas. O herói passa a ser tão perfeito, tão olímpico, que é quase impossível se identificar com ele. De acordo com o autor, a Indústria Cultural se aproveita dessa necessidade do homem de se projetar em mitos e transforma isso em mercadoria. E passa a ser aquilo que ele chama de estrela-mercadoria. A partir de então, a estrela vende tudo que tenha seu nome, a começar pelo próprio produto no qual ela está.
2.2.1 A morte e o suicídio no olimpo midiático
Edgar Morin (1970), em seu livro O homem e a morte, apresenta como aspectos filosóficos e teóricos voltam-se para a ciência no fim do século XVIII quando afirma-se um novo pensamento que renova o problema da morte. Isso acontece primeiro na Inglaterra e na França, que nesse período, abandona o milagre sobrenatural e as pessoas interrogam o mundo, buscando respostas na ciência.
Além da ciência, Morin afirma que a evolução cultural da sociedade em como tratar a morte parte também do saber. Quando se pensa no saber burguês da época, percebe-se que a morte é também um conflito interno emergente da nova individualidade. Progressos técnicos, econômicos e sociais fazem com que as pessoas passem a ser governadas pelas leis, ao mesmo tempo em que se afastam de sua naturalidade.
Segundo Morin, as filosofias kantianas diziam que o homem podia alcançar a verdade e a própria estrutura do real, mas que as experiências fazem com que ele desacredite e seja rebaixado à categoria de fenômeno. A partir daí, pela primeira vez, a imortalidade é reivindicada e admitida como uma necessidade antropológica, e quanto mais o mundo evoluir, mais essa filosofia se tornará imóvel.
Enquanto Kant, citado por Morin, acredita que o mundo exterior é um produto do homem, Hegel afirma que a morte é um produto para o homem. Com essa filosofia hegeliana, a morte adquire um significado grandioso porque deixa de ser o “nada” dos filósofos e passa a ser uma função racional, biológica, social e espiritual. Morin diz que a morte torna-se uma necessidade do mundo e da humanidade.
De acordo com Morin, a morte passa a ser a derrota de um particular e a vitória de um universal. A morte aparece como uma árdua vitória da espécie, embora o indivíduo seja, de fato, imortal. Hegel defende que a morte não é apenas uma ultrapassagem para o universal, mas que ela também pode ser provocada por um assassinato entre indivíduos da mesma espécie. O indivíduo busca sempre sua razão absoluta, chegando a ponto de se regozijar com guerras que despertam a morte e a universalidade.
Morin cita o pensador Feuerbach, que diz que a morte é uma harmonia cósmica e nada mais é do que um ato moral e livre no sentido de estar em acordo com o fluxo do universal. Ela torna-se, portanto, a afirmação mais irrefragável da realidade absoluta da vida.
Morin ainda cita os pensamentos de Vuillemain, que diz que os humanos devem se orgulhar de serem mortais, e que a morte é necessária para que o amor tome consciência de si mesmo. E contrapondo-se à concepção cristã, a morte não provém da necessidade e da pobreza, mas da plenitude e da saciedade.
Segundo Morin (1970), o homem tem que levar em consideração os riscos da morte, e que é necessário ter a noção que os perigos da morte rondam qualquer vida que queira ser vivida, porque aquele que evitar o risco de morte para se conservar vivo mais tempo possível, nunca conheceria a vida, porque o medo o impediria de arriscar. Hegel diz que somente arriscando a vida é que homem conserva a sua liberdade.
A morte não surge simplesmente do ato de morrer, porque ela existe desde o nascimento. Morin (1970) explica que durante a nossa vida, consumimos para nos aproximarmos da morte e também a consumimos para nos afastarmos da morte. A separação entre a vida e seu conteúdo, estabelecida pela morte, permite aos conteúdos sobreviver.
Morin (1970) conclui que, para o homem, a morte deveria ser o limite para além do que seria determinado para si próprio. Assim, a filosofia humanista e antropológica da morte se integra em um movimento progressivo de vida ou cultura, que se exprime na sua necessidade de justificação.
O autor discute que a morte parte de uma crise de individualidade que é impossível de ser abstraída do mundo contemporâneo. O romantismo se destaca como a principal crise, porque nasce a recusa da vida nova, da civilização burguesa e a inadaptação ao ambiente urbano.
Morin (1970) diz que, por volta de 1848, o ser humano cria em si uma ambivalência instável entre o passado e o futuro, entre a saudade amarga e entusiasmo revolucionário. Mas como a ambivalência se quebra e o romantismo não consegue ter esperanças revolucionárias, surge a solidão do indivíduo em um mundo de participações que lhe são estranhas.
Segundo Morin (1970), as melhores conclusões da obsessão da morte moderna encontram-se no pensamento de Nietzsche. A consciência acompanha o homem, e ele jamais irá se esquecer da morte, por isso a vida esvazia-se e a eternidade do instante dissolve-se no instante seguinte.
O homem revela-se em crise perante a morte em um clima de angústias. Morin afirma que a individualidade separa o ser humano de seus significados culturais, dessa forma, fazendo com que a civilização burguesa se torne decadente. De acordo com o autor, a individualidade revela a impotência do pensamento puro e como a impotência das soluções regressivas contribuem para mistificar a morte. Ele ressalta que o verdadeiro problema da morte é que ela continua sendo a crise do século, porque a atitude do ser humano perante a ela ainda continuará algo complexo e inaceitável.
Antonio Fausto Neto (1991), no livro Mortes em derrapagem, propõe uma discussão acerca da questão da morte dos olimpianos na comunicação de massa. O autor parte do pressuposto de que os olimpianos funcionem como uma “máquina significante” que se define como representação social.
Fausto Neto (1991) diz que a mídia constrói a noção de morte de determinados segmentos dos olimpianos. O autor usa como objeto de estudo os casos das mortes de Lauro Corona, ocorrida em julho de 1989, e do cantor e compositor Cazuza, ocorrida em julho de 1990. O autor analisa a cobertura da imprensa brasileira especializada em fatos de celebridades, a partir das revistas Amiga, Contigo e Semanário.
A grande proposta do autor é dizer que a enunciação jornalística derrapa no jogo de construções simbólicas. Nos casos de Corona e Cazuza, a mídia construiu estratégias de diagnósticos e de simulações que ajudaram a realizar coberturas às questões da morte, que é algo recusável para as celebridades. De acordo com o autor, não importa quem morre, porque para a indústria cultural, a morte por si só atrai. “Se falar da morte é uma questão problemática, ainda que a mídia insinue e fale dela todos os dias, mais complicado pode ser quando a morte envolve não apenas pessoas anônimas, mas os olimpianos” (FAUSTO NETO, 1991, p.158).
Segundo Fausto Neto, a vida e a morte das estrelas constituem o “charme” e o sucesso das edições de publicações que fazem notícia com a vida pública e privada dos olimpianos. Para ele, celebridades viram “mercadorias” por se tornarem objeto de identificação, projeção e imaginação do campo de recepção.
O autor começa a tratar “a morte como derrapagem” na primeira análise: a morte do ator Lauro Corona, falecido em 1989, portador do vírus HIV. Segundo Fausto Neto, a vida dos personagens na mídia passava antes por filtros de instâncias como, por exemplo, a família e o trabalho, até o momento que esses filtros são substituídos por outros rituais, cuja característica deixa de ser o conforto ritual, por exemplo, de uma Ilha de Caras2, para ser a espetacularização da força do drama e da tragédia.
A morte de Lauro Corona foi noticiada no começo da madrugada por emissoras de rádio. Para Fausto Neto, a morte de Corona foi registrada em diferentes espaços, e foi submetida a processos de hierarquização da economia discursiva dos jornais. Segundo ele, os veículos tornaram o corpo de Corona como uma supramercadoria, porque conseguiram construir dispositivos de compreensão da vida social, principalmente porque o caso envolve uma doença de reflexão alvo de campanhas sociais, como já se foi feito por muitos anos no combate à transmissão do HIV.
2 Anexo da revista Caras, aonde celebridades são fotografadas em momentos de lazer, em locais de luxo.
No caso do cantor e compositor Cazuza foi diferente. Para Fausto Neto, a morte de Cazuza foi inserida no circuito social e cultural através de um cerimonial público, criado pela comunicação de massa. De acordo com o Fausto Neto, Cazuza foi alvo da consagração do moderno e fatal do até então “mal-estar” social. A mídia, segundo o autor, fez questão em expor a vida privada do músico, acrescentar festas e lugares freqüentados por ele, para enfatizar o fator de contágio da doença. Para ele, a morte de Cazuza foi uma das encenações para a constituição da cena jornalística.
Por fim, o autor reitera que a morte de celebridades transforma-se em produtos da indústria cultural, que dão forma ao discurso como mercadoria e à construção de funcionamento dos processos identificatórios da psique humana e de semantização da vida social, enquanto retratada pela mídia.
Em seu livro Morreu na contramão: o suicídio como notícia, Dapieve (2007) analisa como o suicídio é tratado na imprensa e a dificuldade que a sociedade tem para lidar com o tema. O autor começa definindo que o suicídio não é algo extraordinário e cita que entre outros grandes pensadores, Marx, Durkheim e Camus já escreveram sobre o assunto.
Segundo Dapieve, existem razões lógicas para a morte voluntária, que causam culpa em familiares e amigos próximos ao morto. Em torno da notícia costuma haver um silêncio derivado das crenças de que o suicídio pode ser contagioso, uma vez difundido nos meios de comunicação de massa.
O autor refere-se à obra de Émile Durkheim3 como uma referência para se estudar suicídio. O sociólogo propunha uma visão diferente para o fenômeno: não mais vê-lo como a expressão individual de uma doença ou de uma loucura, e sim como a expressão individual de um fenômeno coletivo. Durkheim aceitava a idéia de “contágio” e admitiu que pelo mero boca-a-boca, a imprensa poderia potencializar essa transmissão.
Dapieve então examinou ainda mais o papel dos jornais nisso, e por sua experiência em veículos brasileiros, percebeu que a imprensa é determinada pela visão que os leitores têm da morte voluntária. Logo, a imprensa não seria o “vetor” do contágio, mas a estância social que o sustenta. Dapieve afirma que os vínculos entre uma imprensa livre e sua sociedade são indissolúveis.
3 Sociólogo e autor de O suicídio: estudo de sociologia (1895). DURKHEIM, Émile. Estudo de sociologia. São Paulo: Fontes Editora, 2000, 1ª ed.
De acordo com Dapieve, a principal discussão de sua obra é entender como o noticiário apóia a interpretação de um fato controverso como é o suicídio, ou seja, como ele reflete a força do senso comum, com a condenação de um suicídio impulsionado por problemas particulares, ocasionado por causas externas, ou com a idéia de Durkheim, que aponta o suicídio como ato egoísta ou anônimo.
Dapieve classifica os suicídios de acordo com estudos de Durkheim para entender a forma como alguns casos foram noticiados. O autor preocupa-se em exemplificar com mortes que foram exclusivamente anônimas, em que o sujeito decide se matar e ainda se preocupa em deixar uma carta de despedida que explique seu ato.
Durkheim percebeu uma constante no suicídio: ele está diretamente relacionado com o grau de envolvimento do suicida com a sociedade. Para ele, as mortes são classificadas não pelas aparências, mas pelas causas, assim elas eram sempre egoístas porque envolviam a força de relação do indivíduo com sua sociedade. Durkheim chama de egoísta o suicídio praticado por quem já não vê razão na vida. O autor conclui então que os indivíduos são “protegidos” da morte voluntária quando estão bem integrados na sociedade ou por serem unidos na sociedade através de um casamento, por exemplo. Para ele, os artistas se enquadrariam nessa categoria.
O jovem poeta soviético Serguei Essenin (1895-1925), por exemplo, foi considerado um suicida egoísta, porque segundo Durkheim, quanto mais os grupos que os indivíduos pertencem se enfraquecem, mais ele depende de si mesmo para não reconhecer outras regras de conduta. E aqui Dapieve inclui também precisamente o exemplo do músico Kurt Cobain, líder da banda de rock Nirvana, que deu um tiro na cabeça dentro de sua casa, aos 27 anos, em 5 de abril de 1994. O cantor deixou uma carta de despedida para sua esposa Courtney Love com sentimentos de culpa, raiva e angústia.
O americano Charles Cross (2001) publicou a primeira biografia completa de Kurt Cobain. Em Mais pesado que o céu, o autor divulga momentos baseados em entrevistas com parentes e amigos que estiveram próximo ao músico nos dias que antecederam a sua morte. Segundo Cross, antes de morrer Cobain ainda teria tentado entrar em grupos de reabilitação para livrar-se do vício de heroína, mas a sua angústia e apatia em relação ao mundo e às pessoas não o fizeram suportar, fazendo-o fugir da clínica de reabilitação e motivando-o a realizar os preparativos para sua própria morte.
O autor conta que Cobain já teria escrito, muito antes, uma carta de despedida para sua esposa Courtney Love dizendo que já não suportava mais viver. De acordo com Cross, enquanto assistia TV, Cobain terminou a carta, endereçando-a para Bodahh, nome de seu amigo de infância imaginário, dizendo:
Falando como um simplório experiente que obviamente seria antes um queixoso castrado, infantil. Este bilhete deve ser fácil de entender. Todas as advertências dadas nas aulas de punk rock ao longo dos anos, desde minha primeira introdução à, digamos assim, ética envolvendo independência e o abraçar de sua comunidade, se mostraram muito verdadeiras. Faz muitos anos eu não sinto entusiasmo ao ouvir ou fazer música, bem como ao ler ou escrever. Minha culpa por isso é indescritível em palavras. Por exemplo, quando estou atrás do palco, as luzes se apagam e o ruído ensandecido da multidão começa, nada me afeta do jeito que afetava Freddie Mercury, que costumava amar, se deliciar com o amor e adoração da multidão - o que é uma coisa que totalmente admiro e invejo. O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês. Simplesmente não é justo para vocês e para mim. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo que estou me divertindo 100 por cento. Às vezes acho que eu deveria acionar um despertador antes de entrar no palco. Tentei tudo que está em meus poderes para gostar disso (e eu gosto, Deus, acreditem-me, eu gosto, mas não o suficiente). Me agrada o fato de que eu e nós atingimos e divertimos uma porção de gente. Devo ser um daqueles narcisitas que só dão valor as coisas quando elas se vão. Eu sou sensível demais. Preciso ficar um pouco dormente para ter de volta o entusiasmo que tinha quando criança. Em nossas últimas três turnês, tive um reconhecimento por parte de todas as pessoas que conheci pessoalmente e dos fãs de nossa música, mas eu ainda não consigo superar a frustração, a culpa e a empatia que tenho por todos. Existe o bom em todos nós e acho que eu simplesmente amo as pessoas demais, tanto que chego a mim sentir mal. O triste, sensível, insatisfeito, pisciano, pequeno homem de Jesus. Por que você simplesmente não aproveita? Eu não sei! Tenho uma esposa que é uma deusa, que transpira ambição e empatia e uma filha que me lembra demais de como eu costumava ser, cheio de amor e alegria, beijando todo mundo que encontra porque todo mundo é bom e não vai fazer mal a ela. Isto me aterroriza a ponto de eu mal conseguir funcionar. Mal posso suportar a idéia de Frances se tornando o triste, autodestrutivo e mórbido roqueiro que virei. Eu tive muito, muito mesmo, e sou grato por isso, mas desde os sete anos de idade passei a ter ódio de todos os humanos em geral. Apenas porque parece muito fácil se relacionar e ter empatia. Empatia! Só porque eu amo e sinto demais pelas pessoas, eu acho. Obrigado a todos do fundo de meu nauseado e ardente estômago por suas cartas e sua preocupação ao longo dos anos. Eu me pareço mesmo com um bebê errático e mal-humorado! Não tenho mais a paixão, e portanto lembrem-se, é melhor queimar do que se apagar aos poucos. (CROSS, 2001, p. 403).
Cross conta que Cobain estava em sua casa em Aberdeen em um dia comum, nevoento e úmido. Ao terminar o bilhete que teria deixado para sua esposa, dirigiu-se para a estufa que havia no quintal. O autor conta que naquele momento Cobain temia fazer as coisas erradas, que o fizessem sentir dor. Ele apenas pensava no caminho que dois tios e o bisavô teriam seguido (o suicídio), lembrando-se das brincadeiras que os familiares faziam referindo-se a ele : “Cobain tem o gene suicida”. Segundo Cross, foram esses os motivos que encorajaram o músico a atirar contra sua própria cabeça, acreditando-se capaz de obter sucesso como seus parentes tiveram.
Nesse primeiro capítulo observa-se como o olimpiano está sujeito à superexploração da imagem midiática. Por isso, a morte de celebridades é tão comentada e é alvo de vários noticiários durante muito tempo. Há mais de dez anos sem Kurt Cobain, nota-se que ainda existe especulação da mídia sobre a polêmica morte do músico. As outras formas de ainda noticiar Cobain são usadas quando diz respeito às músicas do Nirvana, ou através de filmes, como é o caso de Last Days.
O próximo capítulo irá embasar a discussão de teóricos sobre a linguagem cinematográfica, explicando como a celebridade está presente e é explorada em todos os produtos da indústria cultural, inclusive no cinema.
3 CINEMA: LINGUAGEM, PERSONAGEM, BIOGRAFIA
Neste capítulo serão discutidas teorias a partir de elementos cinematográficos. Compreender a linguagem cinematográfica sugere a possibilidade da interpretação de roteiros, além de se ter conhecimento sobre a construção de personagens. Também serão abordadas as biografias e cinebiografias para embasar a classificação do gênero e objetivo da narrativa criada por Van Sant em Last Days.
3.1 A linguagem cinematográfica
Chris Rodrigues (2002) definiu a linguagem cinematográfica como os termos técnicos usados em cinema e TV, com objetivo de obter uma uniformidade de comunicação. O cinema faz da imagem um recurso básico de sua linguagem. As cores, para Rodrigues, por exemplo, têm a função de enquadrar a preocupação estética e se aproximar o máximo possível da realidade. O autor afirma que o valor dramático que elas podem passar faz com que a imagem não apenas seja representativa, mas descritiva.
Segundo Rodrigues, a imagem do filme sempre estará no presente, enquanto fragmento de realidade. Ela é capaz de oferecer uma “realidade artística” porque tem uma visão de representação da natureza, ou simplesmente uma cópia. O papel significante da imagem, para o autor, é outro fator que a faz como elemento básico e fundamental na criação de um roteiro de cinema: tudo o que aparece na tela deve ser realmente significativo.
Para Rodrigues a plasticidade que a imagem promove faz com que ela mesma, por si só construa um contexto fílmico, porque ela consegue em uma seqüência temporal, mostrar um significado ao roteiro.
Outra questão importante na discussão sobre a narrativa cinematográfica, refere-se à existência do flashback. Fernão Ramos (2005), em Teoria Contemporânea do Cinema, explica que esse recurso é utilizado para voltar ao passado, mostrando a lembrança do personagem ou um acontecimento importante.
Com o passar dos seus anos de existência, a linguagem cinematográfica foi sofrendo modificações, acompanhando também as mudanças na sociedade. No início, a câmera permanecia estática durante as gravações. Mais tarde passou a explorar o espaço, se movendo para todos os lados importantes para a narrativa. Hoje, além da câmera imóvel existem várias outras maneiras de se filmar.
Para Chris Rodrigues (2002), a câmera do cinema também é um fator de fundamental importância para a construção narrativa. O papel da câmera também está ligado ao registro da realidade. Para isso, seus movimentos variam porque a cada instante um foco é um objetivo de notícia ou mensagem a ser passada ao espectador. São os recursos de construção de narrativa oferecidos pelos seguintes movimentos de câmera:
• Travelling, que consiste no deslocamento durante o qual permanece constante o ângulo entre o eixo ótico e o eixo de deslocamento. O Travelling para trás pode dar o sentido de conclusão, afastamento no espaço, acompanhamento de um personagem que avança – sendo esse um movimento dramático deixando o rosto do personagem em evidência, desprendimento moral, impressão de solidão, de abatimento e de impotência. Outras funções do travelling, de acordo com Rodrigues, são:
- travelling lateral ou horizontal tem uma função descritiva do ambiente ou acompanha o movimento das pessoas, veículos etc.
- O travelling para frente corresponde muitas vezes ao uso subjetivo da câmera: ao ponto de vista do personagem. Ou ainda, à projeção do olhar do público para um foco de interesse na cena. Assim, tem-se aí uma função de introdução, descrição de um espaço, realce de um elemento dramático importante, além de exprimir a tensão mental, desejo da personagem.
- O travelling vertical (como se o dolly fosse trocado por um elevador) é raro e tem a função de acompanhar um personagem em movimento (além de outros efeitos, como no caso da cena da ópera em Cidadão Kane). Tem-se aí uma função descritiva.
- Um travelling vertical para frente dá a impressão de queda livre, muitas vezes utilizado para exprimir subjetivamente a intenção ou efetiva queda de um personagem no vazio.
- Um travelling vertical para trás (de baixo para cima) tem a função de aniquilamento da personagem.
- Para movimentos em trajetória, a câmera combina panorâmicas e travellings ou vice-versa, com o auxílio da grua (longo braço em forma de guindaste). Ela é efetuada com o objetivo de promover uma combinação entre narrativa e a descrição da cena.
• A Panorâmica é um movimento de câmera que consiste em uma rotação da câmera em torno do seu eixo vertical ou horizontal sem deslocamento do aparelho. Segundo Jaques Aumont (2003), a panorâmica é usada para:
- Expressiva, ao indicar uma impressão ou idéia que esteja oculta no diálogo entre personagens;
- Dramática, quando estabelece uma relação espacial entre o indivíduo que olha e os objetos que são olhados;
Dentre os enquadramentos de câmera estão os recursos – também utilizados para construção de um ambiente narrativo, de acordo com Chris Rodrigues (2002) e Jacques Aumont (2003):
• Ângulo alto: Enquadramento da imagem com a câmara focalizando a pessoa ou o objeto de cima para baixo. Conhecido também como plongée, utilizada para “esmagar” o ator ou colocá-lo pequeno diante de uma situação. Sua intenção pode ser apequenar o indivíduo ou esmagá-lo moralmente.
• Ângulo baixo: enquadramento da imagem com a câmara focalizando a pessoa ou o objeto de baixo para cima. Também conhecido como contra-plongée, com o objetivo de exaltar o personagem. Busca a impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os, por exemplo, contra o céu aureolado de nuvens. Se, contudo, tem-se uma luz acompanhando o ângulo e uma ambientação noturna, o efeito é sombrio, de terror.
• Ângulo Plano: apresenta as pessoas ou objetos filmados num plano horizontal em relação à posição da câmara.
• Contracampo: tomada efetuada com a câmara na direção oposta à posição da tomada anterior.
• Fora de campo: a ação acontece fora da nossa vista, fora do foco da câmera. Utilizado para descrever um acontecimento que acontece simultâneo a um diálogo de dois personagens por exemplo.
No que tange à escala de planos, temos também:
• Plano Geral: plano que mostra uma área de ação relativamente ampla. Utilizado para mostrar cenas localizadas em exteriores ou interiores amplos, mostrando de uma só vez, todo o espaço da ação. Ele também pode dar um efeito de solidão, impotência/fatalidade se focaliza o homem como quase uma silhueta minúscula em meio ao ambiente. Pode funcionar também como integração do homem ou da coletividade à natureza ou destacá-los nesse cenário (um casamento ao ar livre, por exemplo).
• Plano americano: plano que enquadra a figura humana da altura dos joelhos para cima. A função desse recurso é mostrar por exemplo, a cartucheira do revólver de um ator de westerns, o que insinua algo sobre a atitude que o ator tomaria.
• Plano de conjunto: plano um pouco mais fechado do que o plano geral.
• Plano médio: plano que mostra uma pessoa enquadrada da cintura para cima. Inscreve os indivíduos no espaço que vivem e instaura um equilíbrio dramático entre ação e o cenário. Em cenas de diálogo entre dois ou três personagens ele torna-se bem freqüente. Destaque para o movimento dos braços e mãos.
• Primeiro plano: posição ocupada pelas pessoas ou objetos mais próximos à câmara, à frente dos demais elementos que compõem o quadro. Sua função é mostrar características, intenções e atitudes da personagem, conferindo à ação um valor dramático e psicológico determinante.
• Plano em detalhe ou primeiríssimo plano: mostra apenas um detalhe, como, por exemplo, os olhos do ator, dominando praticamente todo o quadro. A função é enfatizar olhares ou objetos, em sua importância para a trama.
• Plano Grua: A câmara fica montada numa grua ou guindaste especial de filmagens. Permite, por exemplo, passar de um plano geral a um primeiríssimo plano, enfatizando um detalhe importante.
• Plano-seqüência: plano de toda a cena com a câmera deslocando-se no espaço cênico, através de um carro ou dolly. Utilizado para descrever seqüência de acontecimentos sem cortes.
• Sobre enquadramento: corresponde a uma realidade empírica, quando o personagem consegue se ver através de aberturas como janelas, portas e espelhos. Em uma imagem, a reprodução desses quadros insere um segundo quadro no quadro da imagem.
Outro recurso utilizado pelo cinema para descrever cenas é o uso da trilha sonora, uma vez que as imagens não sejam suficientes para contar uma história em termos dramáticos. A trilha sonora compõe a narrativa quando tenta suprir a necessidade de mostrar visualmente todo o contexto dramático da história para o espectador.
3.2 Construção do personagem e narrativa cinematográfica
Bernardet (2000) avalia a maneira como os atores famosos participam das produções. Ele observa que não é o artista que se adapta ao personagem, e sim o contrário, fazendo de tudo para que sua imagem não seja degenerada pelo papel. Outro ponto é que o star-system condiciona os filmes a terem uma história centrada em apenas um personagem, o que não acontece nos longas com personagem-coletivo. Nesse caso, o roteiro prioriza várias histórias, sem destacar alguma de maneira especial, prejudicando a idéia do destaque provocado pelo star-system. Depois de rodar as cenas, é preciso organizar o material da produção. Assim, inicia o trabalho da montagem, definida por Bernardet (2000) como um atividade de síntese. A linguagem cinematográfica e, por conseqüência, a montagem passaram por muitas modificações.
Quando o filme era mudo, acreditava-se na possibilidade dos espectadores não compreenderem o que se passava na tela. Dessa forma, antes de algumas cenas era empregado um quadro explicativo sobre os personagens e suas falas. Assim como no século XIX era complicado para um camponês entender o significado de uma obra de arte, no começo do cinema mudo era preciso explicar certos elementos tidos como óbvios atualmente. Para facilitar ainda mais a compreensão, nos primeiros melodramas os produtores colocavam dicas sobre cada personagem durante a projeção.
Enquanto o cinema foi se transformando, o estilo das atuações foi sendo modificado. Erwin Panofsky (2000) assinala que as interpretações sofreram grande mudança com a chegada do cinema falado, obrigando os artistas a se adaptarem. Da mesma maneira, os atores de teatro precisaram mudar sua forma de atuar quando trabalhavam no cinema, em que não era preciso de um exagero pantomímico.
Antônio Cândido (2005), em seu livro A personagem de ficção, define a estrutura da obra literária e como o texto apresenta aspectos mediantes à construção de um objeto. O autor diz que a preparação de selecionados aspectos esquemáticos é de fundamental importância na obra ficcional. Os aspectos esquemáticos estão ligados à seleção cuidadosa e precisa da palavra e suas conotações peculiares, que podem referir à aparência física ou a processos psíquicos de um objeto ou personagem.
Segundo Cândido, o cinema e o teatro apresentam aspectos concretos, mas não podem, como na obra literária, apresentar aspectos psíquicos sem recurso à mediação física do corpo, da fisionomia ou da voz. O autor define a obra literária ficcional através dos problemas que dela emergem, como o problema ontológico que, para Cândido, é a verificação do caráter ficcional de um escrito independente de critérios de valor. Ele aponta que uma das diferenças entre o texto ficcional e os demais textos reside no fato de que, no ficcional, as orações projetam contextos objectuais, por isso não se referem a não ser de modo indireto ou a objetos indeterminados que independem do texto.
Para Cândido, há um processo no jornal cinematográfico quando se trata de imagens “puramente intencionais”, que, na verdade, procuram omitir-se para franquear a visão da própria realidade. Assim, mesmo diante de um fotógrafo despretensioso, a pessoa tende a compor-se, tomar uma pose, e tornar-se personagem, tornando-se de certa forma uma cópia antecipada de sua própria cópia.
Outro problema apontado por Cândido (2005) nas obras literárias é o epistemológico, que acontece quando a personagem torna patente a ficção e através dela a camada imaginária se cristaliza. Na ficção narrativa desaparece o enunciador real e constitui-se um narrador fictício que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se com uma ou mais personagens. Para o autor, as personagens históricas quando se tornam ao ponto inicial de orientação ou são focalizadas pelo narrador onisciente, passam a ser personagens, deixam de ser objetos e transformam-se em sujeitos.
Cândido diz que, através do mundo fictício da cena, os personagens absorvem as palavras do texto e passam a constituí-las passando a ser fonte delas, assim como acontece na realidade. A ficção reverte-se de tal força que se substitui ou superpõe-se à realidade. A identificação do autor com a personagem significa que o foco está dentro dela. Segundo Cândido, a aparente ausência do narrador fictício explica-se pelo fato de que ele se solidarizou ou identificou com uma ou mais personagens, de tal modo que ele não pode mais ser discernido em outro foco distinto.
No cinema, para Cândido, a câmera, através de seu movimento exerce uma função nitidamente narrativa porque focaliza, comenta, recorta, aproxima, expõe, descreve. Um dos principais movimentos de câmera narrativa são os recursos como plano detalhe e travelling (ver tópico anterior). Em sua discussão, define que no cinema e na literatura são as imagens e as palavras que fundam os objetos intencionais, não os personagens. Embora as personagens constituam a ficção, a imagem no cinema funciona como a palavra porque ela tem a possibilidade de descrever e animar ambientes, paisagens e objetos.
Segundo o autor, em função das limitações que o cinema consegue impor, as personagens têm mais coerência do que as pessoas reais, maior exemplaridade e maior riqueza consciente. A ficção é o lugar em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão, porque são seres intencionais e totalmente projetados por orações.
No seu trabalho, Cândido procura definir o papel do personagem de cinema. Como os seres humanos se encontram em um mundo de valores religiosos, de moral, político-social e estético, eles estão sujeitos a aspectos trágicos, sublimes, demoníacos ou luminosos. O personagem no cinema limita esses por ser tributário de todas as linguagens. Para o autor, os melhores filmes e as melhores idéias sobre cinema decorrem de sua aceitação estética, ambígua, impura e próxima à realidade humana.
Para Cândido (2005), a estrutura de um filme baseia-se na disposição do narrador em assumir o ponto de vista dos personagens, e na maioria deles, os personagens devem ser encarnados em pessoas. O autor argumenta que a personagem de ficção cinematográfica, por mais que tenha suas raízes na realidade ou em ficções pré-existentes, somente começa a existir e a viver quando encarna numa pessoa, num ator. E o cinema exerce um forte papel na reconstrução, que é o mais possível fidedigna à realidade humana, o que o distancia do teatro pelo fato de os recursos de câmera e de linguagem estarem envolvidos na construção do personagem ficcional. Além disso, o cinema propicia um controle salutar do tempo e do ritmo narrativo.
Em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco (1994) mostra através de seis ensaios como a ficção se distancia do personagem real, e até que ponto ela consegue se aproximar do cotidiano e misturar a vida do leitor com a do personagem de ficção.
No capítulo Divagando pelo Bosque o autor diz que uma obra de ficção descreve as pessoas em ação e que cabe ao leitor colocar a velocidade de acordo com seus modos costumeiros. Para explicar a questão do ritmo ele usa a casuística dos filmes pornográficos. Segundo Umberto Eco, um autor pode demorar ou aumentar a velocidade, pois é o que permite ao leitor a fazer “passeios inferenciais”, ou seja, para prever o desenvolvimento da história, o leitor volta para sua própria experiência de vida ou seu conhecimento de outras histórias. A pergunta “O que há de fazer?” no meio da narrativa, convida o leitor a dar um passeio inferencial. A tática da pergunta estimula o passeio.
Segundo Eco, em toda obra de ficção, o texto emite sinais de suspense, que significa uma pausa para que o leitor tire sua conclusão ou se sinta preso a esperar pelo próximo momento. Para ele, o processo de fazer previsões constitui um aspecto emocional necessário da leitura que coloca em jogo esperanças e medos ou a tensão perante a nossa identificação com o destino das personagens.
De acordo com Eco, em uma obra de ficção o tempo acontece de duas formas básicas: o tempo da história e o tempo do discurso.
O tempo da história faz parte do conteúdo da história. Se o texto diz que “mil anos se passam”, o tempo da história são mil anos. Mas ao nível ao discurso do tempo ficcional, o tempo de escrever (e ler) a frase é muito curto. É por isso que um tempo do discurso rápido pode exprimir um tempo da história bastante longo. Naturalmente, o contrário também pode acontecer. (ECO,1994, p.60).
Umberto Eco afirma que um texto pode impor tempo na leitura, principalmente no cinema. Para ele, é possível procurar harmonia entre os tempos da história, do discurso e da leitura sem ter a ver com arte, porque a demora nem sempre significa nobreza.
Eco afirma que há diferentes definições para indicar se um filme é pornográfico ou não. Um moralista diria que um filme é pornográfico se tiver cenas explícitas e minuciosas de atos sexuais, mas alguns processos por pornografia demonstraram que algumas obras de arte contêm esse tipo de cena com propósitos realísticos (mostrar a vida como ela é) ou éticos (condenar a sensualidade apresentada).
Após analisar alguns filmes declaradamente pornográficos, Umberto Eco percebeu que, quando o personagem entra em um carro por exemplo, o tempo do discurso coincide com o tempo da história. Se alguém pega o carro para percorrer dez quarteirões, o carro fará esse percurso em tempo real, ou seja, a ação demora exatamente o mesmo tempo que o espectador levaria caso estivesse percorrendo as ruas de sua cidade. O motivo dessa aproximação, segundo Eco, é que um filme pornográfico deve satisfazer o desejo que o público tem de ver cenas de sexo explícito, mas não pode ficar uma hora e meia mostrando sexo sem parar, pois poderia ficar cansativo para os atores e para a platéia.
Eco afirma que é necessário distribuir os atos sexuais ao longo da narrativa. Assim, o autor conclui que os espectadores não têm o menor interesse na história, porque só estão ali esperando as cenas de sexo. Por isso a narrativa se reduz aos atos insignificantes do cotidiano como ir à algum lugar, vestir um casaco ou falar coisas irrelevantes, para prender a expectativa do espectador até o momento auge de seu desejo. Tudo o que não é sexo explícito tem que levar o mesmo tempo que levaria no tempo cotidiano, mesmo que os atos sexuais levem mais tempo que na realidade.
Então, conclui Eco, quando duas personagens de um filme demoram para ir de A a B, como demorariam no tempo real, pode-se ter a certeza que trata-se de um filme pornográfico, independente das indispensáveis cenas de sexo. Contudo, o autor cita o filme No decorrer do tempo de Wim Wenders, que na maior parte de suas quatro horas, mostra duas pessoas viajando em um caminhão sem pornografia nenhuma.
Segundo Eco, existem outros tipos de diálogos tensos e irrelevantes como em romances e dramas, que sofrem a mesma desaceleração encontrados nos filmes pornográficos. O autor cita narrativas demoradas como tempo de trepidação, ou seja, o que retarda um final dramático. Para ele, quanto mais tempo o espectador espera pelo desfecho, maior a trepidação e conseqüentemente maior a catarse do filme. O tempo da trepidação visa não só manter a atenção do espectador ingênuo, mas também estimula a fruição estética do espectador de um nível mais elevado.
Para exemplificar seus argumentos, Eco refere-se à Divina Comédia4 de Dante, na qual o leitor se submete a uma interminável demora, uma vez que no decorrer da obra encontram-se centenas de personagens, envolve várias discussões sobre política contemporânea, teologia entre outros. A vontade do leitor, segundo Eco, é saltar as partes.
Obra prima de Dante Alighieri, que a iniciou por volta de 1307, concluindo-a pouco antes de sua morte (1321). Escrita em italiano, a obra é um poema narrativo rigorosamente simétrico e planejado que narra uma odisséia pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, descrevendo cada etapa da viagem com detalhes quase visuais para saber enfim o desfecho da história, mas não o faz porque acredita que o autor está desacelerando para fazer da narrativa mais interessante.
Finalmente, Eco cita o exemplo de Manzoni, que tem por objetivo construir seu mundo de ficção emprestando aspectos de seu mundo real, acompanhando suas perspectivas geográficas e topográficas.
Em seu livro Esculpir o tempo, Andrei Tarkovski (2002) define o tempo como uma condição de existência porque ele é responsável por criar no homem, criatura mortal, a capacidade de se realizar como personalidade. O autor afirma que o tempo e a memória constituem uma mesma entidade, que embora não exista fisicamente, é responsável pela compreensão do homem com o mundo exterior.
O autor oferece suas contribuições ao cinema quando começa a falar de um roteiro de cinema que nasce diante do olhar interior do diretor. Para ele, o criador do filme passa a ser um artista quando o seu sistema de imagens começa a adquirir forma a partir de sua estrutura pessoal de idéias sobre o mundo exterior e o público é convidado a compartilhar com ele os seus sonhos secretos.
De acordo com Tarkovski, a arte do cinema é sempre comparada com a da literatura, e é necessária a interação entre as duas formas de se explorar um fato, para que nunca possam ser confundidas. Dentre as semelhanças entre o cinema e a literatura, o autor destaca a liberdade dos artistas de ambas atividades em escolher elementos que desejam em meio ao que lhes é oferecido ao mundo real. Porém, elas se diferenciam em um elemento básico: a literatura recorre às palavras para descrever o mundo, enquanto o filme não precisa utilizá-las, porque ele se manifesta diretamente ao espectador. No mundo do cinema, afirma Tarkovski, cada artista pode ver, colocar e resolver o problema ao seu próprio modo.
Para Tarkovski, os filmes de Lumière foram os pioneiros na criação estética do cinema. Depois disso, segundo o autor, os filmes passaram a se distanciar da arte e seguiram o caminho dos interesses medíocres e lucrativos. A partir de então, o cinema se tornou objeto de sedução e registro do teatral. Tarkovski diz que pior do que o cinema ter sido alvo da mera ilustração, foi ter fracassado por explorar artisticamente o potencial de imprimir a realidade do tempo.
Segundo Tarkovski, o cinema pode imprimir o tempo quando expõe um acontecimento, ou quando um objeto é apresentado estático, desde que essa mobilidade exista no curso real do tempo. A força do cinema para Tarkovski reside no fato dele se apropriar do tempo porque acontece junto com a realidade em que está ligado, e que cerca o público a cada dia e a cada hora.
De acordo com Tarkovski, o espectador vai ao cinema porque ele está em busca de uma experiência viva, pois o filme amplia, enriquece e concentra a experiência de uma pessoa. Segundo o autor, para constituir uma seqüência fílmica perfeita, o cinema mantém uma ordem cronológica, uma vez que seleciona e combina o segmento de fatos em sucessão através do tipo de ligação que os mantêm unidos.
Para Tarkovski, o cinema é capaz de operar com qualquer fato que se estenda no tempo e pode tirar da vida praticamente o que quiser. O que para literatura seria uma eventual possibilidade, para o cinema é a manifestação de suas leis fundamentais.
Segundo o autor, o significado do cinema é colocar uma pessoa em um ambiente ilimitado, confrontá-la com um número infinito de pessoas e conseguir relacioná-la ao mundo inteiro.
Tarkovski destaca a observação como elemento básico do cinema. Para ele, a imagem cinematográfica consiste basicamente na observação dos eventos da vida dentro do tempo, organizados em conformidade com o padrão cotidiano sem se desvencilhar de suas leis temporais.
Para o diretor russo, o critério decisivo no cinema é o fato de um filme ser ou não verossímil, específico e real. A pureza do filme se revela na adequação de imagens simbólicas que expressam um fato específico, único e verdadeiro.
Tarkovski afirma que o cinema deve ser um meio de explorar os problemas mais complexos do nosso tempo. O autor diz que para cada pessoa a atividade cinematográfica se revela como algo útil, quando esta consegue compreender a especificidade do filme e encontrar dentro dele a chave que abra suas portas.
Segundo Tarkovski, o fator dominante da imagem cinematográfica é o ritmo, responsável por expressar o fluxo do tempo. É necessário que o tempo entre em harmonia com as tomadas para articular-se aos fatos, porque embora a junção de imagens seja a estrutura do filme, elas são incapazes de construírem o seu ritmo. “O tempo específico que flui através das tomadas cria o ritmo do filme, e o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas sim, pela expressão do tempo que passa através delas. (TARKOVSKI, 2002, p.139)”.
O ritmo se torna perceptível em uma tomada quando o espectador sente algo significativo e verdadeiro, e quando ele se sente capaz de perceber que o que se vê na tela não esgota em sua configuração visual, mas que é um indício de algo que se estende para o além do quadro, para o infinito e para vida. Segundo Tarkovski, assim como a vida acontece em constante movimento e mutação e faz com que todos interpretem cada momento ao seu próprio modo, o cinema faz a mesma coisa quando registra fielmente na película o tempo que flui além dos limites do fotograma. Para o autor, o verdadeiro filme vive no tempo se o tempo estiver vivo nele. Sendo essa interação um processo fundamental do cinema. Uma vez registrado na película, o fenômeno ali apresentado é imutável mesmo quando o tempo for intensamente subjetivo.
De acordo com Tarkovski, o ritmo é comunicado pela vida do objeto registrado no fotograma. O ritmo causa movimento e é através dele que o diretor revela sua individualidade e sua percepção do tempo.
3.3 Cinebiografias
Em seu livro, Biografias e Biógrafos, Sérgio Vilas Boas (2002) afirma que a biografia é um gênero literário de não-ficção. Para ele, a narrativa biográfica é um intercâmbio entre metodologias e saberes distintos, sendo um constructo simbólico, híbrido por natureza.
Vilas Boas diz que até meados do século XVIII não existiam biografias que falavam de um único indivíduo. Elas se referiam apenas a grupos de vida determinados pela hierarquia, função social ou pela profissão. Segundo o autor, os biógrafos antigos não exploravam as fontes necessárias. Hoje, afirma Vilas Boas, as biografias são compostas pela historiografia, da política, da psicanálise ou mesmo do jornalismo.
O autor remete à “biografia intelectual” quando fala das narrativas de vidas de filósofos, sociólogos ou qualquer pensador renomado. Ele afirma que as auto-inspirações têm o propósito de explicar a obra do biografado. A biografia tem sido usada como um canal de estudo sobre homens e letras, podendo assim ser definida por “literária”. Porém, a expressão “biografia literária” é diferente da história de vida enriquecida com técnicas de literatura. Outro gênero citado pelo autor é a “biografia científica” que é escrita por, ou sobre alguma personalidade.
De acordo com Vilas Boas, para se escrever uma biografia não é necessário ser jornalista, antropólogo ou historiador. Basta ser biógrafo, embora não seja uma tarefa tão simples. Para ele, as definições não estão limitadas a um campo de formação, porque caso assim fosse, os jornalistas só poderiam escrever sobre empresas de comunicação ou outros jornalistas renomados. Há uma liberdade do biógrafo em escolher quem vai biografar, ou de até mesmo atender encomendas de editoras ou familiares. Os biógrafos preferem escrever sobre um indivíduo que estimule nele uma capacidade e um interesse de investigação.
O autor define a biografia como uma compilação de uma ou várias vidas, podendo ser impressa, contada pela televisão, pelo cinema ou pelo teatro, cabendo ao biógrafo fazer interessante a escrita, a criação e a publicação, o personagem e sua interpretação. A categorização biográfica é algo complicado de se definir, porque ela é um gênero literário difícil de se comparar. Vilas Boas cita a definição do psiquiatra Robert Young, que afirma que em uma única biografia pode conter idéias, narrativa, desejo, personagens e validação da subjetividade da vida humana.
A narrativa jornalística pode usar técnicas para ajudar o leitor a compreender o passado. Uma delas é o livro-reportagem, que pode ser considerada como uma biografia com elementos jornalísticos como o compromisso com os fatos e com a clareza. Mas, de acordo com Vilas Boas, o maior objetivo da narrativa biográfica é gerar conhecimento sobre o passado de alguém ou de alguma coisa. O autor cita que a produção de livros biográficos no Brasil é crescente, porque esse tipo de narrativa faz parte da vida cotidiana de muita gente.
Segundo Vilas Boas, o biógrafo lida com humanidades porque o processo de biografar é um ato iluminador e muitas vezes espiritual. A verdade e a ficção tecem o realismo da biografia, fazendo com que a subjetividade se transforme em um jogo de intervenções entre história, semiótica, filosofia, literatura, jornalismo e psicologia. Os biógrafos são autores porque são livres para escolher quem biografar, mas as opções de interpretação e narração dependem de fatores às vezes alheios à sua vontade.
Cada biografia demanda um contrato autoral diferente, sendo agrupados em quatro categorias. A primeira seria a “biografia autorizada” que é escrita e publicada com o aval e cooperação do biografado e/ou dos familiares; as “independentes” que não são autorizadas e que o biógrafo investiga informalmente o biografado; as “encomendadas”, que atendem pedidos de editores, familiares, ou pelo próprio personagem; e por último as “ditadas”, em que o biógrafo escreve uma autobiografia ou memórias em nome do personagem central.
O processo de elaboração de uma biografia também tem duas etapas. A primeira é a da coleta de informações factuais sobre a vida do personagem, e a outra é a criação de uma relação imaginária ou ficcional entre o biógrafo e o biografado. Para o autor, a idéia de totalidade em uma biografia está envolta na condição de mito e utopia. Para ele, a biografia é definidora porque oferece uma atraente e convincente história de vida, que define o personagem como em retratos fiéis. Biografia é então, como define Vilas Boas, um retrato da vida, não a vida. Fatos podem mudar, novas interpretações podem alterar a qualquer momento uma interpretação feita anteriormente.
Em seu artigo A vida mecânica na idade da reprodução humana: biopics americanos, 1961-1980, George Custen discute a idéia do surgimento dos filmes de biografias em Hollywood. Segundo ele, os diretores norte-americanos começaram a estudar a cultura dos filmes que contavam a carreira de personalidades midiáticas, e perceberam que a maioria deles eram curtas-metragens. Depois de várias observações feitas por críticos americanos, o jornalista Neal Gabler pontuou que Hollywood, por ser a indústria que conseguia reproduzir sonhos em formato de filme, deveria acrescentar em seus roteiros, discussões sobre “como escapar da vida na própria vida”. A idéia de construir esses roteiros era fazer com que os objetos centrais refletissem as visões e os objetivos dos homens. Esses filmes, como observou o antropólogo Hortense Powdermaker5, fazem com que as pessoas enxerguem outras culturas a partir de diferentes estilos de vida. De acordo com Custen, as películas baseadas nas vidas de pessoas reais remeteriam a algo de prestígio, como aconteceu com Marie Antoinette (1938) e Madame Curie (1943).
Hortense Powdermaker (1896-1970) foi um antropólogo mais conhecido por seu estudos etnográficos sobre africanos, americanos na América rural e de Hollywood.
Para Custen, em poucos anos os filmes de biografia eram capazes de fazer com que as pessoas observassem a história de vida do personagem central como o seu próprio espelho. Assim, o objetivo era fazer com que o homem comum conseguisse ver através da história do outro, o prisma de sua vida, dessa forma, tornando incontrolável o valor da cinebiografia. O sistema de produção e distribuição da película de biografia finalmente se torna algo comum, pois a idéia de Hollywood era encontrar uma forma de ligar um filme qualquer sobre a vida de um ser humano “fantástico” junto a um público que formaria a audiência nacional, sendo capaz de ligar a cultura de Hollywood com a cultura da América.
A busca pelo resultado de uma cinebiografia é revelar o filme quando as pessoas tentam igualar-se de uma forma ideal à “tela”, com a própria vida, subordinada a valores normativos. Segundo Custen, os filmes de cinebiografia pressupõem a realizar-se como exemplo a vida de pessoas reais, embora seu objetivo seja vender qualquer perspectiva de vida construída em Hollywood. Ao contrário do discurso fictício, dos quais Hollywood é cânone, as cinebiografias procuram uma precisão na ligação com a verdade dos fatos, fazendo de seus roteiros biográficos, narrativas únicas.
O autor concluiu que, embora os anos 1950 tenham sido parte da década com o mais elevado número de cinebiografias (107), a marca original e o momento mais criativo e influente desses filmes foi nos anos 1930. As cinebiografias foram assumidas para ser capaz de ensinar alguma coisa real aos cidadãos de uma jovem nação com uma identidade insegura. Mas, de acordo com Custen (1992), após 1960, as cinebiografias pareciam não carregar o mesmo peso, bem como já não executavam o mesmo trabalho cultural feito anteriormente. Para o autor, os americanos já não acreditavam no conceito real da biografia de Hollywood: viviam uma época em que as ilusões estavam sendo dispensadas pelas forças históricas que não determinavam a fé das pessoas em líderes individuais.
O perfil das celebridades que eram alvo das narrativas em cinebiografias também foi trabalhado pelo autor Segundo ele, a grande maioria dos personagens biografados era do sexo masculino, sendo em quase sua totalidade (91%), brancos. Na década de 1960, 46% desses filmes foram sobre famosos americanos. As cinebiografias dos anos 1970 foram principalmente sobre elites militares e figuras religiosas.
Segundo Custen, a durabilidade da cinebiografia se assegurou a partir da rentabilidade relativa e da estabilidade de um determinado sistema de produção que se baseava em gêneros e estrelas. Mas as estratégias precedentes de Hollywood para tratar personalidades públicas já não conseguiam atender à expectativa do público a partir dos anos 1960, quando a capacidade da televisão e as condições da produção cinematográfica, junto com os contextos de sua recepção, causavam dúvidas sobre as probabilidades de como o cinema figuraria as histórias de vida das pessoas. Contudo, a noção da TV de biografia e da fama vai, gradativamente, desafiar a versão de Hollywood.
Para Custen, as películas da era do estúdio foram baseadas em um modelo da história que insistiu na mudança ocorrida não pelas desigualdades ou diferenças social ou econômica, mas pela maneira como o público poderia se ver no futuro, sob melhores maneiras de viver. No mundo das cinebiografias da era do estúdio, as causas da história eram claramente explicadas e mostradas a partir de um “sentido comum entre os povos”.
Assim, enquanto as cinebiografias produzidas por Hollywood apostavam em outros gêneros (westerns, musicais e ficção científica), a narrativa da biografia apresentada pela televisão dá início à simples conversa com a participação da audiência.
Assim, mais do que se conhecer a história, as películas ganhariam a credibilidade dos telespectadores atentos a observar profundamente o comportamento humano.
Tanto a TV quanto as cinebiografias ganhavam aceitabilidade na recepção do público, porém os critérios de audiência eram divergentes. Nestas, a expectativa do espectador era diminuída, enquanto naquela, ela aumentava ao decorrer da narrativa. O autor afirma que a TV possa ter diminuído em algum momento a audiência de Hollywood, mas que os americanos jamais dispensaram a biografia em formato de uma narrativa com uma série de imagens e sons.
De acordo com Custen, se Hollywood fizesse uma análise de seus curtas cinebiografiográficos, a maioria de suas publicações seriam de caráter sério, cumprindo com uma rigorosa ética. Para o autor, talvez a televisão tenha apenas se inspirado nos contos biográficos do cinema para ter uma aceitação maior do público.
Por fim, Custen conclui que com o passar das décadas, os norte-americanos mudaram o pensamento relação à fama e que o papel da programação da tv havia contribuído para isso, mesmo que seu objetivo fosse atingir outra audiência. Talk Shows, seriados e o acompanhamento de jornalistas na vida dos famosos contribuíram para que as biografias do cinema se tornassem apenas algo curioso.
A partir daqui, torna-se possível compreender e analisar os elementos usados por Van Sant para descrever os últimos dias de Kurt Cobain, conforme análise fílmica que segue no próximo capítulo.
4 ANÁLISE DO FILME LAST DAYS
Neste capítulo serão representados os conceitos dos autores sobre olimpianos, descritos em capítulos anteriores, a partir da adaptação da vida do personagem midiático. Os elementos teóricos cinematográficos também serão aplicados aos recursos utilizados por Gus Van Sant ao construir o roteiro de Last Days. O contexto dos personagens e a criação do conteúdo, criados às vezes através de estratégias cinematográficas, serão aqui interpretados.
Para pontuar onde os conceitos se aplicam, serão analisadas algumas cenas de Last Days para perceber como os recursos de câmera, a duração de cena, a trilha sonora ou mesmo características do personagem podem construir a narrativa do diretor.
4.1 Last Days
Last Days é um filme do cineasta estadunidense Gus Van Sant, lançado originalmente em 2005, nos Estados Unidos. Van Sant lança um olhar mais livre e, ao mesmo tempo, enigmático, aos últimos dias de vida do aclamado olimpiano Kurt Cobain (1967-1994), vocalista, líder da banda Nirvana (Seattle, 1987-1994) e figura maior do movimento grunge. Cobain, para quem o filme é dedicado, suicidou-se em abril de 1994. O filme tem em seu elenco Michael Pitt, Lukas Haas e Asia Argento.
Last Days traz uma narrativa que acompanha os últimos dias de vida de um músico de rock, acossado pela fama e também por certa apatia existencial. O protagonista tem o nome de Blake e é interpretado por Michael Pitt, notoriamente parecido com Cobain: Blake é um famoso músico de rock que mora numa mansão mal conservada e isolada do mundo. Caminhando pelos bosques que circundam a casa, o personagem interage pouco com o grupo de amigos, quando não está tocando música sozinho. Blake se fecha em um mundo próprio que o torna cada vez mais distante dos outros e da vida exterior.
Van Sant fez vários curtas-metragens e um pequeno independente, Mala Noche (1986) que lhe rendeu boa aceitação do público. Mais tarde fez Drugstore Cowboy (1989) Movimento musical nascido em Seattle (EUA) e que ganhou destaque na década de 1990, tendo o Nirvana como principal percussor da música e do estilo. Mais tarde, bandas como Pearl Jam, Alice in Chains e Soundgarden ganharam lugar na cena.
Garotos de progama (My Own Private Idaho, 1991), que consolidou sua carreira como um importante cronista social cinematográfico, em especial ao tema da juventude transviada.
Last Days compõe a seqüência de roteiros que envolvem esse tema e a morte, sob a ótica de Van Sant, iniciada com Gerry (2002), secundada por Elephant (2003) e continuada por Paranoid Park (2007). Em Gerry, a morte é acidental, causada pela despreocupação. Em Elephant, a morte é apresentada como um assassínio deliberado e sem significado. Em Paranoid Park, a morte também é acidental, ocasionada por um jovem skatista de 16 anos. Já em Last Days, a morte imerge em um ídolo do rock mergulhado em conflito existencial.
Van Sant se interessou pela história do final da vida de Kurt Cobain porque segundo ele, pouco se sabe sobre ela. De acordo com o diretor, Last days tem uma direção, mas não tem história.
O cineasta afirma ainda que a construção do roteiro de Last Days não é capaz de oferecer uma resposta na realidade. Van Sant diz que o sentido do filme é fazer com que as pessoas busquem justificativas para a morte de Kurt Cobain, mesmo que para a maioria do público, segundo o próprio Van Sant, o importante é ter a quem incriminar a perda do ídolo. O filme foi lançado oficialmente em 2005, inclusive no Brasil, pela produtora Warner Brothers (E.U.A), após participar de vários festivais de cinema.
4.2 Elementos de análise
Para uma leitura crítica de Last Days foram destacados nos capítulos 1 e 2, duas diretrizes de análise. São elas:
A) Olimpianos
B) Cinematográficos:
- Elementos narrativos e cinebiográficos;
- Elementos de linguagem.
A) Olimpianos
Kellner (2001) discute a criação de símbolos a partir da indústria da moda e do universo das celebridades como forma de propagação dos produtos culturais. Em Last Days, o ícone apontado na narrativa foi o principal modelo de rock star dos anos 1990. Kurt Cobain estipulou mundialmente o estilo roqueiro grunge tanto fisicamente quanto em termos comportamentais para fãs e outras bandas que surgiriam posteriormente.
Assim como defende Kellner, a moda tem a força de criar materiais que constroem identidade porque a cultura das sociedades tradicional e moderna faz com que o traje e a aparência indiquem a classe social e o status da pessoa. Tanto que em Last Days, mesmo quem nunca ouviu falar de Kurt Cobain ou sobre a narrativa do filme, é capaz de identificar o personagem Blake (Michael Pitt) como uma reconstrução da imagem do líder do Nirvana a partir desses elementos: Blake usa roupas largadas e sujas, tem cabelo loiro e comprido até os ombros, é compositor e músico de uma banda de rock, solitário, embriagado, insatisfeito, indiferente.
Cobain tornou-se um exemplo do que Kellner disse sobre a intensa tentativa de destruir os códigos culturais através de uma nova moda, que criou novas identidades acompanhadas do sexo, drogas e do rock, na transição dos anos 1980 e 1990. Uma espécie de nova “antimoda” do rock, através da qual os jovens demonstravam o prazer de se acharem “contra o sistema”.
Essas características apontadas por Kellner, associadas a Cobain, potencializadas pela mídia televisiva, a indústria do cinema e demais grupos musicais oferecem padrões à juventude. O cinema tende a acompanhar a indústria da moda com a reconstituição de personagens midiáticos, como é o caso do Kurt Cobain retratado em Last Days: as características físicas, comportamentais e de estilo de Cobain foram propositalmente repetidas no personagem de Blake no filme de Van Sant.
Como afirma Umberto Eco (1987), a personagem do mito deve ser previsível e capaz de tornar visível uma diferença fundamental entre a personagem mítica e a personagem romântica. Last Days parte do pressuposto de humanizar a figura do mito, ao não recorrer a uma cinebiografia clássica, mas tratando-o como personagem comum ao cotidiano de um indivíduo anônimo. A própria tentativa de trazer o ídolo para o mundo real é uma forma de diferenciá-lo de um outro ser humano qualquer, pois o indivíduo sente-se satisfeito em saber que o mito se parece com ele. A aproximação das realidades faz com que o olimpiano desperte ainda mais a curiosidade do fanático.
Em Last Days, o personagem Blake assume o que Umberto Eco chama de "personalidade estética", ou seja, uma capacidade de tornar-se termo de referência para comportamentos e sentimentos que também pertencem a todos nós, mas que não assume a universalidade própria do mito. É justamente esta "personalidade estética" de que fala Eco que encontramos no mito de Kurt Cobain.. A identificação necessária entre a personagem midiática e o público se dá justamente na "humanidade" daquela. Assim é feito em Last Days quando Gus Van Sant traz o universo “humano” do mito Kurt Cobain e constrói uma narrativa baseada nos últimos dias de vida do músico. O personagem Blake, pelas razões explícitas do diretor7, ou implícitas ao personagem, é imediatamente associado a Cobain, mas dentro de uma proposta que quer mostrá-lo como um ser humano comum que vive de angústias, solidão e poucos amigos.
Morin (1989) em As estrelas faz uma análise específica dos mitos cinematográficos, e percebe que, ao redor das estrelas, instaura-se um culto assim como havia um culto aos deuses antigos. O autor diz que Hollywood passa a ser o novo “Olimpo” e a celebração aos atores toma às vezes um caráter de religião, porque existem papas e até cerimônias em que os fiéis entram em estado de êxtase, como se estivessem de fato em um ambiente religioso.
A proposta de Last Days caminha no sentido contrário ao culto do olimpo hollywoodiano. Van Sant não teve o propósito de abordar o astro nesse tom apontado por Morin. Pelo contrário, a idéia foi partir do mito criado em torno de Cobain e propor sua recriação como ser humano comum, tão anônimo quanto o ator que interpreta seu alter ego no filme.
Cobain é a estrela que se encaixa ao que Morin assinala como digna de fanatismo, o que muitas vezes faz com que os fãs não consigam distinguir o ator do personagem – o mecanismo de projeção-identificação. Por sua vez, o personagem Blake e, como veremos, o tratamento cinebiográfico dado a ele pelo diretor, pode, certamente, Mesmo ao final do filme, lê-se uma mensagem a qual diz: “Embora baseado nos últimos dias de Kurt Cobain, este filme é um trabalho de ficção, sendo os personagens e eventos nele representados também fictícios”.
Incomodar o fã mais vulnerável a esse mecanismo. Após Last Days, o ator Michael Pitt foi alvo de críticas positivas e negativas, pelos fãs de Cobain. O público depositou tanta expectativa em um personagem que vai reviver o ídolo, que passou a apostar na personalidade que surge para interpretá-lo, ainda que fosse apenas em uma representação no filme. A ficção reverte-se de tal força que se substitui ou superpõe-se à realidade – questão certamente provocada por Van Sant em seu filme.
Fausto Neto afirmou ser a mídia a construtora da noção de morte de determinados segmentos dos olimpianos. Na indústria cultural, a morte das celebridades é alvo de dissecação pela imprensa. Noticiada mundialmente, a morte de Cobain confirma o que Fausto Neto diz sobre o “charme” que ela constitui na carreira das celebridades.
No caso do líder do Nirvana, a suspeita de suicídio reforça ainda mais o estereótipo de “roqueiro que queria se matar” que Cobain sempre fez questão em demonstrar. As letras de músicas, os álbuns, os cenários dos shows e até mesmo as entrevistas que ele concedia a imprensa dizendo que não queria passar dos 27 anos. O desejo suicida já fazia parte da carreira e da imagem que Cobain construiu. Van Sant apostou no que mais marcou os últimos momentos da carreira de Cobain na construção de Blake, mesmo que não tenha se preocupado em explicitar os motivos que levaram à sua morte.
Muitas cenas construídas para Last Days deixam nas entrelinhas um pouco da biografia de Cobain contada por Cross. Os mínimos detalhes do comportamento de Blake remetem à história de Cobain. O fato do personagem ser criado fisicamente como o músico, de criar gatos, morar com amigos, usar vestidos etc, deixam subentendidos todos os elementos que construíram a narrativa de Cross em Mais pesado que o céu.
A descrição das atitudes que antecederam à morte de Cobain, como a escrita da carta de despedida, narrada por Cross, são visivelmente notadas no roteiro de Van Sant. Até mesmo o local aonde Cobain foi encontrado morto possui detalhes das semelhanças que aparecem nas imagens de Last Days.
B) Elementos narrativos e biográficos do cinema
Este tópico vai examinar como uma característica predominante na narrativa de Van Sant em Last Days é a de que o diretor não estava interessado em imitar pura e simplesmente os últimos dias da vida de Kurt Cobain, mas nela se inspirar. Por isso construiu um alter ego do cantor no personagem Blake, abandonando a fórmula realista mais fácil e evidente de uma cinebiografia dos últimos dias de Cobain e apostando, uma vez evidenciada a associação Cobain-Blake, em uma leitura paralela, reforçada, paradoxalmente, por vários elementos de verossimilhança, como o cenário e as cores (Rodrigues, 2002); o contexto da personagem (Cândido, 2005) ao mesmo tempo em que provoca essa mesma verossimilhança com a velocidade e duração (Tarkovski, 1998; Eco, 1994) e a ruptura da cinebiografia clássica (Custen, 1992; Vilas Boas, 2002).
O diretor precisou fazer, do cenário, o mais parecido possível com a casa em que Kurt Cobain vivia. As cores escuras do filme foram essenciais para enquadrar o valor dramático da história do personagem Blake, que se parecia com a tediosa vida de Cobain. Quando as cenas não aconteciam nos bosques ao redor da casa de Blake, elas se passavam em cômodos escuros ou em ruas vazias, à noite, quando o personagem sempre estava sozinho. Os amigos que Cobain tinha se parecem com os do filme, e até mesmo o lugar aonde Cobain foi encontrado morto é parecido com o local apresentado em Last Days para a morte de Blake. Em um roteiro que quase não têm diálogos ou falas, as imagens são capazes de explicar claramente que o personagem em questão foi criado para mencionar algo sobre os últimos de dias do líder do Nirvana.
O contexto de angústia e apatia de Blake é uma forma indireta usada pelo diretor para passar ao público os mesmos sentimentos presentes em Cobain. Para Cândido (2005), há um processo cinematográfico quando se trata de imagens “puramente intencionais”, que, na verdade, procuram omitir-se para transmitir a visão da própria realidade. Gus Van Sant apostou nessas imagens e mais uma vez em seu paradoxo de verossimilhança, quando proporcionou a liberdade dos nomes dos atores, que (exceto Blake), são chamados pelos seus nomes reais. Talvez porque o filme não queria ser exatamente fiel a uma cinebiografia clássica dos últimos dias de Cobain, Van Sant tenha apostado em outros elementos reais para equilibrar sua proposta quase real dos últimos dias de Cobain através de Blake permitiria ser.
Como defendeu Cândido, o personagem tende a compor-se, tomar uma pose, e tornar-se de certa forma uma cópia antecipada de sua própria cópia. Para criar Blake, Gus Van Sant interpreta nas entrelinhas do filme o sentido do personagem para remeter à discussão central acerca dos últimos dias antes da morte do mito. Morte que não recebe referência direta, já que é sugerida desde o início pelo título e pela associação Blake-Cobain, mas reforçada a todo tempo pelo roteiro. Até mesmo na escolha do nome do personagem: Blake é uma clara alusão ao poeta William Blake8, inspiração para trabalhos de Cobain.
Para Cândido, os melhores filmes e as melhores idéias sobre cinema decorrem de sua aceitação estética, ambígua, impura e próxima à realidade humana. Exatamente como acontece em Last Days, quando o diretor cria um personagem que não é a imagem olimpiana do líder do Nirvana, mas é um ser humano como ele.
Em Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco (1994) diz que uma obra de ficção descreve as pessoas em ação e que cabe ao leitor colocar a velocidade de acordo com seus modos costumeiros.
Em Last days, o espectador não faz o que Eco chama de “passeios inferenciais”, ou seja, ele pode até conseguir prever o fim, mas não o desenvolvimento da história. Umberto Eco afirma que um texto pode impor tempo na leitura, principalmente no cinema.
Para ele, é possível procurar harmonia entre os tempos da história, do discurso e da leitura para que a demora se justifique no roteiro, como é o caso do conteúdo criado por Van Sant.
Em Last Days, o tempo da história faz parte do conteúdo do roteiro, como conceitua Eco. A demora das cenas e do desenrolar dos acontecimentos fazem parte do conteúdo que Van Sant quer passar ao público. Quanto mais a história se estende, mais angustiado fica o telespectador, que assim, se aproxima da angústia do personagem Blake.
Isso fica ainda mais evidente na busca pelo tempo de trepidação, ou seja, o que retarda um final dramático. Para ele, quanto mais tempo o espectador espera pelo desfecho, maior a trepidação e conseqüentemente maior a catarse do filme. Em Last Days o tempo de Poeta inglês (1757-1827) conhecido pelos seus fortes ideais libertários, principalmente nos poemas do livro "Canções da Inocência e da Experiência”, nos quais ele apontava a igreja da Inglaterra e a alta sociedade como exploradores dos fracos.
trepidação é longo e o espectador sente-se preso enquanto não encontra a principal questão que o levou a assistir o filme. A morte de Kurt Cobain é a incógnita e a angústia no decorrer da narrativa impõe ao espectador uma espera ansiosa pelo desfecho da vida do ídolo, ainda que o personagem Blake não seja Cobain, em um final que, pelo desenvolvimento proposto no filme, não remete, de maneira alguma, à catarse.
Em Last Days,o diretor consegue passar ao público o que Tarkovski (1998) chama de “pureza do filme”, porque o roteiro dos personagens se destaca na adequação de imagens simbólicas que expressam um fato específico, único e verdadeiro. No caso, a morte de um mito tratada como a de um ser humano comum. No filme de Van Sant não só o tempo se adequa à idéia do diretor em dar um novo ponto de vista em para a morte de Cobain, como impõe uma duração, um ritmo para dar margem à interpretação que ele espera que o público faça.
Last Days não é uma cinebiografia clássica porque, embora o personagem criado tenha sua história baseada nos últimos dias da vida de Kurt Cobain, ele não é Cobain e isso desimpede Van Sant de, em seu filme, criar técnicas para ajudar o leitor a compreender o passado, como sugere Vilas Boas (2002) no quesito clássico da biografia – ainda que o estudo do autor não explicite que tais características possam ser estendidas às cinebiografias. O filme de Gus van Sant não explicita qualquer acontecimento da vida de Cobain. O personagem apenas vive uma vida parecida com a que o músico viveu. Tanto que o diretor frustra talvez a principal expectativa do público que é saber as razões que levaram à morte do olimpiano Cobain. O filme não tem fatos, mas situações. É uma narrativa elaborada para que o espectador crie o seu próprio ponto de vista em relação à angústia de Kurt Cobain antes de morrer. E aí também se opõe às cinebiografias clássicas hollywoodianas, segundo Custen, que reitera a importância do elemento catártico e edificante na cinebiografia, aspecto absolutamente ausente no filme de Van Sant.
B) Elementos de linguagem cinematográfica
Ao analisar algumas cenas de Last Days observou-se como Gus Van Sant utilizou recursos cinematográficos para expressar o seu ponto de vista. Em um filme que quase dispensa os diálogos, o diretor explorou em diversos momentos recursos de câmera e outros efeitos para construir sua narrativa.
O diretor utiliza a câmera no plano médio para descrever Blake que aparece da cintura pra cima, usando um vestido preto e pegando uma espingarda (Últimos Dias, 2005, 00:15’49’’). Van Sant enquadra Blake em seu espaço de convívio cotidiano – seu quarto, enquanto instaura o equilíbrio dramático entre a ação do personagem e o cenário aparentemente inofensivo. A cena é comum para aqueles que acompanharam a carreira de Kurt Cobain. O músico já posou em várias imagens para a mídia vestido de mulher ou com uma espingarda. A associação é criada por Van Sant logo no início, quando o personagem pega a arma e leva o espectador a suspeitar do ato suicida; característica reforçada pelo figurino de Blake.
A cena que antecede à que o personagem aparece com uma espingarda é a que Van Sant utilizou através do plano conjunto para contextualizar o cenário e enfatizar o sentimento de Blake, que já chega fraco no quarto, mal conseguindo comer o cereal (Últimos Dias, 2005, 00:14’26’’).
Outro recurso também usado pelo diretor é o primeiro plano. Na cena em que Blake atende o telefone, a câmera enfatiza seu rosto e a espingarda em sua mão, para mostrar a indiferença do personagem com o produtor musical que o intimava para uma nova turnê de sua banda (00:16’55’’). Nota-se que aos poucos Gus van Sant vai colocando o espectador nos últimos dias de Kurt Cobain. Quando ele enfatiza o personagem que ouve o telefone ao mesmo tempo em que acaricia uma arma, sugere o que a história conta sobre o final do líder do Nirvana. Em bilhete deixado pelo próprio músico antes de morrer, dizia:
Às vezes acho que eu deveria acionar um despertador antes de entrar no palco. Tentei tudo que está em meus poderes para gostar disso (e eu gosto, Deus, acreditem-me, eu gosto, mas não o suficiente)... Em nossas últimas três turnês, tive um reconhecimento por parte de todas as pessoas que conheci pessoalmente e dos fãs de nossa música, mas eu ainda não consigo superar a frustração, a culpa e a empatia que tenho por todos, (CROSS, 2001, p. 403).
O diretor utiliza recursos de circularidade de cenas a todo tempo. Enquanto se passa a cena de Blake ao telefone, de repente volta-se ao plano em que ele estava em seu quarto, trajando um vestido e se drogando. É como se cada cena explicasse o porquê da angústia que o personagem irá sentir na próxima. Enquanto fala ao telefone sobre o assunto que o incomoda, é como se Blake precisasse voltar a se drogar. Para isso, o diretor utiliza outro recurso para transmitir a angústia ao espectador. A volta da cena do quarto dura mais que um minuto (00:30’30’’ à 00:31’42’’). Blake aparece vagarosamente se abaixando e engatinhando em direção à porta.
Essa é outra referência visual a Cobain, pois além do vestido (usado pelo músico por questões de defesa à causa feminista), o líder do Nirvana já abandonou o palco diversas vezes engatinhando, deixando de realizar várias apresentações por não estar em condições físicas de se manter de pé.
Gus van Sant em Last Days aproveita essa seqüência para reforçar, aparentemente com um ar contraditório, o clima angustiante que Blake vive. Enquanto ele está fisicamente debilitado, em seu quarto, há uma televisão ligada passando um videoclipe com cenas de pessoas sorrindo, em família, felizes. O clipe é um sobreenquadramento que o diretor usa, quando insere um novo quadro, uma nova realidade, para remeter antagonicamente à vida monótona e solitária de seu personagem. Ao mesmo tempo em que o clipe pode também representar exatamente não só um mundo, mas também uma mercadoria cultural da qual Blake/Cobain tinha precisamente medo de se tornar.
Expressar a profunda tristeza e angústia do personagem como visto é uma preocupação de destaque para o diretor. Um dos recursos que Van Sant utiliza para demonstrar isso, é quando realiza uma panorâmica em primeiro plano em torno de Blake (00:40’03’’). O personagem fuma um cigarro, pensa na vida e abaixa a cabeça em um tom de desilusão, dando seqüência à cena em que seus amigos chegam em casa sorrindo e brincando. Blake está novamente caracterizado com uma vestimenta em que Kurt foi fotografado várias vezes – óculos escuros com borda amarela e camisa listrada de vermelho e preto, utilizada em alguns videoclipes do Nirvana.
Pouco depois do tom de desilusão do personagem, o diretor volta com uma panorâmica ao redor de Blake, enquanto este escreve uma carta dizendo: “para cada pensamento de coisas boas que a minha morte beneficiará. Eu perdi algo no meu caminho, para seja qual for o lugar em que estou hoje. Lembro quando...” (00:41’34’’). O recurso da câmera panorâmica utilizado descreve o drama do personagem enquanto escreve frases desconexas, lembrando o bilhete que Cobain deixou antes de morrer.
No decorrer da narrativa, Blake reforça o posicionamento distante das pessoas e principalmente dos amigos ou conhecidos. Na cena em que o personagem corre no bosque que existe ao redor de sua casa, Van Sant utiliza o travelling horizontal para descrever o ambiente e o movimento que Blake faz enquanto foge dos amigos que o procuram (00:46’32’’). Nesse momento fez-se necessário enfatizar o desespero do personagem em conviver com outras pessoas, ao mesmo tempo em que insere o personagem em um plano geral, imerso em um bosque grande, passando o sentido de solidão e isolamento – solução que, aliás, também está nas seqüências de abertura do filme, quando ele caminha pelo mesmo local.
Uma vez que o filme conta uma história baseada na vida de um ícone do rock, Van Sant utiliza uma trilha sonora inspirada em composições melancólicas de Cobain. Em plano-seqüência, o diretor faz uma filmagem externa à do ambiente em que Blake estava tocando instrumentos e cantando (00:47’50’’ a 00:52’23’’). Este plano-seqüência, disposto como um longo travelling pra trás, mostra a câmera se afastando de Blake, enquanto no fundo, ouve-se a canção instrumental produzida por ele, que toca, ao mesmo tempo, bateria, guitarra e depois canta. Van Sant utiliza a música para trazer um tom dramático e solitário à vida de Blake, tonalidade reforçada pelo efeito de travelling para trás em plano-seqüência que se aproxima de quase seis minutos sem corte. O único plongée do filme – angulação que reforça idéia de opressão – foi produzido nesta mesma seqüência, mostrando Blake sozinho tocando bateria. Curiosamente, essa cena foi deletada na versão final – talvez por ressaltar algo que já estava muito enfatizado: a solidão, o desprendimento e a angústia do personagem.
Nesta cena, Blake passa a ser filmado externamente em um ambiente que simula um estúdio de gravação de sua própria casa. Aqui Van Sant remete mais uma vez à história de Cobain. O primeiro instrumento que Kurt aprendeu a tocar foi bateria. Em seguida tornou-se guitarrista e vocalista de outras bandas de rock, antes mesmo de destacar-se no Nirvana. Coincidentemente, o personagem de Van Sant, durante a cena, toca primeiro a bateria, depois a guitarra, para finalmente começar a cantar.
A música é utilizada pelo diretor também em outros momentos do filme, embora não seja Blake que se encarregue propriamente da função de trilha sonora. O personagem Scott, que mora com Blake, coloca um vinil da banda The Velvet Underground – a faixa Venus In Furs (00:56’43’’). Enquanto Blake está na cozinha preparando algo para Homer, Scott canta a música que diz “Oh I´m tired and I could sleep for a thousand years” (Eu estou cansado e desejaria dormir por cem anos).
O diretor utiliza a filmagem fora de campo da câmera para descrever a ação de dois personagens que se ligam indiretamente naquele momento. A cena do amigo cantando esse trecho da música volta a se repetir quase no final do filme (Últimos Dias, 2005, 01:09’55’’). Além do contexto da frase da música, que sugere a ânsia da morte, ou no mínimo uma fadiga existencial pelo personagem central, a circularidade das cenas se torna uma constante pelo diretor. À medida em que a narrativa evolui, o roteiro sempre volta às cenas que remetem algo relacionado indiretamente à morte de Blake.
A cena em que Scott canta aparece no primeiro momento quando Blake está na cozinha sozinho, enquanto seus amigos se divertem na sala ao som de Venus In Furs. Van Sant, como dito, usa a circularidade na hora em que essa cena se repete nos instantes finais do filme, quando os amigos de Blake continuam a se divertir ao som da música, e o personagem central está mais uma vez sozinho. O diretor usa a mistura das cenas, e deixa intrínseco um diálogo entre Scott e Blake com Venus In Furs ao fundo, no momento em que os dois se encontram na cozinha. Assim, as duas cenas acontecem simultaneamente, uma completando a outra. A junção das cenas tendo o trecho da música cantada pelo amigo ao fundo sugere a angústia de Blake em estar distante das pessoas, no verso cantado por uma pessoa que morava com ele. Existe aí um complemento de cenas para explicar atitudes de Blake ao mesmo tempo em que evidencia uma solução narrativa para o distanciamento de Blake.
Nas cenas que antecedem o final do filme, o diretor utiliza o travelling pra frente para corresponder ao ponto de vista subjetivo do personagem. Esse movimento de câmera realça um elemento dramático, pois exprime a tensão mental e o desejo do personagem. Blake caminha sozinho por uma rua escura, enquanto diz: “todo mundo... Estão me tratando como se eu fosse um criminoso, fodido, entende? Eu não gosto, não quero colocar de forma alguma... (01:19’24’’). Nessa seqüência, o personagem caminha em direção a um pub.
No caminho de volta, também retoma-se o recurso de um travelling pra frente em uma rua escura, enquanto nada aparece na frente do personagem (01:21’39’’). Blake caminha em direção à estufa de sua casa, enquanto seus amigos saem com o carro e o observam sozinho, andando de um lado para o outro.
Posteriormente, em um plano conjunto em uma cena com a luz do dia, o jardineiro da casa vê Blake deitado (morto) no chão da estufa (01:27’00’’). A imagem do personagem e da polícia chegando ao local é a mesma que foi veiculada na imprensa sobre a morte de Kurt Cobain.
Para fechar, o diretor enquadra a cena de Scott assistindo um noticiário pela televisão que falava sobre a morte do amigo Blake: “O clichê do rock foi encontrado morto nesta manhã... A vida dele era tão sem graça. Será mesmo que não foi exagero?” (01:28’40’’). A fala da jornalista da tv reforça o ponto de vista do diretor, que durante toda a narrativa tentou passar o quão “sem graça” poderia ser a vida de Cobain em seus últimos dias e a situação de angústia que o levou à morte.
5 CONCLUSÃO
Após domínio teórico dos conceitos sobre mito e olimpianos, conclui-se que Kurt Cobain de fato foi alvo de dissecação da imprensa na época em que fazia sucesso com o Nirvana, nos anos de 1990. Ele conquistou uma legião de fãs e ganhou a aura heróica criada pelo olimpo midiático. Se em vida muito se ouvia falar dessa celebridade, após a sua morte, mesmo há mais de 10 anos, Cobain ainda é tema de manchetes de jornais, e alvo central de roteiros cinematográficos, como é o caso de Last Days.
Mas o filme de Gus van Sant foge aos padrões de cinebiografias tradicionais. Para começar, Last Days não conta especificamente a história do líder do Nirvana, como é deixado claro pelo diretor na mensagem final do filme. Mesmo assim, o personagem central (Blake) é criado fisicamente e psicologicamente idêntico a Cobain. Van Sant deixa nas entrelinhas a cinebiografia que Last Days possa ser.
Nota-se que o diretor não deixa pistas sobre a morte de Blake, o que frustra as expectativas dos fãs de Kurt Cobain, que esperam ver uma conclusão sobre a polêmica morte do ídolo. Definitivamente o diretor está preocupado apenas em retratar os motivos e a angústia que levam o seu personagem, e que eventualmente acontecia com Cobain, antes de morrer.
Não há especulação, catarse ou exageros. Em Last Days o personagem que se parece com Cobain não é querido, tão pouco aclamado como o músico era. O filme é construído para apresentar uma face de Cobain que nunca foi mostrada. No roteiro, o mito é humanizado e é trazida à tona a sua angústia e solidão, como um ser humano comum, longe do mundo das celebridades. Pode-se dizer que, em Last Days, Cobain sofre o processo de desmistificação, quando apenas os seus sentimentos humanos são ressaltados.
A grande aposta do diretor é fazer cenas longas, com o personagem triste a todo tempo, para que o espectador possa sentir, no ritmo sugerido por Eco e Tarkovski, o lado humanizado de Cobain, que sofria e que tinha motivos suficientes para desejar a morte.
O público tem dificuldade de identificar o que Van Sant quer dizer porque, exatamente, não diz. Exatamente quando desperta essa angústia no espectador é que o diretor emplaca o seu ponto de vista. Somente ao final do filme, com uma cena do amigo de Blake assistindo ao noticiário sobre a sua morte, é que Van Sant coloca uma frase dita pela jornalista: “Será que ele não tinha motivos suficientes para se matar?”.
Mesmo que o personagem central não seja diretamente Cobain, mas Blake, o diretor faz referências a todo instante sobre a vida do músico. Por isso Last Days pode ser considerado como uma cinebiografia, porque mesmo de uma maneira subjetiva, a história do músico é contada ali, e a angústia de Blake é criada a partir da vida que Cobain levava. Embora a narrativa fuja às características desse gênero, os que conhecem a história do músico percebem claramente à alusão que é feita à celebridade que foi alvo da criação do personagem central, a começar pela aparência física.
Outra característica de Last Days, e que já é traço do diretor, é apresentar um filme cujos recursos cinematográficos representem grande parte da narrativa. Os movimentos de câmera, a circularidade e a duração das cenas fazem com que a narrativa dispense diálogos para não contrariar ao objetivo central do filme.
Kurt Cobain e o Nirvana já foram alvo de vários documentários lançados após a morte do músico em abril de 1994. Como cinebiografia ou como filme com uma narrativa fictícia sobre o que teria sido os últimos dias de Cobain, Last Days foi o primeiro a ser lançado, em 2005, após 11 anos da morte do músico. Para lançamento em 2009, já está sendo preparado um roteiro para o filme que será baseado na história real de Kurt Cobain, narrada por Charles Cross, na biografia Mais pesado que o céu.
Uma comparação entre o que foi aqui abordado sobre Last Days e esta nova cinebiografia, na qual um ator irá interpretar Cobain, pode gerar uma discussão e trabalho futuro interessante em torno de roteiros, gêneros e formas como são interpretadas a morte do músico, bem como de outras cinebiografias associadas ao rock.
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FILMOGRAFIA
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Publicado por: Cínthia Demaria
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