GENTE É PRA BRILHAR: a TV Pinel e sua luta por liberdade, democracia, saúde e arte

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1. RESUMO

Esta pesquisa propõe um percurso político, histórico e social com reflexões no campo da comunicação e saúde para entender a atuação da TV Pinel e pensar suas possíveis contribuições ao jornalismo, a novas práticas de comunicação comunitária e à formação dos profissionais de comunicação. A TV Pinel foi uma mídia comunitária que atuou, entre 1996 e 2014, no contexto da Reforma Psiquiátrica e da democratização da comunicação. Suas produções tinham o objetivo de romper estigmas, mostrar o potencial criativo de seus usuários por meio da inclusão de suas linguagens e de promover um trabalho artístico, cultural e psicossocial. O contexto das políticas em saúde mental no Brasil, o lugar social da loucura, a relação entre mídias hegemônicas, a desigualdade e os estigmas sobre transtornos mentais e a formação de mídias comunitárias foram alguns dos principais temas traçados pela pesquisa para constituir um estudo acerca da TV Pinel.

Palavras-chave: comunicação; saúde; democracia.

ABSTRACT

This research proposes a political, historical and social journey with reflections in the field of communication and health to understand the performance of TV Pinel and think about its possible contributions to journalism, new practices of community communication and the training of communication professionals. TV Pinel was a community media that operated between 1996 and 2014, in the context of the Psychiatric Reform and the democratization of communication. Its productions aimed to break stigmas, show the creative potential of its users through the inclusion of their languages, and promote artistic, cultural, and psychosocial work. The context of mental health policies in Brazil, the social place of madness, the relationship between hegemonic media, inequality and stigmas about mental disorders, and the formation of community media were some of the main themes traced by the research to constitute a study about TV Pinel.

Keywords: communication; health; democracy.

2. Introdução

Comunicar sobre saúde mental no Brasil é essencial para o reconhecimento da importância desse tema para a saúde pública da população. O país apresenta o maior número de pessoas que vivem com ansiedade – são cerca de 18,6 milhões de pessoas que vivem com algum tipo de transtorno de ansiedade – e o segundo das Américas com o maior número de pessoas que vivem com depressão – são cerca de 5,8% da população (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2017). Esses dados retratam, ainda, uma pequena porção da real problemática relacionada à saúde mental brasileira em um país que não dispõe de dados significativos sobre esse cenário (ONOKO-CAMPOS, 2019).

Muitos podem ser os motivos apontados para os altos índices de transtornos mentais entre a população brasileira, como a violência; a instabilidade financeira; a desigualdade social; o estilo de vida insalubre imposto pelas cidades; o crescimento populacional em áreas urbanas; um sistema de saúde sucateado e instabilizado pela ascensão de governos ultraconservadores e de extrema-direita que não se comprometem com a aplicação de políticas públicas de qualidade em saúde; além do surgimento de uma pandemia capaz de modificar interações sociais e de trazer a insegurança e o medo à vida de muitas pessoas. Em um contexto marcado pelo capitalismo, pelo ultraliberalismo, por uma crise social e sanitária e por uma sociedade repleta de desigualdades, a população pobre e periférica é a mais vulnerável e a que mais sofre com transtornos de ordem psíquica (ONOKO-CAMPOS, 2019).

Jornalistas e comunicadores têm um papel imprescindível em expor, reportar e denunciar esse contexto de desigualdades em saúde, em direitos e em acesso à democracia por meio de uma atuação aprimorada no campo da comunicação e saúde. No entanto, a atuação desses profissionais e de diversas mídias, muitas vezes, contribuem para a propagação de estigmas que perpetuam a exclusão de pessoas e de suas linguagens e vivências. É, com isso, a partir desse contexto e de um cenário de crises sanitária e social, com o surgimento de uma pandemia, e da evidente precariedade da cobertura jornalística em saúde no Brasil, que se constitui esta pesquisa. São avanços e retrocessos, inclusões e desigualdades, representações da saúde e estigmas que tomaram as linhas dos seguintes capítulos e a intenção de constituir um trabalho que possa contribuir para um jornalismo e uma comunicação mais humanizados e comprometidos com a democracia e a liberdade das pessoas.

Esta pesquisa propõe um percurso político, histórico e social, entre os campos da comunicação e da saúde, a fim de pensar, apresentar e propor ideias que rompam com práticas de representações de transtornos mentais programadas em reproduzir estigmas a partir do que é diferente, marginal e periférico. Para isso, a pesquisa constituiu-se de diferentes eixos, essenciais para a compreensão do contexto histórico e social da saúde mental, da Reforma Psiquiátrica, das lutas pela hegemonia e poder social sobre a loucura e para o entendimento do que seriam as mídias hegemônicas, suas relações com a desigualdade e a importância das mídias comunitárias.

Pensar o papel de uma mídia comunitária, aliás, é o cerne e um dos objetivos finais desta pesquisa. Anteriormente, a intenção inicial com este trabalho de conclusão de curso, abordada em metodologia da pesquisa, era fazer uma discussão dentro do campo da comunicação e saúde. Com a contribuição da orientadora desta pesquisa, Sandra Korman, foi decidido abordar a experiência em comunicação e em saúde formada pela TV Pinel, uma TV comunitária criada pelo então Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, que atuou entre os anos de 1996 e 2014. Uma experiência em comunicação comunitária a qual o autor conheceu, primeiro, por meio da disciplina de Mídias Locais ministrada pelo professor Gabriel Chavarry Neiva, na PUC-Rio. A TV Pinel desempenhou um papel central, no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da democratização da comunicação, para incluir pessoas marginalizadas e invisibilizadas por uma série de processos sociais, culturais, históricos e políticos. Por meio de uma metodologia participativa, essa TV comunitária soube desenvolver e mostrar o potencial criativo de seus usuários, promover um trabalho, sobretudo, cultural, com o objetivo de acabar com os preconceitos contra a loucura, contra os transtornos mentais. Trabalhando por meio da formação de novas subjetividades (MIRANDA, 2002), de autonomia e de autoestima, a TV Pinel representou uma experiência em saúde e em acesso a direitos que transformou a vida e a vivência de seus usuários. Apesar de não haver desenvolvido uma atuação intencionalmente terapêutica, era evidente que sua forma de atuar como promotora de direitos dava a seus usuários uma nova chance de compartilhar a vida em sociedade.

Para contar a história dessa “TV doida” e tão importante para a história da Reforma Psiquiátrica e de tantas pessoas que por ela foram atravessadas, foram consultados, para a realização desta pesquisa, parte do acervo da TV Pinel e entrevistadas três pessoas que tiveram uma importância imprescindível para a criação da TV Pinel. Noale Toja, Ricardo Peret e Valter Filé proporcionaram a esta pesquisa um olhar apropriado e sensível sobre os trabalhos que eram desempenhados pela TV comunitária, além de terem vivenciado, na prática de produção da TV Pinel, o desenvolvimento de uma experiência única em saúde e em comunicação no Brasil.

Antes, ainda, de analisar o potencial disruptivo da TV Pinel em relação aos preconceitos e às ideias manicomiais, esta pesquisa se inicia com uma breve contextualização sobre o que foi e como ocorreu a Reforma Psiquiátrica Brasileira e sua importância para as pessoas e para a constituição de suas cidadanias por meio de novas políticas públicas em saúde no Brasil. Esse primeiro capítulo também evidencia como, ultimamente, os avanços da luta antimanicomial têm sido marcados pela atuação de governos conservadores com suas pautas retrógradas para todo o campo da saúde brasileira e, em especial, da saúde mental.

O segundo capítulo é reservado a uma análise teórica sobre o lugar social da loucura a partir das obras de Michel Foucault e de alguns comentadores. A profundidade da pesquisa empreendida por Foucault, em especial, a partir de História da Loucura na Idade Clássica (1978), demonstra como o processo de exclusão de corpos e de linguagens concebidos loucos esteve atrelado a outros processos históricos de marginalização de indivíduos e de como a psiquiatria se legitimou sobre a loucura a partir de suas concepções e poderes para definir o que seria a “doença mental”.

Essas relações de poder sobre a loucura ganham, além disso, uma nova perspectiva com as ideias de Antonio Gramsci e de alguns comentadores de suas obras no terceiro capítulo. A concepção gramsciana de hegemonia e a disseminação de valores pela mídia, no contexto das lutas sociais, aprofundou esta pesquisa no campo da comunicação e saúde para lançar o entendimento de como a mídia participa ativamente no processo de estigmatização das pessoas e, enfim, da loucura.

De posse desses conhecimentos e reflexões, o quarto capítulo aborda como, de fato, o jornalismo pode e consegue produzir estigma sobre as pessoas e, de maneira especial, sobre aqueles indivíduos que vivem com transtornos mentais. Por meio – não exclusivamente – da produção de notícias que carregam uma concepção ideológica e hegemônica, a produção jornalística atua, muitas vezes, de forma a segregar pessoas que e as marginaliza por meio da desinformação, da propagação de ideias desumanizadoras e textos sensacionalistas. Ainda nesse capítulo, foi feito um pequeno estudo de caso de notícias veiculadas pela Revista Veja, que evidenciam a propagação de termos e ideias retrógrados, estigmatizantes e ultrapassados que servem, muitas vezes, à ruptura dos avanços concedidos pela Reforma Psiquiátrica.

No quinto capítulo, são apresentados uma breve contextualização sobre o surgimento das mídias comunitárias e, em seguida, das TVs comunitárias e seus papéis de dar voz a quem não tem e de promover a participação popular e a defesa da justiça social. A TV Maxambomba, uma TV popular que atuou em Nova Iguaçu a partir dos anos 80 e que contou com a participação de Valter Filé e de Noale Toja, foi lembrada, neste capítulo, por haver sido uma das mais importantes iniciativas em comunicação popular do Brasil e por ter transmitido alguns de seus legados à TV Pinel.

No sexto e último capítulo, é abordada a história da TV Pinel. As falas de Peret, Toja e Filé, nesta parte da pesquisa, se entrecruzam com relatos, reflexões e observações transmitidos por outros autores. O encontro dessas vozes permitiu que o autor desta pesquisa pudesse contar como se constituiu o nascimento, a atuação e o fim da TV Pinel. Foram destacadas as atuações dos próprios usuários da TV Pinel como produtores de conteúdo, de subjetividades, e de como, por meio da produção de suas próprias narrativas e da inclusão de suas linguagens, eles conseguiam transformar suas vidas e suas formas de encarar a existência, o mundo.

Assim, pensar como uma prática de comunicação, a TV Pinel, pôde proporcionar uma vida melhor e mais digna a seus usuários capacitou reflexões importantes para esta pesquisa a fim de propor ideias e, por exemplo, afirmar o quanto é imprescindível incluir profissionais de comunicação e, de maneira especial, jornalistas, nestes temas por meio de uma formação mais humanizada e atenta aos contextos da saúde. A intenção dessa pesquisa é somar novas vozes e novos olhares em comunicação e saúde às forças da luta antimanicomial, à defesa dos direitos humanos, do Sistema Único de Saúde – e seus princípios de universalidade, integralidade e equidade – e preservar a história e a memória da TV Pinel.

3. Capítulo 1 - Democracia, Reforma Psiquiátrica, SUS e Saúde Mental no Brasil: Reflexos de avanços

Por uma sociedade sem manicômios

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o bem-estar mental como um componente fundamental para a integralidade da saúde humana. Em seu Plano de Ação sobre Saúde Mental (2013 – 2020), a instituição apresenta o contexto mundial da saúde e dos transtornos mentais, seus determinantes e consequências. Dependendo de contextos locais, algumas pessoas podem correr um risco significativamente maior de sofrerem problemas de saúde mental, de acordo com os contextos sociais e econômicos em que vivem, o que as leva ao desamparo e à marginalização.

[...] ‘A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não somente a ausência de doenças e enfermidades’. A saúde mental, tal como outros aspectos da saúde, pode ser afetada por uma série de fatores socioeconômicos [...] que devem ser abordados mediante estratégias integrais de promoção, prevenção, tratamento e recuperação em uma abordagem integral do governo. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2013, p. 7, tradução nossa)

De acordo com o mesmo documento, devido a estigmas estruturais e à discriminação, pessoas que vivem com transtornos mentais podem sofrer violações frequentes de direitos humanos e têm um acesso à saúde restringido e precarizado pela condição social em que vivem.

No Brasil, a saúde mental ainda vive avanços, retrocessos e desafios. O processo de redemocratização política, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a Reforma Psiquiátrica, eventos recentes na história contemporânea brasileira, “permitiram a criação de redes assistenciais ao longo e ao largo do país com grande expansão de serviços comunitários” (ONOKO-CAMPOS, 2019, p. 1). Esses serviços comunitários em saúde mental são oferecidos, em parte, pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – “a principal estratégia do processo da reforma psiquiátrica no Brasil” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 9) –, uma rede de atenção estratégica constituída por uma equipe multiprofissional que realiza atendimento, também, a pessoas com transtornos mentais. Esse modelo ligado ao SUS, inverteu a ordem do antigo modelo asilar-manicomial e hospitalocêntrico – anterior à reforma – reproduzido por hospitais psiquiátricos. Pelos CAPS, há um trabalho de reintrodução dos indivíduos na sociedade.

Os CAPS, assumindo um papel estratégico na organização da rede comunitária de cuidados, farão o direcionamento local das políticas e programas de Saúde Mental: desenvolvendo projetos terapêuticos e comunitários, dispensando medicamentos, encaminhando e acompanhando usuários que moram em residências terapêuticas, assessorando e sendo retaguarda para o trabalho de Agentes Comunitários de Saúde e Equipes de Saúde da Família no cuidado domiciliar. (...) O objetivo do CAPS é oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e o fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de atendimento de saúde mental criado para ser substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 12-13, grifo nosso)

O primeiro Centro de Atenção Psicossocial do Brasil foi o CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira, inaugurado em março de 1986, em São Paulo, SP (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004). Esse e tantos outros CAPS foram criados, inicialmente, graças a luta de diversos trabalhadores e trabalhadoras de saúde mental, integrantes de movimentos sanitários, famílias, sindicalistas, membros de associações profissionais e pessoas com histórico de internações psiquiátricas, que denunciavam a situação desumana e até insalubre dos hospitais psiquiátricos pelo país (BRASIL, 2005). Ao longo do tempo, outros serviços substitutivos, como os Núcleos de Atenção Psicossocial (Naps) e os Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams), agregaram ainda mais força ao movimento, além da posterior integração ao Sistema Único de Saúde1. O desenvolvimento de “trocas afetivas, simbólicas, materiais, capazes de favorecer vínculos e interação humana” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 18) são a égide da criação e do funcionamento dos CAPS porque permitem, sobretudo, a inserção social de pessoas que vivem com transtornos mentais.

As bases para a criação de programas de saúde mental no Brasil, como os CAPS, são regidas pela lei 10.216/2001 – também conhecida como a lei da Reforma Psiquiátrica ou do modelo assistencial de saúde mental – sancionada, em abril de 2001, pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. A lei foi criada graças a um projeto apresentado pelo então deputado federal Paulo Delgado, do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1989. A proposta se inspirava no modelo italiano de reforma psiquiátrica promovido pelo psiquiatra Franco Basaglia, tratava sobre os direitos de pessoas com transtornos mentais e determinava o fechamento progressivo de hospitais psiquiátricos e instituições manicomiais. Dentre seus artigos e incisos, a lei “derruba” o antigo modelo hospitalar de internação e valoriza práticas de reinserção social dos indivíduos que vivem com transtornos mentais, além de trazer o Estado para o cerne do desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental, como se observa:

É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais. (BRASIL, 2001, n.p.)

Todo esse avanço brasileiro em políticas de saúde mental também esteve atrelado ao histórico da reforma psiquiátrica que foi iniciada em 1978 com a reivindicação de movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), pelos direitos dos pacientes psiquiátricos. É, na verdade, pela luta desse movimento específico que são feitas uma série de denúncias, naquela época, sobre a violência produzida em manicômios, contra a hegemonia de uma rede privada e lucrativa de saúde mental no país e novos questionamentos sobre o saber-poder psiquiátrico. Essa quebra de paradigmas permitiu a ruptura com modelos de atenção psiquiátrica e instituições que, muitas vezes, propagavam a tortura – como o que aconteceu na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro –, que “não passavam de empresas de saúde, revestidas de um saber psiquiátrico, usando o paciente com a finalidade de lucro em nome da ordem social” (BERNARDO, 1992 apud MACHADO, 2004, p. 484). Enfim, foi graças a toda a mobilização gerada por este e tantos outros movimentos é que se permitiu criar as primeiras propostas para a reorientação da assistência em saúde mental no Brasil. O lema “Por uma sociedade sem manicômios”, criado após o II Congresso Nacional do MTSM, em Bauru, São Paulo, em 1978, permanece como um dos símbolos da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da luta antimanicomial (BRASIL, 2005).

Em 1990, outro importante evento marcou a luta antimanicomial nas Américas com a formulação da Declaração de Caracas. Organizações, associações, autoridades, profissionais de saúde mental, legisladores e juristas, reunidos durante a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, evento realizado pela Organização Pan-Americana da Saúde, declararam, entre outras proposições, a importância da revisão crítica do papel hegemônico e centralizador de hospitais psiquiátricos na prestação de serviços, dos direitos humanos e da permanência de indivíduos em seus meios comunitários. O documento também assinalou a importância dos meios de comunicação na hora de representar a reestruturação da assistência psiquiátrica a partir das reformas que eram tomadas não apenas o Brasil, como entre os vários outros países americanos (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 1990).

Entretanto, todas essas políticas que permitiram o avanço do campo psicossocial no Brasil estão sendo paulatinamente sucateadas nos últimos anos e há quem indique o início de um movimento “contrarreforma psiquiátrica” no Brasil.

3.1. Reflexos de Retrocessos e Desafios

Ao longo de um período de intensas rupturas de políticas progressistas, golpes e tentativas de desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), uma série de medidas que foram e estão sendo criadas tentam formar uma “nova” política nacional de saúde mental (PNSM) que contrariam a Constituição Federal, as leis 8.080/90, 8.142/90, 10.216/2001 – leis que, respectivamente, regulam as ações e serviços de saúde, a constituição do SUS e os direitos e a proteção das pessoas que vivem com transtornos mentais – e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – promulgado no Brasil pelo Decreto n. 592/1992 (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020). Tais retrocessos acompanham o processo político que envolveu o golpe que depôs a presidenta Dilma Rousseff, em maio de 2016, medidas tomadas pelo governo de Michel Temer, que a sucedeu, e, depois, a eleição do atual presidente Jair Bolsonaro com suas pautas retrógradas e antidemocráticas, ou seja, o Brasil vive desde então intensas reorientações de políticas e de ameaças à continuidade democrática que, em vários aspectos, afetam toda a conjuntura nacional de saúde pública.

De acordo com um estudo documental de análise política, gerado com dados públicos e de bases de dados quantitativos, conduzido pelos pesquisadores Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Gabriel Delgado (2020), entre os anos de 2016 e 2019, foram 15 documentos normativos – dentre eles, há portarias, resoluções, uma nota técnica, um edital e um decreto presidencial – que promoveram um redirecionamento da PNSM. Segundo o estudo, alguns dos primeiros efeitos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)2 foi o incentivo à internação psiquiátrica, à separação da política sobre álcool e outras drogas de outras políticas voltadas aos demais transtornos mentais – com o surgimento da “política nacional sobre drogas”, que apresenta sério caráter proibicionista e punitivista para o uso de álcool e outras drogas (BRASIL, 2019) – e a “tendência de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária. As mudanças propostas configuram um retrocesso na política de saúde mental sustentada de acordo com a lei 10.216/2001” (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020, p. 1-3), ou seja, está havendo um retorno ao modelo manicomial.

Segundo os pesquisadores, o primeiro marco para a “nova” PNSM foi o estabelecimento da Resolução 32 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) (BRASIL, 2017a), de 14 de dezembro de 2017, com novas diretrizes para o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial. Pela primeira vez, desde a Reforma Psiquiátrica Brasileira, o hospital psiquiátrico volta à cena com maior financiamento e como parte integrante do cuidado oferecido pela RAPS na nova lei. Além disso, a resolução inclui os hospitais-dia, algo parecidos com os CAPS, mas sem a importante lógica psicossocial do território em que os usuários do sistema de saúde receberiam um cuidado de acolhimento junto às suas realidades de moradia, trabalho, lazer e vínculos familiares.

(...) Temos aqui, concretamente, um amplo financiamento para um modelo de tratamento pautado na reclusão prolongada, com possibilidade de institucionalização contínua da população (...). É algo paradoxal que, mesmo em face de uma diminuição de recursos drástica como a determinada pela EC 953, que ameaça a própria existência do SUS, existam recursos para financiar amplamente as comunidades terapêuticas e os hospitais psiquiátricos. Será importante mapear a origem destes recursos e a provável desassistência que esta reorientação acarreta. (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020, p. 9)

Outra importante mudança legislativa para a PNSM veio com a publicação da portaria do Ministério da Saúde 3.588 (BRASIL, 2017b), em 21 de julho de 2017, que institui o CAPSad IV (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas IV) – que “desvirtua a lógica de cuidado dos demais CAPS ao se apresentar como um serviço capaz de prestar ‘assistência a urgências e emergências’, em detrimento da atenção à crise pautada no vínculo terapêutico, como até então” (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020, p. 7) –, com mais recursos para hospitais, aumento do tamanho de Residências Terapêuticas e de número de leitos de saúde mental em hospitais gerais (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020). De novo, observa-se a volta do modelo asilar-hospitalar, que ignora vínculos, a humanização dos indivíduos, o cuidado territorial, que visa a abstinência às drogas como objetivo principal da nova política (ANTUNES, 2020) e se apresenta como uma ameaça de desmonte já anunciada aos CAPS:

Uma estrutura com estas características não condiz com o referencial de cuidado pautado nos vínculos, na humanização, no cuidado de base territorial e na construção de projetos terapêuticos singularizados. (...) O sujeito seria cuidado (ou receberia uma intervenção) no local onde faz uso das substâncias, (...) como se o território, e, portanto, a própria existência do usuário de álcool e outras drogas, só se desse no local de uso. Ainda, como se estas pessoas não fossem mais nada na vida além de usuários de drogas. Esta indicação ainda pode apontar para um projeto de intervenção por meio do recolhimento compulsório destas pessoas, capaz de servir como grande porta de entrada para internações compulsórias em comunidades terapêuticas. (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020, p. 7)

Vale ressaltar que as mudanças nas políticas sobre drogas têm, em meio a aqueles documentos normativos, uma das mais significativas perdas pós-Reforma Psiquiátrica, como ressalta Delgado (2019), um dos pesquisadores, em uma entrevista:

O retrocesso na política sobre drogas é o ponto mais sensível dessa catástrofe. O paradigma dos direitos humanos, tolerância, combate ao estigma e redução de danos, na política de drogas, tornou-se, desde 2003, o desafio constate e cotidiano para os trabalhadores do campo da Reforma Psiquiátrica. (...) Esta aposta foi estrepitosamente derrotada pela ideia quase delirante de confinamento de todos os “drogados”. O golpe de 2016 rompeu o equilíbrio instável entre as visões de controle/confinamento e de acolhimento/inclusão social no âmbito da política de drogas. (...) É aqui, no front da política de drogas, nessa terra sem lei pelo excesso de lei, que temos o mais difícil enfrentamento na resistência ao desmonte da Reforma Psiquiátrica (n.p., grifo no original)

Outro documento que merece destaque pelo tamanho retrocesso em PNSM foi a Nota Técnica n. 11/2019 da Coordenação Geral de Saúde Mental e Álcool e Outras Drogas pertencente ao Departamento de Ações Programáticas Estratégicas da Secretaria de Atenção à Saúde no Ministério da Saúde (BRASIL, 2019), publicada em 4 de fevereiro de 2019. Basicamente, o texto apresentado questiona frontalmente o modelo psicossocial voltado para o cuidado comunitário na PNSM, incentiva o aumento do número de leitos psiquiátricos e apresenta a eletroconvulsoterapia – método empregado como instrumento de tortura e punição em manicômios anteriores à Reforma Psiquiátrica Brasileira – como exemplo de “disponibilização do melhor aparato terapêutico” (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020, p. 11).

Instâncias de deliberação e controle social do SUS, como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), repudiaram as propostas de revisão das políticas de saúde mental. Além disso, entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – que participou ativamente no processo de construção do SUS –, conselhos profissionais de psicologia e de enfermagem, a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), pesquisadores do campo de saúde mental, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público e diversos parlamentares já questionaram muitas – senão todas – as medidas tomadas durante o processo de contestação do modelo psicossocial. Um retrocesso ao campo da saúde mental no país, como aponta o pesquisador e psiquiatra Pedro Delgado, em outra entrevista (ANTUNES, 2020, n.p.):

‘sempre houve uma compreensão de que a atenção psiquiátrica no SUS tinha que ser apenas internar, tratar emergências e fazer ambulatórios para distribuição de medicamentos, que é uma visão muito reducionista, mas infelizmente defendida pelas instituições médicas’ (...) ‘O Ministério [da Saúde] aponta claramente que nessa proposta de desmonte da saúde mental comunitária no Brasil ele tem tido assessoria da Associação Brasileira de Psiquiatria, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira. Isso é absolutamente lamentável, mas não é surpreendente. Essas entidades têm tido uma posição extremamente conservadora na saúde pública, não só na saúde mental’ (...) ‘A luta antimanicomial é um movimento muito forte, que ganhou a adesão da população, porque ela tem a memória das atrocidades do modelo manicomial, da psiquiatria manicomial no Brasil. A população não vai apoiar esse retrocesso’

Para Ariadna Patricia Alvarez, professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), toda a política de desmonte da saúde mental no Brasil tem relação com o processo de “estigmatização estrutural que oprime os usuários da rede de saúde mental” (ANTUNES, 2020, n.p.). O estigma estrutural relacionado a transtornos mentais é, também, uma influência para a alteração ou a criação de leis mais coercivas, como as alterações legislativas mencionadas e publicadas nos últimos anos pelo governo (AZEVEDO, 2017). Essas leis são, em suma, contra indivíduos que vivem com transtornos mentais, contra políticas sociais e contra o surgimento de futuras ações que possam melhorar essa realidade. A constituição dessas barreiras são, porém, muito antigas e fazem parte de um processo histórico que tange toda a humanidade, são os olhares sobre a loucura que a fazem ser tão temida e, ao mesmo tempo, tão isolada pelos poderes hegemônicos e homogeneizantes da sociedade. É o lugar da loucura, o lugar social destinado aos transtornos mentais, que ameaça a vida e a vivência de milhares de cidadãos, indivíduos, histórias, perspectivas e mundos.

4. Capítulo 2 - O Lugar Social da Loucura

A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

(ASSIS, Machado de, 1882, p. 6)

Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não espécies, não há raças de loucos; há loucos só.

(BARRETO, Afonso Henriques de Lima, 1993, p. 39)

A loucura é atravessada por uma constelação de saberes externos e ocupa um lugar social definido pela história. Quer seja o saber clínico e psiquiátrico, quer seja a moral e a religião ou as diversas formas de controle e dominação de pessoas que vigoram na sociedade pós-moderna – como a coerção das leis e da política de saúde mental no Brasil. Marcada pela globalização e pelo sistema capitalista, há um conjunto de discursos sociais e poderes que determinam o que é ser “louco” e quais são os destinos das pessoas que vivem com transtornos mentais. Compreender esse contexto pressupõe um entendimento anterior e atravessado por séculos de diferentes concepções que jogavam o louco ora a horizontes sociais de exclusão, ora a misticidade, ora a um universo de revelação.

Em A História da Loucura na Idade Clássica (1978), Michel Foucault apresentou um novo estilo de pensar a loucura. Revestido de uma “poderosa política de pensamento” (LOBOSQUE, 2018, p. 332), o autor aborda a loucura e as visões a ela empregadas em um recorte histórico que compreende a Idade Média, o Renascimento e a Idade Clássica por meio de uma perspectiva exterior, a de um filósofo e, não, a do conhecimento clínico. Desde as artes visuais, como destaca Foucault (1978, p. 13), passando pelas pinturas de Hieronymus Bosch, como “Navio dos Loucos” (1490-1500) e “Extração da Pedra da Loucura” (1475-1480), pelas classificações terapêuticas e o internamento psiquiátrico e até pela literatura, Foucault entoa, em sua obra, as múltiplas verdades que estiveram no entorno do que seria a loucura e o que coube ao sujeito “louco” na sociedade ao longo do tempo.

Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. (FOUCAULT, 1978, p. 16, grifo nosso)

O olhar de Foucault se articulou em meio a um recorte histórico que se estabeleceu mais precisamente entre os séculos XVII e XVIII, ou seja, mesmo quando não existiam classificações técnicas de transtornos mentais. As bases para o diagnóstico psiquiátrico moderno começaram a surgir a partir da atuação de Philippe Pinel, em 1798, após a publicação da “Nosografia Filosófica” pelo médico francês (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008). Antes, os indivíduos que viviam com transtornos mentais eram associados a condições sociais de pessoas que, muitas vezes, viviam com outras enfermidades, como a lepra, e que, por essa condição, eram marginalizadas, viviam em um estado moral de profunda exclusão (FOUCAULT, 1978).

(...) será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho [a loucura], que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença. (FOUCAULT, 1978, p. 12)

Segundo Foucault (2006), na Idade Média, a loucura, ainda que associada a enfermidades, era presente “no horizonte social como um fato estético ou cotidiano” (p.163). Naquela época, como destaca o autor, o sujeito que apresentasse algum transtorno mental pertencia, de certa forma, a um contexto de uma experiência trágica que o identificava como um indivíduo que diz a verdade de uma forma extravagante, um revelador. Havia, naquele horizonte social, um lugar para o “louco” e o seu discurso, sua linguagem, além de um reconhecimento presente no cotidiano da Idade Média (PROVIDELLO, 2013, p. 1518). Já a partir da Renascença, ocorre uma mudança significativa do lugar social ocupado pela loucura, uma ruptura com a Idade Média.

Presente na vida cotidiana da Idade Média, e familiar ao seu horizonte social, o louco, na Renascença, é reconhecido de outro modo; reagrupado, de certa forma, segundo uma nova unidade específica, delimitado por uma prática sem dúvida ambígua que o isola do mundo sem lhe atribuir um estatuto exatamente médico (FOUCAULT, 1978, p. 121)

Essa quebra promovida pelo surgimento de um novo paradigma significou uma distinção de saberes acerca da loucura. É importante mencionar que, dentro da pesquisa empreendida por Foucault em sua obra, o autor esclarece que “a loucura não é um objeto natural, existente desde a aurora dos tempos e esperando para ser entendido pelo homem, mas uma criação do próprio homem” (PROVIDELLO, 2013, p. 1517). Todas aquelas constituições de saberes eram, portanto, criadas porque existiam sociedades que estruturavam uma lógica de inclusão ou exclusão de corpos, ou seja, para Foucault, a loucura só existe em sociedade, ela não é natural, mas concebida pela humanidade.

O que Foucault evidenciou, após o surgimento do Renascimento, foi a atribuição ou um processo de criação de um discurso novo em relação à loucura, que a desqualificava. Esse processo ocorre, primeiro, sob a identificação de um grupamento especial de indivíduos já qualificados pela égide da loucura e, depois, pelo enredamento da loucura a uma linguagem falsa e incapaz de dizer a verdade. A loucura é, portanto, “capturada por um discurso amplo que a desqualificava enquanto linguagem, pois a enredava a um jogo de forças com a razão, razão essa que se tornava ponto alto do regime de verdades ocidental” (PROVIDELLO, 2013, p. 1520). Abre-se, neste momento, um caminho que leva à exclusão da loucura e de sua linguagem, além da interdição de uma miríade de outras linguagens.

Na Idade Clássica, dando continuidade a aquele período, a domesticação e a dominação da loucura se tornam práticas comuns que culminam no processo de criação de asilos, os manicômios, os hospitais gerais, as workhouses. Segundo o próprio filósofo, “(...) o século XVII criou vastas casas de internamento (...) mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se fechado numa delas, por alguns meses” (FOUCAULT, 1978, p. 55). Um importante episódio citado por Foucault no processo de domesticação da loucura foi o estabelecimento do Hospital Geral de Paris para o internamento de pessoas que viviam em situação de pobreza. Resignada à margem da sociedade por não encontrar um lugar no mundo do trabalho, a loucura passa a ser enclausurada em hospitais junto a indivíduos – e linguagens – que viviam condições semelhantes, como mendigos, bruxos, “libertinos”, com “uma perspectiva correcional, não terapêutica” (LOBOSQUE, 2018, p.327). Essa nova ruptura de saberes, que acompanhou a passagem dos séculos, é evidenciada pelo autor em duas obras distintas e, nesse mesmo sentido, complementares:

Na Idade Média, e depois no Renascimento, a loucura está presente no horizonte social como um fato estético ou cotidiano; depois, no século XVII – a partir da internação – a loucura atravessa um período de silêncio, de exclusão. Ela perdeu essa função de manifestação, de revelação que ela tinha na época de Shakespeare e de Cervantes (FOUCAULT, 2006, p. 163, grifo nosso)

A prática do internamento designa uma nova reação à miséria, um novo patético – de modo mais amplo, um outro relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano em sua existência. O pobre, o miserável, o homem que não pode responder por sua própria existência, assumiu no decorrer do século XVI uma figura que a Idade Média não teria reconhecido. (FOUCAULT, 1978, p. 64, grifo nosso)

A medicina, a partir dessa lógica do internamento descrita por Foucault, logo desenvolve métodos de classificação dos transtornos mentais pautados em um entendimento cartesiano. Concebem a loucura como “uma espécie de movimento irracional posto em ação pela paixão. (...) O tratamento, em afinidade com essa concepção, consiste em corrigir o desarranjo desse movimento, de forma a devolvê-lo à ordem natural dos movimentos do mundo” (LOBOSQUE, 2018, p.328). Com isso, “é aqui, e somente aqui, que a loucura passa para o domínio da ciência, deixando de ser uma questão social, moral e jurídica de exclusão para ser uma questão médica de exclusão. Cria-se a doença mental” (PROVIDELLO, 2013, p. 1520, grifo nosso). Uma das práticas que caracterizaram os tratamentos utilizados contra a loucura naquela época foi a utilização da água e outros métodos como uma forma de organizar o “movimento desordenado” promovido pela loucura. Essas práticas criaram os nocivos e desumanos métodos que utilizavam duchas de água fria com o intuito de criar um controle sobre a pessoa considerada louca.

Ao longo do estabelecimento do internamento dos indivíduos que viviam com transtornos mentais, a loucura também começava a assimilar, pelo olhar da moral, o sentido religioso do pecado em uma comparação de razão e desrazão, que é mascarada pela concepção da oposição de bem e mal. Nesse sentido, por exemplo, a ducha de água fria, que antes era empregada com o intuito de cura, passa a ser utilizada de maneira punitiva em asilos, com o objetivo de castigar a mente por meio do corpo (LOBOSQUE, 2018, p. 329).

Manter o louco no asilo à sua revelia será a forma de devolver-lhe a razão, e (junto com ela, apenas junto com ela!) a liberdade. Curar o louco consiste, pois, em reconstruir a sua consciência moral; o que se faz por sua inserção em todo um sistema de punições e recompensas. (...) O asilo se torna um microcosmo judiciário sob as ordens do médico: sempre que o doente fizer algo errado, será advertido e castigado, e a punição deverá ser repetida até que o louco interioriza a culpa. Quando o fizer, quando sentir arrependimento e remorso, está curado e novamente livre. Mais uma vez, psicologização, interiorização. (LOBOSQUE, 2018, p.329-330)

Nas políticas sociais empregadas para os transtornos mentais, o internamento e, consequentemente, o isolamento de pessoas do mundo social permanece desde a Idade Clássica. Com novas roupagens, seja em manicômios, seja em hospitais psiquiátricos, transtornos mentais continuaram a ser enclausurados e permanecem sendo tratados com “os vestígios da autoridade, da tutela, enfim da constelação culpa-castigo que marca toda a história da loucura desde o século XVII” (LOBOSQUE, 2018, p. 333).

Em um artigo publicado em 1964, chamado “A Loucura, a Ausência da Obra”, Foucault traça uma previsão possível sobre o futuro da loucura. Segundo ele, a loucura desaparecerá e restará – ou não – apenas a doença mental. Esse movimento é importante porque implica, sob o olhar da medicina, um controle farmacológico sobre sintomas psíquicos, quando se sabe que não necessariamente as possíveis causas e tratamentos para transtornos mentais têm origem e relação orgânica. Além disso, o filósofo aponta para um outro possível caminho para a loucura nas sociedades do futuro, o seu apagamento das culturas. Para Machado e Lavrador (2002), essa transformação – não puramente terminológica – indica o poder que a loucura carrega em sua essência, o potencial de criar novos paradigmas.

Se por um lado, cada vez mais a experiência da loucura vem sendo transformada nessa entidade clínica doença mental domesticada e normalizada, por outro lado, não desapareceu a face da loucura que tem a dimensão disruptiva, criadora, que embaralha os códigos nos forçando a pensar e sentir diferentemente. São os regimes de dominação contemporâneos que tentam calar e capturar os movimentos instituintes propagando uma pretensa hegemonia capitalista. (...) Podemos então falar que a tentativa de domar a loucura, a aprisionando sob a forma doença mental, não consegue apagar sua faceta de transgressão, que insiste em fugir e nos fazer fugir do que nos enclausura, que aciona em nós uma potência de criação. Um devir-loucura que não nos torna loucos e nem doentes mentais. (p. 51, grifo nosso)

Esses regimes de dominação contemporâneos podem ser o que Foucault considerou como os agentes capazes de desnaturalizar o objeto da loucura. Uma das primeiras considerações de Foucault foi a ideia de que há uma constituição histórica desse objeto. Foram rupturas e continuidades históricas, por meio de séculos e diferentes regimes de saber, que ditaram o lugar social da loucura, do louco e de sua experiência como invenção da humanidade (PROVIDELLO, 2013).

4.1. Os Desafios para a Desinstitucionalização da Loucura no Brasil

(...) observamos que o manicômio persiste,

que viver fora dele ultrapassa o geográfico e o visível,

que a exclusão não é característica fundamental definidora do manicômio,

já que se mantém grudada ao corpo, dentro da alma

(BAPTISTA, 2001 apud ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M., 2006, p. 304)

Como já mencionada, uma força antagônica à lógica manicomial no Brasil –herdeira de séculos de relações de dominação sobre a loucura e inserida na ideia do enclausuramento hospitalar –, surgiu em 1978 com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, um movimento sociopolítico no âmbito da saúde pública que introduziu no país, segundo Alverga (2006), “uma força discursiva” para a

crítica ao preconceito e valorização social da loucura, bem como a movimentação no espaço público como estratégia de ocupação do território físico e existencial da cidade. (...) Buscando romper com a racionalidade da lógica manicomial, revitalizando o cotidiano de usuários no espaço urbano, fazendo a cidade e seus moradores experimentarem inquietações, mal-estar, o novo. (p. 304, grifo nosso)

Tal acontecimento ligado às lutas sociais que seguiram o eixo da redemocratização brasileira, da criação da Constituição Cidadã de 1988 e dos direitos humanos convive, ainda hoje, com movimentos mantenedores de dispositivos psiquiátricos que alimentam o isolamento e a segregação de pessoas com transtornos mentais. Essas outras forças constituem o que Leila Machado e Maria Cristina Lavrador (2002) chamaram de “desejos de manicômio”:

(...) um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar. Esses manicômios se fazem presentes em toda e qualquer forma de expressão que se sustente numa racionalidade carcerária, explicativa e despótica. Apontam para um endurecimento que aprisiona a experiência da loucura ao construir estereótipos para a figura do louco e para se lidar com ele. (p. 46)

Atrelado a esse desejo, existem ainda os problemas estruturais no Brasil, como a falta de recursos financeiros para os modelos assistenciais substitutivos, como os CAPS, o SUS, além da pouca abrangência e qualificação profissional (ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M., 2006). Dessa forma, é possível enxergar que a Reforma Psiquiátrica está inserida em um jogo de interesses e estímulos capitalistas capazes de produzir o que os pesquisadores Alex de Alverga e Magda Dimenstein (2006) chamariam de “subjetividade manicomial”. Esse contexto atravessa, segundo eles, tanto “‘opressores’ quanto ‘oprimidos’, tanto ‘dominantes’ quanto ‘dominados’, e nos leva, na maioria das vezes, a estabelecer uma adesão a essas forças de dominação” (p. 305).

Diante de todo esse contexto, a importância da Reforma Psiquiátrica vai além de promover uma emancipação política e nos termos da lei, mas uma emancipação pessoal, social e cultural,

que permita, dentre outras coisas, o não-enclausuramento de tantas formas de existência banidas do convívio social; que passe a encampar todas as esferas e espaços sociais; que permita um olhar mais complexo que o generalizante olhar do igualitarismo; e que busque a convivência tolerante com a diferença (ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M., 2006, p. 303)

E que, na sociedade brasileira, os novos modelos trazidos pela Reforma Psiquiátrica sejam capazes de um dia promover uma desinstitucionalização da loucura, ou seja, o abandono de modelos psiquiátricos arcaicos que visam a normatização dos indivíduos. Ainda segundo Alverga e Dimenstein (2006), há, no aparente novo modelo de atenção psicossocial, ainda muito a ser feito e pequenas relações de poder que camuflam antigas práticas manicomiais. Tais relações estão nas relações administrativas e financeiras do sistema público de saúde, mas também em uma dimensão subjetiva e atrelada a desejos de controle e de manicômio. “Este movimento [da Reforma Psiquiátrica] requer rupturas, uma radicalização, e não uma superação que acaba por promover pactos entre o aparente novo e as articulações de manutenção de séculos de dominação” (p. 314).

De novas rupturas de saberes arcaicos necessitam não apenas o contexto da saúde pública nas sociedades contemporâneas, como no Brasil, mas também os regimes que dominam estigmas e preconceitos relacionados à loucura e à saúde mental. Um desses regimes é reinado pela mídia, que contribui para a formação de valores na sociedade. Ela é um dispositivo4 que participa ativamente na produção de normas, hierarquias, estigmas e mantém suas relações com a desigualdade social.

5. Capítulo 3 - Hegemonia e Relações de Poder: O surgimento das mídias e suas relações com a desigualdade

A realidade é, além disso, tudo aquilo em que ainda não nos tornamos, ou seja, tudo aquilo que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos, por intermédio dos mitos, das escolhas, das decisões e das lutas.

(Alfred Schmidt)

Das certezas que regem a sociedade, muitas são reflexos de um processo de retroalimentação entre a mídia, a cultura e sistemas de valores. Em meio a esse conglomerado de dispositivos, existem discursos sociais – com status de verdade – que ditam um padrão social repleto de marcadores hegemônicos, como gênero, classe, raça, sexualidade, geração, religião (SILVA; FONSECA, 2011). Tais marcadores moldam as relações sociais em padrões e são utilizados para organizar e valorar que tipo de sujeito e relações são aceitáveis e vistos como “normais”. Basta citar os seguintes exemplos de atributos que são tomados como parâmetros do normal para a constituição de regras que regem a sociedade, como cita Silva e Fonseca (2011, p.184): sujeitos brancos e que seguem padrões de beleza predominantemente brancos, casais monogâmicos e heteronormativos, famílias constituídas por laços sanguíneos, classe média, judaico-cristãos, entre outros atributos. No entremeio dessas constituições de sujeitos que são mais aceitos socialmente e vistos como “mais normais”5, há a constituição de grupos identitários e há convenções que também determinam em uma hierarquia o que é “centro” e o que é “marginal”, o que é “verdade” e o que é “mentira”, o que é “são” e o que “louco”.

De novo, para compreender melhor esse emaranhado de jogos de valores, culturas, discursos, imagens, poderes hegemônicos e, consequentemente, estereótipos – e como a mídia se insere nesse contexto –, é preciso entender a síntese e o fundamento da hegemonia na cultura. Para isso, o conceito de hegemonia desenvolvido pelo filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) ajuda a compreender os meandros pelos quais são concebidas as produções simbólicas nos meios de comunicação, “interferindo no imaginário social e nas disputas de sentido e de poder na contemporaneidade” (MORAES, 2010, p. 54). Para o filósofo italiano,

a hegemonia pressupõe a conquista do consenso e da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre as outras. (...) Segundo Gramsci, a hegemonia é obtida e consolidada em embates que comportam não apenas questões vinculadas à estrutura econômica e à organização política, mas envolvem também, no plano ético-cultural, a expressão de saberes, práticas, modos de representação e modelos de autoridade que querem legitimar-se e universalizar-se. (MORAES, 2010, p. 54-55, grifo nosso)

É possível notar, por exemplo, considerando os estudos de Foucault e, agora, de Gramsci, como os modos de representação da loucura, ao longo de todo um processo histórico que acompanhou a passagem de séculos e distintas sociedades, mudou sob a ótica e os interesses de classes econômicas, médicas, psiquiátricas, que eram hegemônicas e detinham poder. Essas classes hegemônicas, na perspectiva gramsciana, eram consideradas porque partiam de um processo histórico longo de ocupação de “espaços da superestrutura ideológico-cultural” (MORAES, 2010, p. 55), ou seja, de certa forma esses grupos dominavam mentalidades e valores, articulavam forças ideológicas e agregavam apoios, consensos, saberes semelhantes e, com isso, se afirmavam socialmente. Pelo olhar do próprio Michel Foucault, é possível observar como o surgimento da clínica6 está articulado com a formação de um modelo hegemônico ao longo de um processo histórico, que apresenta atravessamentos pela confissão religiosa, a clínica da medicina e até a clínica da psicologia.

Gramsci distinguiu que dentro das superestruturas hegemônicas há a presença de duas organizações, a sociedade política e a sociedade civil. A primeira apresenta um conjunto de mecanismos pelos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência, o aparelho de coerção estatal. Enquanto isso, a segunda mantém um conglomerado de instituições responsáveis pela propagação de ideologias, que compreendem “o sistema escolar, a Igreja, os partidos políticos, as organizações profissionais, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições de caráter científico e artístico etc.” (MORAES, 2010, p. 57, grifo nosso) – e por que não as instituições psiquiátricas?

Ao longo do primeiro capítulo desta pesquisa e, novamente, com as contribuições de Foucault e Gramsci, pode ser traçado um entendimento das relações entre o Estado – “a hegemonia revestida de coerção” (MORAES, 2010, p. 57) – e as instituições psiquiátricas. A psiquiatria, como aparelho médico e diagnóstico para a loucura, encontra no Estado o poder coercivo e a possibilidade de manutenção da lógica do enclausuramento e da repressão como tratamento consolidado historicamente (FOUCAULT, 1978) para sujeitos loucos. Nessa especialidade médica há um encontro, portanto, do que Gramsci demonstra como “a direção cultural e o consentimento social a um universo de convicções, normas sociais e regras de conduta, assim como a destruição e a superação de outras crenças e sentimentos diante da vida e do mundo” (MORAES, 2010, p. 55).

Continuando essa análise que permeia a história da loucura, a liderança psiquiátrica e seus modos de tratamentos consolidados em relação a transtornos mentais foram sucessivamente desconstruídos após o nascimento da Reforma Psiquiátrica, que, na lógica gramsciana, se constituiu também como uma reforma moral e cultural que abriu “caminho a novas premissas éticas e pontos de vista, capazes de agregar apoios e consensos e, assim, afirmar-se perante o conjunto da sociedade” (MORAES, 2010, p.56). Dessa forma, a Reforma Psiquiátrica, com um conjunto de novas políticas públicas em saúde mental, tornou-se durante anos, no Brasil, parte da ideologia do Estado – antes controlado hegemonicamente pela psiquiatria com seus modelos hospitalocêntricos. Formou-se, portanto, após sucessivos embates, naquele processo histórico de troca de modelos de tratamento de transtornos mentais e de ideologias, um novo tipo de Estado e uma nova ordem intelectual e moral.

O aparelho da hegemonia não está ao alcance apenas da classe dominante que exerce a hegemonia, como também das classes subalternas que a ela aspiram. (...) As classes subalternas podem conseguir, como projeto político, a separação de aparelhos ideológicos de sua aderência ao Estado, a fim de se tornarem agências privadas de hegemonia sob sua direção. (MORAES, 2010, p. 7)

No entanto, Gramsci, em sua teoria, também previa que nenhuma conquista de poder é imutável e o que antes foi constituído como discurso ideológico dominante volta à cena, como a tentativa, apresentada no primeiro capítulo desta pesquisa, de imputar por novas legislações o tratamento psiquiátrico repressor e arcaico como verdade de tratamento mais adequado para diversos transtornos mentais. São embates políticos que invadem os discursos pela conquista de poder no palco da sociedade civil:

lugar de disputas de sentidos entre forças e grupos sociais, ‘esfera pluralista de organizações, de sujeitos coletivos, em luta ou em aliança entre si, [...] o espaço da luta pelo consenso, pela direção político-ideológica’. Daí a ideia de arena: um campo de dissonâncias, palco de conflitos e duelos, ora para reforçar o exercício da hegemonia, ora para enfraquecer os consensos firmados. (COUTINHO, 2000, p.18 apud MORAES, 2010, p. 58)

Toda essa batalha de sentidos e de poder sobre a loucura aparentemente não é linear, ou seja, não se constituiu apenas entre psiquiatria e Reforma Psiquiátrica. Outros dispositivos, como a mídia e a imprensa participam como “aparelhos privados de hegemonia” e, como explica Moraes (2010, p. 59), são

organismos relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito, que desejam somar consensos e consentimentos em torno de suas proposições (...) São os agentes da hegemonia, os portadores materiais das ideologias que buscam consolidar apoios na sociedade civil, seja para manter a dominação, seja para contrariar seus pressupostos. (...) Os aparelhos de hegemonia atuam como difusores e sustentáculos de concepções particulares de mundo, que almejam legitimar-se na sociedade civil.

A mídia e os meios de comunicação, como distribuidores de conteúdo, são capazes de “fixar os contornos ideológicos da ordem hegemônica” (MORAES, 2010, p. 61) e, como apresentados por Karl Marx, “transportam signos; garantem a circulação veloz das informações; movem ideias; viajam pelos cenários onde as práticas sociais se fazem; recolhem, produzem e distribuem conhecimento e ideologia” (MARX e ENGELS, 1977, p. 67 apud MORAES, 2010, p. 61). Essa função da mídia – sobretudo, conservadora e alinhada a classes, elites e instituições – garante a ela, portanto, um lugar privilegiado sobre a manutenção das hegemonias na sociedade, é como um ecossistema em que para que haja ganho de poder há de haver a alimentação de um sistema ideológico que sustente a imprensa e seus veículos de comunicação. É o que esclarece Gramsci em sua obra Os jornais e os operários:

Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. (...) Todos os dias, (...) os jornais burgueses apresentam os fatos, mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa, com prejuízo da política e da classe operária. (...) E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador (GRAMSCI, 2005, s./p. apud MORAES, 2010, p. 64).

Em seu contexto, o filósofo italiano dizia que a cobertura midiática burguesa e tendenciosa sobre greves, por exemplo, desfavorecia os trabalhadores por meio da apresentação de uma imagem deslocada do verdadeiro lugar social em que ocupavam os operários. Dessa forma, ao invés de mostrar a razão de greves, a mídia – ou a imprensa, como explicita Gramsci – deturpava a imagem dos operários, apresentando-os como “tumultuosos, facciosos, malfeitores” (GRAMSCI, 2005, s./p. apud MORAES, 2010, p.64). Em contrapartida, o surgimento de uma mídia local, como jornais partidários às causas operárias, era para Gramsci “intérprete e elemento propulsor das reivindicações populares, com a tarefa de conscientizar as massas sobre a exigência insuperável de se derrogar o capitalismo” (MORAES, 2010, p. 65). A classe subalterna, ou seja, os operários, ao produzirem seu canal de comunicação, ao introduzirem sua perspectiva no social, criam uma contra hegemonia, um contradiscurso e um contra-argumento às ideias propagadas pela mídia hegemônica. Essa prática comunitária será, em especial, revista e aproveitada para a apresentação de uma nova perspectiva midiática sobre a loucura nos próximos capítulos.

Com efeito dessas relações de poder e contrapoder, os reflexos da visão gramsciana podem ser vistos ainda hoje em uma mídia contemporânea volatizada, cheia de conteúdos normatizadores, que aprecia o consumo e serve à alimentação das engrenagens do capitalismo. O antigo termo agenda setting pode contribuir para o entendimento de como se estabelece a concepção dominante pela mídia. A partir da exclusiva eleição midiática, há temas que são agendados como mais importantes ou menos importantes de acordo com uma percepção única do social do veículo de comunicação e é exatamente esse ponto de vista das corporações midiáticas que pode regular a opinião da sociedade sobre diversos temas, transmitindo “conteúdos que ajudem a organizar e a unificar a opinião pública em torno de princípios e medidas de valor (...) formar a opinião pública é uma operação ideológica” (MORAES, 2010, p. 67).

O processo da hegemonia inclui, então, disputa pelo monopólio dos órgãos formadores de consenso, como imprensa, partidos políticos, sindicatos, Parlamento etc., ‘de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica’ (GRAMSCI, 2000, p. 265 apud MORAES, 2010, p. 67)

Dessa forma, o domínio da comunicação garante, a partir da visão de Gramsci, a continuidade da ordem hegemônica. Aqui, a mídia é um ator preponderante para que os jogos de poderes, de influências, ideias, preconceitos, estereótipos e interesses se expandam entre a sociedade. Isso, porém, não significa que os indivíduos que compõem a sociedade formem uma massa acrítica e totalmente suscetível aos tentáculos ideológicos dos meios de comunicação. Pelo contrário, como destaca Moraes (2010), há questionamentos que atravessam distintas realidades educacionais e socioeconômicas, mas que são reduzidos por um controle ideológico que dificulta a participação de outras vozes, de novos e diferentes debates, de inclusão e representação. Apesar de haver, hoje, uma miríade de conteúdos, informações e amplas ofertas pela mídia, há, ao mesmo tempo, uma centralização das mesmas fontes de informação com o objetivo de alimentar um consumo estratégico que gera lucro para os conglomerados de mídia.

A visão de Milton Santos sobre a desigualdade no acesso à informação e à tecnologia, presente nas reflexões trazidas por Dênis de Moraes (2010), também é essencial para entender como a exclusão de indivíduos no processo comunicacional é um outro fator de manutenção de hegemonias e desigualdades, como é possível melhor compreender a partir das reflexões do geógrafo:

As técnicas, a velocidade e a potência criam desigualdade e, paralelamente, necessidades, porque não há satisfação para todos. Não é que a produção necessária seja globalmente impossível. Mas o que é produzido – necessária ou desnecessariamente – é desigualmente distribuído (SANTOS, 1999, p.1 apud MORAES, 2010, p. 69)

Dessa maneira, no processo de consumo cultural, há diferentes tipos de exclusões dos indivíduos ou, como explicita Dênis de Moraes (2010, p. 69), os “usufrutos de dados, sons e imagens dependem de acessos e capacidades cognitivas marcadamente desiguais, o que repõe desníveis e descompassos no consumo cultural”. Na construção de discursos e narrativas, a mídia, quase sempre atuando por meio da escassez de acesso tecnológico a parte da população, distingue e exclui quem não faz parte da ordem hegemônica e mercadológica da sociedade. Assim, “uma parcela da sociedade não pode ter acesso a coisas, serviços, relações, ideias que se multiplicam na base da racionalidade hegemônica” (SANTOS, 1999, p. 1 apud MORAES, 2010, p. 69). Tal lógica de exclusão também se constitui como política profissional, estrutural e organizacional.

Essencialmente, a mídia age pelo consumo, por quem participa do mundo capitalista e é exatamente pelo consumo que ela é capaz de esculpir seus conteúdos, fidelizar seu público e, assim, moldar comportamentos, influenciar pautas e assuntos que atravessam toda a sociedade, “com a meta de obter vantagens simbólicas associadas à conversão de identidades à lógica consumista” (MORAES, 2010, p. 69). Um fator que exacerba toda essa manipulação é a concentração das corporações de comunicação nas mãos de poucos indivíduos, deixando toda a coletividade social como destinatária ou mera receptora de conteúdos, não havendo, nesse sentido, uma interlocução.

As ações contra hegemônicas são, diante de um cenário de controle massivo de conteúdos, de consumo e manipulação, essenciais.

Gramsci situa as ações contra hegemônicas como ‘instrumentos para criar uma nova forma ético-política’, cujo alicerce programático é o de denunciar e tentar reverter as condições de marginalização e exclusão impostas a amplos estratos sociais pelo modo de produção capitalista. A contra hegemonia institui o contraditório e a tensão no que até então parecia uníssono e estável. Gramsci nos faz ver que a hegemonia não é uma construção monolítica, e sim o resultado das mediações de forças entre blocos de classes em dado contexto histórico. Pode ser reelaborada, revertida e modificada, em um longo processo de lutas, contestações e vitórias cumulativas. (...) Significa reorientar as percepções sobre o mundo vivido e combater as racionalidades hegemônicas, vislumbrando o presente como passível de ser alterado por ações concatenadas e convincentes. (GRAMSCI, 1999, p. 314-315 apud MORAES, 2010, p. 73, grifo nosso)

Contra hegemonia é, portanto, democracia, é um direito de cidadania e precisa ser garantida para que haja a possibilidade de inserção de grupos minoritários da sociedade. Para Moraes (2010), a diversificação dos sistemas de comunicação pode ser alcançada por políticas públicas que impeçam a concentração do campo multimidiático nas mãos de um setor reduzido na sociedade e pela valorização de redes já existentes em plataformas que se apropriam de tecnologias, como as mídias sociais, para disseminar ideias que reconheçam a importância da participação social, das causas comunitárias e dos direitos de cidadania. O Estado, em consonância a essa realidade de multiplicação e ampliação de vozes marginalizadas e periféricas, tem um papel pelo qual já é signatário7 pela promoção da inclusão social, além da distribuição de riquezas, da disseminação do respeito às culturas, da defesa dos bens públicos e da democratização de acesso à informação e ao conhecimento.

5.1. Jornalismo, Cultura e Sistemas de Valores

Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma

forma de educação que proporcionasse às classes dominadas a perceber

as injustiças sociais de maneira crítica.

(Paulo Freire)

Há algo ainda que precisa ser explicitado sobre a atuação da mídia e seu papel de distribuidor de ideologias: sua instância pedagógica. Com a contribuição da psicanálise, da filosofia da linguagem e da linguística, há o entendimento de que o homem contemporâneo se constitui por meio da linguagem. Como afirmam Maria Pokorski e Luís Antônio Pokorski (2012), é por meio da palavra que os sujeitos se constituem e têm, do mesmo modo, a oportunidade de (re)significarem suas histórias.

A linguagem através da palavra é um elemento fundante do sujeito e do conhecimento. O valor da palavra aparece desde a Bíblia – no princípio era a Palavra, o Verbo. Para o psicólogo russo Vygotsky, o desenvolvimento do pensamento está ligado à palavra. Para Paulo Freire, educador brasileiro, é preciso que se diga a palavra a fim de que se possa mudar o mundo e a nós mesmos. Freud anuncia a cura pela fala. Segundo Dolto (1999), no momento em que algo é falado, rememorado e tratado, quem o proferiu jamais regredirá ao mal-estar que o afligia. (POKORSKI, M. M. W. F.; POKORSKI, L. A. F., 2012)

Dessa forma, a humanidade forma sua identidade por meio de narrativas e se reconhece em um grupo, em uma cultura, por meio de aprendizagens cotidianas marcadas pelas interações sociais e, de certa maneira, pela participação ativa de algumas instituições, como os meios de comunicação. Dentre essas formações de saberes – e de poderes –, o jornalismo é um articulador dessas constituições que orientam a cultura.

Sua função educativa se traduz, sobretudo, pela necessidade de explicar o mundo sempre baseado na verdade e fazendo uso de recursos técnicos e humanos capazes de ilustrarem esses saberes gerando significados. O jornalismo, assim, se reflete num conhecimento social e cultural que ensina ao mesmo tempo que constrói realidades. (SILVA; FONSECA, 2011, p. 185, grifo do autor)

O jornalismo, por meio das produções de notícias, está no centro das constituições simbólicas das sociedades contemporâneas, corresponde a sistemas de valores hegemônicos e reitera discursos que regem convenções. Mais central ainda é pensar no papel dos jornalistas, os responsáveis pela trama da transformação de acontecimentos e fatos em notícias. Um caso empírico de como as visões de mundo de jornalistas podem afetar a produção de notícias e, consequentemente, incutir na formação de valores sociais hegemônicos e normatizadores foi uma pesquisa realizada sobre a produção de uma matéria que abordava a vida noturna em parques da capital do Rio Grande do Sul, publicada em 2011, por Marcia Veiga da Silva e Virginia Fonseca.

O campo de estudo das duas pesquisadoras foi uma redação e o caso abordado por elas demonstrou como padrões propagados por uma heteronormatividade estavam presentes na constituição subjetiva de profissionais do jornalismo e eram acionados no processo de construção de notícias. De forma sucinta, a pauta levantada por jornalistas da redação estudada pelas pesquisadoras era sobre a utilização de parques públicos de Porto Alegre para práticas sexuais em público, que envolviam moradores locais e de outras regiões da cidade. Dentre as pessoas que frequentavam esses parques, aparentemente havia indivíduos homossexuais, travestis, transexuais, que, pelo olhar dos jornalistas em redação, eram reduzidos ao termo “putos”, pessoas que, para aqueles profissionais, deveriam ser submetidas à violência para corrigir suas formas de viver a sexualidade, julgadas pelos profissionais como erradas ou fora dos padrões sociais. Independente de normais legais ou jurídicas sobre o que pode ou não ser feito na rua, o juízo de valor e o modo de trabalho desses profissionais – que claramente flertava com a ignorância e o preconceito – estavam estabelecendo a manutenção de uma normatividade na produção noticiosa ao atribuir ao Estado, quando a notícia foi veiculada, o dever de corrigir comportamentos.

As conversas entre os jornalistas foram muito ilustrativas das manifestações de seus juízos de valor, que acabavam sendo expressos nas escolhas que foram sendo empreendidas no processo e passando por diversos profissionais. Ao longo de uma semana, período que a matéria levou para ser realizada, exibida e avaliada, as posturas e os resultados concretos expressos nas seleções e em suas respectivas justificativas trouxeram dados importantes que, sobretudo, revelavam que a heteronormatividade era o parâmetro que permeava as lentes pelas quais os jornalistas compreendiam a realidade. Mais do que isso, produziam os contornos daquilo que seria dado a ser visto como realidade na forma de notícia. (...) A discussão sobre o cercamento dos parques é uma das propostas mais polêmicas da cidade, que não chegou a avançar muito, mas que encontra eco nas ideologias que sugerem políticas públicas restritivas e punitivista para a segurança pública (SILVA; FONSECA, 2011, p. 188-190)

Sendo a mídia uma instituição pedagógica (BÉVORT; BELLONI, 2009 e MEDITSCH; FARACO, 2003) e o jornalismo um conhecimento social, as pesquisadoras destacaram como o processo da alteridade é essencial para a prática profissional do jornalismo. Visões de mundo, quando partilhadas por jornalistas em notícias, como demonstrado nesse estudo, podem influir no estabelecimento de padrões de normalidade ou anormalidade, do que é certo e errado, do que é marginal ou, como diziam os jornalistas apresentados no estudo, puto e digno de coerção (SILVA; FONSECA, 2011). Dessa forma, as pesquisadoras evidenciaram a potência da linguagem e das narrativas na concepção de estereótipos e de exclusão social. Segundo Moraes (2017, p. 20), nesse contexto, “a vida das comunidades subalternizadas e pobres está ausente ou minimizada nos noticiários. É como se, para os principais jornais, revistas e telejornais, o cotidiano da escassez não merecesse mais do que esparsos registros ou não mais que coberturas de tragédias e escândalos”. Tal característica citada por Moraes sobre as mídias também era alvo de observações de Paulo Freire, um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia, como vemos:

Paulo [Freire] mostrava-se freqüentemente indignado com a visão conservadora da mídia brasileira no trato das questões sociais e o pequeno espaço dedicado à discussão de assuntos ligados à educação. Para ele, a mídia mostrava-se muitas vezes distante da realidade brasileira, falando da elite para a elite. Como ele viajava muito e gostava de se informar diretamente com os moradores sobre as condições de vida nas comunidades visitadas, fazendo o papel de um repórter, acabava tendo uma visão sobre a realidade brasileira conflitante com a retratada pelos veículos da chamada grande imprensa. (KOTSCHO, Ricardo, 2002 apud MEDITSCH; FARACO, 2003, p. 34)

Freire ressaltava, além disso, a importância de o público desenvolver uma visão crítica sobre as notícias. Apesar da ideologia impregnante promovida pelos veículos de comunicação, a responsabilidade pelo sentido da informação também está nas mãos dos leitores, telespectadores e dos ouvintes, como destacaram Meditsch e Faraco (2003). Ponderando esse pensamento, é válido ressaltar que, de todas as formas, são os enfoques editoriais que definem quais atores sociais devem ser marginalizados ou noticiados em suas programações e quais pautas merecem ser destacadas ou ignoradas, o que pode ser chamado como uma “gestão midiática da realidade” (MORAES, 2017, p. 18).

Esses veículos difundem juízos de valor e sentenças sobre os fatos, como se autorizados a funcionar como uma espécie de tribunal, sem delegação para tal. Sua intenção, assumida, mas não declarada, é disseminar informações, ideias e princípios que ajudem a organizar e a unificar a opinião pública em torno de determinadas concepções de mundo. Não são neutros, como querem fazer crer; são parciais, tomam partido, defendem com unhas e dentes o lado que escolheram. (MORAES, 2017, p. 18)

Se há um padrão de disseminação de valores sociais nas notícias, também vale ressaltar o pensamento trazido, novamente, por Dênis de Moraes (2017) sobre que tipo de perfil profissional é normalmente encontrado nos espaços de opinião da mídia. Para ele, basicamente, há os seguintes tipos: 1) os profissionais formados dentro das próprias empresas com as ideologias e valores disseminados pela corporação; e 2) os profissionais escolhidos pelas organizações de acordo com suas especializações e vertentes no trabalho ou na academia. “A mídia está criando o seu intelectual orgânico – alguém que ela projeta como intelectual, com menos autonomia e menos criatividade. (...) Os novos autores fazem seu aprendizado dentro da mídia. São organicamente constituídos como intelectuais da mídia, como produtores culturais da mídia” (COUTINHO, 2004: 319 apud MORAES, 2017, p. 22).

O autor revela que, apesar de seus méritos profissionais e acadêmicos, muitos dos profissionais de comunicação que são mais reconhecidos no mercado são aqueles que, muitas vezes, demonstram ter maior afinidade com a ideologia que norteia a política das empresas de comunicação. Por outro lado, há também uma busca das empresas midiáticas de formarem quadros profissionais que contenham porta-vozes de uma ordem hegemônica e social que pertence e interessa à corporação, como demonstra o pesquisador a partir do exemplo de um setor dentro da comunicação:

Isso é patente em editoriais de economia, nas quais vozes contrárias ao neoliberalismo são descartadas em detrimento de especialistas que examinam a conjuntura com as lentes das taxas de juros, do superávit primário, da rentabilidade das grandes empresas e investidores, dos ganhos com bolsas e aplicações financeiras. E ainda se mostram vigilantes para contraditar medidas regulatórias do Estado (rotuladas de “intervencionistas”, “estatizantes”) que interfiram, segundo eles negativamente, nas atividades econômicas e nas expectativas do mercado. Ao mesmo tempo que se esvazia a diversidade e se restringe a participação de intelectuais críticos nos debates, cresce a preferência por especialistas que, por suas trajetórias profissionais e posicionamentos, não trazem riscos de contrafação ideológica nem verbalizam interpretações que possam transgredir o limite do aceitável ou colocar em xeque alguns dos dogmas essenciais do sistema capitalista. (MORAES, 2017, p. 22, grifo nosso)

Todos esses exemplos de práticas profissionais e de constituição de uma elite profissional incumbidas por propagar uma específica dimensão ideológico-cultural refletem Gramsci (MORAES, 2010) e sua concepção de que jornais são organismos políticos e financeiros que propagam conteúdos com a finalidade de homogeneizar pensamentos. O jornalismo pode ser entendido em muitos casos, portanto, como uma ferramenta para atingir tal objetivo.

A partir dessa pequena revolução pela órbita do campo da comunicação e do jornalismo e da tentativa de evidenciar como ocorre a marginalização de grupos sociais pela mídia e por profissionais, inserimos o caso da representação da loucura. Tomados como marginais ao longo de séculos, como manifestou Michel Foucault (1978), os transtornos mentais continuam sendo narrados de acordo com estereótipos e, assim como os putos da redação de Porto Alegre, são excluídos e marginalizados, mas em uma lógica diferente. Nesse âmbito, a marginalização se concebe sob o contexto da arcaica superestrutura psiquiátrica e manicomial.

6. Capítulo 4 - Saúde, Transtornos Mentais e Estigmas na Mídia: Estudos de caso sobre notícias em diferentes veículos brasileiros de comunicação

A loucura é uma codificação que leva ao silêncio

(PROVIDELLO, 2013, p. 1520)

O surgimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira e a aprovação da lei antimanicomial tiveram um impacto considerável na cobertura de saúde e de transtornos mentais em jornais brasileiros, como foi o caso do jornal Folha de São Paulo (Folha). Em um levantamento de notícias entre os anos 1994 e 1999 – época em que também se discutia o projeto de lei antimanicomial –, a pesquisadora Ana Lúcia Machado (2004) apontou discursos dos mais variados posicionamentos sobre a Reforma Psiquiátrica em conteúdos publicados em forma de reportagens, entrevistas, cartas e artigos pelo jornal paulistano.

Se de um lado, naquela época, emergiam temas na Folha relacionados à desinstitucionalização da loucura, com textos jornalísticos que apresentavam tratamentos a partir do uso das artes plásticas e da democratização do acesso à psicanálise em favelas, por outro lado, também havia textos em que os autores ou personagens se mostravam favoráveis a tratamentos realizados exclusivamente com medicações, terapêuticas em instituições hospitalares e que eram críticos a psicoterapias. Em 1999, ocorre um fato relevante e descrito pela pesquisa de Machado (2004) para o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a aprovação pelo Senado Brasileiro da Lei Antimanicomial 10.216/01, que foi posteriormente promulgada em 2001 pelo então presidente da República. Neste período em específico, houve, segundo a pesquisa, uma polarização entre o projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado, de onde se origina a proposta da Reforma Psiquiátrica, e outro projeto substitutivo de Lucídio Portella, que também representava uma certa recusa à lei antimanicomial, com convicções ideológicas diferentes sobre a assistência à saúde. No meio desses embates, textos jornalísticos contra e à favor eram produzidos e inseriam novos significados nesses jogos políticos. Segundo dados levantados pela pesquisadora, apesar da relevância para o campo da saúde mental, a cobertura jornalística realizada pela Folha de São Paulo parecia precária durante o período estudado. Para Machado (2004), portanto, posicionamentos como esses identificam a inserção de outros profissionais, além dos “psi”, na luta antimanicomial e pela desinstitucionalização dos transtornos mentais, como os jornalistas e os comunicadores.

De um lado, um grupo favorável, defensor e empreendedor de práticas inovadoras de assistência extra-hospitalar que visam à inclusão do sujeito doente mental no cenário da sociedade. Grupo este que, lutando pelas diretrizes básicas da Reforma e pela aprovação de legislações que determinassem a extinção dos manicômios e hospitais psiquiátricos e a criação de uma rede substitutiva de atendimento extra-hospitalar, repensa o conceito de doença mental, priorizando o sujeito e seu sofrimento psíquico e a saúde mental. Este grupo tem uma composição interprofissional, sem evidência de uma profissão hegemônica e preferencialmente abriga profissões de áreas “não-psis”, como artistas com várias atuações, jornalistas, advogados, economistas, sociólogos, antropólogos, professores de educação física, cineastas etc. De outro lado, outro grupo, posto como favorável à continuação da assistência centrada no hospital e em propostas de tratamentos somáticos (eletroconvulsoterapia e medicamentos). Apresenta propostas de intervenção não somática, porém, quase sempre descontextualizadas. Acredita na necessidade da retirada do doente mental de seu núcleo social e familiar com hipervalorização do ambiente hospitalar como premissa básica de tratamento. É um grupo multiprofissional, em que há a vigorosa hegemonia médica de cunho assistencial organicista/biológico. (MACHADO, 2004, p. 490)

Outro estudo que vale ser mencionado tratou com especial atenção sobre as representações da esquizofrenia na mídia por meio de um levantamento de notícias publicadas também pela Folha de São Paulo e por portais dos principais veículos de impressa brasileiros em 2008 e 20118, respectivamente. Segundo a análise feita por Guarniero, Bellinghini e Gattaz (2012) a esquizofrenia, ao menos naquele momento, era o transtorno mais utilizado como metáfora negativa na mídia, o que reforçava o estigma sobre pessoas que vivem essa condição. Para os autores da pesquisa, o estigma seria capaz de criar obstáculos para que pessoas que vivessem com esquizofrenia e outros transtornos buscassem tratamento ou para gerar situações em que elas recebessem atendimentos de saúde de pior qualidade; de invisibilizar o transtorno mental e, consequentemente, invisibilizar a necessidade de aportação de recursos públicos para a saúde mental; de isolar esses indivíduos e impedir, muitas vezes, que eles consigam ter acesso a trabalho e à moradia adequada. Dessa forma, guardados os diferentes tipos de esquizofrenia,

a ameaça que paira sobre o paciente psiquiátrico e sua família não é da morte física, é a da exclusão, a morte social. (...) A esquizofrenia é o transtorno mental de escolha, porque, a despeito de mudanças políticas voltadas para a saúde mental, seus portadores convivem diariamente com o duplo desafio de lutar contra os sintomas incapacitantes provocados pela sua condição e contra os efeitos injustos dos estereótipos e preconceitos criados ao seu redor. Consequentemente, eles são condenados a um quase inevitável círculo vicioso de marginalização, alienação, pobreza e exclusão social. (GUARNIERO; BELLINGHINI; GATTAZ, 2012, p. 81)

A pesquisa foi realizada por meio do levantamento de publicações digitais de 2008 do jornal A Folha de São Paulo e de uma coleta de notícias, publicadas ao longo de 2011, através de uma busca simples na internet em sites dos jornais O Estado de São Paulo (Estadão), O Globo (Globo), novamente da Folha e das revistas semanais Veja e Época. No primeiro levantamento, 45 itens foram incluídos na pesquisa, 19 deles utilizavam a esquizofrenia como um termo depreciativo. Já o segundo levantamento contou com 184 registros, apenas 13 apresentavam indivíduos que vivem com o transtorno mental de maneira neutra ou positiva.

Segundo os pesquisadores, o uso metafórico negativo da esquizofrenia no sentido de “absurdo”, “incoerente” e “contraditório” foi recorrente em editorias de política, economia, artes e eventos culturais. “O governo, o Judiciário, as relações Brasil-Estados Unidos, a Grã-Bretanha e até a Comunidade Europeia são tachados de esquizofrênicos por diferentes autores e editorialistas (...) a política cambial, a política econômica; esquizofrenia financeira” (GUARNIERO; BELLINGHINI; GATTAZ, 2012, p. 82). São produções que, segundo Guarniero, Bellinghini e Gattaz (2012), não deram voz às pessoas que viviam com esquizofrenia, banalizaram transtornos mentais e reforçaram estigmas.

A relação entre violência, criminalidade e esquizofrenia é um desses estigmas que também foi discutido na pesquisa. No caso de crimes supostamente cometidos por pessoas que viviam com esquizofrenia e que promoveram uma comoção nacional, como foi o caso de um assassinato em massa de crianças em uma escola no Realengo, bairro da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro, marcas daquele estigma tornaram-se evidentes. Reportagens associavam, neste caso, por exemplo, o criminoso a uma “mente deteriorada e diabólica”, a um “boçal que decidiu transformar uma vida de rejeição em brutalidade”, a uma “mente perturbada” e a manter relações com pessoas que, segundo as matérias, não se sabia se eram reais ou “fruto de uma doença como a esquizofrenia” (GUARNIERO; BELLINGHINI; GATTAZ, 2012, p. 82). Após a cobertura do caso pela mídia e de investigações policiais, psiquiatras foram convidados a diagnosticarem a condição do assassino por meio de vídeos9, ou seja, sem nunca terem tido contato direto com ele e, segundo os profissionais, o criminoso sofria de esquizofrenia paranóide. De todas as formas, matérias como essas, acabam influindo na percepção social ao associar, muitas vezes, a violência a transtornos mentais sem citar, por exemplo, que pessoas que vivem com esquizofrenia raramente são violentas, como destacaram Guarniero, Bellinghini e Gattaz (2012).

Outro dado importante trazido pela pesquisa que deve ser mencionado é de que psiquiatras brasileiros, guardado o período estudado, estigmatizam portadores de esquizofrenia, especialmente atribuindo ao transtorno mental o estigma da violência, da periculosidade. Jornalistas também participariam da formulação de estigmas e, por sua vez, tenderiam a generalizar casos isolados, ao associar, em notícias, as pessoas que vivem com esquizofrenia a um alto nível de periculosidade. Também é mencionado na pesquisa o fato de reportagens terem associado a vivência com o transtorno esquizofrênico aumentar as chances dos indivíduos de cometerem um crime, como o ocorrido na escola de Realengo.

Diante da análise da psiquiatria e do jornalismo como atores preponderantes para a formação de estigmas contra a esquizofrenia, a pesquisa faz uma ressalva importante aos profissionais de comunicação. Jornalistas, por exemplo, não saem de suas formações especializados na cobertura de assuntos específicos, como saúde, ciência, política, (GUARNIERO; BELLINGHINI; GATTAZ, 2012) e há profissionais que possivelmente desconhecem o que são de fato transtornos mentais, suas causas, sintomas e a importância do acesso ao tratamento adequado. Esse desconhecimento é um fator para a reprodução de estigmas. Jornalistas, muitas vezes, aprendem na prática diária e empírica sobre como fazer uma cobertura de notícias especial em saúde e, por esse e outros motivos, são feitas apurações pouco aprofundadas de diversos temas em editorias que compartilham assuntos complexos ao processo de síntese e reinterpretação da realidade do jornalismo.

Portanto, na maioria das vezes, o que o especialista tem diante de si na hora de uma entrevista é um profissional tão leigo quanto a população espectadora, com os mesmos preconceitos e estereótipos sobre o paciente psiquiátrico que a população em geral. E, talvez, um desses preconceitos seja o de que o portador de esquizofrenia não leia jornais, não ouça rádio e não assista à televisão e que, se o faz, seja incapaz de perceber que é dele que se fala. (GUARNIERO; BELLINGHINI; GATTAZ, 2012, p. 83)

O que essas duas pesquisas aqui citadas evidenciam, de fato, é como o papel da mídia, além de reproduzir estigmas estruturais, pode afetar a vida de indivíduos, influenciar na elucidação de crimes ou até no acesso a direitos de muitas pessoas, especialmente daquelas que vivem com transtornos mentais. Por outro lado, há também a indicação de que os jornalistas e diversos outros profissionais não ligados às áreas de saúde mental também podem se tornar agentes com potencialidades consideráveis para o fortalecimento da luta antimanicomial e por novas práticas em saúde pública e em uma comunicação democratizadora e defensora de pautas ligadas ao acesso à saúde.

Como afirmou Providello (2013), na epígrafe deste capítulo, e como demonstrou Foucault (1978), ainda atua sobre a loucura uma significação herdada desde a Idade Clássica, a impossibilidade de que pessoas que vivem com transtornos mentais possam ter voz. A atuação da mídia, do jornalismo, e de seus sistemas de valores, como explicitado pelas pesquisas citadas no capítulo, evidenciam a sobrevivência dessa significação herdada para a atualidade pelo efeito silenciador de pessoas por meio de notícias e estigmas.

6.1. Evidenciando Notícias: Representações da Revista Veja sobre saúde e transtornos mentais

A fim de contribuir a esses estudos sobre a atuação da mídia e a análises antimanicomiais e com base na Reforma Psiquiátrica Brasileira, foram destacadas algumas matérias produzidas pela Revista Veja, da Editora Abril, encontradas por meio de uma busca simples na internet. Fundada em 1968, a Veja é a principal revista semanal de informação que já teve a maior tiragem do Brasil, superando um milhão de exemplares, e que produzia conteúdos a leitores considerados com maior poder aquisitivo (BENETTI, 2007), ou seja, trata-se de uma mídia hegemônica e conservadora. A Revista Veja conta também com um portal de notícias na internet e com edições regionais, como a Veja Rio e a Veja São Paulo, além de uma edição voltada para o campo da saúde, a Veja Saúde.

Como destaca Benetti (2007), o tipo de texto produzido pela revista, além de informativo, é conhecido por seu caráter fortemente opinativo que se expressa pelo uso de adjetivos, advérbios e diversas figuras de linguagem, tendo a ironia em uso corrente. “Veja construiu, de si mesma, uma forte imagem de legitimidade para proferir saber – frente a um suposto não-saber dos leitores, da população em geral e, em certos momentos, das próprias fontes.” (BENETTI, 2007, p. 42, grifo do autor). Dessa forma, a revista constituiu, ao longo do tempo, seu lugar social e – como refletiu Moraes (2010, p. 54) pelos pensamentos de Gramsci sobre a construção da hegemonia – a revista conquistou um consenso e uma liderança cultural e político-ideológica “de uma classe ou bloco de classes sobre as outras”.

Com uma estratégia discursiva que foge aos padrões jornalísticos de objetividade e de imparcialidade, a Revista Veja tenta criar uma força narrativa a fim de influenciar a opinião de seus leitores e o tenta por meio da ironia, “o poder de dizer, qualificar, desqualificar, julgar e tornar ‘procedente e autorizada’ a fala de quem diz” (BENETTI, 2007, p. 46) e pela qualificação do que é ou não é moral, aceitável, normal, verdadeiro, ou melhor, hegemônico e homogeneizante.

Como se trata de uma mídia defensora de pautas conservadoras e hegemônicas, há posicionamentos publicados pela revista que, de maneira encoberta por pesquisas científicas, reportagens e colunistas, também compartilharam opiniões e visões que claramente estigmatizam e marginalizam os transtornos mentais e alimentam o retrocesso da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Em Eletrochoque: mentiras e verdades que você precisa saber (imagem 1), uma coluna publicada em 2017 no portal de notícias da Veja, um médico e professor defende a eletroconvulsoterapia que, segundo ele, seria o tratamento biológico mais eficaz contra depressão resistente. Ao referir-se à depressão desta maneira, há a indicação de que, mesmo após um tratamento medicamentoso daquele transtorno mental, não há melhora do quadro do indivíduo.

Imagem 1 – Eletrochoque: mentiras e verdades que você precisa saber

Fonte: CRIPPA, 2017.

Segundo o autor do texto, a psiquiatria brasileira seria influenciada pelo movimento da luta antimanicomial, que negaria o conhecimento psiquiátrico por questões ideológicas. Além disso, Crippa (2017) defende a terapia com choques como algo moderno e que, por vieses ideológicos, “milhões vão continuar sofrendo e muitos morrendo como resultado da política de saúde mental no país” (n.p.). O que o autor não citou em seu texto é que a eletroconvulsoterapia era utilizada antes da Reforma Psiquiátrica no Brasil, mas como método de torturas em instituições manicomiais e que, segundo Cruz, Gonçalves e Delgado (2020), tampouco seria um tratamento adequado a grande parte dos casos de transtornos mentais, nem uma solução de saúde pública em larga escala.

Outra publicação da Veja, uma reportagem especial de André Petry (s.d.), narra uma versão sobre a delicada história que envolveu a família do cineasta Eduardo Coutinho. Ao longo do texto, o autor apresenta como personagem principal Daniel de Oliveira Coutinho, que posteriormente fora diagnosticado com esquizofrenia paranoide e era um dos filhos do cineasta, para recontar episódios que envolviam a família e montar uma trama narrativa que contextualiza o assassinato de Eduardo Coutinho. Daniel, responsável por assassinar seu pai, em diversos momentos, é apresentado como uma pessoa frívola, agressiva e é apontado por viver com um transtorno em condição de alta periculosidade seguido por uma estrutura narrativa consistente e descritiva. O relato é cortado por informações sobre o próprio transtorno mental, dados sobre um dos primeiros estudiosos de esquizofrenia e por uma foto da lápide de Eduardo Coutinho. Apenas em uma breve parte do artigo, contido entre parêntesis, o autor apresenta o dado de que 84% dos portadores de “transtornos psíquicos” viveriam sem cometer atos violentos.

Imagem 2 – O terror silencioso

Fonte: PETRY, (s.d.).

Petry (s.d.) destaca, ao longo de sua produção (Imagem 2), o fato de Daniel não haver buscado ou não haver sido encorajado pela família a buscar tratamento adequado e, ao mesmo tempo, reforça um estigma estrutural por meio da representação de uma pessoa que vive com um transtorno mental ao personalizá-la em um caso de violência extrema. Nesta matéria, há a propagação de uma visão negativa sobre a esquizofrenia e, ademais, como argumentam Guarniero, Bellinghini e Gattaz (2012), que cria obstáculos para o acesso ao tratamento pela reprodução de estigma presente na própria reportagem.

Também foram encontradas outras duas matérias publicadas pela Veja que banalizam transtornos mentais. Em Pesquisa relaciona doenças mentais a criatividade (REDAÇÃO, 2012) e Uma noite sem dormir causa sintomas de esquizofrenia, diz estudo (REDAÇÃO, 2014), os autores dos textos, que não foram citados na publicação, utilizam o escopo de pesquisas científicas para traçar relações estigmatizantes entre transtornos mentais, traços de personalidade e uma apresentação pouco cuidadosa ou detalhada dos dados das investigações estrangeiras.

Imagem 3 – Pesquisa relaciona doenças mentais a criatividade

Fonte: REDAÇÃO, 2012.

A primeira matéria (Imagem 3) apresenta uma pesquisa e relata que pessoas que vivem com transtornos mentais, como esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar, transtornos da alimentação, autismo, teriam maior propensão de serem mais criativas e de desenvolverem, ao longo da vida, uma relação com a arte. A loucura e a expressão artística são, para o autor do texto, seguindo as proposições do artigo científico, algo similares sem explicitar as devidas ressalvas para essa afirmação. Para Providello (2013, p. 1525), a relação entre loucura e o fazer arte, “essa empreitada rumo ao exterior da racionalidade, é ao mesmo tempo a semelhança que as aproxima e a diferença que as separa. (...) ao mesmo tempo em que ambos se relacionam com o Fora, com a Desrazão, a forma de cada um se relacionar é extremamente diferente”, ou seja, a profissão do artista e o indivíduo “louco” habitariam lugares sociais com perspectivas diferentes e, ao mesmo incomparáveis entre si. A matéria, ao contrário, relaciona o fazer arte como uma propensão intelectual desenvolvida pela loucura ou por determinados transtornos mentais, quando, na verdade, tal argumentação pode estar baseada em estigmatizações sobre o que é fazer arte e o que isso teria a ver com a vivência da loucura.

Imagem 4 – Uma noite sem dormir causa sintomas de esquizofrenia

Fonte: REDAÇÃO, 2014.

Por sua vez, a segunda matéria (Imagem 4) apresenta outra perspectiva banalizadora especificamente para a esquizofrenia. Ao acessar o conteúdo do texto publicado, é possível observar que o conteúdo banalizador está concentrado no título e no subtítulo da matéria, que conduzem ao pensamento de que uma noite sem dormir seria a causa de sintomas de esquizofrenia. Ao acessar o conteúdo integral do texto, há uma afirmação com sentido diferente, de que, na verdade, uma noite sem dormir produziria em indivíduos do estudo mencionado sintomas semelhantes à esquizofrenia. Há, dessa forma, uma utilização sensacionalista de um transtorno mental e, consequentemente, uma banalização do que seria viver com esquizofrenia.

As quatro produções da Revista Veja destacadas nesta pesquisa podem servir como um parâmetro parcial do que normalmente é representado na mídia tradicional e hegemônica em relação à saúde, aos transtornos mentais e a tudo o que a Reforma Psiquiátrica construiu como avanços para a saúde pública brasileira. “A mídia hoje é instituição forte e presente, e a análise das notícias sobre transtornos mentais publicadas em jornais pode ser utilizada como medida do estigma estrutural nesses veículos de comunicação” (GUARNIERO; BELLINGHINI; GATTAZ, 2012, p. 81). Uma outra análise também necessária e igualmente importante para este contexto é o uso de mídias comunitárias como formas de concentração de poderes contra hegemônicos e de defesa de conquistas e direitos sociais a favor da luta antimanicomial, dos loucos, dos marginais e de tudo o que mídias hegemônicas, como a Veja, não ousam dizer, não se interessam em dizer ou simplesmente silenciam. As mídias comunitárias – ou populares, como também são conhecidas – são esses poderes de resistência e de mobilização que abrem canais e caminhos para as vozes das periferias sociais.

7. Capítulo 5 - Comunicação Comunitária: Perspectivas contra-hegemônicas

A TV comercial pega mais assim para o lado de quem tem dinheiro, quem pode pagar. A TV comunitária não, ela já quer saber mais do lado das pessoas, já pega a realidade da vida [...] Essa é a diferença.10 (MIRANDA, 2002, p. 173, grifo nosso)

A inclusão de vozes periféricas e a abertura de novos caminhos para a expressão popular por mídias comunitárias podem ser feitas por canais de comunicação com as mais diversas intenções, mas sob uma lógica que os diferencia da mídia hegemônica. A delimitação e o entendimento do que seria uma mídia comunitária e, consequentemente, uma TV comunitária, como será destacado mais a frente, são atravessados, segundo Cicilia Peruzzo (1998), por um processo histórico. Para Peruzzo, a formação das mídias comunitárias esteve vinculada ao contexto dos movimentos sociais e populares.

Tais movimentos foram organizados por segmentos das classes subalternas visando, essencialmente, a satisfação de suas necessidades de acesso aos bens de consumo coletivo, numa conjuntura de opressão à participação política e da degradação das condições de existência de grande parcela da população, advindas das condições impostas pelos regimes militares autoritários em muitos países da América Latina. (PERUZZO, 1998, p. 144)

Para Custódio (2016), que sugere o termo “comunicação comunitária”, essas mídias surgem a partir de “um processo de articulação, mobilização e diálogo entre a população de baixa renda e marginalizada na base dos movimentos populares” (p. 139). O autor também sugere a concepção das lutas populares para tecer um entendimento da comunicação comunitária e sua atuação por espaços de fala, transformação social e influência política.

No Brasil, a comunicação comunitária tem características políticas diversas. Em alguns casos, essas lutas são contra representações negativas na grande mídia. (...) A mídia não só contribui para a perpetuação desses preconceitos, mas os reforça e legitima. Por isso, contestar estes preconceitos ao fazer mídia de forma diferente é uma ação política. (CUSTÓDIO, 2016, p. 143)

Peruzzo (1998) também lembra que, por um contexto histórico formatado pela ditadura militar, os meios de comunicação hegemônicos estavam submetidos às forças dos mecanismos da censura e da autocensura e por seus vínculos políticos e econômicos controlados por classes dominantes e governamentais. Dessa forma, essa mídia se tornou, ao longo do tempo, um ente distante da realidade e da possibilidade de representar as vozes e os contextos periféricos das sociedades e, de certa maneira, ainda segue, atualmente, sob a mesma lógica – mesmo que esteja, hoje, agindo sob a liberdade de um regime democrático e também pelo que foi destacado e demonstrado nos dois capítulos anteriores desta pesquisa – ao perpetuar as marcas da desigualdade na sociedade por meio dos estigmas e dos preconceitos contra minorias sociais.

Ligadas às lutas do povo e à democracia, as classes subalternas encontravam, com isso, na criação de mídias comunitárias uma forma de reivindicar direitos e cidadania e de representarem seus contextos sociais, seus paradigmas, suas vozes. Uma característica histórica marcante para essas mídias comunitárias no Brasil foi seu processo de fortalecimento e ampliação de alcance social em meio à precariedade e à escassez de acesso a recursos tecnológicos, um contexto que invariavelmente influi sobre o processo de produção dessas mídias. Segundo Peruzzo (1998), muitos movimentos sociais que tentavam começar suas empreitadas por meio das rádios, inicialmente, por não terem condições de produção ou de veiculação em programas radiofônicos, criavam, por exemplo, sistemas de alto-falantes em locais públicos por meio de suas próprias articulações.

Nos primeiros tempos a comunicação popular valeu-se de instrumentos de comunicação mais elementares, artesanais, de pequeno porte e mais baratos, e aos poucos foi perpassando ou apropriando-se de meios massivos. [...] Dos alto-falantes caminhou-se para as rádios comunitárias e das TVs de Rua para os Canais Comunitários e Universitários, no sistema de televisão a cabo (PERUZZO, 1998, p. 147).

Em complementação às análises de Peruzzo (1998), as discussões levantadas por Luciana Lobo Miranda (2002), em sua tese de doutorado, também podem contribuir para o entendimento do que seria uma mídia comunitária. Miranda defende que essa discussão estaria baseada no reconhecimento do que seria uma comunidade a partir da ideia da partilha de algo comum, como um território, ideias, valores, interesses e cultura. Para Luciana, a comunicação comunitária nasce a partir da demanda de uma comunidade e por um entendimento próprio desses grupos de que eles não são reconhecidos pelas mídias convencionais e hegemônicas, uma insatisfação que os leva a buscar alternativas de expressão e representação.

A análise da produção veiculada pelos mass media é uma das etapas necessárias para a implantação de canais de comunicação alternativa. Essa etapa – de leitura crítica de mensagens – representa o momento em que a comunidade percebe por meio do que é divulgado diariamente nos veículos de comunicação existentes uma falta de relação com a sua vida cotidiana. A elaboração de diagnóstico crítico alcança maior eficácias no instante em que o grupo constituído se dá conta do artificialismo das informações divulgadas. (PAIVA, 1998, p. 157 apud MIRANDA, 2002, p. 46)

A vontade de construção de um discurso próprio e sem filtros ou intermediários guia as práticas de produção dessas mídias comunitárias e promove uma coesão social entre pares presentes em territórios que podem ser os mais variados possíveis. São jornais comunitários presentes em favelas, rádios em bairros nas periferias de municípios ou de regiões metropolitanas, TVs de rua e cinemas populares, que carregam em si traços em comum, a apropriação da linguagem em diferentes meios para a formação de narrativas que retratem seus cotidianos diversos, suas realidades e suas vidas.

7.1. TVs Comunitárias: Novas janelas para o mundo

Essas representações comunitárias, ao longo do tempo, se adaptaram aos instrumentos do vídeo. No Brasil, essa possibilidade surge no final da década de 70 com a popularização de câmeras e videocassetes, na mesma época em que o país passava por um processo de redemocratização política e quando emergiam movimentos sociais que lutavam por direitos e pela volta da democracia. Dessa maneira, o uso do vídeo e a atuação de movimentos populares por meio dele gerou uma série de atividades com as mais diversas intenções, como “vídeo popular, vídeo alternativo, vídeo militante, projetos de contra informação, TV local, TV de rua, TV pirata e TV comunitária” (BRANDÃO, 1997 apud MIRANDA, 2002, p. 31).

Eram sindicatos, comunidades eclesiais de base (CEBs) da Igreja Católica, associações de moradores e Movimento Sem Terra (MST) algumas dessas organizações que se dedicavam à produção do que Miranda (2002) melhor compreendeu e chamou como “vídeo popular”, uma primeira maneira de representação em mídias alternativas encontradas por aqueles movimentos sociais. Essa também foi uma atividade premonitória para o que viria a seguir: as TVs comunitárias e suas novas formas de representar a realidade popular com a participação direta do povo. Uma dessas experiências que acabavam de nascer pelo Brasil foi a TV Maxambomba, em Nova Iguaçu, um município da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro.

A TV comunitária nasce literalmente na praça pública. As primeiras experiências do país – TV Viva (Olinda, 1983) e TV Maxambomba (Baixada Fluminense, 1986) – realizam atividades de videoanimação em praças e ruas, utilizando para tal programas em vídeo realizados por comunidades de bairros. Este tipo de experiência ficou conhecido como ‘TV de Rua’. (LIMA, 1997b, p. 16 apud MIRANDA, 2002, p. 33, grifo do autor)

Essas novas TVs, ao contrário da TV hegemônica, precisavam estar próximas do cotidiano de sua comunidade como instrumentos de participação, atuação e expressão social. São as TVs comunitárias que criam “uma nova relação da população com a experiência de ver televisão” (MIRANDA, 2002, p. 37). Entre essas experiências, está o que a pesquisadora Cássia Chaffin entende como “TV de rua” – termo que localizava a atuação da TV Maxambomba – por haverem recriado verdadeiros programas de auditório e encontro popular em locais públicos, como ela mesma destaca:

Entendo por TV de rua o trabalho de grupos de vídeo popular que exibem suas produções em praças e ruas de bairros periféricos de cidades. Um dos objetivos desses grupos é reunir pessoas para assistir a programas num espaço público, que se constitui num local para troca de opiniões e discussões, para convivência com o diferente. Na TV convencional, na maior parte das vezes, o espectador tem contato com os produtos em sua casa, num espaço íntimo, privado. A TV de rua utiliza as novas tecnologias da informação e comunicação para levar pessoas às ruas e às praças, tradicionais lugares de passagem e de reunião, de manifestações públicas políticas e culturais. (CHAFFIN, 1995, p. 12 apud MIRANDA, 2002, p. 37)

A TV Maxambomba, que surgiu em 1986, foi uma dessas iniciativas. Percorrendo os bairros de Nova Iguaçu e de outros municípios da Baixada Fluminense, a equipe da Maxambomba realizava exibições de rua com programas que eram produzidos pelos próprios moradores da Baixada. Com o objetivo de retratar a história, a realidade e os problemas cotidianos da região, a TV Maxambomba, na proximidade com a periferia, experimentou novas linguagens por meio de uma tática de produção inovadora: a metodologia participativa. A TV tinha uma lógica de produção dos programas que contava, basicamente, com a participação da comunidade para a definição de repertórios, ou seja, os próprios moradores eram os convidados a produzirem, filmarem, escreverem roteiros, entrevistarem, finalizarem e exibirem, além de desenvolverem suas formações pelo vídeo.

Ao fim da produção dos programas da TV Maxambomba, os vídeos também eram exibidos à população por meio de uma vídeokombi, um dos instrumentos utilizados pela Maxambomba que era uma kombi adaptada com um telão em que se projetava os vídeos editados e as gravações feitas pelos participantes. Essas iniciativas de criação popular tinham como motivação principal trabalhar com as subjetividades dos indivíduos a fim de romper e questionar estereótipos relacionados a uma região, à Baixada Fluminense, um lugar marcado pela exclusão social e pela visão negativa da pobreza e da violência.

O que eles reivindicam é a abertura de possibilidades de outros campos de existência. Turismo, cultura, lazer e sexo são igualmente temas que fazem parte de seus vídeos, cuja abordagem pode ser através de uma ficção sobre um grupo de pagode da região, o ‘Pagodeando’, uma reportagem, ficção e animação sobre sexualidade na adolescência do ‘Previna-se’ e do ‘Sexo Protegido: Vida Garantida’; ou uma reportagem ecológica sobre uma reserva florestal da região, no ‘Cultura e Lazer em Tinguá’ (MIRANDA, 2002, p. 181-182)

O que Luciana destaca, nessa citação, é o que a TV Maxambomba soube fazer por excelência, trazer para o contexto de sua territorialidade as discussões que fazem parte do contexto da população da região.

Nesse momento, as pessoas fazem o que quiserem: comentam o vídeo exibido, cantam, declamam, dançam, reclamam dos problemas do bairro, etc e sua imagem é projetada simultaneamente no telão. Na TV de rua, o espectador monitora sua imagem, dialoga com o ‘produtor’, que é aquele que opera a câmera. (CHAFFIN, 1995, p. 29 apud MIRANDA, 2002, p. 44, grifo do autor)

Há também uma outra característica própria dessas mídias, como destacou Luciana em sua tese, que merece ser tomado em consideração por fazer da população uma promotora de novos conhecimentos sobre si, espectadores ativos:

“[algo] prioritário ao se pensar TV comunitária: a horizontalização do discurso. (...) Através de uma ação coletiva, envolvendo pessoas da comunidade, eles tomam para si um veículo de comunicação de massa, a televisão, para refletir não só sobre sua própria condição, mas como campo de expressão e criação coletiva, onde todos devem participar do trabalho.” (MIRANDA, 2002, p. 28, grifo nosso)

Para aprofundar sobre esses processos criativos que começaram na TV Maxambomba e se multiplicaram em uma nova TV sediada em uma instituição psiquiátrica – que é o tema do próximo capítulo –, nada melhor do que trazer as vozes de quem participou dessas iniciativas. As falas de Valter Filé e de Noale Toja, entrevistados para compor esta pesquisa com seus olhares, conhecimentos e vozes, tornam clara a visão sobre o que foi o trabalho monumental da TV Maxambomba na Baixada Fluminense e o seu legado.

[...] Todo mundo conhece a Baixada por um lado negativo, então a gente vai tentar focar, agora, a Baixada com pessoas criativas, com pessoas trabalhadoras, com pessoas bacanas. Não que a gente quisesse esconder aquilo que fosse negativo, mas a gente queria procurar aquilo que ninguém queria ver, aquilo que já se sabia da Baixada de antemão, que ela era uma coisa horrível [...] a ideia era essa e a ideia era experimentar [...]. Então, a gente começou a experimentar a linguagem, para que serve essa linguagem? Muito mais do que produzir vídeos acabados com uma mensagem moralista. Então, os nossos vídeos eram muito mais provocadores pra que a gente alimentasse um discurso à noite, alimentasse uma discussão na exibição. [...] Chega à noite, quando a gente exibia, continuava um furdunço e era isso o que a gente queria, possibilitar que as pessoas conversassem, não tem uma moral. [...] Essa era a proposta: trabalhar com a participação das pessoas, não fazer uma TV para, mas fazer uma TV com! (informação verbal, grifo nosso)11

[...] a gente andava muito, né. Tanto dentro, né... que era a periferia da periferia, né. A gente ia pra dentro dos municípios pra ir fazendo essa... essa ideia do “repórter de bairro”. E, tinha o repórter de bairro, e tinha um outro projeto que era o “vídeo-escola”, que começou com o “vídeo carta”, que também era essa coisa com estudantes. Você ia pras escolas pra criar conversas com aqueles estudantes. Isso primeiro com a “vídeo carta” e, depois, trocar informações, né, entre estudantes e entre escolas. Depois, a gente fez com professor e aluno, enfim... Muitas coisas. [...] a agente fazia essa discussão dessa democratização e entendia que essa democratização, ela passava por essa apropriação dos equipamentos, da tecnologia e da linguagem pra que as pessoas pudessem fazer e falar de si porque a maior crítica que se tinha também aos meios de comunicação naquele momento é que os meios de comunicação, é... lidavam com a periferia, com a Baixada sobretudo, com a periferia de uma maneira muito negativa, sempre criando estigmas, né. Sempre criando preconceitos e aí, é... sem valorizar, sem evidenciar aquilo que tinha de potente na Baixada. (informação verbal)12

José Valter Pereira – ou Valter Filé, como ficou conhecido ao longo do tempo – foi responsável por dirigir diversas produções da TV Maxambomba. Com uma percepção crítica sobre o mundo em que a Baixada Fluminense se insere, ele foi responsável por retratar o popular, como as cenas cotidianas de uma praça no centro de Duque de Caxias, os artistas que viviam por Mesquita e os sambistas que tinham sua origem na periferia. Noale Oliveira Toja, que já trabalhou como educadora social e também teve sua trajetória marcada pela TV Maxambomba, participou das oficinas de criação de vídeo promovidas pelo grupo e também acompanhou os trabalhos dessa TV. Os dois foram, além disso, os responsáveis pela criação de uma nova TV, uma TV afiliada à TV Maxambomba, mas em um contexto diferente, em uma instituição psiquiátrica e com a participação de pessoas que viviam com transtornos mentais. Nascia, por meio da atuação de Filé, Toja e muitas outras pessoas, uma nova TV, um anova janela para se observar o mundo.

8. Capítulo 6 - TV Pinel: Qual é o canal?

O que que vocês acham que tem debaixo do tapete de um hospício?

É louco varrido, entendeu?!

(informação verbal)13

Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1996. Câmera e microfone esperam em uma sala de uma instituição psiquiátrica. Alguns funcionários e usuários14 da instituição se encontram nessa sala. Alguém tenta uma dinâmica entre o grupo. Fazem um aquecimento corporal. De repente, um dos usuários toma a inciativa e, com microfone em punho, começa a fazer entrevistas. Uma usuária, em outro momento, pega o microfone e dispara a pergunta: “eu posso contar uma piada?” e leva todos ao riso ao contar o que há debaixo do tapete de um hospício. Assim, a partir de uma anedota e de um encontro imprevisível, surgia uma das experiências em comunicação comunitária e em saúde mental mais surpreendentes e únicas no Brasil, a TV Pinel (MARCOLINO, 2007).

Foram Maycon Santos – o entrevistador – e Elizabeth Costa (imagem 5) – a dona da piada – os pioneiros do primeiro programa da TV Pinel, uma iniciativa de TV comunitária que contou com o apoio e a idealização de Doralice Araújo, uma psicóloga do então Instituto Philippe Pinel (IPP), e de Ricardo Peret, um psiquiatra e então diretor do IPP. O início de cada um dos programas da TV Pinel era marcado pela voz de Raul Seixas na canção “Metamorfose Ambulante” e pelas cenas dos usuários atuando em gravações, novelas, atividades, entrevistando as pessoas nas ruas do Rio de Janeiro, com os funcionários e pelas instalações do IPP.

Imagem 5 – Elizabeth Costa: “O que que vocês acham que tem debaixo do tapete de um hospício?”

Fonte: TV PINEL, 1996.

Doralice Araújo, além de psicóloga, antes da criação da TV Pinel, desenvolvia um trabalho fotográfico e artístico na instituição com crianças que viviam com autismo e, depois, passou a filmar as atividades que aconteciam na instituição – ou, como eles mesmos se referiam, no Cais, chamado, também dessa forma, por ser um lugar onde os usuários podiam “aportar suas âncoras”, buscar conforto e estabilidade (NABUCO, 2011). Ao filmar aquelas atividades, Araújo percebe que os usuários gostavam de interagir com a câmera, além de produzir neles uma relação com sua autoimagem (MIRANDA, 2002), e isso, para ela e Ricardo Peret, foi o insight necessário para a criação da TV comunitária. As horas de gravação e o acúmulo de vídeos levaram Dora – como era conhecida – a pedir ao então diretor do IPP que fosse contratada uma produtora para a edição do material e Peret (imagem 6) – com sua experiência adquirida por haver trabalhado com televisão para o governo da Bahia, anos antes de assumir a direção do IPP – sugere a criação de uma TV, algo que seria mais econômico para a edição dos vídeos. Ele encontra, com isso, os meios necessários para a criação da TV Pinel, como a doação de uma câmera e outros equipamentos apreendidos pela Receita Federal, além da montagem de uma ilha de edição. É importante pontuar que o IPP, até meados de 1999, era uma instituição federal ligada ao Ministério da Saúde e, por essa razão, gozava das atribuições federais para o exercício e a manutenção de seus serviços.

Imagem 6 – Ricardo Peret: “A TV Pinel já nasce sob o signo do sucesso”

Fonte: TV PINEL, 1996

Eu acho que a TV Pinel já nasce sob o signo do sucesso porque ela é fruto do sonho generoso de todos nós, que é o sonho por uma sociedade sem manicômios. Eu espero que a TV Pinel seja um instrumento vigoroso de difusão dessas ideias, que ela seja uma TV da cidadania, que ela nos ajude a mostrar à sociedade que a loucura é algo próprio da experiência humana, que, consequentemente, as diferenças que ela produz sejam acolhidas ao invés de rechaçadas. Eu penso que a TV Pinel nasce sob o patrocínio do maior dos patrocinadores: a liberdade. (informação verbal)15

Os dois profissionais da saúde também fizeram a comunicação com o Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip) e trouxeram a assessoria da TV Maxambomba para a produção dos programas da TV Pinel. A Maxambomba, com seus anos de experiência com vídeo e produção popular na Baixada Fluminense, foi capaz de deixar seu legado à TV Pinel como herança ao possibilitar aos usuários da nova TV a liberdade criativa e a independência para a produção audiovisual. Era o início de uma TV que nascia com o objetivo de romper estigmas contra os transtornos mentais com uma proposta inovadora, com a participação dos usuários do IPP na produção ativa de programas, novelas, séries, entrevistas, esquetes e todo tipo de conteúdo que fosse pensado e idealizado por eles.

Como destacou Ricardo Peret, em entrevista para esta pesquisa, “A TV Pinel é filha, não da psiquiatria, ela é filha da cultura” (informação verbal)16. Com o propósito de atuar por meio da imagem e da inclusão das linguagens próprias aos transtornos mentais e de cada indivíduo, há, como destacou Luciana Miranda (2002), um trabalho sobre subjetividades. “A relação sujeito-imagem também é, no caso da TV Pinel, um dos seus alicerces, aliada à proposta da reforma psiquiátrica, pelo fim dos manicômios e o resgate da cidadania dos usuários do sistema de saúde mental” (p. 47).

A participação da TV Maxambomba nessa história foi, segundo Valter Filé (informação verbal)17, essencial não apenas para o início da TV Pinel, como para toda sua trajetória e para o desenvolvimento de uma metodologia participativa entre os usuários. Aliás, as duas TVs tinham muito em comum, apesar de atuarem em contextos sociais distintos. Luciana Lobo Miranda (2002, p. 46) destacou, em sua tese, algumas dessas características que permitiram um encontro e uma colaboração mútua tão significativa entre essas duas mídias comunitárias:

Tanto a TV Maxambomba quanto a TV Pinel sinalizam uma grande insatisfação: como os moradores da Baixada e os usuários do sistema de saúde mental, via de regra, são retratados na grande mídia. Temas como violência, miséria, incapacidade, medo ou, então, temas tidos como interessantes, como o exótico, o folclórico, o bizarro, o curioso, são ideias engendradas e difundidas, ao enfocar essas populações, ora espetacularizando, ora glamourizando, quando o tema permite, mas sempre de forma estereotipada, destituída de qualquer abordagem que permita uma perspectiva crítica, passando ao largo da complexidade que, na verdade, compõe o cotidiano dessas duas realidades.

Além disso, foi essa colaboração que possibilitou que Valter Filé (imagem 7) e Noale Toja entrassem para a história da TV Pinel. Os dois foram alguns dos responsáveis por trazer a ideia de tornar os próprios usuários do IPP em criadores de conteúdo e de cultura. Segundo Filé, a equipe logo entendeu que havia, basicamente, duas questões a serem pensadas com a criação da TV Pinel, como ele destaca em entrevista:

a primeira era eles conseguirem rir, ainda, deles mesmos. Então, quando ainda existe a capacidade do riso, é porque ainda existe uma fortaleza, ainda existe um ser humano ali, né? Porque o riso é muito potente. E depois ela acaba dizendo que a questão psiquiátrica não era uma questão médica apenas, era uma questão mais social, de que tinha uma sociedade que queria esconder essas pessoas. (informação verbal)18

Imagem 7 – Valter Filé: “O hospício é lá fora”

FONTE: ESSA É, 1996.

A contribuição da TV Maxambomba levou a TV Pinel a adotar uma metodologia na produção de seus vídeos que já havia sido experimentada há alguns anos anteriores na Baixada Fluminense, com os moradores da periferia, nas ruas suburbanas, nas discussões das pessoas, no popular. Foi exatamente sob essas semelhanças, entre as intenções criativas da Maxambomba, que a TV Pinel foi criada, para mostrar o que ninguém via sobre a loucura, uma TV que tinha a capacidade de incluir e transformar os indivíduos que passassem pelas lentes de suas câmeras. Um projeto que dialogava com a sociedade.

O tema da loucura é um tema em que as pessoas falam com muita dificuldade, as pessoas têm muita dificuldade de falar disso e, até então, quando você tinha matérias, do... documentários ou a maioria do que se tinha sobre os hospitais psiquiátricos era, primeiro, chamando de hospício. Segundo, mostrando a condição desumanizadora que os hospitais forneciam às pessoas e mostrando as pessoas numa situação, às vezes, muito degradante ou, por outro lado, mostrando as pessoas como se elas fossem super inteligente numa ideia de dizer... de pintar o louco como uma coisa brilhante, que também é uma forma de sacanear as pessoa, né. Então, eu acho que a grande sacada da TV Pinel foi ela começar a trabalhar a questão da loucura de uma forma bem-humorada, o que não deixava de ser sério e que não deixava, às vezes, de ser muito profundo as questões que ela tratava, mas de uma outra forma, percebe? Então, eu acho que a TV Pinel ela teve um impacto na vida da pessoas. (informação verbal)19

O nome dado a essa TV comunitária – “Pinel” – se tornou, ao longo de sua trajetória, uma marca poderosa também para a luta antimanicomial, contra os estigmas. Esse nome foi uma escolha importante tomada entre Ricardo Peret e Doralice Araújo. Peret, que havia frequentado as salas de aula da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ) e trabalhado com televisão entre publicitários e jornalistas, viu na criação de uma marca e na associação de novos significados ao significante – ou seja, à palavra “pinel” – uma oportunidade de desempenhar um trabalho sobre a cultura e romper preconceitos. Indagado por uma jornalista, como relembrou em sua entrevista, Peret explica porque a marca “TV Pinel” foi mantida e sua importância ao longo da atuação da mídia comunitária:

[...] E a Elaine [Elaine Rodrigues, a jornalista] falou “mas, o, Ricardo... você não pretende mudar o nome do Pinel, não? Pinel fica essa coisa, assim, tão... ‘É Pinel, É Pinel...’ Tão pejorativa...”. Eu falei “Elaine, olha só, o Pinel é uma marca tão conhecida... o ‘pinel’ tem no Rio de Janeiro, tem clínica pinel em Porto Alegre, tem banda pinel na Bahia, tem hospital pinel lá no Amazonas. Clínica, etc... então, o Pinel é uma das marcas mais conhecidas, entrou no Aurélio, é... Que que a gente vai fazer? Se mudar o nome pra, sei lá... qualquer lugar que você imaginar, todo mundo vai chamar ‘pinel’. Então, o que que a gente tem que fazer... o pinel é case tão conhecida quanto a Coca-Cola, quanto marca de Gillette, etc. Então, não adianta. O que que a gente tem que fazer é associar essa marca muito poderosa à liberdade e a algo de qualidade, de solidariedade, e, assim, a gente trabalhou. A TV Pinel também nasceu por conta dessa, dessa intervenção na sociedade, na cultura. A TV Pinel sempre nasceu associada à cultura. (informação verbal)20

Peret também destacou, em entrevista, a importância que teve a inclusão de profissionais que trabalhavam com mídia e cultura vindos de fora de uma instituição psiquiátrica, como o IPP. “[...] a TV Pinel já nasceu dentro da cultura, com uma proposta de intervenção cultural. Não psiquiátrica, de intervenção cultural.” (informação verbal)21. Noale Toja foi um desses profissionais que, atuando junto aos usuários da TV Pinel, também teve sua vida transformada. Ela acompanhou a trajetória da Pinel, desde seu processo de criação ao fim de suas atividades, um período que compreendeu os anos de 1996 a meados de 2014. Toja, entre os diversos quadros dos programas da TV Pinel, atuava como atriz, editora, produtora, roteirista, dava apoio em cinegrafia e na encenação de novelas, entre diversas outras funções. Sua imagem nos vídeos da TV a confundia entre os usuários da Pinel, não se pode saber com clareza se Noale (imagem 8) era uma funcionária ou uma usuária ao assistir as várias cenas em que ela aparece por executar papéis que também concerniam aos usuários que se dedicavam à TV Pinel.

Imagem 8 – Noale Toja realizando uma entrevista em um evento pela Luta Antimanicomial

FONTE: POR LIBERDADE, 1997.

A TV Pinel, quando ela começa, a gente começa fazendo programas juntos com os pacientes, então a gente nunca fazia um programa que era da nossa cabeça. Tava sempre ali com os pacientes sugerindo a pauta, é... produzindo juntos, e a gente ia fazendo essas oficinas de formação com os grupos pra que eles pudessem ir se apropriando dos equipamentos, da técnica, pudessem gravar, fazer o som, fazer a edição, roteirizar, dirigir. Então, era... só que, assim, essa galera... ali nós já tínhamos... quando nós chegamos no Pinel já havia tido uma formação com três pacientes, que eles já eram câmeras editores, então já tinha um grupinho ali. Então, a gente potencializou esse pessoal, né, e fomos trabalhando com os outros e não só os pacientes, né, os usuários, mas os familiares, os enfermeiros, outros núcleos de atenção como o Naicap [Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica] [...] e aí isso foi se transformando, né, dentro dessa ideia de TV comunitária. (informação verbal)22

Noale Toja também destacou, em entrevista, como o processo de municipalização do IPP, após 1999, – que passou a ser chamado de Instituto Municipal Philippe Pinel (IMPP) – foi marcante para a continuidade das atividades da TV Pinel, além da consequente saída de Doralice Araújo do IMPP. Segundo ela, durante algum tempo após o período em que a TV Pinel passa a ser responsabilidade da secretaria de saúde do município do Rio de Janeiro, ela mesma levava sua câmera para a gravação dos programas da TV Pinel. A partir desse momento, os trabalhos na Pinel passam a sofrer uma evidente precarização.

A TV Pinel foi acabando por uma questão de vontade política.[...]. Quando vai pro município, reduz esses orçamentos. Eu acho que, pra mim, isso já é uma questão política, assim, como se a TV Pinel não precisasse de tanto recurso. [...] Não se comprou uma câmera digital no Pinel, demorou. A gente só foi comprar uma câmera digital no Pinel em 2012. Então, de 2000 a 2012, o equipamento que eu usava era o meu... De 2000 a 2009 [retificação da entrevistada]. (informação verbal)23

Houve um agravamento daquela precarização, também segundo Toja, com a dificuldade para conseguir novos recursos públicos que financiavam a TV Pinel – que, a partir desse momento, vinham da Prefeitura do Rio. Com a burocracia e a dificuldade para conseguir manter pagamentos consecutivos e equilibrados que permitissem o funcionamento da TV Pinel, a equipe era atingida e impedida de continuar seus trabalhos. Além disso, o momento político também trazia fragilidades às conquistas da Reforma Psiquiátrica, um desmonte que estava apenas sendo iniciado no Rio.

Simplesmente em 2014 [...] eles não renovaram mais. [...] Também, já estava muito fragilizado a coordenação de saúde mental, o serviço de saúde mental na saúde já estava muito fragilizado. A gente tava começando a viver um momento de... o movimento da Reforma Psiquiátrica estava fragilizado e a gente tava começando a viver um momento de... pros CAPS, né, de tudo aquilo que foi criado com o movimento da Reforma Psiquiátrica, retroceder. Então, os CAPS estavam tendo a característica de mini hospícios, o próprio Pinel já estava com um atendimento quase de mini hospício. A TV Pinel, a sala da TV Pinel era do lado de uma enfermaria e eles já estavam pensando, daquela ala toda onde a gente funcionava, de transformar num atendimento de internação, que é uma coisa que o Pinel não deveria ser. [...] O que que desestabilizou mais a TV Pinel foi justamente... quando vai pra municipalização, a gente não tem continuidade. Então, isso foi ruim. Então, a gente tinha um projeto de um ano, a gente não conseguia sequer ter um projeto de dois anos. Cada ano tinha que entrar com uma proposta de projeto e aí a cada renovação dessa era uma burocracia porque dentro do município a coordenação de saúde mental, a cada ano, criava uma coisa diferente também e esbarrava na burocracia da prefeitura, dessas contratações. Enfim a gente, às vezes, trabalhava um ano e ficava seis meses parado e retomava depois, o que tava nove meses parado e retomava, sabe. Então, essa descontinuidade a cada momento do projeto era muito ruim porque fragilizava muito o projeto. Tanto pra nós, equipe, porque você imagina você começar a trabalhar... ter um ano de trabalho e, depois, você fica seis meses esperando, quanto pros próprios pacientes que dependiam daquele projeto porque o projeto tinha sucesso, o projeto tinha eficácia naquilo que se propunha, né. Ele não era um projeto terapêutico, mas ele era extremamente... até porque ele gerava renda pra galera, a gente contratava as pessoas, pacientes, pra fazer parte da equipe, né. (informação verbal)24

Talvez, a falta de interesse político, como menciona Noale, e o fim das atividades da TV Pinel fossem um prenúncio do que viria à frente a acontecer com as políticas públicas de saúde mental em todo o país, como destacado no primeiro capítulo desta pesquisa.

Em entrevista, Noale Toja destaca a importância do trabalho da TV Pinel para a vida de seus usuários, uma atuação que foi muito além das lutas no campo da cultura, das ideias e dos estigmas. A TV Pinel também era fonte de renda para seus usuários, ou seja, além de os atribuir uma função, os atribuía um trabalho remunerado e transformava suas vidas por completo. Eram os usuários, a partir da TV Pinel, habitantes de um novo lugar social, o lugar social promovido pela inclusão e pelo pertencimento à sociedade.

8.1. Por Uma Nova Imagem da Loucura: A TV Pinel, seu papel de inclusão e seu impacto em mídias hegemônicas

Não jogue fora

a sua loucura

ela é real

quero sempre uma vela acesa

em cada janela da vida

para abrir sua ferida

é nosso maldito cão

no meio da vingança

porque é pelas artes

que a revolução

vai mudar o Brasil

(Jorge Romano)

A atuação da TV Pinel a associou, ao longo do tempo, a um instrumento das ideias propagadas pela Reforma Psiquiátrica, “de levar pra sociedade uma nova forma de ver a loucura, de explicar, mostrar às cidades, que a loucura é uma experiência humana e ela tinha que ser acolhida em vez de rejeitada, trancafiada” (informação verbal)25, como destacou o próprio Ricardo Peret. Além da apropriação das técnicas audiovisuais, os usuários da TV Pinel também se apropriavam de uma nova profissão. Esse também era um desejo inicial de Doralice Araújo ao criar a TV Pinel. Alguns usuários eram contratados como trabalhadores e, além de serem tecnicamente capacitados, recebiam um salário para o trabalho com a câmera, produção, reportagem, secretaria. “Nestas pequenas ações, profundas transformações estavam ocorrendo. De louco a pessoa passou a ser trabalhador. Um importante deslocamento do lugar da loucura, como nos ensina Amarante (2009), que passa ser vista como possibilidade de criação” (NABUCO, 2011, p. 113).

Edvaldo Nabuco (2011), que escreveu um artigo em homenagem a Doralice Araújo e é citado ao longo deste capítulo, foi um dos usuários da TV Pinel. Ele, que é jornalista, teve sua vida transformada graças a atuação e a persistência de Doralice e a TV Pinel, uma trajetória que merece ser contemplada:

Escrevi meu primeiro artigo, intitulado ‘No Espelho do Olhar do Outro: a TV Pinel e a Construção Coletiva da Auto Imagem em Vídeo’, com Dora para a Revista Comunicação & Informação, da Universidade Federal de Goiás, em 2004. Uma experiência profundamente marcante. Sendo jornalista de formação, eu havia perdido a vontade de escrever, mas escrevia relatórios periódicos para a TV Pinel. Quando fui convidado para escrever o artigo com ela fui tomado de muita incerteza. Mas me espelhei no afeto, carinho e respeito com que sempre fui tratado e tive confiança para escrever, sem a pretensão de querer voltar a ser jornalista. O artigo foi publicado e ficamos muito felizes. Os textos que Doralice nos dava para ler na TV Pinel ajudaram, assim como alimentaram a minha vontade de voltar a estudar. Com a dinâmica da TV Pinel (estudos e trabalho) voltei a estudar e cursei Filosofia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dividia meu tempo entre a TV Pinel e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Sempre apoiado por Dora. Através dela, iniciei o processo de deixar a instituição e retomar as atividades da vida cotidiana. (NABUCO, 2011, p. 114)

Outra pessoa que teve sua vida transformada pelos projetos da TV Pinel foi Maycon Santos (imagem 9), o repórter da TV Pinel. Ele foi o usuário responsável por ser o primeiro a levar a Pinel às ruas por meio de suas entrevistas. Maycon também levou a TV comunitária a Olinda, em Pernambuco, a Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, para cobrir eventos e tantos outros momentos importantes. Em um dos programas, Santos chegou a entrevistar Franca Ongaro Basaglia (imagem 10), uma importante psiquiatra italiana, feminista, defensora da Reforma Psiquiátrica que, além de haver feito diversas outras contribuições ao campo “psi”, ficou conhecida por haver partilhado sua vida com Franco Basaglia, o criador da Reforma Psiquiátrica na Itália.

Imagem 9 – O repórter Maycon em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro

Fonte: ESSA É, 1996.

Ao invés de você ter um trabalho de... um trabalho só terapêutico, que fosse institucionalmente terapêutico... não, a gente pensou um trabalho. Na medida que as pessoas se destacassem, elas podiam ser convidadas para formar equipe e ganhavam um salário, o Maycon ganhava um salário como repórter. No início, não, óbvio... ele participou... mas a nossa equipe tinha, às vezes, quatro, cinco, seis pessoas... que eram usuárias. (informação verbal)26

Imagem 10 – Maycon entrevistando Franca Ongaro Basaglia

Fonte: ESSA É, 1996.

Na TV Pinel, a vontade sempre esteve à frente da capacidade de entendimento, numa dialética que não se propunha a reduzir uma nem outra. Mas em um equilíbrio entre o entendimento dos profissionais e a vontade dos usuários, transformou a TV Pinel numa potência criativa, conforme nos ensina Nietzsche, traduzida em premiações de seus programas no Brasil e no exterior, expandindo as possibilidades de vida dos sujeitos ditos loucos. O slogan da TV Pinel revela esta potência criativa: mostrar uma nova imagem da loucura. No comando desta lúdica aventura, Doralice Araújo. (NABUCO, 2011, p. 113, grifo do autor)

Jorge Romano, outro potente usuário revelado pelas lentes da TV Pinel, teve seus próprios quadros e participou de muitos programas da Pinel, como o “Joe comentarista”, o “Perfil em Um Minuto” e “Loucotidiano”, em que ele aparece expondo seus pensamentos sobre o mundo, a política, a arte, o Brasil, a loucura. Com a participação de Romano, a TV Pinel também cobriu o lançamento do livro intitulado “União das Coisas Contrárias”, que foi produzido por Jorge. Esses espaços de expressão e fala também eram a oportunidade para que os usuários se expressassem livremente, sem censuras, e mostrarem suas visões sobre o mundo. Jorge Romano (imagem 11) é conhecido pela sua frase celebre, entre tantas outras, que marcou a atuação da TV Pinel, “não jogue fora a sua loucura, ela é real”.

Imagem 11 – Jorge Romano: o poeta da TV Pinel

Fonte: PARABÉNS TV, 1996.

Jaqueline da Silva Batista, também usuária da TV Pinel, aparecia em alguns dos programas como entrevistadora ao realizar perfis de funcionários do IPP e outros usuários, um papel em que aparentemente ela desenvolvia com algum destaque. Em um dos programas, Jaqueline entrevistou Fernando Augusto da Cunha Ramos, que foi diretor do IMPP entre 1997 e 2001. Os dois, em um encontro na Praia Vermelha, na Urca, um bairro próximo ao IMPP, demonstram proximidade, conversam, trocam ideias e Jaqueline, aparentemente, tinha liberdade para desenvolver suas perguntas, sem haver um nível hierárquico entre uma usuária da TV Pinel e um diretor e psiquiatra do IMPP. Psiquiatra e “paciente” eram, ali, duas pessoas interagindo, conversando e trocando ideias em uma praia do Rio de Janeiro.

Para Eliana Marcolino (2007), em sua tese de doutorado, essas participações dos usuários, como as de Maycon, Jorge e Jaqueline (imagem 12), e as propostas criativas inseridas por eles mesmos fizeram da TV Pinel uma experiência única.

Classificamos a TV Pinel como um caso a ser investigado, considerando que é o único programa de televisão, no Brasil, desenvolvido dentro de uma instituição psiquiátrica e produzido com a participação de usuários do hospital, o que o torna diferente devido à peculiaridade na metodologia de produção. (MARCOLINO, 2007, p.27)

Imagem 12 – Jaqueline Batista entrevistando Jorge Romano

Fonte: TV PINEL, 1996.

Luciana Lobo Miranda (2002) destaca a importância da produção de subjetividades por meio dos programas da TV Pinel. Para ela, os usuários que participavam da “TV doida” passavam a se reconhecer como participantes da sociedade, como cidadãos, quando, por meio dessas atividades,

deixam de ser apenas representados no discurso/imagens de outros, sejam eles programas de TV de massa, comercial ou educativo, e passam a ser protagonistas desta narrativa contemporânea, a linguagem audiovisual atualizada no vídeo, enunciando-se a si mesmos (MIRANDA, 2002, p. 16)

Cassia Chaffin, que ao longo de alguns anos também foi integrante da equipe da TV Pinel, e Doralice Araújo também apontaram para o modo de produção da TV Pinel e a sua importância. Segundo elas, havia uma metodologia participativa que moldava os processos de produção dos vídeos da TV Pinel. Essa foi uma forma encontrada, a partir da assessoria da TV Maxambomba, de permitir que os próprios usuários se apropriassem da linguagem e produzissem reflexões sobre a sua vida e sobre o mundo, um aspecto fundamental na construção de subjetividades.

A TV Pinel surgiu fundada na certeza de que a implementação de novas formas de se lidar com pessoas em sofrimento psíquico deve ser acompanhada de mudanças culturais na sociedade, que ainda tende a estigmatizar e excluir os usuários de serviços de saúde mental. O trabalho da TV Pinel está fundamentado em uma metodologia participativa onde, sob orientação de técnicos especializados, os programas são realizados prioritariamente pelos usuários em todas as suas etapas. Esta metodologia inspira-se nas TVs comunitárias, que atuam junto a pequenos grupos. Logo o trabalho da TV Pinel pauta-se na associação de dois princípios: a utilização da tecnologia audiovisual com metodologia participativa e o desenvolvimento de um trabalho específico no campo da saúde mental. (ARAÚJO e CHAFFIN, 1997, p. 13, circulação restrita apud MIRANDA, 2002, p. 47)

Doralice também falava, segundo Miranda (2002), sobre a dificuldade que havia na aceitação da autoimagem dos usuários, antes do início da TV, principalmente quando submetidos ao olhar do outro, na fotografia e no vídeo. O que se pode observar é que, de certa forma, por meio do exercício de inclusão das linguagens próprias de cada usuário e usuária, a imagem sobre a loucura assumia novas formas, como apontavam Araújo, Chaffin e Miranda:

Ao misturar médicos, psicólogos, seguranças, pacientes e enfermeiros numa equipe de produção de um vídeo, em que todos têm tarefas importantes a cumprir, a TV ajuda a relativizar os espaços cristalizados de poder, apontando a possibilidade de relações menos hierarquizadas entre esses sujeitos. Esse processo participativo, onde todos são considerados capazes de atuar, diferencia a TV comunitária de outras práticas comunicativas. E é nessa forma de fazer que a TV Pinel traz contribuições ao processo da Reforma Psiquiátrica (ARAÚJO e CHAFFIN, 1997, p. 6 apud MIRANDA, 2002, p. 66)

A soma de alguns fatores como a possibilidade de criar e expressar; o redimensionamento da auto-imagem que o vídeo comunitário produz; a distribuição de responsabilidade; a organização espaço-temporal inerente ao processo de construção de uma narrativa audiovisual; a inserção no grupo não como usuário mas como membro de uma equipe, faz com que a TV Pinel, apesar de não ser uma terapia, cumpra fins terapêuticos, no sentido dado por Franco Rotelli, um dos idealizadores da Reforma Psiquiárica: ‘...É terapêutico tudo aquilo que é o acesso aos direitos, tudo aquilo que nos permite revisitar com qualidade de vida’. (MIRANDA, 2002, p. 67, grifo nosso)

Se dentro dos muros do instituto a TV Pinel conseguia produzir tamanha revolução na vida de seus usuários e funcionários por meio da inclusão da linguagem pelo audiovisual, os que estavam fora viam com muita curiosidade as atividades que lá eram concebidas. Quadros como o ‘Clipinel’, ‘Freud Não Explica’, ‘Tele-cais’, ‘Loucotidiano’ e tantas outras séries, esquetes e paródias (imagem 13) foram frutos do trabalho de toda a equipe da TV Pinel que logo ganhava espaços de voz e representação nas mídias hegemônicas, como na Rede Globo.

Imagem 13 – A TV Pinel parodiando a vida real

Fonte: ESSA É, 1996.

O surgimento da TV Pinel provocou um grande interesse da grande mídia, com várias matérias feitas, ao longo dos anos. Tal interesse deve-se, em parte, ao inusitado, ao exótico, ou ao curioso, redundando em audiência ou vendagem, que, somado à criatividade da iniciativa, acaba por cativar o público, principalmente em suas exibições de rua. ‘Por Liberdade, Democracia, Saúde e Arte’ [imagem 13] e ‘Por uma nova imagem da loucura’ são slogans que acompanham a TV desde o início, e marcam cada um de seus programas. (...) Segundo [Valter ]Filé, se hoje as matérias que aparecem na grande mídia sobre a TV Pinel são na maioria das vezes cuidadosas, dando visibilidade ao trabalho desta TV comunitária, foi na base da conquista. Para gravar ou fazer qualquer tipo de reportagem, seja a grande mídia, seja pesquisadores, é preciso agendar a visita. A equipe também deve saber previamente os objetivos da matéria ou do trabalho, e o tratamento que estes terão. Mesmo tomando estes devidos cuidados, a equipe diz não estar livre de assistir, por exemplo, a uma matéria veiculada pelo Jornal Nacional, dizendo que a TV é formada por internos, embora a equipe da TV Globo tivesse sido advertida da diferença entre uma internação e o funcionamento como hospital-dia, e a importância de serem chamados de usuários do sistema de saúde mental. Como os enunciados de um telejornal, com uma audiência abrangente devem ser simples e diretos, visando atingir o maior número possível de espectadores, o uso do termo usuário, que exigiria uma explicação do porquê de sua utilização, é substituído por interno, de fácil e rápida compreensão. (MIRANDA, 2002, p. 64; 184-185)

Imagem 14 – TV Pinel: por liberdade, democracia, saúde e arte

Fonte: PARABÉNS, TV, 1996.

Apesar desses problemas de representação na grande mídia, como apontou Valter Filé nessa citação da tese de Luciana Lobo Miranda (2002), o destaque atribuído às atividades da TV Pinel por uma mídia hegemônica, certamente, produzia novos significados sobre a concepção do lugar social das pessoas que viviam com transtornos mentais. A TV Pinel e seus usuários encontraram, sobretudo, no humor uma de suas armas mais potentes para “varrer a loucura para fora do tapete” e mostrá-la à sociedade como uma condição humana, partícipe da humanidade, expressão de vida. “A TV Pinel utiliza-se do humor e da paródia como uma ferramenta para dar visibilidade à situação da doença mental e suas formas de tratamento utilizadas no país. O humor, neste caso, não despotencializa o político mas, ao contrário, o renova, inserindo-o num processo de mudança” (MIRANDA, 2002, p. 215). Havia, por meio da potencialização do riso, como o que também destacou Valter Filé em sua entrevista (PEREIRA, 2021), um instrumento de luta pelos usuários da TV Pinel por uma revitalização de suas vozes e de suas cidadanias.

8.2. Gente Brilhando, Reflexo do Esplendor

Gente é pra brilhar

Não pra morrer de fome

(Caetano Veloso)

Nas duas frentes em que a TV Pinel desenvolvida suas atividades – a Reforma Psiquiátrica e a democratização da comunicação (MIRANDA, 2002) – eram feitos, mesmo que de formas subliminares, questionamentos a uma ordem social que privilegia pessoas que conseguem se inserir no mundo do trabalho, a produtividade individual. Nessa lógica, da qual se serviu a psiquiatria, pessoas não produtivas são excluídas da sociedade. Ao trabalhar no cerne desse contexto social a partir das ideias da Reforma Psiquiátrica, a TV Pinel conseguiu, em certa medida e por um determinado período, reinserir seus usuários e torná-los, novamente, capazes de retomarem suas vidas cotidianas.

Bom, pessoal. Eu não sei se essa vinheta[27] tem alguma coisa a ver com alguma pessoa que vivenciou algum estado, algum momento difícil de doença. Porque todo doente, antes de mais nada, é um cidadão. Então, não entendi porque botaram ‘de doente a cidadão’ aí nessa vinheta, mas tudo bem. O que eu quero falar á a respeito da minha... pô, brincadeira, hein. Rapidinho, eu vou acertar. [...] Bom, pessoal. Vocês pensam que não, mas eu já me senti inútil. Uma fase em que eu vim fazer o tratamento no Instituto Philippe Pinel, então... no hospital-dia. Então, a gente fazia as atividades no dia a dia, mas algumas pessoas, né, criticavam as pessoas que frequentavam esse mesmo hospital, que é uma forma alternativa de tratamento que tá entrando em atividade há pouco mais de seis anos, que tem os NAPS, os CAPS. Então, a gente vinha pra fazer as atividades e algumas pessoas comentavam ‘pô, esses caras não querem nada com a vida, esses caras querem comer no hospital, só vem aqui pra comer, não sei o que...’ e eu me sentia muito mal com isso, eu ficava sempre achando que de alguma forma eu tinha que ser útil. Ou eu largava o tratamento e eu ia viver lá fora minha vida na sociedade ou então eu tinha que ser útil de alguma forma. Foi aí que eu comecei a pensar nisso, a refletir sobre o trabalho, sobre a reinserção social e tudo mais. Não só eu, também minha psicóloga, começamos a pensar na reinserção social. Quando surgiu um projeto, me chamaram pra esse projeto e hoje em dia eu me sinto muito bem porque eu estou trabalhando na instituição, apesar de continuar sendo usuário, mas eu trabalho na instituição, tenho, é... meu trabalho tá sendo reconhecido de certa forma, na medida do que é possível e eu me sinto muito bem hoje em dia, coisa que, em alguns momentos, eu tive que... engolir, né. Sou bastante útil porque eu tenho uma forma de... visão de vida que, graças a Deus, eu conquistei a partir dos meus 18 anos de idade. A partir dos meus 18 anos de idade eu tive que trabalhar, é, pra sobreviver. [...] Mas, hoje em dia, eu trabalho pra TV Pinel e é nessa mudança que eu quero falar. Eu estou trabalhando dentro de uma instituição psiquiátrica e não sou visto mais como uma pessoa doente porque eu sou câmera, né. Algumas partes do programa, bem, a maior parte, eu faço a câmera. As pessoas me deram apoio, me ensinaram e tudo mais e eu venho desenvolvendo esse trabalho. Então, as pessoas perguntam pra mim ‘pô, você se sente usuário?’. Eu sou usuário. Agora, não sei se fui porque... se sou, fui ou serei... porque atualmente eu sou... eu trabalho dentro de uma instituição psiquiátrica e não deixo de ser usuário, não. [...] Eu acho que essa coisa da anormalidade, da... ‘o cara é louco, o cara é doente mental ou é doente psíquico’ e tudo mais... eu acho que isso não passa mesmo de um rótulo que a sociedade impõe a algumas pessoas que estão sendo desagradáveis a ela. (informação verbal, grifo nosso)28

Esse relato é de Clovis Braga (imagem 14), um dos usuários da TV Pinel que trabalhava como cinegrafista, em um dos programas. Clovis expressa, por meio dessa fala, um entendimento do quão significativo foi sua atuação em uma mídia comunitária que, além de o permitir questionar estigmas que o incomodavam, o permitiu viver e ser reinserido na sociedade por meio de uma atividade com a câmera.

Imagem 15 – Clovis L. Braga: usuário, cinegrafista e cidadão

Fonte: ENLOUQUECER É, 1998.

O relato forte e expressivo de Clovis é uma reflexão, sobretudo, sobre o papel transformador do afeto e da inclusão. Era o afeto que, segundo Nabuco (2011), movia a TV Pinel e fazia de seus programas uma chave que permitia o acesso de seus usuários ao mundo que, antes, pertencia apenas a indivíduos que não se deslocavam dos padrões e da linguagem hegemônica.

O que movia a TV Pinel era o afeto. O afeto de ser tocado, retirado de um lugar, deixar-se ser afetado por um sentimento de alegria por produzir coletivamente. (...) E isto se tornou motivo de todos admirarem a TV Pinel. (...) As evidências mostram o sucesso desta prática. Os usuários da TV tinham um grau de internação bem menor depois que entravam para o projeto. Além disto, aqueles que passaram pela TV Pinel estão tendo experiências de vida fora do Hospital Psiquiátrico, voltando a organizar sua vida e enfrentando as vicissitudes da vida comum a todos. (NABUCO, 2011, p. 113-114)

Em uma das edições do “Clipinel”, que foi idealizado por Maycon Santos, Clovis Braga e Teca Vargas, uma residente do IPP, apareciam cantando a canção “Gente”, de Caetano Veloso. A canção, que havia sido lançada durante um contexto de ditadura militar e de abandono social, violência e marginalização, no clipe, passou a ganhar a forma das vozes dos dois integrantes da instituição psiquiátrica e de suas vontades de incluir e de luzir, brilhar. Essa pequena inserção em alguns dos programas da TV Pinel, esse detalhe, acabou se tornando uma inspiração para o título desta pesquisa.

Para Ricardo Peret, a TV Pinel cumpria seu papel também em detalhes, especialmente, quando não permitia aos seus espectadores a distinção de quem seria usuário ou funcionário, paciente ou ator, cliente ou médico. “O fato de você ter um transtorno mental não significa que você olhe pra pessoa e tenha que dizer ‘ah, tá passando ali o louco’, não é isso. Se você não sabe quem é, é porque a TV Pinel já nasce cumprindo o papel para a qual ela foi criada, que a loucura tem que ser relativizada e tem que ser vista como uma condição humana” (informação verbal)29. Em uma esquete produzida com a contribuição de pessoas que passavam pela Cinelândia, no centro do Rio, as significações desse trabalho eram evidentes. Uma das pessoas abordadas pelo microfone com a canopla da TV Pinel pergunta a um usuário “você é um ator ou um paciente?” e o usuário responde “Eu sou um ator e um paciente”. Esse episódio também foi revisitado pelas palavras e pelo olhar precioso de Doralice Araújo.

‘Você é um ator ou um paciente?’ Esta pergunta foi realizada por um transeunte na Cinelândia, Rio de Janeiro, perplexo com um esquete realizado pela equipe da TV Pinel, abordando a questão do tratamento da loucura. Neste esquete [imagem 15], o ‘paciente’ acompanhado por uma ‘enfermeira’ usava camisa de força. Ao ouvir a resposta – ‘Eu sou um ator e um paciente’ –, responde: ‘Brincadeira!’, não acreditando na possibilidade de um paciente psiquiátrico estar ali representando, realizando uma intervenção de rua em que ele, mesmo sendo paciente, é um ator no sentido teatral e um ator no sentido mais amplo – um ator social. O ator social intervém, interfere, torna-se ele mesmo o produtor de condições de mudança. É a partir de uma intervenção na cultura que podemos abrir um caminho para produzir novas possibilidades de vida, de sociabilidade e de subjetividade para os usuários de serviços de saúde mental. Construindo, a partir de diferentes práticas, outras representações sociais da loucura no campo da cultura e da sociedade. (ARAÚJO, 1999, p. 5 apud MIRANDA, 2002, p. 60)

Imagem 16 – Você é um ator ou um paciente?

Fonte: A TV, 1997.

A liberdade expressiva promovida por essa mídia comunitária também permitiu que os usuários expressassem suas criatividades e suas genialidades em forma de diversos quadros e programas. Um exemplo disso é possível de ser observado por meio da esquete “Ticas de Beleza”, um quadro de ficção idealizado por Bárbara Dias (imagem 16), em que é possível notar uma crítica ao manicômio, ao consumo indiscriminado de medicamentos. A “mercantilização da psiquiatria ganha toques de humor. (...) Um salão de beleza ‘manicomial’ vende produtos como Mousse para Cabelo de Carbolitium, Loção Limpadora de Fenergam, Sombra Biperideno, Pó Facial Haldol – produtos impregnados de beleza!” (MARCOLINO, 2007, p. 265)

Imagem 17 – Barbara Dias: a idealizadora de muitos quadros da TV Pinel

Fonte: TV PINEL, 1996.

Em “A Endoidada”, uma paródia da novela da Rede Globo “A Indomada”, que foi exibida em um outro programa da TV Pinel,

o processo de sua realização foi, como comenta Bárbara Dias, ‘uma doideira, uma loucura total’, e tomou o lugar do produto. Uma endoidada na gravação, uma ‘aventura’ de experimentar TV: nisso consiste este quadro da TV Pinel. Ao final, Neiva de Fátima [imagem 17], idealizadora, roteirista e atriz principal da ficção, pergunta: ‘Vocês entenderam alguma coisa? Não? Nem eu!’ (MARCOLINO, 2007, p. 266).

Imagem 18 – Neiva de Fátima em “A Endoidada”

Fonte: ENLOUQUECER É, 1998.

O que esses processos criativos demonstravam, além do que já foi exibido, era uma enorme capacidade de reflexão do contexto em que os próprios usuários estavam inseridos. Seja dentro da luta antimanicomial e contra a medicalização da vida, seja em relação às representações advindas de mídias hegemônicas e as fantasias do mundo das novelas e dos programas dos canais de comunicação mais consumidos, os discursos e as narrativas desenvolvidos pelos usuários se inseriam no entremeio de uma nova concepção, forjada por eles mesmos, do mundo a partir de seus lugares sociais.

Ao olharmos nossa imagem na tela do vídeo, nos víamos como pessoas. Rindo, cantando, brincando. Esse é o papel da TV Pinel. Foi esta a ideia que Doralice teve e que fez o Rio de Janeiro olhar a arte e criatividade do louco como uma potência de criação de vida. (NABUCO, 2011, p. 115)

Por meio de uma atuação tão potente, a história da TV Pinel tem muito a ensinar a partir do afeto e da inclusão do que é considerado diferente e, por consequência, excluído da sociedade. Uma atuação pelo afeto é um exercício de alteridade que, como lembrado por Silva e Fonseca (2011), é essencial para práticas de comunicação mais acolhedoras, como um jornalismo que seja capaz de contribuir para a geração de uma sociedade mais justa e equânime por meio da difusão de informações que sejam capazes de alterar a cultura, já tão acostumada – e programada – em transformar diferenças em desigualdades.

9. Conclusão

O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade se não for ajudado a tomar consciência da realidade e da sua própria capacidade para a transformar. (...) Ninguém luta contra forças que não entende, cuja importância não meça, cujas formas e contornos não discirna; (...) Isto é verdade e se refere às forças da natureza (...) isto também é assim nas forças sociais (...). A realidade não pode ser modificada senão quando o homem descobre que é modificável e que ele o pode fazer. (FREIRE, 1979, n.p.)

Paulo Freire, notável e inesquecível educador e filósofo brasileiro, pensava a prática jornalística como, também, uma prática educativa (MEDITSCH; FARACO, 2003). Para o bem ou para o mal, para expor as mazelas da sociedade ou para ocultá-las e normalizá-las, para delinear as margens e os centros da nossa sociedade, para dar voz, guardar a democracia, defender a justiça social e lutar contra a corrupção ou favorecer as elites e as hegemonias que se ocupam em formar consensos, lucros e monopólios. Aquele e tantos pensamentos de Freire ajudam a pensar, sobretudo, sobre a atuação da TV Pinel como um legado para toda a comunicação que pretenda ser ética e inclusiva.

Uma mídia comunitária que foi capaz de romper estigmas e trazer à centralidade de seus discursos pessoas que viviam às margens da sociedade pode oferecer para muitos profissionais de comunicação um aprendizado potente para reorientar as percepções de quem pauta a mídia e para a transformação de práticas de comunicação que sejam mais humanizadas e humanizadoras. São os profissionais da comunicação – especialmente, os jornalistas, os cineastas, os publicitários, os assessores de imprensa, os produtores culturais, relações públicas e tantos outros que se dedicam à criação cultural –, dentro ou fora dos âmbitos da comunicação e saúde, os responsáveis por agirem de modo a propagar democracia. No caso do jornalismo, a atuação profissional adequada é imprescindível para que as pessoas possam não apenas se informar de maneira apropriada, mas para que tenham acesso a direitos.

O jornalismo, enquanto prática social de informação e de educação, necessita de profissionais qualificados, não apenas no sentido técnico de produção, mas no sentido humano, da prática da alteridade, para perceber as diferenças sociais como parte do convívio e da experiência humana e, não, como fatores de segregação e exclusão de corpos e linguagens.

Ao longo dos capítulos desta pesquisa, foram evidenciados e discutidos temas que permeiam não apenas a comunicação, mas a saúde e contextos políticos, históricos, sociais e culturais. Essa interdisciplinaridade traçada entre campos de saber sustentou o percurso desta pesquisa até a análise da atuação da TV Pinel, enquanto mídia comunitária e importante instrumento de expressão social e dos ideais propagados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira. Além de pensar as contribuições que a TV Pinel pode oferecer à prática de uma comunicação que pensa pela diversidade, esta pesquisa evidenciou outras reflexões.

No primeiro capítulo, o histórico e o atual contexto das políticas em saúde no Brasil foram apresentados como conquistas da democracia. Ultimamente, esses avanços em direitos sociais, além de atacados, passam por um processo de deslegitimação, um processo de contrarreforma psiquiátrica, tangível aos interesses dos últimos governos marcadamente conservadores e contra os avanços sociais. Essas políticas, na verdade, assumem uma lógica manicomial responsável por encarcerar pessoas ao longo de séculos, como evidenciado pelos pensamentos de Foucault no segundo capítulo desta pesquisa. São essas atuações retrógradas, no campo da política e da saúde, que se somam à tentativa de concentrar o poder sobre a loucura nas mãos da hegemonia de instituições comprometidas com a reclusão de pessoas e, não, com a inclusão social.

O papel das mídias hegemônicas, nesse contexto, como abordado pelos capítulos três e quatro, tende a favorecer a manutenção dessas políticas e de todo esse retrocesso não apenas por contribuírem com a formação de estigmas, mas, além disso, pela desinformação. Em um pequeno estudo de caso sobre algumas notícias compartilhadas pela Revista Veja, foi possível observar como algumas ideias que se querem legitimar podem favorecer que se normalize a utilização da eletroconvulsoterapia como uso corrente para tratar transtornos mentais ou a violência praticada por pessoas que vivem com esquizofrenia. Gramsci demonstrou como a hegemonia é formada pela junção de consensos. Entre esses consensos, está o consenso popular formado – não exclusivamente – pela atuação educativa da mídia e do jornalismo, como destacou Freire, e seus usos para o bem ou para a deformação. Neste caso, para a deformação de direitos e da democracia.

Após abordar esses temas, os dois últimos capítulos, que se dedicam a pensar sobre mídias comunitárias, podem introduzir a importância de se refletir e formar uma comunicação interlocutora e não apenas emissora, ou seja, uma comunicação que leve em consideração quem recebe a mensagem, o interlocutor. Paulo Freire também refletia sobre a importância dessa prática para a população (MEDITSCH; FARACO, 2003). Assim, pensar a contribuição da TV Pinel para a comunicação é, na verdade, pensar em uma prática de comunicação, entre outros aspectos, disruptiva e atenta aos contextos elencados por esta pesquisa.

Incentivada pelo pensamento de Paulo Freire e pelo exemplo da TV Pinel, esta pesquisa defende que uma possibilidade capaz de transformar práticas de comunicação é pensar uma formação adequada, humana e sensível que deve ser oferecida aos atuais e aos futuros profissionais de comunicação. Uma formação, sobretudo, aliada aos preceitos dos direitos humanos, que valorize o SUS, ajude a preservar, por meio de consciências profissionais mais aguçadas, as conquistas alcançadas pela Reforma Psiquiátrica e que compartilhe os conhecimentos elencados pelo campo da comunicação e saúde, defendido por autores como Inesita Araújo e Janine Miranda (2007). Para isso, é necessário que as escolas de comunicação espalhadas pelo Brasil, como o Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, de onde parte esta pesquisa, estejam atentas à formação de grades curriculares e disciplinas com abordagens inovadoras em jornalismo e em comunicação e saúde, mas, além disso, em modos de sentir, ver e representar a realidade. Trabalhar sobre esses eixos é essencial para se pensar em profissionais engajados e responsáveis por uma sociedade mais inclusiva.

Uma pesquisa organizada por Graciele Almeida de Oliveira e Diogo Lopes de Oliveria, em 2020, mostrou um grave dado sobre a formação de jornalistas em instituições públicas de ensino superior brasileiras. Apenas 40,6% das universidades públicas federais e estaduais ofereciam, na época em que foi realizado o levantamento, alguma disciplina relacionada a jornalismo científico (OLIVEIRA, G. A.; OLIVEIRA, D. L., 2020). A preocupação com a oferta de uma disciplina específica como essa está aliada a um problema presente nas redações brasileiras, a escassez e a má qualidade da cobertura de ciência pela mídia. Esse dado é relevante também para esta pesquisa já que é por meio do jornalismo científico que profissionais de comunicação normalmente atuam sobre a cobertura de saúde e de divulgação científica, de maneira geral.

Essa escassez de ensino de um setor do jornalismo demonstra o quão urgente as escolas de comunicação precisam se preocupar em desenvolver – além de uma única disciplina específica e grades – formações humanizadas e que permitam a entrada de novas ideias, da transdisciplinaridade, do campo da comunicação e saúde, das discussões sobre saúde pública, políticas em saúde, Reforma Psiquiátrica, SUS, e de novas vozes, de práticas inspiradoras em comunicação comunitária, como a TV Pinel e a TV Maxambomba, e de autores diferenciados e que representem as realidades profissionais e os contextos sociais brasileiros. Entre alguns desses autores que podem ser sugeridos, a partir desta pesquisa, estão Inesita Araújo, Janine Miranda, Maria das Graças Conde Caldas, Wilson da Costa Bueno, Yuri Castelfranchi, Luisa Massarani e os trabalhos desenvolvidos por instituições como o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor/Unicamp) e a Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência).

Pensar um jornalismo inclusivo e humano é pensar em profissionais que sejam inclusivos e humanos e que tenham acesso a uma formação apropriada. É no âmbito da cultura, como fez a TV Pinel, e dos profissionais da comunicação é que se pode haver a reparação de processos estigmatizantes e historicamente segregadores. A educação, nesse contexto, é uma importante forma de atuação para reorientar sentidos e perspectivas na formação de jornalistas e comunicadores e, além disso, para transformar e fazer dos atuais e futuros profissionais de cultura agentes participativos e ativos para a mudança da realidade social, para a propagação da democracia, dos direitos sociais e da saúde.

Antes de se instituir como prática educativa é preciso que o jornalismo e os jornalistas sejam educados. Além disso, é preciso que a saúde e a democracia sejam revisitadas na formação e na prática de profissionais de comunicação para que direitos, conquistas sociais e avanços sejam mantidos, para que nenhum ser humano seja excluído e para que o jornalismo represente, além de todas as vozes, a potência e a liberdade das vozes periféricas e de todos os pinéis em nossa sociedade.

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QUANDO A gente ama.... Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e TV Maxambomba. Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel/Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), agosto de 1999. 1 fita Super VHS (S-VHS), NTSC (48 min. e 35 seg.).

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SOCORRO. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e TV Maxambomba. Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel/Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), novembro de 1997. 1 fita Super VHS (S-VHS), NTSC (20 min. e 45 seg.).

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TERROR NOTURNO.... Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Imagem na Ação (Núcleo de Desenvolvimento de Projetos de Comunicação e Cidadania). Instituto Municipal Philippe Pinel, Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), outubro de 2000. 1 fita Super VHS (S-VHS), NTSC (48 min.).

TOJA, Noale de Oliveira. Entrevista com Noale Toja [out. 2021]. Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista II.mp4 (1 hora, 2 minutos e 44 segundos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B desta monografia.

TV ENDOIDADA. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e TV Maxambomba. Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel/Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), agosto de 1997. 1 fita Super VHS (S-VHS), NTSC (43 min. e 50 seg.).

TV PINEL mexendo o coco. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Imagem na Ação (Núcleo de Desenvolvimento de Projetos de Comunicação e Cidadania). Instituto Municipal Philippe Pinel, Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), outubro de 2002b. 1 fita Super VHS (S-VHS), NTSC (47 min. e 27 seg.).

TV PINEL na corda bamba. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Imagem na Ação (Núcleo de Desenvolvimento de Projetos de Comunicação e Cidadania). Instituto Municipal Philippe Pinel, Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), maio de 2005. 1 MiniDV e Super VHS, NTSC (34 min. e 48 seg.).

TV PINEL trocando as bolas. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Imagem na Ação (Núcleo de Desenvolvimento de Projetos de Comunicação e Cidadania). Instituto Municipal Philippe Pinel, Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), abril de 2002a. 1 fita Super VHS (S-VHS), NTSC (50 min. e 20 seg.).

TV PINEL: essa loucura é nossa!. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Imagem na Ação (Núcleo de Desenvolvimento de Projetos de Comunicação e Cidadania). Instituto Municipal Philippe Pinel, Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), maio de 2008. 1 MiniDV e Super VHS, NTSC (25 min. e 18 seg.).

TV PINEL: Esse é 22. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Imagem na Ação (Núcleo de Desenvolvimento de Projetos de Comunicação e Cidadania). Instituto Municipal Philippe Pinel, Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), dezembro de 2003b. 1 MiniDV e Super VHS, NTSC (36 min. e 14 seg.).

TV PINEL: uma nave muito louca. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Imagem na Ação (Núcleo de Desenvolvimento de Projetos de Comunicação e Cidadania). Instituto Municipal Philippe Pinel, Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), agosto de 2003a. 1 MiniDV e Super VHS, NTSC (57 min. e 13 seg.).

TV PINEL? Qual é o canal?. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e TV Maxambomba. Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel/Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), abril de 1996. 1 fita Super VHS (S-VHS), (44 min. e 30 seg.).

VARGAS, André. Psiquiatras traçam perfil de Wellington a partir de vídeos: A falta de expressão facial revelaria incapacidade de estabelecer vínculos afetivos. Revista Veja, 19 abr. 2011. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/psiquiatras-tracam-perfil-de-wellington-a-partir-de-videos/. Acesso em: 22 out. 2021.

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10.1. Apêndice A – Entrevista com Valter Filé

Arquivo: Entrevista I – Tempo de gravação: 1 hora e 18 minutos

Realizada em 12 de outubro de 2021

José Valter Pereira (Valter Filé)

Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), professor do quadro permanente de Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF. Líder do Grpesq LEAM (Laboratório de estudos e aprotos multimídia – relações étnico-raciais na cultura digital). Atuou como coordenador da TV Maxambomba, na Baixada Fluminense, e como fundador e consultor da TV Pinel, em Botafogo, no Rio de Janeiro. É doutor em educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em educação pela Uerj e graduado em pedagogia pela Universidade Iguaçu (Unig).

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim

Arthur – Então, eu queria começar perguntando para saber melhor sobre a sua trajetória. Você é um cara que veio lá da Bahia, passou por Vicente de Carvalho e depois foi para Nova Iguaçu e a partir da sua vivência, observando e provavelmente vivendo as dificuldades que eram a Baixada, especificamente naquela época, isso tudo contribuiu para sua trajetória. Como foi esse começo do desenvolvimento do trabalho lá na TV Maxambomba, lá em Nova Iguaçu, até chegar à sua contribuição a outras mídias comunitárias, como a TV Pinel?

Valter – É um prazer, Arthur. Eu só esqueci que hoje era feriado, mas não tem problema, a gente já tinha marcado. Bom, como você falou, eu venho do Rio, saí do Rio para Nova Iguaçu. Na época, Belford Roxo não era Nova Iguaçu. Aliás, Belford Roxo não era cidade ainda, né, fazia parte de Nova Iguaçu. Então, na verdade, eu saí do Rio para ir morar em Belford Roxo e aí, em Belford Roxo, eu me envolvi muito, já tinha envolvimento, mas me envolvi mais ainda com movimentos culturais, movimentos sociais. Então, eu participei da criação do MAB, do Movimento de Associação de Moradores, que foi uma das federações... uma das maiores federações do Brasil na época, era um período em que a ditadura tava terminando só pra situar, pra gente... e me envolvi muito com os movimentos culturais, a música... tinha e tenho até hoje muitos amigos de música e também me envolvi com o movimento de teatro, me envolvi com o do teatro do oprimido já que no início dos anos 80 o Augusto Boal tava voltando do exílio e tinha criado uma fábrica do teatro do oprimido. E, enfim, eu participei também da criação dos CIEPs [Centro Integrado de Educação Pública], a primeira versão dos CIEPs que foi no início da década de 80, no governo do Leonel Brizola, eu participei das coordenações de cultura porque o CIEP tinha uma proposta diferente das escolas mais, né, tradicionais que era ter a relação educação e cultura e ter a proposta de que a comunidade estivesse dentro do CIEP, então a proposta tinha como elemento a criação de pessoas que trabalhassem no CIEP, mas que não fosse para dar aula, não fosse educadores e tal, além de que na proposta original tinha também os pais sociais, que eram bombeiros, PM [policial militar], que ficavam com crianças que não tivessem lugar para morar, tinha um posto médico, enfim, era/foi um projeto muito interessante. E eu me envolvi com toda essa movimentação, trabalhei muito nessa questão cultural e a Maxambomba ela começou a atuar mais ou menos por volta de 1985, 84, 85... só que ela atuava nas associações de moradores e eu conhecia algumas pessoas da Maxambomba, não era da Maxambomba, eu conhecia as pessoas da Maxambomba... e, enfim, porque a Baixada Fluminense, Nova Iguaçu, tinha uma efervescência muito grande e eu também conheci a Maxambomba porque o Claudius Ceccon, que foi o secretário-executivo do CECIP [Centro de Criação de Imagem Popular], um dos fundadores da Maxambomba, ele tinha ido pra Nova Iguaçu trabalhar com Dom Adriano, naquele momento se começava a discutir a Constituinte [Assembleia Constituinte, órgão colegiado responsável por redigir ou reformar a Constituição Federal]. É uma Maxambomba, nesse primeiro momento, a ideia dela era se associar ao MAB, que era a federação de associação de moradores, e tentar discutir questões que fossem importantes pros moradores, né, basicamente aspectos da cidadania... saúde, educação, transporte, enfim. Só que a Maxambomba não era uma versão de rua, era uma versão de monitores que iam pra a associação de moradores. Em 88 para 89, a Maxambomba resolveu sair das associações de moradores e queria fazer uma TV de rua, uma TV com um telão em cima de uma kombi ao modelo da TV Viva, que era uma TV que já existia em Olinda, em Pernambuco. Então, a Maxambomba queria experimentar um pouco ir pra rua e não ser mais de um lugar fechado, de uma associação de moradores. Então, nesse momento em que a TV Maxambomba resolveu ir pra rua, eles pensaram duas coisas. A primeira era ter gente do lugar porque a equipe da Maxambomba, na primeira versão, a maioria das pessoas eram do Rio, tinha algumas poucas pessoas da Baixada, mas a maioria era do Rio. Então a primeira providência foi fazer uma equipe do local, né, e experimentar ir pra rua. Então foi assim que eu cheguei na TV Maxambomba, já conhecia o Tibu, que era um câmera, um fotógrafo muito atuante na Baixada Fluminense, conheci a Nani, que foi uma outra pessoa que vem dessa época da Maxambomba e aí me convidaram pra fazer parte e fui pra lá e fiquei até o final.

A. Vocês passaram por algumas dificuldades também, né, em que teve uma época em que parece que roubaram um dos equipamentos, acho que foi nessa época em que começaram a montar a kombi, não foi?

V. Não, não. A kombi ela foi montada, como te falei, no final da década de 80, a gente levou de 88 para 89 pra ir pra rua, então a gente levou um tempo reformulando a Maxambomba, fazendo uma kombi, adaptando essa kombi pra ter caixa de som, pra ter um telão, pra que ficasse em cima da kombi, enfim... toda uma estrutura para exibição, isso foi em 89. O roubo foi, acho que lá pra 92, 94, por aí... não lembro agora, mas não é difícil de conseguir essa informação, não. O roubo, na verdade, ele é fácil saber porque foi em um período eleitoral também, era período eleitoral... No roubo a gente já tava de vento em polpa na rua.

A. Entendi...

V. E fomos roubados não em uma comunidade, não fomos roubados em nenhuma periferia, não fomos roubados voltando de nenhuma exibição... nós fomos roubados quando nós voltávamos da UERJ. Nós tínhamos ido fazer uma exibição da UERJ, no campus do Maracanã, e quando a gente voltou o motorista tinha que guardar a kombi, ele parou no centro de Nova Iguaçu e aí ele foi assaltado.

A. Isso, e foi esse episódio que foi importante para a TV Maxambomba porque parece que ele fez com que a equipe reformulasse as atividades da TV, não foi isso?

V. Você tá bem informado pra caramba, hein.

A. Tô? Olha, eu li em um...

V. Muito bem informado...

A. Eu li uma tese de doutorado da Luciana Lobo Miranda, foi na PUC-Rio [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro]...

V. Isso...

A. E ela contou a história da TV Maxambomba e da TV Pinel.

V. Isso, a Luciana foi orientanda da... esqueci o nome dela agora, daí da PUC, não sei nem se ela se aposentou.

A. Cassia?

V. Hã?

A. Cassia?

V. Não, Cassia Chaffin, não. Ela era... ai, como era o nome dela? Luciana foi... ah, gente... uma grande figura... Solange Jobim! Luciana Lobo foi orientanda da Solange Jobim que é aí da PUC.

A. Entendi.

V. da área da psicologia, não sei...

A. Sim, a Luciana fez na psicologia.

V. Isso, foi a Solange Jobim, que trabalhou na MultiRio, enfim... a Solange é uma grande figura. E também a Cassia, né, que trabalhou na PUC tem uma tese também sobre a Maxambomba, “Circo Eletrônico”...

A. Sim, a Cassia chegou a ser minha professora...

V. Pois é... a tese da Cassia, na UNIMEP [Universidade Metodista de São Paulo – UMESP], é sobre a Maxambomba, acho que se chama “Circo Eletrônico”, uma coisa assim... e a Cassia trabalhou lá na TV Pinel.

A. Sim, sim... [...]

V. Então... mas como você tava falando. Esse assalto foi fundamental porque a gente ficou sem nada, a gente ficou sem equipamento, nem de... não tínhamos equipamento nem de exibição nem de produção, de gravação, de edição, de nada... porque tava tudo dentro da kombi e aí a gente teve que fazer a estética da necessidade, né, cara. Coisa que nós na Baixada sabemos fazer muito bem. Então, é... não tem cão, caça com gato. A gente, na época, começou a procurar quem fazia casamento, enfim, as pessoas nas periferias sempre têm, né, um... agora, todo mundo tem uma câmera, todo mundo tem um celular, mas, naquela época, você tinha nas comunidades pessoas que tinham uma câmera de VHS, fazia casamentos, fazia batizados e tal e aí a gente levantou essas pessoas nos lugares em que a gente exibia e fez uma troca, a gente disse... olha, a gente faz oficinas de edição, de gravação e introdução, enfim... e vocês participam da equipe da Maxambomba produzindo os programas do bairro, vocês vão ficar como “repórteres de bairro”, foi aí que a gente criou o “repórteres de bairro”... então, cada bairro a gente não tinha como produzir e eram as pessoas do próprio bairro que produziam os programas que a gente exibia à noite e a gente fez isso em situações muito complexas, por exemplo, a gente recebeu a visita na Maxambomba, numa das exibições, em Santa Rita, no Rancho Fundo, que é Santa Rita, não sei se você conhece... perto de Tinguá. A gente recebeu a visita do Noam Chomsky. Ele foi assistir um programa gravado pela comunidade, não entendeu nada, óbvio!

A. do Chomsky?

V. É, não entendeu nada... É, existe uma matéria, não sei se foi a... acho que eu até tenho...

A. Caramba!

V. É, o Chomsky havia vindo ao Brasil e foi um episódio muito engraçado porque ele veio ao Brasil prum encontro de intelectuais na Coppe da UFRJ [Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro], era um encontro, assim, de alto nível. E aí parece que chegou no final... Regina ‘Zato’! O nome da repórter do Jornal do Brasil que fez uma matéria. E aí quando chegou no final do encontro, é... à tardinha... eles tinham um jantar com, sei lá, umas autoridades, e o Chomsky se “engredou” no ouvido da Regina ‘Zato’, que ele já tava meio de saco cheio, ele queria assistir... queria conhecer uma experiência de comunicação popular, se ela conhecia alguma... Aí ela falou pro Claudius, ligou pro Claudius e o Claudius falou que tem a Maxambomba, “você quer ir? Mas é lá na Baixada Fluminense, é longe pra caramba, é um lugar na periferia...”.

A. Claudius?

V. Claudius Ceccom.

A. Ah, tá... que era da...

V. CECIP!

A. CECIP!

V. O CECIP é a ONG que era onde a Maxambomba era realizada.

A. Acabou sendo a sede, depois, da Maxambomba, né?

V. Não, o CECIP sempre foi a sede dos projetos, de vários projetos... tá? O CECIP era a ONG onde a Maxambomba tava localizada. A Maxambomba era um projeto do CECIP.

A. Entendi...

V. Então, por exemplo, o Eduardo Coutinho também produzia lá no CECIP, tem várias produções do Coutinho que são do CECIP. Então, o CECIP... a Maxambomba era um projeto do CECIP e que funcionava no Centro do Rio. Funciona até hoje, ainda existe.

A. Ah, entendi...

V. A Maxambomba era um projeto do CECIP. Então, falaram com o Claudius, o Claudius falou “olha, lá no fim do mundo...”, “vamos”, e aí o Chomsky e a esposa e a Regina ‘Zato’ e o motorista, imagina você, entrando pelo, né, periferia de Nova Iguaçu, que na década de 90 cê imagina o que era... hoje pode até tá melhorzinho, iluminação, essas coisas... mas naquela época não tinha asfalto em muitas das ruas, tudo escuro, saneamento ainda era uma coisa muito... então, ele viveu essa experiência de emburacar por dentro da Baixada e chegou lá, a exibição era um filme que os meninos do Rancho Fundo, os garotos tinham feito, que chamava “o buraco”... que ninguém entendia o que era, mas a comunidade entendia e adorou o filme. Eles não entenderam nada, mas tudo bem. Ele ficou muito feliz, assim... ele não sabia que tinha uma coisa dessa. Ele fez até uma menção a essa experiência dele num dos livros, o Claudius saberia dizer melhor em qual deles.

A. Entre os seus interesses, até que estão lá no seu currículo também, a gente nota que é essas relações entre as culturas, o audiovisual, a produção da igualdade, você falou isso em algum momento, as questões raciais no Brasil. Você, de certa forma... porque, assim, são tantas [produções]... “meio ambientemente” (1993), “a praça do libertador [pacificador]” (1993), o projeto do “puxando conversa” (1998) que é muito legal, enfim... “a lei dos homens” (1992)... aquela da “a história de Nova Iguaçu” (1990), “Mesquita”, que é surpreendente, né? Quem vai imaginar, quem mora longe da Baixada, no Rio mesmo, que Mesquita tinha tanto artista, tanta gente... assim... A “eleição do Lindomar Ribeiro” (1990), que é muito bom, aquele “preconceito contra nordestino” (1991) também... Esses vídeos me remetem muito a minha infância na Baixada, assim, parece uma volta a minha infância, às coisas que as pessoas diziam... A “praça do libertador [pacificador]” então... Existia uma lenda urbana em Duque de Caxias...

V. do Pacificador!

A. Perdão, [Praça] do Pacificador! Existia uma lenda lá em Duque de Caxias de que o McDonald’s da Praça do Pacificador vendia pastel com caldo de cana e aí em uma das cenas do “Praça do Pacificador”... aparece uma placa na frente do McDonald’s dizendo Mc Caldo de Cana...

V. Mc Pastel! Mc Pastel e caldo de cana.

A. Gente! Não é verdade mesmo? E a TV Maxambomba registrou isso, sabe? Isso me emociona porque ver esses muitos vídeos é voltar a minha infância, pra realidade que eu vivi. Eu vivia... Eu sou de Santa Cruz da Serra, lá em Caxias, você deve conhecer... Então... você transformava os seus interesses também, né, que permeavam os interesses a essa realidade toda da Baixada, né, o preconceito, a questão da inclusão, o audiovisual, as culturas – que a Baixada é cheia de cultura – você transformou isso, provavelmente, nas temáticas da TV Maxambomba, correto? Como é que isso foi refletindo, assim, na sua trajetória até chegar na atuação da TV Pinel? Porque... Uma coisa que você acabou de falar, que a Luciana também falou na tese dela, que a TV Maxambomba ela incluía os moradores na produção, né. Você falou do “buraco”, por exemplo, desse vídeo dos meninos... e a TV Pinel tinha essa semelhança de incluir os usuários do Instituto Philippe Pinel. Essa seria uma das semelhanças mais notáveis entre as duas TVs?

V. É... Na verdade... pode falar, termina, te cortei!

A. Eu queria ouvir um pouquinho como foi sua trajetória...

V. Então...

A. [...] como era essa sua produção que você fazia de transformar os seus interesses, a sua vivência também, nos temas da TV Maxambomba...

V. Então, quando a Maxambomba sai da associação de moradores, em uma exibição interna que ficava muito presa aos interesses de um presidente da associação de moradores, a gente vai pra rua e fica à mercê de Exu, a gente fica largado, a gente fica, assim, à deriva... Então, nada melhor do que você experimentar, então, você tem a chance, olha, aqui, tudo pode dar errado, mas também a gente pode ter a chance de... já que tudo pode dar errado, a gente pode experimentar. Então a gente começou a experimentar. A primeira coisa que a gente tinha como foco era assim... se antes a gente fazia programas que tinham a ver com... explicitamente com questões de cidadania, direitos dos moradores e tal... nós não mudamos o foco, a gente só tentou dizer assim... “olha, todo mundo conhece a Baixada por um lado negativo, então a gente vai tentar focar, agora, a Baixada com pessoas criativas, com pessoas trabalhadoras, com pessoas bacanas. Não que a gente quisesse esconder aquilo que fosse negativo, mas a gente queria procurar aquilo que ninguém queria ver, aquilo que já se sabia da Baixada de antemão, que ela era uma coisa horrível, que ela era... aliás, tem até um vídeo no YouTube que chama “nunca fui, mas sei que não gosto” [Nunca Fui Mas me Disseram], sei lá... que é, as pessoas ouvem falar da Baixada e acha que na Baixada se tropeça em corpos o tempo todo, só tem gente imbecil e a Maxambomba dizia “não, olha aqui”, é o exemplo que você deu de “Mesquita”. Muita gente que não morava na Baixada, quando viu esse vídeo, inclusive eu passei uma vez na PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro], na aula daquele filósofo que morreu... ai, gente... como é o nome dele? Um grande filósofo da PUC... não vou lembrar o nome dele agora... Então, assim, a ideia era essa e a ideia era experimentar... nós tínhamos um problema: como a Maxambomba era um projeto do CECIP e o CECIP não tinha um financiamento muito gordo pra Maxambomba como a TV Viva tinha, a gente vivia de muito pouco recurso, então nossas câmeras eram câmeras muito tímidas, nosso equipamento de edição... então a gente falou assim, olha, a gente não pode ganhar a Globo no aspecto da linguagem de qualidade de vídeo, então, vamos ganhar pela linguagem, coisas que a gente possa fazer, experimentar e ver o que que dá. Então, por exemplo, o “repórter de bairro” era para fazer trabalhos junto com as pessoas, a gente foi assistir novela com as pessoas à noite e começamos a conversar sobre novela, a gente fez... experimentou fazer um vídeo-carta entre escolas da Baixada Fluminense, Japeri e Mesquita, onde os alunos conversavam e discutiam questões deles. Então, a gente começou a experimentar a linguagem, para que serve essa linguagem? Muito mais do que produzir vídeos acabados com uma mensagem moralista. Então, os nossos vídeos eram muito mais provocadores pra que a gente alimentasse um discurso à noite, alimentasse uma discussão na exibição. Eles não terminavam dizendo... “bom, e agora vocês viram como é que faz isso, isso e isso...”, não. O “político” [Eleições Lindomar Ribeiro, 1990], por exemplo, ou o “preconceito contra nordestino” (1991), é uma brigalhada só e as pessoas ficam quase se saindo no tapa no calçadão e chega à noite, quando a gente exibia, continuava um furdunço e era isso o que a gente queria, possibilitar que as pessoas conversassem, não tem uma moral. Como na “Praça do Pacificador” (1993), a gente pega amanhecendo o dia e até a última... o último personagem sair da praça, quer dizer, a gente queria só mostrar a praça como ela era e já dava muito pano pra manga, né. O Eraldo que fala, o HB que fala: “pô... essa sacada de bagunçar com Caxias foi maravilhoso porque a estátua tá lá e a gente perguntas às pessoas, que eu sempre achei que todo mundo sabia quem era aquele cara e o mau que ele fazia pra cidade... merda nenhuma! Os moradores: ‘é Dom Pedro I... é São Jorge Guerreiro!’”. É genial, cara. É uma desmoralização daquilo que tentaram fazer. O HB sempre falava isso. Então, essa era a proposta: trabalhar com a participação das pessoas, não fazer uma TV para, mas fazer uma TV com! E isso possibilitava que a gente também entrasse em sintonia com os moradores. Quando veio a Reforma Psiquiátrica, o Pinel ganhou uns equipamentos, né, compraram uns equipamentos para o Pinel, que não eram equipamentos pra fazer vídeo, eram equipamentos pra trabalhar com crianças autistas e psicóticas, só que as coisas públicas são assim, né... você não tem ou, quando você tem, você compra mais... você comprou um... era câmera de vigilância e compraram câmera de vídeo, ilha de edição, compraram um monte de coisa e aí como tavam no momento dessa Reforma Psiquiátrica, a Dora, a Doralice Araújo, que era uma psicóloga do Pinel, junto com o diretor do Pinel, que era o Peret [Ricardo Peret], eles falaram “olha, a gente podia fazer uma experiência com vídeo aqui... e a Maxambomba tem uma experiência bacana. Podíamos chamar a Maxambomba pra ajudar a gente a pensar alguma coisa pra fazer com vídeo”. E por isso que a gente foi e aí me chamaram pra ir lá e pensar uma possibilidade de fazer vídeo com eles e eu dizia, “olha...” em princípio, eles queriam fazer vídeos institucionais, vídeos que falassem “olha, como é que é o hospital-dia, olha como é que é o tratamento disso, olha como é que é que os usuários fazem isso... eu falei “olha, isso eu não sei fazer, não. Esse vídeo institucional acho que outras produtoras podem fazer. Talvez o que a gente possa fazer aqui é convocar a comunidade toda e ver o que que sai daqui” – que era a experiência da Maxambomba e isso era o que a gente sabia fazer. A gente não era os melhores fazedores de vídeo, nós erámos pessoas que trabalhávamos com participação coletiva. E foi assim... Aí a gente foi pra lá e um desespero só porque a gente não sabia muito o que nos esperava, eu tinha um medo, achava que... tinha um preconceito danado, achava que os doidos iam quebrar a câmera e avançar na gente, vir babando... Nunca tinha entrado num hospital psiquiátrico e você vai com a imagem de quem mora no Rio tem da Baixada, eu fui o mesmo, né. Eu entrei no hospital e foi o lugar onde, assim, eu me senti... foi o lugar que mais me enriqueceu, depois da Maxambomba, foi a experiência do Pinel. E como a gente não sabia como é que... fazia nada... a gente começou a experiência da TV Pinel fazendo o que às vezes a gente fazia nas comunidades, botamos uma câmera e o microfone e reunimos o pessoal do hospital-dia, médico, enfermeiro, os profissionais da segurança e os usuários e aí dissemos “ó, quem quiser pegar o microfone e a câmera e falar alguma coisa, tudo bem”. Aí alguém pegou o microfone – não tinha ninguém pra pegar a câmera –, uma pessoa da nossa equipe que tava lá pegou a câmera e foi o Maycon! Que depois virou a cara da TV Pinel, virou repórter da TV Pinel, o Maycon, ele faz as entrevistas. E o Maicon pegou o microfone e começou “o que cê acha de uma TV aqui no Pinel?” e as pessoas respondiam. Até que chegou...

A. Ele era um usuário ou era um funcionário?

V. Um usuário que também foi funcionário da TV Pinel, porque isso foi uma coisa que a gente sacou que podia ser legal. Ao invés de você ter um trabalho de... um trabalho só terapêutico, que fosse institucionalmente terapêutico... não, a gente pensou um trabalho. Na medida que as pessoas se destacassem, elas podiam ser convidadas para formar equipe e ganhavam um salário, o Maycon ganhava um salário como repórter. No início, não, óbvio... ele participou... mas a nossa equipe tinha, às vezes, quatro, cinco, seis pessoas... que eram usuárias. E aí o Maycon sai fazendo essa pergunta, a gente não sabia por onde começar as discussões do Pinel até que a Dei... uma pessoa pega o microfone e diz “eu posso contar uma piada?” e aí fala a frase célebre da TV Pinel, com aquela pergunta “vocês sabem o que que tem de baixo do tapete do hospício? É louco varrido, entendeu?”, aí, cara, a gente falou “olha, aqui já foi!”. Aí a gente entendeu que tinham duas questões muito importantes pra gente pensar com a TV. A primeira era eles conseguirem rir ainda deles mesmos. Então, quando ainda existe a capacidade do riso, é porque ainda existe uma fortaleza, ainda existe um ser humano ali, né? Porque o riso é muito potente. E depois ela acaba dizendo que a questão psiquiátrica não era uma questão médica apenas, era uma questão mais social, de que tinha uma sociedade que queria esconder essas pessoas. E aí, pronto, esse foi o primeiro programa, o primeiro programa nasceu assim, de um tiro que a gente deu no escuro, um estalinho do nada.

A. Isso que você me contou me lembrou muito um documentário feito na... com o Arthur Bispo do Rosário, não sei se você chegou a assistir esse documentário. É antigo, que era numa colônia... Colônia Juliano Moreira e eu fico pensando nesses entrelaçamentos, né. Esse documentário, um psicanalista foi lá na colônia, foi entrevistar o Bispo do Rosário, acabou entrevistando outras pessoas que viviam lá e existe um diálogo muito... até célebre... muito importante, né, durante esse documentário e você falou uma coisa, assim, interessante. Eu fiquei pensando. É porque durante meu ensino médio, eu fiz um curso técnico de enfermagem, aí eu fiz um estágio num CAPS lá em Caxias, no centro de Caxias, e o que eu via nesse CAPS era que muitos usuários lá do CAPS, é... eles iam, tinham... recebiam medicação, alguns, eles iam pra... eles recebiam serviço de terapia ocupacional, alguns vinham... a família levava, normalmente a mãe ou a irmã, né, e alguns iam sozinhos. [Esses] eles não tinham casa, eles eram pessoas em situação de rua. Eu acredito que nessa época da TV Pinel, possivelmente, muitos usuários do instituto também, depois da Reforma Psiquiátrica, não tinham muito onde viver e lá no instituto eles desenvolviam essas relações, né, sociais, a TV Pinel desenvolveu muito isso... Você acha que, por exemplo... Eu não conheci muito a história do Maycon, eu sei do repórter, essa cena dele é bem marcante, mas a TV Pinel ajudou também trazendo, por exemplo, o Maycon como funcionário, ajudou, por exemplo, a transformar a vida desse indivíduo? A dar uma condição um pouco melhor pra ele? [...] Não sei se você se lembra muito da história dele.

V. Olha, eu acho que, assim, a gente sempre fica tentando estabelecer essas relações, mas a vida é mais complexa. Não acho que... obviamente, o período em que o Maycon atuou como repórter, como funcionário enquanto a TV Pinel existiu, foi muito importante pro Maycon, que ele era uma pessoa reconhecida. Os programas da TV Pinel, diferentemente da TV Maxambomba, eles ganharam um, assim, ganharam um mundo. A TV Pinel ganhou prêmio em festival no Japão. A TV Pinel teve matéria no Le Monde, A TV Pinel... onde você ia as pessoas sabiam da TV Pinel, inclusive, porque ela passava no Canal Saúde também e passava na TVE [TVE Brasil, antes TV Educativa do Rio de Janeiro ou TVE RJ]... que antigamente... que era aquela TV pública que tinha no Rio que agora é essa desgraça aí, né. Enfim... Então, assim, isso obviamente que fazia bem pro Maycon, mas a vida é mais complexa. Uma coisa dessa não resolve a vida... e outra coisa, as pessoas do hospital-dia, que se tratavam no Pinel, a maioria delas não tinham problemas de serem de rua, não. Tinham casa. Uns moravam na Rocinha, outros moravam ali em Santa Marta, outros moravam na Zona Norte, é... Campo Grande... mas as pessoas tinham casa, tinham família e tal. Algumas pessoas que não tinham casa, algumas das alternativas, da forma, foi o “lar abrigado”, que era a experiência de ter uma casa gerida por uma instituição onde fosse moradia pra essas pessoas. Então, na... no hospital, no Pinel... porque o Pinel, quando ele começa, ele não era um CAPS, ele era um hospital de referência, inclusive era um hospital e era um hospital de residência psiquiátrica e de enfermagem. Então era... não era um lugar, assim, só de atendimento, era de internação e de estudo, enfim... era um hospital que era um hospital de referência. Então, assim... na verdade, Arthur, eu acho que a TV Pinel ela foi importante, obviamente, pras pessoas que trabalharam na TV Pinel, né. Usuários ou não usuários. Mas eu acho que a TV Pinel foi muito importante também, e eu te diria que muito, pras outras pessoas, pra sociedade de uma maneira geral. Porque... porque eu lembro que antes da Reforma Psiquiátrica, antes da TV Pinel e até hoje o tema da loucura é um tema em que as pessoas falam com muita dificuldade, as pessoas tem muita dificuldade de falar disso e, até então, quando você tinha matérias do... documentários ou a maioria do que se tinha sobre os hospitais psiquiátricos era, primeiro, chamando de hospício. Segundo, mostrando a condição desumanizadora que os hospitais forneciam às pessoas e mostrando as pessoas numa situação, às vezes, muito degradante ou, por outro lado, mostrando as pessoas como se elas fossem super inteligentes numa ideia de dizer... de pintar o louco como uma coisa brilhante, que também é uma forma de sacanear as pessoas, né. Então, eu acho que a grande sacada da TV Pinel foi ela começar a trabalhar a questão da loucura de uma forma bem-humorada, o que não deixava de ser sério e que não deixava, às vezes, de ser muito profundo as questões que ela tratava, mas de uma outra forma, percebe? Então, eu acho que a TV Pinel ela teve um impacto na vida das pessoas, obviamente, mas, por exemplo, a TV Pinel é uma experiência governamental, então, você imagina o que que acontecia entre um governo e outro, que acabava o contrato da TV Pinel e essas pessoas ficavam sem salário. As pessoas, às vezes, passavam três, quatro meses sem salário. Aí como é que você faz, né? Então, é muito mais complexo. Eu acho que a TV Pinel, aquela experiência, foi muito importante. A gente tem, só pra te dar uma ideia, tem um sujeito chamado Paulo [...] ele dirigia alguns vídeos da TV Pinel, ele era um usuário, cara super inteligente, cara, assim, de uma capacidade intelectual fantástica e... a gente... ele não fazia nada no hospital-dia, ele não fazia terapia ocupacional, ele não queria participar de grupo de terapia coletiva, ele não queria participar de cozinha, ele não queria participar de nada, nunca participou de nada. E um dia ele se aproximou da TV Pinel e a gente já sabia da história dele... a gente, de vez em quando, entrevistava as pessoas. A gente perguntou: “Paulo, por que você resolveu se aproximar da TV Pinel? Por que que você quer participar da TV Pinel?”. Ele falou: “Porque a TV Pinel é uma coisa séria, é um trabalho. A gente produz vídeos e os vídeos vão pro público, o público vê a gente, interage e a gente tem uma existência digna. Ele não é uma terapia ocupacional e a terapia ocupacional... eu, quando tive meu primeiro surto... eu vim pra cá e eu fiz tanto cinzeiro que eu não sei nem onde colocar aquele tanto de cinzeiro, nem sabia que tinha tanta gente que fumava assim no mundo...”. O dia da terapia ocupacional era só pra deixar ele ocupado pra ele não fazer... não ficar dando trabalho. A TV Pinel, não, era um projeto que tinha uma... um objetivo de falar com a sociedade, dialogar com a sociedade. Então, ele reconhece isso. Agora, você me diz: “ah, que ótimo que o Paulo reconheceu isso e isso transformou a vida dele”. Não. O Paulo, dois anos depois, o Paulo morreu. Ninguém sabe se ele se suicidou ou se ele tomou overdose de remédio. Então, ninguém sabe se ele tomou remédio achando que não tinha tomado e ficou tomando porque era... era bem o quadro dele ou se ele realmente queria se matar e tomou um monte de remédio. Então... é muito mais complexo. O outro cara que é genial, o Jorge Romano, você deve ter visto vídeos sobre ele... Ele fornecia as frases mais emblemáticas da TV Pinel, as camisas da TV Pinel tem “não jogue fora sua loucura, ela é real”, várias frases da TV Pinel são do Jorge Romano, é um poeta que editou livros como aquele [...] lá do Humaitá... é... tinha um livro que chamava “a união das coisas contrárias”. Era um cara, assim... maravilhoso! A gente queria fazer um programa e falava “ó, vamo lá com o Joe e vamo fazer um programa com o Joe Romano”. A gente fazia programas com ele, assim, porque ele era brilhante. O Joe Romano, um dia, pegou a bicicleta e atravessou o Aterro do Flamengo... você pode imaginar o que deve ter acontecido...

A. É... muito forte... Essa fala do... desculpa, eu esqueci o nome...

V. do Paulo!

A. Do Paulo... Você disse “é que aqui na TV a gente existe”... Isso me lembra muito também a TV Maxambomba, né, porque o pessoal na Baixada “não existe”. A gente sabe das mazelas que existem na Baixada e elas existem porque, às vezes, não têm visibilidade, porque o pessoal da Baixada não têm voz. Então, isso se assemelha muito, né. Ou seja, as pessoas com transtornos mentais também não tinham voz, não tinham visibilidade, eram apagadas. Tem uma frase que diz que “a loucura, ela... é uma codificação que leva ao silêncio”, né, e ela... isso lembra muito a realidade social da Baixada. Você diria, talvez, que a Maxambomba, ela... fundou a TV Pinel?

V. É...

A. Você diria isso? Porque o que há de essencial na TV Pinel, que é incluir as pessoas, pessoas que não são ouvidas, pessoas que não existem, entre aspas, isso já acontecia na Maxambomba. Você diria isso? Que a Maxambomba fundou a TV Pinel?

V. Óbvio. Isso é reconhecido porque, na verdade, quando eles chamam a gente, é... eu fui como consultor, eu que fui começando a trabalhar lá no hospital pra montar equipe. Por exemplo, a equipe da Maxambomba tinha... chegou a ter 80% de pessoas que tinham sido “repórter de bairro”, que a gente aproveitou e recuperou porque eram pessoas que estavam fazendo um bom trabalho nos seus bairros e tal e a gente achou que, pelo traquejo que as pessoas tinham em trabalhar comunitariamente seria bom ir pra TV Pinel. Então, o Pinel convidou a Maxambomba... no caso, eu fui como coordenador da Maxambomba... eu fui pra lá pra pensar o projeto da Maxambomba dentro do hospital, junto com o pessoal do hospital, e o que eles queriam... A Dora quando ela chama... vai no CECIP e pede pro CECIP se a Maxambomba podia ir lá trabalhar o projeto, trabalhar o audiovisual com a Pinel... ela queria porque ela conhecia como a Maxambomba trabalhava, ela não queria uma produtora de vídeo que fosse pra lá fazer vídeo, né. Inclusive, isso é uma coisa... só um parênteses pra te exemplificar isso... o serviço de saúde mental de São Paulo, uma época teve um pessoal de São Paulo, de um CAPS, que mandou uma mensagem pra TV Pinel pra dizer: “olha, a gente também tá tentando fazer a nossa TV Pinel e a gente não consegue, a gente não funcionou aqui... a gente queria saber onde a gente errou. Será que a gente pode ter uma conversa?”. Eu falei: “Pode!”. Veio a equipe toda de São Paulo e, no dia que chegou lá na TV Pinel, a gente tava gravando e tinha umas confusões lá, a gente tava muito atarefado... eu peguei um vídeo, “A Endoidada”, que era uma novela baseada na “A Indomada” [novela de 1997 transmitida pela Rede Globo], não sei se você já viu... botei essa novela pra elas verem, “A Endoidada”, e falei: “ó, dá uma olhada aí que eu vou lá resolver isso aqui e volto. Aí quando eu voltar a gente conversa, eu ouço o que que vocês têm de problema... vocês queriam fazer uma coisa parecida com a TV Pinel e não deu certo”. Aí eu fui resolver as coisas e eles ficaram vendo “A Endoidada”. Quando eu voltei, que eu fui falar com a equipe, eles disseram: “não, a gente já entendeu, a gente já entendeu onde a gente errou”. Aí eu falei: “beleza, então, não precisa conversar mais nada... foi um prazer...”. [A equipe de São Paulo:] “Não, a gente vai conversar, mas a gente errou...”. Por que que eles erraram? Porque, como em São Paulo o CAPS tinha muita grana, eles contrataram a melhor equipe de produção audiovisual de São Paulo pra trabalhar lá no hospital. O que que isso significou? Significou que a equipe... que tinha um pessoal no CAPS que queria gravar uma cena que chamava “o garçom cego”, era um garçom que servia num bar e ele era cego, ia derrubando as coisas, sei lá... não sei bem como era o roteiro. E o cara queria gravar isso e os outros usuários pilhados pra gravar também... só que como eles contrataram uma equipe super profissional de vídeo, o que que aconteceu... chegou lá, a cada erro a equipe mandava repetir... errou, a equipe mandava repetir... errou, a equipe mandava repetir... Aí, cara, na terceira vez os doidos já tavam putos da vida e falaram “ah, a gente não quer fazer essa merda mais, não...”, se emputeceram e saíram fora. Não queriam mais, era aborrecido pra caramba, cara. Cê gravar a mesma cena cinquenta vezes e passar meio dia gravando uma cena, ninguém queria. Na TV Pinel, não. A gente gravava o que saísse e o making off entrava toda hora, que a gente aprendeu com eles isso, entendeu? A continuidade não existia e, pra essa equipe de produção, existia, porque ele queria apostar que ia sair um vídeo perfeito e não era disso que se tratava. E um exemplo disso... eles perceberam, esse pessoal de São Paulo percebeu. Nessa novela “A Endoidada”, tinha uma cena de uma fuga... uma noiva fugindo do Pinel ali na [Avenida] Venceslau Brás, a noiva fugia e vinha um segurança e segurava a noiva pra impedir que a noiva fugisse. A gente gravou do lado de dentro do Pinel, a noiva fugindo... corta. Bota a câmera do lado de fora e grava a noiva fugindo de novo, repete a cena pra montar depois, saindo e aparecendo do lado de fora. Primeira cena, gravamos, o cara, o segurança, tinha dois metros. Cortou. Botou a câmera do lado de fora... Ah, e a direção dos programas era sempre compartilhada, era uma pessoa que já sabia fazer vídeo e um usuário. Nesse caso, era a Barbara que tava comigo. Então, a gente cortou, botou a câmera lá do lado de fora, a noiva sai... quando a noiva saiu, ela foi agarrada por um cara que devia ter um metro e meio, era outro guarda. A gente falou: “porra, isso não...”. Eu falei: “Bárbara, isso não monta, isso não dá continuidade”. Ela falou: “Grava, grava, grava assim mesmo. Grava assim mesmo, grava assim mesmo”. Gravamos. E aí, eu que era o especialista em vídeo, falei assim: “Bárbara, o guarda do primeiro plano, ele tem dois metros e o outro plano é um cara totalmente diferente, tem um metro e meio... não tem continuidade”. Ela virou pra mim e falou assim: “Filé, a vida de ninguém aqui tem continuidade. Eu tô gravando hoje, amanhã eu posso estar internada. Então, é isso mesmo. Sabe como é que a gente vai resolver isso?”. Cara, tenta ver esse filme que é muito doido... Tem o primeiro take, entre o primeiro e o segundo take, aparece o guarda dando uma entrevista e o guarda fala: “Não, na hora em que eu fui gravar de novo, tocou o telefone e aí eu tive que sair e pedi pro meu colega me substituir” (risos). E aí ele foi! E aí, pronto, o vídeo foi assim. Cara, o pessoal adora. Então, coisas sutis, sabe... Tem um outro que queria fazer uma procissão e aí falava assim, ó: “eu quero fazer uma procissão com uma santa que eu achei na lata do lixo, a gente vai fazer uma procissão aqui pelo Pinel e eu vou falar umas orações”. Aí ele: “Nossa senhora do caixote quebrado...”. Aí, um que tava do lado falou assim: “Não, não é caixote, não...”. Não, era uma nossa senhora que foi achada num caixote quebrado, então ele tinha que falar “nossa senhora do caixote quebrado”, era a oração que ele tinha que fazer... combinamos, tudo. Aí ele: “gravando!”. “Nossa senhora do serrote quebrado”. Aí o outro falou: “não, não é serrote, não. É caixote”. Ele “não, mas agora eu quero serrote, deixa o serrote...”. Baixinho, mas se ouve. Tu acha que isso corta? Não foi cara? E, cara, a galera se escangalhava porque é nessa... a gente não quis disfarçar pra dizer que a vida não enguiça. Não, a vida enguiça toda hora. A vida tem essas interrupções, a vida tem esses vacilos... A vida deles têm isso e a linguagem do vídeo, ela tenta esconder que as coisas, às vezes, não funcionam daquela forma como tá editado. Então, o pessoal de São Paulo falou “pô, aí entendi”. O making off tava o tempo todo.

A. E como é que foi? Deu certo? O pessoal de São Paulo?

V. Depois, eles voltaram... aí, não sei. Nunca mais fizeram contato [...] deve ter dado, sim. Mas...

A. Pode falar.

V. Mas é um trabalho muito específico, cara, você tem que estar dedicado a achar que a participação das pessoas, que é mais importante do que, é... aquilo que as pessoas... aquilo que tá escrito que vai ser gravado. Por exemplo, nos 50 anos da TV brasileira, é... Foi nos 50 anos? Não... Não sei... Foi no aniversário da TV brasileira, teve uma exposição de vários diretores de cinema, em São Paulo, acho que no museu da América Latina, no Memorial da América Latina... não lembro. O Eduardo Coutinho foi fazer um vídeo sobre a TV Pinel, um vídeo pra homenagear os tantos anos da televisão brasileira... ele foi fazer um vídeo sobre a TV Pinel. Levou a equipe dele, produziu tudo, combinamos tudo que ia acontecer. Na hora, deu tudo errado, cara. Deu tudo errado... porque a galera improvisava o tempo todo, cara... saia da coisa. Cenário caia... ele ficou desesperado. Primeiro, ele ficou desesperado porque ele achava que não ia acontecer. Depois, quando ele gravou, ele ficou maravilhado. Ele falou: “pô, maravilhoso”. Porque é isso, era assim que ela funcionava. Entendeu?

A. Entendi. Você, falando dessa colaboração com uma equipe de São Paulo, de CAPS, eu fico... uma coisa que eu queria muito perguntar pra vocês é que vizinha à TV Pinel tava a Escola de Comunicação da UFRJ, que antigamente, ali, era um hospício... onde viveu o Lima Barreto e tal... por coincidência. Nunca se pensou em uma parceria com essa escola de comunicação? Você sabe?

V. Não... a gente tinha conversas, né... Assim... mas é porque a vida acadêmica é diferente, né, cara. A vida acadêmica é diferente. A gente recebia alunos, às vezes, por interesse próprio, mas não que alguns professores não soubessem do que acontecia ali, não tivesse interesse, que a gente não conversasse... Por exemplo, Ivana Bentes [ex-diretora da Escola de Comunicação da UFRJ (2006 – 2013)] sempre foi uma pessoa muito ligada, a gente já participou de coisas juntos... O Muniz Sodré [professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ], enfim... não significa que a gente... Nunca tivemos uma parceria institucional, até porque o hospital era aquilo tudo, não era só a Escola de Comunicação, né. O Pedro II [Hospício Pedro II, inaugurado no Rio de Janeiro em 1852], aliás, o hospício, onde depois virou o Pinel, era aquilo tudo, era um prédio... Não era só a Escola de Comunicação, tinha...

A. Isso, isso. Era todo o palácio ali, né?

V. A Educação, enfim... um monte de faculdade. A gente nunca teve uma parceria institucional, e até porque... é muito complexo também, você... A gente tinha parcerias com o serviço da UFRJ de psiquiatria, né. E ali, também do lado, tem o IPUB, que é o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, e aí nós tivemos parcerias com as atividades artísticas deles. Até hoje, existe ainda um bloco que foi fundado por isso. “Tá pirando, pirado, pirou”, que é um bloco de carnaval que existe até hoje, tem essa parceria.

A. É... porque quando a gente pensa, né, no preconceito, no estigma em relação aos transtornos mentais, a gente sabe que a mídia propaga muitos desses estigmas até hoje, né, pelas notícias. Vão apresentar uma pessoa que vive com esquizofrenia e ligam a esquizofrenia com um contexto de violência, né. Uma pessoa muito violenta, uma pessoa que não se dá com os demais, quando não é bem assim. As coisas não são bem assim lineares e tal. Coisa que corrobora muito hoje. A gente tá vendo aí um desmonte da saúde mental, eu não sei se você ficou sabendo que uns vereadores entraram lá no Pinel faz poucos dias dessa [entrevista]. Acho que foi no dia 8 [de outubro de 2021] pra fazer uma inspeção lá no Instituto Philippe Pinel e, desde o golpe da Dilma [Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil], tão derrubando muitas coisas que a Reforma Psiquiátrica trouxe. Por resolução, por invenção de lei e tal. E, de certa forma, a comunicação, o jornalismo, ele corrobora muito com essas visões retrógradas, corrobora com essa realidade. E eu fiquei pensando, caramba, a TV Pinel tinha muito isso de pensar de acabar com o preconceito, mas será que eles nunca pensaram em incluir os futuros profissionais que tão se formando ali na ECO [Escola de Comunicação da UFRJ], entendeu? E eu, inclusive, queria pensar, através da minha pesquisa, muito isso e perguntar também pra você. O que você acha? Você também como profissional de comunicação, do audiovisual. O que que você acha que esse profissional em específico, que trabalha com promoção de cultura, ele deve ter na sua formação? [No sentido] de desenvolver como perfil profissional, sabe? De levar em consideração essas perspectivas que são muito hegemônicas, que são contra minorias, né? O que você acha que um profissional de comunicação, um produtor cultural, tem que ter na sua formação? Assim, não sei, de modo geral...

V. Olha, eu acho, Arthur, assim... Eu vejo a questão até um pouco mais complexa. Eu acho que... eu não diria que todos os profissionais são assim, eu diria que...

A. Não, claro!

V. É... As escolas de comunicação ainda fazem um bom trabalho, mas isso é uma formação, às vezes, a formação da pessoa de um modo geral, não é uma formação específica à formação acadêmica que te dá isso. É, como por exemplo, médico. A classe médica é uma classe média alta que vai trabalhar com o pobre e vê ali um bosta, isso na frente dele. Isso é uma questão de classe, uma relação de classe. O único médico que olhou pras pessoas e disse “eu tenho que fazer alguma coisa por essas pessoas e não pode ser no consultório” foi o Che Guevara [Ernesto Rafael Guevara de la Serna, mais conhecido como Che Guevara, um revolucionário marxista]. Ele disse: “não, não dá pra ir pro consultório ficar enxugando gelo”. Do mesmo modo, a questão profissional de comunicação, eu acho que o maior problema não é nem o profissional, cara. Porque, assim, vamos supor que você saia agora do seu trabalho... da sua formação, e você vá trabalhar no O Globo. Cara, o veículo não vai te dar espaço, o veículo vai ser você aprender a segurar microfone ou aprender a inventar notícia, né. Então, você tem muito... Hoje em dia, a gente tem até uma outra alternativa, que muitos profissionais de jornalismo, de comunicação, tão na internet, tão fazendo umas coisas alternativas... coisas que não tinham na minha época. Agora, ainda assim, você é muito suprimido pelo mercado. Você é uma pessoa começando, cara. Você não vai ser chamado pra TV Pinel. Você vai ser... querer um emprego, numa grande produtora, num grande jornal ou então vai fazer uma coisa alternativa na internet. Entrar pro The Intercept, entrar pro [Jornal] GGN, entrar pra um jornal alternativo desse, mas, fora isso, o que me parece que trabalha o perfil das minorias, trabalha o perfil das pessoas de uma maneira que eu diria criminosa até são as grandes mídias que tão a serviço do capital, cara. Pra cê ter uma ideia, a Reforma Psiquiátrica, de uma tacada só, ela acabou com um negócio da saúde mental, que era um negócio de um lucro estupendo e até hoje o pessoal se recente disso e tenta voltar com as internações e com os manicômios, como você mesmo falou. Cada dia eles vão derrubando alguma coisa. Então, assim, eu te diria que mais do que os estudantes, é... o que eu acho que as formações, pelo menos nas públicas que eu conheço... A ECO, a escola da UFF [Universidade Federal Fluminense], a escola da UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], que são as que eu conheço razoavelmente bem, elas têm uma boa formação. Agora, quem vem, que tem uma formação que ultrapassa a formação acadêmica, o que que sente? Como é que ele pensa o outro, como é que ele pensa? Isso, talvez, a formação acadêmica não mude esse cara até por uma questão de classe, até por uma questão de como ele se posiciona frente a uma sociedade de consumo, como é que ele se posiciona politicamente, entendeu? É o médico, eu tô te falando que é a mesma coisa do médico, é a mesma coisa de várias profissões. Óbvio que, na comunicação, você não tem tanto... tanta margem de manobra quanto tem um médico, como tem um juiz, como tem um advogado, mas, por exemplo, se você perceber que, já há algum tempo, se tenta fazer que a profissão de jornalista possa ser exercida sem a pessoa ter formação... você já ouviu isso, né? Toda hora eles tentam. O que que significa isso? Significa dizer “cara, a gente não precisa de ninguém com formação, não. A gente precisa botar alguém pra gente ditar o que tem que escrever e pronto!”. E é assim que funciona nas redações. Ou você é o João Saldanha, que trabalhava em plena ditadura militar pro O Globo e bancava sua coluna, que o cara falava: “pô, a gente tem que...”, o Roberto Marinho era experto, falava: “a gente tem que aturar esse comunista porque ele faz a gente vender jornal e ele sozinho não vai fazer uma revolução”. Hoje piorou porque as redações... se você falar isso que você me falou, metade do que você me falou aí, vão te chamar de ingênuo, vão dizer que você tem que sair dessa profissão porque o mundo é mais caótico. Porque as pessoas, às vezes, tão querendo agradar o chefe. Então, é uma...

A. Entendi, mas não falo nem de mudar uma grande lógica, mas, por exemplo, ao menos... por exemplo, a gente tá vendo aí um desmonte da saúde mental pública no Brasil por resolução, por lei... lei após lei. Isso não tá sendo muito noticiado. Se isso não tá sendo muito noticiado, além de muitos fatores, claro, complexos, também tão porque muitos profissionais da comunicação, do jornalismo, ou seja, não tão muito antenados nisso. E eu fico pensando muito que a gente entra na faculdade e sai da faculdade aprendendo um jornalismo muito linha dura. Às vezes, muito Hard News. Eu fico pensando... como é que seria, talvez, se as universidades, ao menos, incluíssem temas relacionados à comunicação e saúde, que envolve tudo isso. Pra que os profissionais no futuro saiam antenados com essa visão. Essa coisa da comunicação, do jornalismo, por exemplo, que é a minha área, se antenar na saúde veio com a pandemia. Aí pegaram todo tipo de repórter... [todo tipo de repórter] agora, é um especialista em saúde pra poder cobrir alguma coisa de Covid porque isso tá, enfim, isso...

V. É a pauta!

A. É a pauta! De toda área, de esporte a política. Então...

V. É a pauta.

A. Então... eu fico pensando nisso. Você não acha que incluir alguma coisa diferente na formação pode mudar esse contexto, esse paradigma?

V. Não acho, não. Infelizmente, Arthur, eu acho assim, ó... A única salvação possível, se é que existe salvação num modelo capitalista, aliás, num modelo neoliberal da pior espécie, mais predatório do mundo. Arthur... porque, se não, a gente vai ter que pegar e incluir na pauta várias coisas e essas coisas todas fazem parte da mesma lógica. Vou te perguntar uma coisa... O que que apareceu da pandora na grande mídia? Pandora Papers, o que que apareceu na grande mídia? Cê soube da Pandora Papers, não soube?

A. Não.

V. A Pandora Papers foi uma... um pool de jornalistas do mundo, esses projetos são bacanas... um pool de jornalistas do mundo todo, tem uma organização que eles investiram coisas no mundo todo, e descobriram que o [Paulo] Guedes [ministro da Economia] e um outro ministro do [Jair] Bolsonaro [atual presidente da República Brasileira] têm contas num paraíso fiscal.

A. Ah, sim...

V. E uma empresa num paraíso fiscal em dólar, que tá lucrando com o aumento de dólar. Essa operação, essa matéria chamou “Pandora Papers”. Cara, tu quer escândalo maior do que esse? Cê vê aonde na grande mídia? A gente vê na mídia alternativa, na internet. A grande mídia também bota dinheiro lá, a grande mídia também tem um offshore lá [termo se refere a empresas abertas em outros países, geralmente onde regras tributárias são menos rígidas].

A. Ah, claro. Entendi.

V. A grande mídia, ela... alguém do mercado de saúde tem interesse naquilo, então você pode ir o mais bem formado possível, Arthur, e chega lá você vai dizer assim: “olha, queria fazer uma matéria sobre a... tão terminando com a Reforma Psiquiátrica”. O cara vai dizer: “tá bom, mas vamo deixar aí pra ver o dia em que a gente pode encaixar aqui na pauta”. Porque o jornal não... infelizmente, a grande mídia e, infelizmente, mas tem um contraponto, bom que se diga. Nem tudo é essa desgraça. O contraponto, qual é? É que elas tão desmoronando, né. Hoje, você tem mídia alternativa. Pior era no tempo em que só tinha eles.

A. É...

V. Você pode ser o mais bem intencionado do mundo, cara. Se entrar lá pra dizer “olha, eu agora quero fazer uma matéria que diga como o neoliberalismo tá...”. Olha a ginástica que esses caras tão fazendo pra, é... pra descer o pau no Bolsonaro sem que respingue no Guedes, olha essa ginástica. Porque o Guedes ainda interessa pra fazer as atrocidades que ele tá fazendo, pra desmanchar o Brasil como ele tá desmanchando. Tá desmanchando só a saúde, não, tá desmanchando o país. E aí você diria que pessoas que trabalham lá não sabem ou não têm coincidência disso? Têm. Às vezes, falam “porra, eu tenho que pagar minhas contas, eu não posso sair agora”.

A. E tudo tá envolvido com essa questão do monopólio, né? Eu acho que o grande problema é o monopólio da comunicação.

V. Exatamente, exatamente, exatamente.

A. Não só no Brasil, no mundo, mas...

V. É, mas... mas no mundo você pode relativizar, cara. Por exemplo, se eu disser assim “porra, a Inglaterra tem aqueles jornalecos, aquela imprensa nanica desgraçada...”

A. Tabloides...

V. [...] que é pior do que em qualquer lugar do mundo... porra, mas você tem a BBC, cara, que é enorme, né. Que pode pautar o que ela quiser, que, por lei, você não tem ninguém do Congresso, da Câmera dos Lordes, do primeiro ministro, não tem ninguém que possa ir lá e dizer “olha, isso aqui não vai entrar”. Não, a BBC, como ela foi criada, ela fala de qualquer assunto. Então, isso é uma diferença.

A. Uhum.

V. Aqui todos os veículos que são grandes, eles falam em uníssono. Eles falam a mesma coisa. É contra a liberdade de expressão, que aí diz que é censura. É contra alguma coisa que beneficie determinadas classes sociais porque é um projeto político e, pior, é um projeto político que não é nem um projeto político de nação, é um projeto político de saque. É saquear mesmo o país, ninguém tem um projeto de nação. Diferentemente, por exemplo... porque uma coisa é você ser capitalista e, além de capitalista, filho da puta. O... Eu gosto muito do Luis Nassif, que é um jornalista que tem lá no... acho que é GGN, não sei. Ele tem um canal aí. Ele fala “pô, eu... a gente tinha pessoas como o pessoal do Unibanco”, né, aquele... o dono do Unibanco, o banqueiro que morreu. O cara, ele tinha uma visão de economia do Brasil, dizendo “a gente tem que preservar o Brasil, tem que construir um Brasil forte”. Ele queria ganhar muito dinheiro, mas queria que o Brasil fosse um país. Agora, não. Todo mundo quer ganhar dinheiro e que se dane, pode acabar amanhã. E você vê... o cara com dinheiro, o cara um banqueiro que consegue educar os filhos como ele educou. Cê conhece os dois, né, o Walter Salles e o João Moreira Salles.

A. Uhum.

V. Riquinhos. Vai dizer “ah, são os riquinhos do cinema”. É, podia ser pior, podia ser uns filhos da puta e não são. Então, o que a gente vê é que até o Roberto Marinho, alguns políticos diziam que ele tinha um projeto pro Brasil. Os filhos são uns merdas. Isso que sobrou é um bando de idiota que querem dilapidar o Brasil, sabe. Os caras não têm coragem de se juntar e dizer “pô, esse cara tá acabando com o Brasil, vamo tirar o cara”. Não... vamo ver onde a gente vai pegando aqui e ali uma migalha, uma aqui e outra ali, entendeu? Eu acho, Arthur, que a tua profissão, o que tá salvando hoje são as mídias alternativas e olha que a gente tem bons exemplos. Essa... esse pessoal que fez a matéria do Pandora Papers é um grupo de jornalistas, um grupo mundial de jornalistas. O Jornalismo Sem Fronteiras é um grupo bacana. Cara... quem tiver que ganhar dinheiro, não tem jeito... ou vai pra aquele jornal, hoje, de Nova Iguaçu ou vai pra aqueles jornais da Baixada [Fluminense], que também você vai ter que ser muito criativo pra montar uma coisa bacana aqui e ali e não tem muito jeito, cara. Ou entra numa mídia alternativa, mas como a gente tem que se sustentar, como é que faz? O meu privilégio é que eu tive a sorte de minha vida toda trabalhar em projetos desse tipo, então, porra, eu fui muito feliz, cara... Foi... Me enriqueceu a vida e, hoje, quer dizer, já há algum tempo, eu sou professor universitário, mas também... numa universidade pública, não preciso entrar no mundo cão aí dos negócios, né. Não sofri tanto.

A. Entendi. Você continua na Baixada?

V. Não, hoje eu moro em Niterói. Eu moro em Niterói desde os anos dois mil e alguma coisa... 2003, se não me engano, 2000... e... mas fiquei na Baixada até 2019 dando aula na Rural [Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ], dava aula na Rural de Nova Iguaçu.

A. Você passou pela Rural também?

V. Passei, eu fui um dos fundadores daquele campus da Rural de Nova Iguaçu. Saí agora em 2019.

A. Caramba...

V. Dezembro de 2019, com a pandemia, eu consegui uma transferência pra UFF. Agora, eu dou aula no curso de cinema na UFF.

A. Ah, bacana. Poxa, uma hora conversar com você. Eu queria terminar essa entrevista, esse papo com você... eu estava lendo [sobre] uma passagem do Coutinho, que você até mencionou. Eu acho que foi na época da Maxambomba, foi... Em que eles foram, eu não sei se você estava também. Eles foram num lixão e aí ele foi entrevistar uma pessoa que vivia lá, um homem, e o Coutinho perguntou: “aqui é bom ou ruim?”. E aí aquele homem respondeu: “aqui é melhor do que casa de madame”. Eu achei isso muito emblemático, isso me tocou muito. E, enfim, queria te agradecer demais pela entrevista. Oi?

V. Eu escrevi, inclusive, um artigo sobre esse documentário que se chama “Boca de Lixo” (1993), tem na internet, se chama “boca de lixo”. É... eu não tava nessa produção, mas acompanhei a produção o tempo todo porque a gente trabalhava no CECIP, né, então a gente se encontrava. Aquele povo fedendo a lixo e a gente... eu escrevi com a minha esposa um artigo pra falar da... dessa coisa do Coutinho na relação de alteridade, a relação com o outro, né. E, nesse caso, da pergunta, ele é o cara que é capaz de fazer a pergunta que ninguém vai fazer, que o repórter não vai fazer porque o repórter quer saber do já sabido ou quer saber algo pra confirmar aquilo que ele já sabe dali. Ali não tem gente, ali as pessoas sofrem, ali as pessoas são como bicho, né. Então... e também não conversam com essa pessoa. O grande barato desse documentário... é curto. Se você puder ver vai ser... é que ele chega no lixão e as primeira imagens, ele mostra gente e bicho misturados e quando acaba o vídeo você tem a impressão de que houve um processo de humanização das pessoas. Primeiro, porque todos têm nome; ele usa um dispositivo pra se aproximar das pessoas, mas as pessoas não querem falar com ele porque já tem a experiência do jornalismo que só quer mostrar desgraça e como ele vai construindo uma relação. E essa conversa é com uma mulher.

A. Uma mulher?

V. É... mas depois eu vou te mandar esse artigo.

[...]

A. Eu posso te perguntar por que te chamam de Valter Filé?

V. Pode, claro. Eu, na verdade, eu era muito magro e aí era “filé de borboleta” quando eu era... na adolescência. E aí ficou, cara. Não teve jeito. Aí, quando eu... na Maxambomba, eu era Valter Filé. Na universidade, sou Valter Filé e ficou, né.

10.2. Apêndice B – Entrevista com Noale Toja

Arquivo: Entrevista II – Tempo de gravação: 1 hora, 2 minutos e 44 segundos

Realizada em 14 de outubro de 2021

Noale de Oliveira Toja

Doutora em educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em educação-cultura-comunicação em periferias urbanas pela Uerj e graduada em pedagogia pela mesma universidade. É integrante do grupo de pesquisa em “Currículos Cotidianos, Redes Educativas, Imagens e Sons”, coordenado pela pesquisadora Nilda Guimarães Alves e atua em temas relacionados a migração, redes educativas e artefatos culturais e tecnológicos. Foi coordenadora de equipe e de produção da TV Pinel entre 1999 e 2014.

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim

Arthur: [...] Noale, eu queria começar a nossa entrevista perguntando pra você sobre como foi a sua trajetória até chegar à TV Pinel e também passando pela TV Maxambomba. Como é que se deu o seu processo de desenvolvimento profissional?

Noale: [...] Antes de trabalhar na TV Maxambomba, né, que foi anterior à TV Pinel, eu desenvolvia um projeto, eu atuava... sempre atuei com arte, né, com arte e educação. Então, eu fazia teatro na ocasião, trabalhei na animação cultural, nos CIEPs, trabalhava com associações de moradores na Baixada, tinha um projeto de animação cultural com crianças e adolescentes na Baixada nas associações de moradores. Na época que ainda tinha associação de moradores, assim, bastante organizadas porque foi logo depois do regime militar. Era ali entre, é... entre final de 80 e início de 90, né. E aí tinha um movimento muito forte, eu trabalhava... já atuava com teatro e comecei a me enveredar pra essa área da animação cultural com as crianças. As crianças e adolescentes na Baixada. E, em seguida, eu comecei a desenvolver um projeto no Turano [Morro do Turano], também com teatro e animação cultural lá, envolvendo mulheres, e por conta dessas experiências eu fui convidada pra trabalhar num projeto que era da Cruzada do Menor, um projeto que acontecia na Zona Sul do Rio com crianças e jovens, é... crianças e adolescentes que viviam nas ruas. Então, eu fui trabalhar nesse projeto que, na verdade, era uma casa de acolhida, era uma casa que recebia essas crianças e adolescentes durante o dia. À noite, eles continuavam tendo atendimento na rua. E aí eu era educadora social e tal, mas aí atuava com um monte de coisas, dentre elas o teatro e outras linguagens, e ficava acompanhando os garotos ali como uma mãe cuidadora, vamos dizer. Porque essa casa, como era uma casa em que você tinha 25 pessoas lá morando, é... além daqueles que eram atendidos, atendia cem pessoas, tinha essa relação aí com... de uma educadora social, quase essa ideia de mãe social, né, que fica ali... Não era exatamente isso, mãe social tinha no CIEP, né, as crianças que ficavam lá dormindo durante a semana... eu tô só fazendo uma associação. E aí lá eu descobri uma câmera dentro desse espaço, dentro dessa casa. Aí comecei... eu ainda não gravava, não filmava, não fazia nada com fotografia também, embora gostasse de fotografia, mas não era... não era minha praia, minha praia ainda era mais o teatro mesmo. Aí eu comecei a pegar a câmera de vídeo e filmar coisas ali com os garotos, né. E a gente começou a desenvolver algumas coisas nessa coisa, fazia muito o trabalho do Teatro do Oprimido, o Teatro Fórum, que eu tinha feito uma formação com o Augusto Boal do Teatro do Oprimido, e aí eu tentava juntar uma coisa com a outra, o teatro e o vídeo, né. E [...] muita coisa ali do universo, muito ali junto disso tudo acontecendo, surgiu uma oficina de audiovisual feita pela TV Zero, na época tinha a TV Zero, a TV Zero era um projeto bastante interessante de vídeo popular que [...] que era uma outra organização que tinha na época, tinha a Fase [...] que eram organizações que, é... que foram surgindo a partir dessa abertura com o final do Regime Militar, eram organizações que davam um suporte técnico, financeiro, com projetos e tal pra classes menos favorecidas, né, e pra organizações, organismos, assim, mais, é... como eu posso dizer, né? Associações de moradores, federações, enfim... essas organizações dos movimentos populares. E aí eu fui fazer essa oficina da TV Zero, que era essa oficina de audiovisual que eu curti pra caramba, era uma animação, a gente fazia animações com meninos de rua. Aí era muito legal porque aconteceu isso... a oficina pra educador pra menino de rua, trabalhava com menino de rua. Eu fui fazer essa oficina, eu fui fazer... era na Candelária. Eu não lembro se era no CCBB [Centro Cultural Banco do Brasil] ou se... era em algum estúdio, só sei que me lembro da Candelária ali, tinha uns garotos ali nas redondezas, a gente fez essa oficina juntos e foi maravilhoso, adorei fazer animação e nunca poderia imaginar que o audiovisual era dessa maneira, né. E nessa ocasião já não gostava tanto de televisão mais, já não tinha muita paciência pra televisão, tinha minhas questões com a televisão, né, minha crítica com esse processo de produção da televisão, a maneira como estigmatiza, padroniza... essas questões todas que estão dentro desse universo, das mídias e, sobretudo, a televisão nessa ocasião. E aí eu fui aprofundando essa história do audiovisual, né. Na sequência, com esse projeto, a gente tava começando a desenvolver... minha atuação muito na Baixada, eu fazia esse projeto em Copacabana, mas a minha atuação continuava na Baixada muito forte. Então, tinha uma universidade popular da Baixada, eu trabalhava nessa... fui convidada pra trabalhar nessa Universidade Popular da Baixada pra, é... por conta, inclusive, do projeto com as crianças e com os meninos lá de Copacabana pra fazer um, uma divulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. E quando eu fui fazer esse projeto de divulgação, era um projeto com arte, e eu tinha que articular todos os artistas da Baixada, então eu fui pra todos os municípios da Baixada Fluminense achar esses artistas... Trabalhar a questão do Estatuto da Criança e do Adolescente com esses artistas e criar eventos nas praças dos municípios. A gente atuou em oito municípios. E, nesse momento, eu encontrei a TV Maxambomba, que fazia as exibições nas ruas. Então, e soube do projeto, fui atrás da TV Maxambomba pra que eles pudessem fazer uma parceria com a gente pra, em algumas atividades, eles poderem estar fazendo as exibições dos vídeos e de vídeos sobre o Estatuto, fazer a atuação deles na Baixada... no evento. E aí eu, falando com a coordenação com a TV Maxambomba, né, dessa experiência com a TV Zero... que aí eu parei de fazer vídeo, né, eu fui fazer esse projeto, eu fiquei um ano, saí da Casa e Companhia [Casa & Cia], do projeto de Copacabana, e fui fazer outra coisa e aí eu falei disso, falei dessa oficina e, aí, eles falaram “pô, você não quer fazer uma oficina de vídeo com os movimentos sociais? A gente tá fazendo oficinas de vídeo com os movimentos sociais, a gente começou pelo movimento de mulheres. Agora, a gente vai fazer com o movimento negro, a gente está fazendo com o movimento de creches”. Aí eu falei assim “ah, eu quero, claro que eu quero. É de graça, então beleza...”. Então, fui fazer essa oficina. Foi com o movimento negro, ficamos um ano nesse processo porque a oficina, a gente tinha que produzir um vídeo e era sempre muito polêmico e tal. E acabou que eu fui convidada pra fazer um trabalho de produção dentro da TV Maxambomba pra acompanhar um outro projeto lá deles e pronto. Aí eu comecei a me envolver mesmo com o projeto da Maxambomba e que foi maravilhoso, né. Então ali eu aprendi a fazer vídeo, o audiovisual eu aprendi todo ali, aprendi a fazer fotografia, aprendi a editar, que é uma coisa que eu amo. Pra mim, a edição no audiovisual é uma coisa mais potente que tem, não desmerecendo as outras coisas, mas é onde eu mais me identifico e a fotografia, é claro. Mas, o que era mais interessante na Maxambomba é que a gente vivia criando coisas na Maxambomba. Então, o projeto que começou fazendo todas essas oficinas, né, quer dizer... primeiro, ela fazia a exibição de vídeo na associação de moradores pra conseguir... pra distribuir ticket de leite porque era uma coisa, assim, meio agregada, né, uma coisa meio esquisita, é... Depois desse processo, a Maxambomba começou a entender, “não, a gente não tem que ficar dentro da associação de moradores, não tem que ficar, né, parecendo que tem essa questão política/partidária...”, porque as associações estavam criando essa coisa da política partidária e achava que a Maxambomba tinha que ter um movimento mais pra fora mesmo, né. E foi quando, é... com as exibições dos vídeos no telão, né, e a Maxambomba produzia os vídeos. A equipe, e aí foi o Filé, o Filé começou a ter esse insight de que, assim como teve as oficinas com as pessoas, com os movimentos, pra que elas pudessem se apropriar daquela linguagem e daquela tecnologia pra poderem falar de si, é... começou a achar que as pessoas das comunidades por onde a Maxambomba passava deveria fazer seus programas. Então, foi aí que a gente foi fazer o “repórter de bairro”, aí teve vários projetos. O “repórter de bairro” que era isso... a gente se distribuía em não sei quantos municípios, não sei quantos bairros. Sei lá, vinte bairros no início, depois passou pra catorze, depois passou pra sete, que aí foi reduzindo, né. Mas aí...

A. Você é de qual município?

N. Hã?

A. Você é de qual município?

N. Eu... eu já sou assim, sou nômade, né. Eu nasci em Caxias, vivi dez anos em Caxias, depois eu vivi mais dez anos em São João de Meriti. Depois, eu fui pra Nova Iguaçu, vivi mais um tempo. Depois, eu vim pro Rio e voltei pra Austin [bairro do município de Nova Iguaçu]. Então, eu morei no Gramacho, morei na Vila São José, no Sumaré, no Vilar dos Teles, é... no centro de São João... e, depois, em Nova Iguaçu, eu morei mais ali no centro e, depois, em Austin. E você? Você é de onde?

A. Eu sou de Santa Cruz da Serra.

N. Ah, sei. Minha irmã é dali, eu tava ali esses dias. É, eu tava na casa dela na terça-feira. Santa Cruz da Serra é muito legal, né.

A. (risos)

N. É longe, mas é muito bom. Pra você que vai pra PUC, ainda bem que tá online porque... (risos)

A. Era um sofrimento...

N. É chão, né. Mas é bom, eu gosto pra caramba daí de Santa Cruz da Serra. A minha irmã mora em, ai... não é Vila Olímpio [Jardim Olimpo], não... como é que é o nome ali...? Canaã, Vila Canaã, pertinho de Olímpio, não sei o quê olímpio. E aí, assim... quando é nessa época a gente fazia programa em Magé, fazia programa em Caxias, na Praça do Pacificador, em Belford Roxo, ali naquela... em Belford Roxo, ali perto do... do Pilar, né, que já é Caxias, mas ali... Vila Pauline... Então, a gente andava muito, né. Tanto dentro, né... que era a periferia da periferia, né. A gente ia pra dentro dos municípios pra ir fazendo essa... essa ideia do “repórter de bairro”. E, tinha o repórter de bairro, e tinha um outro projeto que era o “vídeo-escola”, que começou com o “vídeo carta”, que também era essa coisa com estudantes. Você ia pras escolas pra criar conversas com aqueles estudantes. Isso primeiro com a “vídeo carta” e, depois, trocar informações, né, entre estudantes e entre escolas. Depois, a gente fez com professor e aluno, enfim... Muitas coisas. Com esse fomento todo, né, e com essa intenção dessa democratização da comunicação, que a gente tava no calor dessa discussão também com a ABVP, né, a Associação de Vídeo Brasileiro [Associação Brasileira de Vídeo Popular]... essa discussão sobre essa democratização dos meios de comunicação que, ainda pensando na televisão, que fica, né, nas mãos de poucos ali, né, sobretudo, nas mãos do Roberto Marinho na época, né, ainda antes de ter tanto... essa coisa dos evangélicos, enfim... mas a gente fazia essa discussão dessa democratização e entendia que essa democratização, ela passava por essa apropriação dos equipamentos, da tecnologia e da linguagem pra que as pessoas pudessem fazer e falar de si porque a maior crítica que se tinha também aos meios de comunicação naquele momento é que os meios de comunicação, é... lidavam com a periferia, com a Baixada sobretudo, com a periferia de uma maneira muito negativa, sempre criando estigmas, né. Sempre criando preconceitos e aí, é... sem valorizar, sem evidenciar aquilo que tinha de potente na Baixada. Então, a TV Maxambomba tinha essa preocupação também, né, de evidenciar essas potências, valorizar, sobretudo, a arte e a cultura desses lugares e as manifestações que haviam ali, né, e fazer seu papel ali também junto ao movimento de associação de moradores, que é a questão do lixo, do... enfim, as questões ali mais, né, que se diz... primordial. Com esse acúmulo da TV Maxambomba, e eu ficava atuando em todas essas coisas porque eu gostava muito, então eu fazia a TV... fazia o “vídeo escola”, o “vídeo escola” pra mim era maravilhoso porque depois a gente começou a dar oficina pros estudantes também e pros professores na escola. Então, a gente, primeiro, fazia conversas, debatendo o tema de drogas, sexualidade, a própria educação na perspectiva do estudante e do professor e, depois, a gente trocava esses vídeos e, depois, a gente trocava entre escolas e aí eles sempre avaliando, analisando os vídeos, né. As nossas edições, as tomadas de plano. Então, tinha uma questão também meio didática nessa relação, uma didática que você ia falando e, no fazer, explicando como é que é essa manipulação dos meios de comunicação, né, pelo nosso fazer. Como a gente manipula o discurso, como manipula a imagem, ops... caí? Não, apertei uma tecla sem querer aqui... [houve uma pequena interrupção]

A. Não.

N. E aí fomos chamados pra fazer a TV Pinel em função dessa experiência. Em 96, na verdade, essa conversa começou em 95, aí em 96, conseguiu... se efetivou. Era um projeto, o Pinel, né, era um instituto de referência em saúde mental, ele tava recém inaugurado como instituto porque o Pinel sempre foi o Pinel ali, o hospital psiquiátrico ali em Botafogo, sempre foi isso. Quando começa o movimento da Reforma Psiquiátrica, esse movimento, é... naquela ocasião, tinha um movimento muito forte, muito potente, a galera de esquerda ali com muita força, com articulações importantes e aí, na ocasião, o Pinel era do Ministério da Saúde, ministério, né, o Governo Federal. Tava dentro de... Esse ministério tinha força naquele momento e o Ricardo Peret, né, que era o diretor, o psiquiatra [...] que era diretor do Pinel, ele era, assim, uma pessoa bastante articulada e tinha o Domingos Sávio, que era outra pessoa da Reforma Psiquiátrica, desse movimento, que estava no... lá no ministério. E o Peret já desde sempre, o Peret, ele era psiquiatra, mas ele trabalhou na TVE, ele tinha experiências com televisão... ele trabalhou na TV da Bahia, ele tinha outra experiência com a TV educativa no Rio e chamou a Doralice Araújo, que era uma pessoa também... uma psicóloga focada nessa coisa da imagem, ela é fotógrafa e curte essa coisa da imagem, sempre produziu nessa direção e ela também estava no Pinel. Então, nessa ocasião o Peret achou pertinente começar a levar o audiovisual pra dentro do Pinel. Então, antes mesmo de nos chamar pra fazer a TV Pinel, o Peret comprou esses equipamentos e foi lá e criou, é... usava esses equipamentos. Era uma câmera muito profissa pra aquele momento, uma ilha de edição, pra fazer o acompanhamento das crianças autistas no tratamento. Então, ele gravava tudo e fazia aquele acompanhamento, né, quer dizer, a equipe lá do Naicap [Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica], que é uma equipe de tratamento dos autistas e a Dora que era a pessoa do ambulatório que cuidava dos adultos, trabalhava com a fotografia e também usava o vídeo. E aí surgiu a ideia de juntar todas essas coisas e fazer a TV Pinel. A Dora coordenando a TV Pinel, foi quando nos chamaram e nós passamos a fazer uma formação, né, permanente com o grupo de usuários do Pinel. Então, a TV Pinel, quando ela começa, a gente começa fazendo programas juntos com os pacientes, então a gente nunca fazia um programa que era da nossa cabeça. Tava sempre ali com os pacientes sugerindo a pauta, é... produzindo juntos, e a gente ia fazendo essas oficinas de formação com os grupos pra que eles pudessem ir se apropriando dos equipamentos, da técnica, pudessem gravar, fazer o som, fazer a edição, roteirizar, dirigir. Então, era... só que, assim, essa galera... ali nós já tínhamos... quando nós chegamos no Pinel já havia tido uma formação com três pacientes, que eles já eram câmeras editores, então já tinha um grupinho ali. Então, a gente potencializou esse pessoal, né, e fomos trabalhando com os outros e não só os pacientes, né, os usuários, mas os familiares, os enfermeiros, outros núcleos de atenção como o Naicap, [...] e aí isso foi se transformando, né, dentro dessa ideia de TV comunitária.

A. Noale, conversando com o Valter [Filé] e, agora, com você, eu percebi que o Valter Filé, ele teve mais no início da formação da TV Pinel. Ele mesmo fala que foi a TV Maxambomba que, não sei se foi...

N. Que iniciou!

A. Que iniciou a TV Pinel, e você acompanhou a TV Pinel em diferentes fases, né. Existe até, na tese de doutorado da Luciana Lobo Miranda. Ela fez uma entrevista com você, com o Filé e o Maycon [usuário da TV Pinel], em que vocês estavam discutindo sobre TV comunitária. Na entrevista, você apresenta suas ideias e daí afirma que a TV Pinel seria uma TV comunitária, eu não sei se você mudou muito a ideia, né.

N. Uhum.

A. E o Valter Filé dizia que a Maxambomba não era uma TV comunitária, era uma TV de rua ou TV popular. Você ainda mantém, por curiosidade, essa ideia de que o Pinel foi mesmo uma TV comunitária mesmo depois da sua passagem pela Pinel e da criação da ONG até o encerramento dos trabalhos?

N. Sim, eu acho que, enquanto nós tivemos lá, eu acredito que tenha sido uma TV comunitária por ter sido feito com as pessoas, por ter sido... por ter tido atuação com diferentes núcleos dentro do Pinel. Então, nós íamos pras mulheres, por exemplo, nós fizemos uma oficina com as mulheres que faziam atendimento da UTA [Unidade de Tratamento de Alcoolistas do Instituto Philippe Pinel – UTA/IPP], que é o tratamento de alcoolismo. Fizemos uma oficina ali e aquelas mulheres fizeram uns vídeos e passava na TV Pinel, entrava na grade de programação da TV Pinel, né. Assim como os meninos do [...], os adolescentes, assim como profissionais, tinha um enfermeiro lá, um chefe de enfermaria, que adorava fazer programas e aí ele pensava os programas, reunia pessoas da equipe dele pra gravar os programas e, às vezes, chamava gente de outros setores. Então, assim... e fora, claro, os próprios usuários que chegavam lá com demandas. “Ah, eu queria fazer uma programa sobre isso, eu queria fazer um programa sobre...”. “Então, vamo escrever”. A gente escrevia ali, né, e fazia clipe musical, coisas de animação, desenho animado, enfim, o que vinha fazer, surgia... a gente ia colhendo e ajudando a realizar, né. Nesse sentido, eu percebo, né, que a TV Pinel foi uma TV comunitária porque ela tava atendendo aquela comunidade e não só atendendo no sentido de estar a serviço de... ela não estava só a serviço, ela era feita com. As pessoas tomavam decisões ali. É claro que é diferente da gestão administrativa. Na gestão administrativa tinha uma ONG. Nós criamos a “Imagem na Ação”, que foi uma ONG criada depois que o CECIP [Centro de Criação de Imagem Popular] deixou de realizar... Quando a gente saiu do ministério [da Saúde] e foi pra prefeitura do Rio, né, o CECIP ficou com receio de entrar e ser uma furada porque a gente tinha muita estabilidade e muita força política do ministério e, na prefeitura, aquela coisa já não era tão assim... como posso dizer? Não tinha a força política que se tinha antes, né. Fala! Pode me cortar, tá, que eu falo pra caramba!

A. Eu ia perguntar exatamente isso pra você. Você assumiu a coordenação da equipe da TV Pinel após um momento que parece que foi um pouco crítico, né, nesse processo de municipalização dos hospitais no Rio e da saúde e também da saída de uma figura importante aparentemente, que foi a Doralice Araújo, a Dora. Como é que foi pra você viver esse momento também, né, é... de criação de uma ONG, que você acabou de citar, que foi a “Imagem na Ação”. A Luciana Lobo, ela apresentou uma versão de que a saída da Doralice foi muito marcante pra vocês e, aparentemente, a Doralice fez essa ponte... eu não sei se foi exatamente a Doralice ou o Peret também, né? Essa ponte entre a Maxambomba e a Pinel. E aí, quando ela sai... a Luciana, naquela época, quando ela escreveu, já faz um tempo, né, era como se deixasse a TV Pinel um pouco órfã. Como é que foi viver esse momento da criação da ONG até o encerramento?

N. Em relação a essa coisa da Dora, né. Eu acho que a saída da Dora não foi nem o mais grave, assim... A municipalização pra mim foi mais grave porque... Aliás, a municipalização fez com que a Dora saísse, né. Não só o CECIP saiu da coisa, né, quis sair, como a Dora também quis sair... Como ela saiu. Ela pediu transferência pro Fernandes Figueira [Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, pertencente à Fundação Oswaldo Cruz – IFF/Fiocruz], né. Isso foi, assim, complicado num determinado momento... O Peret continuou lá, o Peret não deixou de ser diretor por conta disso. Ele ainda ficou uns dois anos, sei lá, um ano, dois anos... não tenho muita certeza. E, depois, veio o Fernando [Fernando Augusto da Cunha Ramos, ex-diretor do IPP], que também foi uma pessoa muito interessante dentro do projeto lá, mas com a saída da Dora, o que ficou complicado... porque, assim, a gente já tinha um domínio, a gente já tava ali há quase quatro anos, né, já tinha um domínio daquelas pessoas, assim, um domínio no sentido... conhecer todo mundo, né, tinha empatia, as pessoas gostavam da gente, então a gente já tinha criado uma raiz, digamos assim ali. Só que, assim, quando a Dora sai, teve que ficar um técnico do Pinel e ali foi uma questão porque quando chegou esse técnico do Pinel, que foi uma outra psicóloga amiga de Dora, uma pessoa boa, gente boa, a gente fazia coisas juntas e tal, mas quando ela chega pra ocupar esse cargo de coordenação, ela acaba criando outras questões dentro do processo e isso deu uma desestabilizada, de certa forma, na equipe, né, porque a gente tinha um caminho, a gente já tinha um desejo, já ia pra um caminho, e as coisas passaram a ter outros caminhos. A Dora, por sua vez, foi sentindo também que lá no Fernandes Figueira não tava rolando, né. A gente começou... Nesse período, eu já não sei... eu acho que isso ainda foi antes de criar a “Imagem na Ação”, tá, que ainda tava no CECIP isso... é... aí a Dora pediu, sentiu que tava esquisito no Pinel, né, porque ela acabava acompanhando, ela perguntava a mim então, porque a gente ficou... ficamos íntimas, né, a gente passou a ter uma relação íntima mesmo de amizade, de... ela tinha muita confiança no meu trabalho e aí ela começou a perguntar e eu falei assim “olha, Dora, tá desse jeito” e aí ela resolveu e voltou pra TV Pinel. Então, nessa ocasião, era a Teresa Monnerat que tava no Pinel, né, que assumiu a coordenação. Foi difícil, foi um pouco difícil, mas isso, assim, a gente continuou tomando o trabalho porque já tinha um... a TV Pinel sempre teve muito trabalho, muito trabalho! Muito, porque, é... a gente abria muitas portas e ia abrindo muitas frentes, então, não tinha muito jeito. Mesmo que houvesse essas coisas que criavam uma certa instabilidade, a gente tinha que realizar. Então, a gente não tinha muito tempo pra poder pensar o que que tava acontecendo ali e, claro, nas reuniões a gente ia tentando, né... E, quando a Dora voltou, isso deu um certo conforto porque, de certa forma, a gente tava recuperando ali aquela prática que era nossa, de fazer e tal. Hoje eu até avalio assim, né, se eu não tava apegada a algum tipo de coisa. Talvez, o que a Teresa estivesse propondo era muito interessante, mas a gente tava ali acomodado a uma estrutura que nós mesmos criamos, né. Estávamos, de certa forma, numa zona de conforto, né, e tínhamos pessoas boas, assim, pra nós nessa referência. Então, quando uma pessoa sai e a outra entra e vai fazendo outras coisas, claro que isso vai criando um desconforto. Eu não tô nem aqui julgando se o que a Teresa tava propondo era bom ou ruim, talvez a gente não tivesse maturidade, enfim. Isso já tem vinte anos, né. Muito tempo (risos). Tem exatamente 21 anos esse episódio, assim, né. Da municipalização, essa saída da Dora e tal. E quando a Dora volta, então, a gente consegue... a gente retoma ali o processo, vai fazendo e só que assim... O que que desestabilizou mais a TV Pinel foi justamente... quando vai pra municipalização, a gente não tem continuidade. Então, isso foi ruim. Então, a gente tinha um projeto de um ano, a gente não conseguia sequer ter um projeto de dois anos. Cada ano tinha que entrar com uma proposta de projeto e aí a cada renovação dessa era uma burocracia porque dentro do município a coordenação de saúde mental, a cada ano, criava uma coisa diferente também e esbarrava na burocracia da prefeitura, dessas contratações. Enfim, a gente, às vezes, trabalhava um ano e ficava seis meses parado e retomava depois, o que tava nove meses parado e retomava, sabe. Então, essa descontinuidade a cada momento do projeto era muito ruim porque fragilizava muito o projeto. Tanto pra nós, equipe, porque você imagina você começar a trabalhar... ter um ano de trabalho e, depois, você fica seis meses esperando, quanto pros próprios pacientes que dependiam daquele projeto porque o projeto tinha sucesso, o projeto tinha eficácia naquilo que se propunha, né. Ele não era um projeto terapêutico, mas ele era extremamente... até porque ele gerava renda pra galera, a gente contratava as pessoas, pacientes, pra fazer parte da equipe, né. Tinha essas coisas, mas, assim, eu acho que... e aí a Dora saiu de vez do projeto, isso foi ruim pra gente, esse momento foi difícil. Quando a Dora sai, ela sai justamente porque a prefeitura, né, nessa instabilidade, vai causando um certo cansaço pra ela também e aí eu fiquei um tempo sozinha no projeto até chegar uma nova coordenação, né, pra tá assumindo a TV Pinel. E aí foi isso, assim... mas aí quando chegou essa nova coordenação já era um pessoal... foi a Vera que foi residente, era residente do Pinel, já tinha sido residente, já tinha passado pela TV Pinel e, então, conhecia o projeto e a gente continuou caminhando com o projeto. Só que aí, nesse momento, assim, a partir de 2004, mais ou menos... 2004, 2006, já não lembro exatamente... a gente começou a fazer os projetos com os CAPS [Centros de Atenção Psicossocial]. Então, a gente não ficou mais dentro do Pinel só, a gente tinha atuação no Pinel e aí começou a fazer também projetos com os outros CAPS no Rio de Janeiro, então a gente atendia seis CAPS. E íamos pros CAPS pra fazer oficina, criar os produtos com essas pessoas... com as pessoas e os produtos entravam na revista da TV Pinel. Talvez, nesse momento, a TV Pinel já não fique tão evidente essa característica de TV comunitária porque... a menos que seja a ideia de que está atendendo a comunidade da saúde mental. Aí a gente pode pensar, enquanto TV comunitária, por essa característica, porque está atendendo a comunidade da saúde mental, não mais só a comunidade do Pinel porque agora passa a atender aos CAPS, né.

A. E como é que foi essa, talvez, pulverização da atuação da Pinel entre os CAPS, esses problemas burocráticos com a prefeitura e isso foi gerando, talvez, o fim das atividades, assim, é... Porque não foi... não acabou de uma forma certeira, mas aos poucos foi descontinuando, não?

N. É... a gente, depois, conseguiu até que os contratos ficassem por dois anos que aí dava um respiro, sabe? A gente chegou a momentos, acho que foi a partir de 2006, a gente conseguiu isso. Só que, assim, em 2014 a TV Pinel parou, né, e foi até um susto da TV Pinel ter parado em 2014 porque a gente imaginava que... em 2014, a gente tava já programando um evento pra vinte anos da TV Pinel. A gente tava nessa negociação porque seria em 2016, né, os vinte anos. Então, a gente já tava fazendo essa programação, a gente tava fazendo eventos muito fortes, muito potentes, né, que dava visibilidade pra coordenação de saúde mental... Eu vou te falar uma coisa aqui que cá entre nós, sabe. Eu não sei, você fica à vontade se quiser colocar na tese, coloca. Na sua monografia, na sua dissertação... Mas, assim, eu acho pra mim que a TV Pinel foi acabando por uma questão de vontade política, sabe. O pessoal da saúde mental, a coordenação de saúde mental, que se perpetuou durante um tempo, né... Pra você ter uma ideia, a coordenação de saúde mental, num determinado momento, foi a Teresa Monnerat. Então, naquele momento que tinha sido a Teresa Monnerat, ela poderia ter criado condições da TV Pinel... [foram] quatro anos de prefeitura... poderia ter criado condições da TV Pinel por quatro anos ter um contrato de quatro anos, né, se ela já tinha sido coordenadora da TV Pinel, se ela conhece o trabalho. Assim como o Hugo Fagundes... Eu não sei se é o Hugo Fagundes que tá lá agora, só sei que durante um... Não sei se é o Hugo porque tinha o Hugo e tinha um outro, eram dois Fagundes... eu acho que era o Hugo que era coordenador na ocasião. De 2010, 2012, até 2014, sabe. E essa galera tinha um ranço com a TV Pinel porque a gente sempre foi muito autônomo, então, assim, a coisa da autonomia de um projeto causa muito mal-estar num coletivo assim, sabe, numa questão... E, assim, as pessoas nos chamavam sempre, a gente participava de vários coletivos da saúde mental. A gente ia pro 18 de maio [Dia Nacional da Luta Antimanicomial], a gente ia com muita força. A gente segurava muita rebordosa, produzia os eventos, colocava a nossa cara, reunia as pessoas e a secretaria entrava com muito pouco, com quase nada. Então, assim, a gente era importante dentro da secretaria, né. Claro que tem, assim, o secretário que... de saúde mental, o Hugo, ele era um secretário, mas ele tinha um grupo que cuidava dessa gestão que era um outro grupo muito interessante. Então, tinha essas questões, sabe, assim, que ao mesmo tempo que o cara não era muito... Embora ele sabia da TV Pinel, soubesse da existência, da importância e tudo mais, né. Enfim, assim... mas isso aí é uma coisa, assim, chorando, né... não quero nem ficar reclamando disso, não, porque eu...

A. Mas, Noale, você não acha que isso também não tá muito conectado... Eu queria saber um pouco como é que foi realmente o fim da TV Pinel. Foi um desmonte, assim, aos poucos, parcial, ou foi...? Porque isso que você também comenta...

N. Se foi sucateando, né? Se foi sucateando...?

A. Sim, se foi sucateando...

N. Pois é, eu acredito, assim... houve um sucateamento da TV Pinel. Claro que houve, né. Quando o Peret chamou a Maxambomba pra fazer a TV Pinel, o Peret adquiriu mais equipamentos... aí a gente fez uma lista de equipamentos, aí montamos mesmo a TV com duas, três câmeras. Potencializamos a ilha de edição, tinha uma coisa incrível, assim, tinha dinheiro pra produção, a equipe recebia bem, recebia com carteira assinada, né, CLT e tal. Todo mundo da equipe, né. Quando vai pro município, reduz esses orçamentos. Eu acho que, pra mim, isso já é uma questão política, assim, como se a TV Pinel não precisasse de tanto recurso. Que vai criando essas questões, né. “Ah, o Papel Pinel gasta menos que a TV Pinel”. Claro, o Papel Pinel [grupo terapêutico do IPP que produz papel artesanal que se transfora em cadernos, blocos e cartões, com ilustrações e colagens dos usuários], o trabalho do Papel Pinel não é com vídeo, não precisa de fita... existia essas discussões, sabe...

A. Era um folhetim? O Papel Pinel era um folhetim?

N. Não, o Papel Pinel era um projeto bem... não sei se ainda existe lá no Pinel, mas era um projeto bem interessante de papel reciclado.

A. Entendi.

N. E eles produziam muitas publicações com papel reciclado, muitas peças. Eles tinham, assim... Depois passaram a fazer camisas, bolsas... Era um trabalho muito legal, mas, assim, ficavam comparando o gasto da TV Pinel com o gasto do Papel Pinel. São ações diferentes, né. Agora, o desmonte foi acontecendo assim... a gente aos poucos não tinha reposição de equipamento, eu levava a minha câmera. Eu tinha uma câmera... que aí passou, né, do super VHS pro mini DVD, do digital. Não se comprou uma câmera digital no Pinel, demorou. A gente só foi comprar uma câmera digital no Pinel em 2012. Então, de 2000 a 2012, o equipamento que eu usava era o meu... De 2000 a 2009, porque em 2009 a minha casa foi roubada e levaram meu equipamento, mas até 2009 a gente usava o meu equipamento. Pra você ter uma ideia. A ilha de edição era meu... era um laptop que eu montava ali que era [...] finalcut pra fazer a edição, entendeu? Então, essa coisa, assim, porque eles não colocavam equipamento. Depois de sei lá quando... eu acho que eu fui roubada não teve outro jeito também... Eles compraram outros equipamentos, a gente abriu um edital e comprou uma câmera... comprou a ilha de edição... aí eu nem me lembro mais como é que a gente conseguiu comprar essas coisas aí, mas foi entre 2009 e 2012 esse processo, 2011... por aí. E aí, cara, depois disso, é... a renovação tava assim, né. Às vezes, acontecia um ano inteiro, um ano e meio, e depois parava nove meses e tal... Simplesmente, em 2014, eu não me lembro se era ano eleitoral agora... mas simplesmente eles não renovaram mais. Tinha uma mudança... tinha uma mudança na prefeitura, na saúde... na coordenação. Também, já estava muito fragilizado a coordenação de saúde mental, o serviço de saúde mental na saúde já estava muito fragilizado. A gente tava começando a viver um momento de... o movimento da Reforma Psiquiátrica estava fragilizado e a gente tava começando a viver um momento de... pros CAPS, né, de tudo aquilo que foi criado com o movimento da Reforma Psiquiátrica, retroceder. Então, os CAPS estavam tendo a característica de mini hospícios, o próprio Pinel já estava com um atendimento quase de mini hospício. A TV Pinel, a sala da TV Pinel era do lado de uma enfermaria e eles já estavam pensando, daquela ala toda onde a gente funcionava, de transformar num atendimento de internação, que é uma coisa que o Pinel não deveria ser. Hoje ele já é, né, acabou. Não é mais instituto. Se você passar na porta do Pinel, hoje, quer dizer... já há três anos, três ou quatro anos, o Pinel virou hospício. O atendimento que tem de ambulatório ficou pra fora do Pinel. Ficou entre o Pinel e a UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro] ali, o IPUB [Instituto de Psiquiatria da UFRJ], sabe. Então, assim, tem muitas questões aí. É, esse desmonte da TV Pinel, ele vai fazer... Só que a TV Pinel ainda diz que existe, né. Se você entrar no Facebook da TV Pinel, você vai ver lá publicações de coisas que a TV Pinel faz porque ficou uma pessoa da nossa equipe lá ainda. O João, que ficou contratado, né, o João, quer dizer, na verdade...

A. O João Aranha?

N. É, João Aranha, isso.

A. Eu conheço.

N. Não sei se você já conversou com ele.

A. Sim, ele que me proporcionou acesso ao material da TV Pinel porque o material da TV Pinel tá trancado numa biblioteca da Fiocruz por conta da pandemia. Eu não tive acesso a ele e foi ele que me emprestou os DVDs.

N. Ah, super. E tá também no site, né, o material tá no blog da TV Pinel, tem coisas lá... mas o Janjão, o João Aranha, ele no final... quando acabou 2014, 2015... ainda fiquei até 2016 tentando a renovação. De 2014 a 2016 escrevendo projeto, mandava projeto, refazia projeto, devolviam projeto, que aí a gente tinha que atuar com os CAPS porque, como ia fechar, ia virar mesmo hospício lá no Pinel, né, eles já sabiam disso e eles começaram a propor essas coisas. Aí ficava eu e Vera escrevendo... a Vera que é atual coordenadora lá do Pinel, da TV Pinel... é, ficava escrevendo as coisas e mandava pra um lugar, mandava pra outro... até que foi morrendo, cara, aí morreu, entendeu?

A. Entendi.

N. Só que a Vera manteve, segurou uma onda. Acho que um ano depois ela chamou o Janjão pra que ele continuasse ali fazendo os vídeos, né, fazendo a articulação com outras pessoas, fazendo... mas aí já não é mais TV Pinel, não é mais aquela ideia mobilizadora de fazer com toda a comunidade, né. Ficou fazendo vídeo até com outras instituições de saúde mental, mas sem essa pegada que a gente atuava, né...

A. De certa forma...

N. Fiquei chateada, fiquei triste, fiquei puta com tudo isso, né, porque, é... enfim... você fica ali numa ralação, tem uma dedicação porque a gente tinha uma dedicação porque a gente botava nossas coisas pra realizar a TV Pinel, né, enquanto tem um organismo que deveria tá favorecendo a isso, né, que é própria coordenação de saúde mental, o próprio... e não conseguia fazer essa parceria, né. E, assim, tava na mão deles, né, eles assinam ou não assinam e a gente vai fazer o quê, né? Fica à mercê. Infelizmente, é isso. Mas é isso, então...

A. O que a sua fala me transmite é que, bom, a TV Pinel tem uma história muito colada à história da Reforma Psiquiátrica, né.

N. Muito.

A. Onde, o que que acontece... pelo o que você falou, os encerramentos dos trabalhos da TV Pinel, ele tá sendo, ele foi um pouco anterior a um desmonte da saúde mental no Brasil, de uma forma geral, né. Porque hoje a gente tá vendo, por exemplo, uma série de resoluções, legislações sendo criadas desde o governo Temer, depois do golpe da Dilma, que tão fazendo um verdadeiro desmonte e tão retro, é... e são... [pequena interrupção]

N. Retrocedendo!

A. Retrocedendo à eletroconvulsoterapia, que é algo que já deveria ter sido abandonado há muito tempo e é algo muito arcaico, assim... daqueles filmes de ficção científica, sabe, de tão de outro mundo. Então, esses dias, inclusive, a gente tá falando sobre a TV Pinel... houve uma invasão ao Philippe Pinel [IPP], não sei se você ficou sabendo... de um vereador, com uma equipe, todos vestidos de preto, fazendo vídeos e postando nas redes sociais. Eles invadiram o...

N. Lá no Pinel?!

A. Sim, o vereador...

N. Lá do Pinel, em Botafogo?

A. Sim, eles invadiram pra fazer vídeos, assim... E essas, enfim... É uma série de questões, assim, que a gente... O que você me passa, na verdade, é que existe uma arquitetura de desmonte, né. Talvez...

N. É.

A. O Pinel tava prenunciando isso, né?

N. Sim. Não só o Pinel, né, e aí a gente vê o IPUB também passando por essa situação.

A. Os CAPS.

N. Os CAPS todos, os CAPS todos, assim... né? Não tem mais aquele atendimento humanitário que deveria ter, virou um mini hospício, né, as pessoas não são nem mais preparadas pra isso. Por isso que eu falo, eu acho que a coordenação de saúde mental naquele momento, de esquerda, era de esquerda, tinha que ter outro tipo de atuação. Talvez, ainda... tudo bem, a gente não sabe como é, né, essa política dentro do equipamento. Eles são gestores e dentro desse universo da gestão eu não sei o que que é, eu não sei se eu faria diferente se eu fosse uma gestora, né, mas você fica esperando, né, cara. Tu conhece as pessoas, tu conhece a atuação das pessoas, você sabe quem são as pessoas e você escuta a pessoa valorizando uma coisa que não tem muito a ver com aquilo, dá um certo... sabe, assim? Teve uma ocasião, quando a TV Pinel tava parada em 2014, entre 2014 e 2016, teve o lançamento do museu do Bispo, um evento lá no museu do Bispo, eu já não lembro mais o que que foi... eu fui pra esse evento.

A. Bispo do Rosário?

N. É, do Bispo, é. Aí eu fui lá e encontro o Hugo, fazendo um discurso lá pra aquele evento, um discurso nada a ver, sabe. Então, assim, você fica pensando assim... o que que a pessoa...? o que que passa na cabeça da pessoa? O que que ela tá garantindo ali? É o lugar dela naquela cadeira ou é o serviço, sabe? Por isso que eu não quero ficar julgando, porque eu não sei... a gente não sabe o que que passa na cabeça das pessoas, eu não sei como é que também seria meu comportamento ali dentro daquele lugar, né, numa gestão de uma pasta como essa da saúde mental. Mas o que que acontece é que desde 2012, mais ou menos, 2014, por aí... um pouco antes da TV Pinel fechar, a gente já percebia reflexo dessa... desse recharçamento da saúde mental, de tudo aquilo que a gente tinha conseguido conduzir em quase vinte anos na Reforma Psiquiátrica, né, e outras pessoas com muito mais tempo... a gente foi vendo as coisas desmoronar... Então, a galera da música, os cancioneiros do IPUB, o Harmonia Enlouquece, né, os blocos... ali o CAPS... só aquele CAPS ali que eu não entendia muito bem. Por isso, eu acho que tinha uma jogada política, tinha uns CAPS que tinha mais... O CAPS ali do Engenho de Dentro, ele me parece que o impacto não foi tão grande ali... mentira! Foi, sim. Teve um momento, isso eu já não tava mais no Pinel, né, eu já tinha saído... teve até alguns momentos... porque eu trabalho na Kabum! também, né, eu sou coordenadora do Oi Kabum! LAB, que antes era Escola de Arte e Tecnologia Oi Kabum! e eu levava alguns estudantes da Kabum! pra fazer projetos no Pinel, nessas coisas... assim como eu levava pacientes do Pinel pra fazer coisas lá no Kabum!, sabe? Fazia esses entrosamentos. E aí teve um grupo lá, isso já foi em 2016, então já não tava... a TV Pinel realmente não tinha... realmente já era o limite, só que o pessoal queria fazer um projeto com o museu... com o hotel... sabe? Aquele hotel do Engenho de Dentro? Como é que dá o nome daquele hotel, gente? Dentro do hospital... Hotel da Loucura? Eu não sei se o nome era “Hotel da Loucura” [Hotel da Loucura, pertenceu ao Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. Foi extinto em 2016 com a exoneração de seu idealizador, Vitor Pordeus]... Mas era do [Vitor] Pordeus, o Pordeus que coordenava essa hotel. O Hotel da Loucura era simplesmente um ateliê, cara. Era um ateliê em que as pessoas podiam ir até lá pra fazer residência artística. Não só as pessoas, os malucos, as pessoas que eram atendidas pelo serviço de saúde mental, como outras pessoas artistas que quisessem fazer a vivência artística ali. E aí em 2016 a gente foi lá porque eu tinha dois participantes lá do Kabum! que queria fazer uma pesquisa com arte, com desenho, como os pacientes de lá e realmente não era mais aquilo. O hotel que era todo lindo, eles tinham feito... grafitado... era um ambiente artístico, tava todo cinza... sabe aquela ideia de hospício? de cela? Tava assim. E as pessoas que tavam passando ali pra fazer a oficina com aquele aspecto já de paciente dopado, sabe. Então assim... foi uma política que foi acontecendo em meados, né, da década de... 2010 pra cá, 2012, sei lá, pra cá... esse desmonte da saúde mental que foi, assim, realmente, gradativamente, modificando tanto no campo dos estudos, da pesquisa, quanto dos projetos que faziam essa diferença, né. Os projetos artísticos e culturais que faziam essa diferença na Reforma.

A. Isso é muito interessante. E pra encerrar a nossa entrevista eu queria fazer uma última pergunta de um tema que eu acho que é interessante. A Luciana lá naquela tese de 2002, de doutorado da PUC, ela avaliou a importância pros residentes, né, em... ela chama de “residentes psi”, naquela época, no Instituto Philippe Pinel de que eles vivenciassem a experiência da TV Pinel porque, pra ela, isso ajudaria a eles a redimensionar as práticas de um profissional recém-formado, da área. Mas a minha pergunta é: Tanto a TV Maxambomba quanto a TV Pinel, elas surgem, além de outros assuntos, de uma insatisfação da forma em que a Baixada Fluminense ou a loucura são enfocadas pela grande mídia. Nunca se pensou em realizar uma questão com outras profissões, como os comunicadores? Porque, ali do ladinho da TV Pinel tava a Escola de Comunicação da UFRJ, de onde sairiam os profissionais da futura grande mídia, né? Nunca se pensou em um projeto conjunto com a comunicação pra, não sei, conscientizar não só profissionais de saúde, mas de outras áreas também? Não sei se minha pergunta é muito ingênua também, por curiosidade.

N. É, não, ingênua não é, não. É muito curioso isso, né. Eu acho que isso... A gente realmente nunca pensou sobre isso, né, a gente podia ter feito uma parceria com a UFRJ, né? A gente realmente tava ali do lado com a Escola de Comunicação, com a Ivana Bentes que tava ali fazendo um monte de coisa também, né, que tem uma pegada também, é... popular, ou comunitária, né, vamos dizer... que isso também, são tantas nomenclaturas, né, que... realmente, assim, hoje quando eu passo por tudo isso, né, concluí meu doutorado agora também nos cotidianos e fui estudar Deleuze, fui entender que essa questão do conceito, né, ela não existe, na minha... isso a partir de Deleuze, tá? Que essa ideia do conceito ele só é uma amarra, né, uma ideia pra você ficar ali fechado numa ideia e não transpor isso e eu acho que, de certa forma, é... e aí Deleuze vai falar de personagens conceituais, né, que os personagens conceituais pra Deleuze são essas pessoas... ou essa conversa como nós estamos tendo aqui pode ser um personagem conceitual pra você, como a conversa que você teve com o Filé ou um livro que você vai ler ou a Luciana é teu personagem conceitual, ou seja, né, não que ele seja conceito, mas o que que vai te trazendo que vai fazendo essa reviravolta dentro de você, que vai trazendo as afetações, né, vamos dizer assim. Então, essas afetações que pra Deleuze é mais importante do que essa ideia de um conceito e aí eu acho que a gente, é... tinha muito preconceito e, falando de conceito, e pre-conceito... (risos) eu acho que a gente, de certa forma, tinha muito preconceito, sabe, nessa ideia de ficar fechado entre nós. Porque a gente podia mesmo e, talvez, ganhado força, né, se a gente vai fazer alguma coisa com a universidade. Chegou um momento que os nossos eventos de 18 de maio, que é o dia da Reforma Psiquiátrica, né, da Luta Antimanicomial, era um evento que era pra nós mesmos, a gente reunia a galera que era da saúde mental, ia pra uma praça, fazia o evento e só éramos nós que íamos, não iam outros. Chegou uma época que a gente passou a fazer o evento lá na UFRJ, naquela casa ali, que eu esqueço o nome, bem ali na... do lado do Fernandes Figueira, esqueci o nome... mas, de certa forma, assim, se a gente tivesse... talvez, se a gente tivesse feito uma aproximação com a faculdade de comunicação pra tá tratando... pra pensar em parcerias mesmo de continuidade da TV Pinel, né, de trazer estudantes da comunicação pra tá lá no Pinel... porque isso era importante, isso, talvez, pudesse ter sido importante, até como estágio, embora a gente nunca tinha, assim, um período constante de atividade, né, porque isso pega também. Você vai fazer uma parceria com o outro e aí daqui a cinco meses você não tem mais projeto, aí volta em tanto tempo, né, mas, mesmo assim, talvez pudesse ter sido interessante pra que as pessoas pudessem tanto conviver com os pacientes, como os nossos participantes ali, os usuários que atuavam com a gente, também conviver com pessoas de produção de vídeo, de comunicação, né, fora desse universo da TV comunitária. A gente tinha uma pessoa, o Edivaldo... o Edivaldo, ele foi parar na TV Pinel... o Edivaldo era de Valença, ele era jornalista, ele era jornalista em Valença, e ele surtou feio, assim, pirou o cabeção, começou a ter mania de perseguição porque ele achava que em Valença, no jornal em que ele trabalhava, [ele] trabalhava com um pessoal... uma galera ali latifundiária e tal. Ele achava que os coronéis ali de Valença estavam perseguindo ele. Aí ele surta, vem pro Rio, fica internado no Pinel. Porque o Pinel, mesmo em regime aberto, ele tinha um espaço de internação ainda, na época da TV Pinel, né. Era um espaço de internação, pra internação rápida. Sabe quando o cara era paciente do Pinel, surtou e não sabe o que fazer com ele? Vai ficar internado um tempinho ali e não sai e aí vai pro ambulatório. Então, o Edivaldo ele foi pro Pinel e aí começou, internado, né, a fazer algumas atividades da TV Pinel, conheceu a TV Pinel. Então, ele era jornalista, né, e viver a TV Pinel pra ele foi muito importante porque ele foi percebendo o que ele não queria nessa mídia, né, nesse espaço que a gente tem por aí das mídias convencionais, vamos dizer, né, tá dentro desses padrões aí sociais e da comunicação de modo geral. Mas, enfim... eu não sei se eu respondi a tua pergunta, mas, é... eu acho... a TV Pinel pra mim, por exemplo, que trabalhava com audiovisual e aprendi audiovisual dentro desses padrões, né, da fotografia, o que que é uma fotografia? Regra de três terços, os elementos da fotografia, como você ilumina assim, assado... porque esse plano e não aquele plano, a edição, o som, né, continuidade... cara, no Pinel, não tinha nada disso, não tinha como ter, sabe? A gente tentava ter, claro, pra ensinar pras pessoas e dizer... mas na hora de uma produção... Tinha um vídeo, um programa que se chamou “A Endoidada”, que era uma coisa... como é que se fala? Uma paródia da novela “A Indomada”. A Neiva escreveu aquele roteiro, cara. A Neiva escreve o roteiro... eu tô sentada com a Neiva, a gente escreve, aí a gente pensa “como é que vai ser a gravação, Neiva?”, “Ah, tem que ter isso, isso, isso, isso e isso”. Algumas coisas eu até criava junto com ela, ia pra gravação e... cara, impossível! A gente, no meio da gravação, ela inventava outra coisa. E aí a gente parava e marcava tudo de novo pra ter continuidade, né, marcava tudo... “Vamo gravar, Neiva”, “Vamo”. Quando... ela já fazia outra! Era impossível! Então, assim, não tem continuidade, nesse programa não tem continuidade. Ela sai, abraça um guarda. Daqui a pouco, quando ela sai, e é outro guarda e na mesma cena tem dois guardas diferentes, então, assim... não dá! Aí eu fiquei... Isso me ajudou a pensar muito sobre essa relação dos padrões que a gente tem na TV, na televisão, no cinema, em qualquer mídia, né? No teatro, seja lá o que for... que padrões são esses e por que a gente se aprisiona dentro desses padrões? Quem disse que tem que ser assim? Sabe? Então, isso me fez, assim, questionar muitas coisas dentro do meu processo profissional na relação com o outro, na relação de ensinar o outro também, né, e isso se reflete até hoje. Quando eu vou dar uma oficina de audiovisual ou de fotografia, eu acabei com essa coisa, sabe, da continuidade. Tudo bem, coitados desses estudantes, não sei se vai servir muita coisa pra vida deles, profissionalmente, quero dizer, né. Mas, eles... pelo menos a gente reflete sobre um monte de outras coisas, o que que é a manipulação, o que que é manipular se eu manipulo, você manipula, todo mundo manipula, né, porque isso faz parte do ser humano. Manipular não é uma coisa de uma mídia, manipular somos de nós, né. Então, o que que... mais importante que entender o que é a manipulação é entender quais são as intenções que nós temos ao manipular. Então, enfim... já chega, chega! Falo demais...

A. Muito interessante. Noale, eu vou parar a gravação. Muito obrigado..

10.3. Apêndice C – Entrevista com Ricardo Peret

Arquivo: Entrevista III – Tempo de gravação: 1 hora, 6 minutos e 1 segundo

Realizada em 27 de outubro de 2021

Ricardo Peret

Ricardo Peret é psiquiatra e foi diretor do então Instituto Philippe Pinel (IPP) [hoje, Instituto Municipal Philippe Pinel] entre 1990 e 1997. Durante sua gestão, em 1996, a TV Pinel foi criada com o apoio da psicóloga Doralice Araújo (in memoriam). Peret, antes de gerir o IPP, trabalhou durante dois anos e meio para o Estado da Bahia como vice-diretor executivo do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, órgão que mantinha a TV Educativa, a TVE do Governo do Estado da Bahia [emissora de televisão educativa sediada em Salvador (BA), afiliada a TV Brasil], duas rádios educadoras e um centro de planejamento de produção pedagógica.

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim

Arthur: [Houve uma pequena interrupção no início da entrevista por falha na conexão com a internet] Então, a minha primeira pergunta para o senhor é que... em diferentes contextos e momentos, né... numa entrevista para duas pesquisadores da Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz], a Bianca Vieira Reis e para Verônica Miranda Oliveira, que eram mestrandas lá do programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde [PPGICS, gerido pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde]...

Ricardo: Tá...

A: [...] e em um evento de comemoração dos 15 anos da TV Pinel, o senhor disse que... sobre a importância da TV Pinel como modelo para Reforma Psiquiátrica Brasileira e até como uma espécie de marca, né... como foi importante formar uma marca por meio desse nome “Pinel”.

R: Sim...

A: Como o senhor analisa, hoje, a trajetória da TV Pinel depois dessa longa atuação por meio da reforma psiquiátrica, pela reforma psiquiátrica. Como é que o senhor vê hoje? Qual é a sua perspectiva da atuação da TV Pinel desde a sua criação até a descontinuação [descontinuidade] dos trabalhos?

R: Eu acho importante marcar, assim, por que a TV Pinel, né? Por que surgiu uma televisão associada a um instituto psiquiátrico? Na verdade, eu fui diretor do Pinel, eu assumi a direção do Pinel em 1990 e fiquei sete anos na direção, mas, quando eu assumi... eu sempre fui do Pinel. Eu entrei no Pinel... Eu estava no quinto ano da faculdade de medicina, fui ser estagiário, fiz internato, fui residente, morei no Pinel e comecei a trabalhar e etc., etc. É... durante um período, eu passei dois anos e meio na Bahia, em Salvador, por conta de um convite que eu recebi do então governador Waldir Pires para trabalhar no governo dele, tinha acabado de ser eleito e eu fui trabalhar numa fundação, fui vice-diretor executivo de uma fundação que se chama Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia. Esse Instituto tinha uma TV educativa, TVE da Bahia, duas rádios educativas e um centro de planejamento e produção pedagógica com tecnologia canadense, de ensino à distância com tecnologia canadense. Eu, durante a minha estada e antes ainda do Waldir Pires assumir o Governo... O Waldir Pires tinha sido ministro da Previdência, tinha voltado do exílio, ele foi exilado durante o regime militar e terminou sendo eleito governador e eu fui trabalhar no governo dele, fui trabalhar nesse Instituto de Radiodifusão. Então, eu convivi... a campanha do Waldir Pires... Eu estou falando isso para explicar porque que eu resolvi, é... junto com os colegas, fazer uma televisão. Eu convivi com publicitários e jornalistas durante muito tempo. Na verdade, o marketing político no Brasil começou na campanha do Waldir Pires, na Bahia. Todos esses grandes publicitários que foram trabalhar com marketing político começaram nas agências de Salvador e, especialmente, as agências que participaram da campanha do Waldir Pires, que foi muito premiada, a primeira grande campanha de marketing político. Então, eu convivi, fiz amizade com muitos publicitários e jornalistas. Fui trabalhar nesse instituto, continuei, é... tinha uma televisão... na verdade, como eu era da diretoria do instituto, eu tinha acesso, enfim, a todos os setores do instituto, incluindo a televisão. E a minha convivência com gente de televisão me marcou profundamente, foi o período em que eu estive afastado propositalmente da área da saúde. Quando eu fui pra Bahia, eu não queria trabalhar na área de saúde, queria trabalhar com a publicidade, um jornalista na área de comunicação, é... quando eu voltei, depois dessa experiência que foi muito rica na minha vida, eu voltei... houve um processo eleitoral no Pinel, eu fui eleito diretor e... bom, aí faço um corte para não estender... eu, diretor do Pinel, como eu já, é... a minha vida na psiquiatria tinha sido iniciada no Pinel... eu voltei para minha casa, digamos assim, como diretor. E tinha um trabalho... esse trabalho existe até hoje, que é o que é o Naicap, Núcleo de Atenção à Criança Autista e Psicótica. Havia um grupo grande de profissionais, psicólogos, médicos, psicanalistas, que trabalhavam a psiquiatria infantil, com psicologia infantil, e fui fazer esse trabalho com as crianças autistas, que era um trabalho belíssimo que eu tinha, assim... eu... era um dos... dos espaços do Pinel que mais me cativava. E havia... eu digo havia porque ela faleceu já há muitos anos, a Doralice Araújo, a Doralice era uma psicóloga, uma excelente fotógrafa e ela fotografava as crianças para ver a evolução do tratamento das crianças. Fotografava muito, muito! E eu, um belo dia, eu tinha vindo duma experiência com televisão inclusiva, eu... me deu um estalo, falei “olha, eu vou ligar pra... pra...” [...] tinha um delegado federal de controle do Ministério da Fazenda, a quem cabia auditar as unidades federais do Rio de Janeiro, eu tinha feito amizade com ele, ele me ajudava muito na direção do Pinel, e eu pedi pra ele me apresentar ao superintendente da Receita Federal no Rio pra ver se eu conseguia equipamento... Quanto tempo nós temos? Arthur.

A: Quanto o senhor quiser.

R: Tá. É, eu reservei uma hora e meia pra gente conversar.. Até uma hora e quarenta, tá?

A: Eu queria...

R: Você quer pontuar pra eu não ficar divagando?

A: Não, fica à vontade. Eu queria incluir uma pergunta, né, nessa história, que as duas pesquisadoras lá da Fiocruz, que fizeram uma entrevista com você faz algum tempo. Elas pontuaram uma questão. Nessa entrevista, o senhor disse sobre uma necessidade sua de, às vezes, aparentemente, sair um pouco do campo totalmente médico/psiquiátrico. [...] Uma necessidade de participar da vida cotidiana, uma necessidade de participar das ciências sociais. É... você mesmo falou que trabalhava como uma espécie de sociólogo quando você estava lá trabalhando pro Governo da Bahia...

R: Tá...

A: [...] E você, na sua trajetória, né, isso marcou muito também a criação da TV Pinel porque foi a partir dessas ligações, dessas conexões que você formou, para além da área da psiquiatria. E a TV Pinel também surgiu com a ajuda da Doralice Araújo, que foi uma personagem que você sempre apresenta, você fala até de uma necessidade de sempre falar sobre a Doralice, assim... mas eu queria saber por que você tomou essas escolhas, quais foram as importâncias dessas escolhas de sair da psiquiatria, sabe? Você teve uma trajetória muito única. Não só como médico, né? Talvez, como sociólogo, como comunicador.

R: Tá, não... interessante essa pergunta, muito boa. Deixa eu te falar. Quando eu estava no internato do Pinel, internato é o último ano da faculdade de medicina, no sexto ano, é... eu saí da UFF, da Universidade Federal Fluminense, onde eu fiz medicina e consegui, é... que o diretor da faculdade me liberasse pra fazer o sexto ano no Pinel. Na época, o Pinel já recebia residentes, estagiários de várias partes do Brasil. Então, eu fui fazer internato no Pinel. Atrás do Pinel ou ao lado do Pinel, tem a ECO, a Escola de Comunicação da UFRJ. E eu fui... me matriculei num curso do então Carlos Henrique Escobar, que é o professor de filosofia, ele foi para Portugal, aliás, eu perdi o contato com ele, há muitos anos já que eu não vejo o Escobar, mas nós ficamos amigos e tal. Ele era um professor de filosofia, tem muitos livros publicados sobre semiologia, filosofia... Enfim, e eu fui fazer, então... o curso dele chamado “epistemologia da comunicação”. Foi meu primeiro interesse. Eu entrei na escola de comunicação não para fazer a faculdade, mas para fazer especificamente esse curso do Carlos Henrique Escobar. Aliás, eu conheci minha primeira mulher, mãe da minha filha e minha colega de turma que é jornalista e estudava jornalismo. Então, é, a minha vida começou, assim, um pouco também pela comunicação e, depois que eu me formei, eu fui pro Instituto de Medicina Social da UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], fazer o curso de mestrado em medicina social, fui pra Bahia, pra essa experiência que eu te falei, voltei pro Pinel e aí volta a estudar... porque é meu interesse. Eu sempre tive interesse, é, um pouco na área de filosofia, sociologia, é... até porque na psiquiatria, na psiquiatria... nas origens da psiquiatria, a psiquiatria era muito filosofia, né. Ela era muito descritiva, enfim... [...] na área da psiquiatria não tinha esse grau, essa... esse grau de evolução científica que tem umas poucas décadas pra cá com avanço, as pesquisas e as descobertas da neurociência. Quando eu comecei, ela era muito subjetiva, se conhecia muito pouco sobre o funcionamento do cérebro e, consequentemente, sobre a relação de eventuais transtornos ou falta de modelação entre os neurotransmissores e [...] perspicácia [...] determinados... determinadas patologias, determinados sintomas de doenças mentais, de transtornos mentais, como a psicose, a depressão e etc. É... aí voltando ao Pinel, a Doralice fazia essas fotografias e eu resolvi ver se eu, com base na minha experiência na Bahia, eu resolvi falar com o superintendente da Receita Federal, já que o Pinel era Federal, do Ministério da Saúde, pra que eu conseguisse doações de equipamentos apreendidos pela Receita Federal, mas eram portas... enfim, entravam sem autorização e eram apreendidos pela Receita. Nesses... eu consegui algumas coisas, mas o principal, que diz respeito a nossa conversa, foi uma câmera, uma câmera de televisão, uma câmera pra filmar, profissional. Eu, bom, consegui a câmera, todo mundo ficou animadíssimo. A Doralice que eu contei... eu conversava muito, essa história da gente começar a filmar ao invés de fotografar as crianças. Ela ficou entusiasmada também. A gente começou. Eu falei “bom, agora nós temos uma câmera, vamos fazer o quê com isso? Quem é que sabe? Quem vai saber?” Aí veio a ideia de que a gente contratasse uma pessoa, é... que fizesse um curso prático, um pouco teórico, mais prático, com alguns técnicos e os pacientes do nosso Centro de Atenção Psicossocial, que a gente desse uma formação profissional pra esses clientes, os usuários do CAPS, o nosso CAPS. Aí foi contratado um rapaz que chama Amadeu e o Amadeu fez esse curso de cinegrafista para os pacientes e para os técnicos, para usar essa câmera. Bom, isso foi evoluindo, o pessoal da equipe do Naicap, desse grupo de crianças autistas, é, começou a filmar as crianças, a Doralice pilotou esse projeto e, de repente, tinham horas e horas e horas de filmes, de imagens que teriam que ser editadas. Quer perguntar alguma coisa?

A: Eu entrevistei o Valter filé e a Noale Toja.

R: Valter Filé e a Noale! Figuras adoráveis.

A: [...] que eram da TV Maxambomba...

R: Isso!

A: [...] e o Valter falou uma coisa muito legal, assim... que a TV Maxambomba fundou a TV Pinel porque ele falou que, quando ele chegou, a intenção de vocês, primeiro, era de fazer vídeos institucionais do então Instituto Philippe Pinel. E aí ele falou “poxa, eu não consigo fazer isso”, é... porque a história da TV Maxambomba é completamente diferente...

R: Claro!

A: [...] de vídeos institucional [institucionais], né? A história da TV Maxambomba é a história da TV da Pinel, né, [no sentido] de dar voz às pessoas, que na TV Pinel eram os usuários.

R: Sim.

A: Qual foi a importância, nesse início, do Valter Filé pra TV Pinel?

R: Tá, aí deixa eu te falar uma coisa... um pouco antes disso... Bom, aí começamos a fazer esse trabalho com aquela câmera, o curso etc. E isso evoluiu para uma televisão, eu conversando com a Doralice... A Doralice falou “olha, o Ricardo, tem horas e horas e horas de filme que a gente precisa pagar a edição”. Eu falei “olha, o Doralice, pagar uma produtora para ficar editando horas e horas e horas de imagens é muito caro. Eu acho melhor a gente montar uma televisão”. Por que que eu falei isso? Porque eu tinha acabado de vir de um trabalho com uma televisão e aí consegui que o Ministério da Saúde me desse os recursos, o orçamento, convidei o secretário de administração do Ministério da Saúde pra conhecer o Pinel, o trabalho, ele ficou emocionado pelo trabalho com as crianças. Aí eu falei assim “olha, eu tô precisando comprar uma ilha de edição pra poder filmar a evolução das crianças”. Ele falou “quanto você precisa?”, eu falei “não sei, vou mandar ver, etc.” e consegui montar uma televisão, uma ilha de edição completa. Naquela época, a super VHS era, assim, o máximo fora da televisão profissional. [...] E eu consegui montar uma ilha de edição, uma televisão dentro do Pinel, ponto. Bom, o que que vamos fazer? Eu conhecia o Claudius, que é o Claudius Ceccon, cartunista, que era... eu nunca mais soube do Claudius, mas à época, ele era o presidente, o diretor-geral do CECIP, do Centro de Criação de Imagem Popular, que tinha o Eduardo Coutinho, enfim, tinham algumas... à época, algumas... alguns expoentes do documentário brasileiro. E contactamos o CECIP para tocar a TV Pinel, para tocar junto com os usuários, com os pacientes e com os técnicos que estavam lotados exclusivamente nessa área de vídeo do Pinel. No pacote, é... veio a TV Maxambomba, que a gente já sabia do trabalho dessa televisão e do Valter, da Noale e etc. e nós conseguimos, através do CECIP, a contratação dessas pessoas, do Filé, do Valter... de uma equipe grande que... que eles... então, eles são, assim, os... é, digamos, a TV Pinel nasce com eles. Realmente é uma ruptura de uma ideia inicial porque, na verdade, também, eu não tinha muita ideia do que... eu não tinha muita clareza do que que eu queria fazer com essa televisão, não tinha realmente. Ela foi sendo amadurecida, mas eu tinha certeza de que uma televisão era, assim, muito importante pra gente, é, colocar... incluir nos instrumentos da Reforma Psiquiátrica. Quer dizer, era uma coisa, assim, de levar pra sociedade uma nova forma de ver a loucura, de explicar, mostrar às cidades, que a loucura é uma experiência humana e ela tinha que ser acolhida em vez de rejeitada, trancafiada e etc. Bom, então, o Valter, a Noale, um grupo... um grupo deles, que era um grupo dele, foi pra Pinel e deram criação, junto com o pessoal do Pinel, com os pacientes, à TV Pinel. A TV Pinel foi uma sugestão da Doralice Araújo. Eu até no começo... Ela falou “pô, vamos chamar TV Pinel!”. Eu falei “Ah, Dora, TV Pinel, não. TV Pinel vai ficar uma coisa, assim, meio pejorativa, coisa e tal, e...”. E a Dora, felizmente, me convenceu de que o nome deveria ser TV Pinel, que foi o máximo! Qualquer outro nome não teria... não teria esse impacto, né. E aí nasceu a TV Pinel. Você assistiu o primeiro programa da TV Pinel?

A: Assisti, sim.

R: Assistiu?

A: Sim.

R: O primeiro? De inauguração?

A: Sim.

R: Ah, que bom!

A: É fantástico, né? A TV Pinel, você falou no evento dos 15 anos, o sucesso dela, é... Ela teve sucesso pela generosidade, mas também pela cumplicidade, pela cumplicidade sua com a Doralice Araújo, pela cumplicidade da equipe da TV Pinel com a TV Maxambomba, com a cumplicidade com os usuários, né, da TV Pinel, todos...

R: Sim.

A: E é sempre emblemático falar da frase da Elisabeth Costa, né? “O que tem debaixo do tapete do hospício? É louco varrido, entendeu?!”.

R: É muito... Essa, essa... essa frase da Beth foi genial.

A: mas, é...

R: No contexto!

A: Um contexto também de cumplicidade, né? Porque a Noale me contou, e o Valter também, que vocês fizeram uma roda e aí as coisas foram surgindo. Aí a Elizabeth foi e contou essa piada... Aí depois o Maycon pegou o microfone e foi entrevistar... Como é que foi...? “O que seria a TV Pinel para você?”. E aí as coisas foram surgindo a partir da cumplicidade, né? Então, é muito bonito ver como na história da TV Pinel essas cumplicidades, né, essas histórias de generosidade, elas foram se repercutindo ao longo do tempo, né. O segundo programa é muito interessante também. A Vera Roçado [que foi coordenadora da TV Pinel], ela...

R: Tá...

A: Ela disse... ela falou muito que os temas da TV Pinel começaram muito voltados para a saúde mental, para política, né? A TV Pinel, é... também tratou muito sobre política, sobre a greve, por exemplo, dos funcionários federais, teve um episódio assim... Depois, foi partindo para temas cotidianos... é... foi havendo uma mudança, né, e um desenvolvimento dessa TV comunitária, mas, o senhor, ao longo do tempo da história da TV Pinel, conseguiu, de certa forma, tá ali junto desse desenvolvimento? Você conseguiu observar esse desenvolvimento da TV Pinel até o fim “entre aspas”, né? E como é que o senhor analisa essa trajetória?

R: Eu, eu, eu... eu acompanhei. Em 1997, eu recebi um convite na saída, eu fui o diretor do Pinel [IPP] de 90 a 97. Em 97, eu saí porque eu recebi um convite, sempre fui do Ministério da Saúde, médico do Ministério da Saúde, para coordenar os hospitais federais no Brasil, que não eram... quer dizer, incluíam três hospitais psiquiátricos, Pinel, colônia e Centro Psiquiátrico Pedro II, mais os hospitais gerais do Ministério da Saúde. Então, eu deixei a direção do Pinel e assumi esse cargo. Eu, durante... e eu tirei imediatamente a minha matrícula, a minha lotação do Pinel, porque eu era um diretor muito visível, muito forte, muito presente, muito querido. Não tenho a menor falsa modéstia de falar isso. E eu achava que eu ia atrapalhar o novo diretor, que era o meu vice-diretor, que eu coloquei como condição para essa delegação do Pinel, que ele fosse nomeado diretor no meu lugar. Então, como eu queria, eu tirei a minha lotação do Pinel e dei por encerrada a minha carreira no Pinel. Então, de 97 em diante, eu saí do Pinel e acompanhava um pouco à distância, recebia o convite pra ir lá pra lançamento de programa e etc., mas eu não interferi, assim como eu nunca interferi na TV Pinel, nos, digamos assim, nos caminhos da TV Pinel do ponto de vista da política, eu tinha o Valter e a Doralice, a Noale... Era, assim, companheiros de sonhos nessa história da reforma, da vida, da sociedade. Enfim, eram companheiros políticos também, né. É que eu tinha absoluta confiança e admiração e eu não interferia nos caminhos, apenas participava eventualmente, dava uma sugestão ou outra, mas, quando eu saí do Pinel, eu deixei. E acontece o seguinte: logo depois que eu saí do Pinel, um ano depois, provavelmente... talvez, um pouco mais... o Pinel foi municipalizado, ele saiu da esfera do Ministério da Saúde e passou para o município. Por que que isso é importante? Eu acho importante, sim, porque isso jogou a maneira... foi o início da crise da TV Pinel. Por quê? Porque eu era um diretor que tinha muito prestígio no Ministério da Saúde, o Pinel era um hospital com muitos recursos e eu conseguia todos os recursos que eram importantes, que a gente pactuava entre os funcionários, eu corria ao Ministério e conseguia. Inclusive da TV Pinel. Você imagina um diretor dum hospital psiquiátrico do Ministério da Saúde pra fazer uma televisão... em outros tempos, ele seria demitido, seria declarado doente mental e seria demitido. Como é que um cara quer fazer uma televisão no hospital, não é isso? É, mas na TV Pinel, inclusive, agregou mais prestígio ao Pinel e a gente conseguiu fazer isso. Bom, quando o Pinel foi municipalizado... e o Pinel era o seguinte... os hospitais federais, o Pinel era assim, ele tem o orçamento anual e o diretor é responsável pela execução do orçamento. Presta contas ao Tribunal de Contas da União, Delegacia Federal de Controle, Ministério da Fazenda e ponto, mas o diretor era o ordenador de despesa. Então, enquanto eu era diretor, eu que autorizava as despesas, autorizava licitações e etc. Então, eu tinha muita autonomia pra tocar o instituto todo. Na verdade, o hospi... quando eu assumi a direção, era o Hospital Doutor Philippe Pinel. Na minha gestão, nós transformamos em Instituto Philippe Pinel de Assistência, Ensino e Pesquisa em Saúde Mental, uma residência em psiquiatria muito forte, criamos a residência de saúde mental pra não-médicos e etc., mas essa é uma outra conversa. Quando passou pro município eu já não estava lá porque eu já tinha ido e, no município, tudo é centralizado na secretaria de saúde. Então, eles começaram a ter dificuldades com os contratos da TV Pinel, da TV Maxambomba, do pessoal e etc. E isso, às vezes, ficava... eu escutava, assim, que ficavam períodos sem contrato, as pessoas sem receber, paralisava as atividades e etc. E aí foi... na época da Vera [Roçado], ela conseguiu... ela conseguiu fazer muita coisa já no município, mas isso aos poucos foi se esvaziando. Hoje, a TV Pinel, eu não sei quando acabou, mas ela... foi morrendo de inanição. É... é... então... e, depois, tem assim, também... o que foi o impacto muito grande no nascimento da TV Pinel, ao longo dos anos... porque a gente queria profissionalizar, nós profissionalizamos as pessoas, os pacientes que passaram a ganhar dinheiro, iam filmar uma festa de aniversário, de casamento, sei lá e etc, mas também com a... com o nascimento da internet, dessa, dessa... desse acesso online ao mundo, né? A TV também deixou de ter seu... o impacto que teve no início, né, e o que seria o trabalho... o trabalho presencial das pessoas, como cinegrafista, editores de vídeo e etc., isso migrou muito pras redes sociais, né? Aí, eu também não acompanhei mais.

A: Uhum. A Noale “Tôja”, Toja...

R: Toja!

A: [...] Ela parece que foi uma pessoa muito importante pra sobrevivência, durante algum tempo, da TV Pinel porque ela mesma levava seu equipamento pra fazer as gravações, porque durante algum tempo, a TV Pinel, ela ficou sem equipamento próprio. Então, os funcionários que levavam, né? E parece que ela levava muito o material... Ela me disse que a TV Pinel foi acabando por falta de interesse político, ela cita muito isso, mas o senhor também acha que, também, por certa resistência de... da própria área da psiquiatria no nosso país? Eu te pergunto isso porque, no evento de 15 anos da TV Pinel, ao seu lado, estava o Paulo Amarante [psiquiatra, um dos pioneiros da Reforma Psiquiátrica no Brasil]. E ele faz duas... Ele coloca duas contribuições, a primeira delas eu vou trazer agora... Ele cita Franco Basaglia, que foi um psiquiatra bem importante, e ele fala, né, ele fala... sobre a importância do olhar da psiquiatria pro humano, pra além do diagnóstico, sabe. A importância de olhar pra pessoa, pras suas experiências e... e ver que, pelo olhar totalmente psiquiátrico, né, é... você não consegue notar que a pessoa precisa de um lazer, de um... e o Paulo Amarante, ele falava que os profissionais da área “psi”, que eram ligados à Reforma Psiquiátrica, eles eram chamados por outros profissionais como um pessoal do “contra”. Então, parece que sempre existiu uma parte da psiquiatria que era uma parte um pouco mais conservadora às ideias da Reforma Psiquiátrica. Então, o senhor acredita que nesse processo de descontinuidade dos trabalhos da TV Pinel também houve uma espécie de resistência dentro da área da psiquiatria no nosso país ou até, de uma maneira mais regionalizada, dentro dessas esferas de controle político? [...] Não sei se eu me faço entender.

R: Eu tô entendendo. Nesse evento, também, tinha uma, uma... tinha o Massimo Canevacci, que é um sociólogo e antropólogo italiano, aliás um dos principais intelectuais europeus da Itália, ele estava presente na mesa também. Eu convidei ele pra ir, é... que trabalha muito com comunicação, o Massimo Canevacci trabalha muito com comunicação também, semiologia... Eu acho que sim, eu acho que, quando o Pinel passou pro município, foi municipalizado, que era um pouco... caminho natural por causa do SUS [Sistema Único de Saúde], né... Na verdade, enquanto eu era diretor, eu sempre resisti a isso porque eu sabia que todos esses programas que eram, vamos dizer assim, fora, fora do que o município... porque, a princípio, o que é a Secretaria Municipal de Saúde... atenção primária, centros de saúde, postos de saúde e grandes emergências, grandes hospitais que tem uma porta de entrada que são as emergências abertas e... qual a importância pra secretaria de saúde, pro Instituto Philippe Pinel, que é uma coisa pequena, especializada dentro do Instituto Philippe Pinel, uma televisão Pinel?! Isso... isso não tem o menor sentido pros técnicos e profissionais burocratas de uma Secretaria Municipal de Saúde, isso é, assim, como se fosse uma coisa exótica, desnecessária e sem sentido, né? Porque eles não podiam ter um olhar para isso como nós tínhamos com relação à Reforma Psiquiatra, a como intervir, do ponto de vista cultural, no estigma da loucura, na idealização da loucura por parte da sociedade, das pessoas, né? A TV Pinel foi um instrumento muito valioso pra isso, você assistiu o primeiro programa, você escutou a minha fala, que eu pontuei muito isso, né? É... mas eu não sei muito também, o Arthur... eu... se hoje a TV Pinel teria essa... essa capacidade de intervenção como foi. Porque no início a TV Pinel ganhou prêmios internacionais, a TV Pinel era matéria, motivo de matéria em vários jornais, televisões... até no Jornal Nacional ela apareceu. Durante a Conferência Nacional de Saúde, fomos as estrelas da Conferência Nacional de Saúde, foi a TV Pinel. Mas isso hoje não teria essa repercussão. Ela teve um papel histórico, mas ela não ia conseguir repercutir tanto ao longo dos anos, acho que ela nasceu no momento certo, na hora certa, com as pessoas certas, mas que isso não... não, não... não era pra durar mesmo ao longo das décadas, eu acho que não.

A: Entendi...

R: Não teria mais sentido. Até porque nós aprovamos a lei da reforma, a TV Pinel nasceu, é filha da Reforma Psiquiátrica. Ela nasceu na década da discussão da lei, foi a década de 90, que eu participei... quase toda década eu fui diretor do Pinel. Mas a lei foi aprovada em 2001, então, assim, a gente tinha cumprido o nosso dever de realizar os sonhos, que eram os sonhos de profissionais, de pessoas, dos usuários, das famílias, etc., de aprovação da lei, né. Acho que depois, também, ela começou a perder... Ela deixou de ser tão impactante porque ela tinha cumprido, realmente, o papel... o papel pro qual ela tinha sido pensada, né, desenhada e... como um instrumento realmente de intervenção cultural.

A: Entendi. Eu queria perguntar especificamente sobre a psiquiatria porque, como o senhor disse...

R: Tua voz ficou mais baixa, Arthur...

[Houve uma pequena interrupção por problemas com o áudio]

A: Tá me ouvindo?

R: Tô, mas baixo...

A: [Problemas com o áudio resolvido] Melhorou?

R: Ah, agora sim!

A: Melhorou?

R: Melhorou muito! Voltou ao normal.

A: Como você mesmo disso, a Pinel... a TV Pinel foi como um modelo da Reforma Psiquiátrica, né? Por incluir na sociedade, pela quebra de paradigmas, de preconceitos arcaicos, é... e isso influiu muito na psiquiatria. Talvez no olhar de psiquiatras, no olhar de profissionais, né?

R: Claro.

A: O senhor foi um psiquiatra com uma trajetória diferente, com uma trajetória de muita interlocução, né? Inclusive pra formação da TV Pinel. Eu queria perguntar para o senhor como você vê a psiquiatria e as suas instituições, é, também em frente ao desmonte da TV Pinel, que parece, de certa forma, que tá muito junto ao desmonte da saúde mental do Brasil. O que tá acontecendo, hoje, na saúde metal, desde o governo Temer é que tão sendo criadas leis, resoluções, notas técnicas, que tão, por exemplo, permitindo a volta da... de tratamentos que foram descontinuados pela Reforma Psiquiátrica, como a eletroconvulso... convulsoterapia. Que há muitos profissionais que tão muito a favor e há outros que são contra porque parece que, por exemplo, a ECT [eletroconvulsoterapia], como é chamada hoje, não é muito efetiva pra muitos casos, né?

R: A maioria... a esmagadora maioria. Na verdade, as indicações são muito restritas, muito.

A: E existem profissionais hoje que tentam vender a ECT como uma... uma panaceia pra muitos casos de depressão resistente.

R: Sim.

A: Então, parece que existe, ainda no campo da psiquiatria, uma divisão, uma divisão forte. E que... uma divisão, também, que tá contribuindo pra um desmonte da Reforma Psiquiátrica. Como o senhor vê, então, como... qual é a sua perspectiva da própria psiquiatria e das suas instituições no nosso país? É uma área que precisa de avanços, talvez, dentro da própria área... progressistas, sociais, que precisa ter essa interlocução que o senhor teve na sua carreira? Sabe?

[...]

A: Eu não sei se é uma pergunta...

R: Complexa...

A: Complexa.

A: Você acha que a psiquiatria ainda tá muito, é... presa nos seus próprios... próprio campo de saber...?

R: É, eu acho, Arthur, é... você... eu, é, é... sempre foi um embate muito grande, ao longo daquela década de 90, da discussão da lei, o projeto de Paulo Delgado, ele foi... ele entrou na Câmara dos Deputados em mil... novecentos... e 89. Ele foi sancionado pelo, ainda, presidente Fernando Henrique Cardoso em 2001. Foram quase 12 anos de discussão. Essa discussão... eu, eu sempre costumo falar o seguinte: eu, eu, particularmente, e as pessoas concordam com isso, nunca vi um projeto de lei ser tão discutido na sociedade brasileira. Talvez alguns outros de muito impacto na vida social, na vida da sociedade pras pessoas, também tenham tido... mas, é, naquele período da história, eu nunca vi. Realmente, foram criadas associações de familiares, de usuários, contra, a favor... se debatia no Brasil inteiro isso, a mídia abrir espaço, televisão, rádios, jornais e etc. Então, a gente tinha muito espaço na mídia pra essas discussões contra e a favor. Sociedades médicas eram a favor. Outras, contra. A Associação Brasileira de Psiquiatria [ABP], dependendo do presidente, da diretoria, era... fazia restrições... não, não era contra claramente, mas veladamente. Alguns presidentes eram a favor. Enfim, isso também refletia a visão que os psiquiatras tinham da psiquiatria como... como instrumento de intervenção terapêutica, né? Mais biológico ou mais... ou com viés mais humanista, mais agregado a sociologia, mas o convés mais humanista, mais agregado com a sociologia, com as ciências sociais e etc., além da parte biológica e psicofarmacológica. Bom, essa é uma questão. Então, eu, à medida em que foi aprovada a lei, que, é... que os manicômios foram sendo desmantelados e que não podia criar novos, de qualquer maneira, a Reforma Psiquiátrica foi avançando, foi avançando... o Ministério da Saúde, é... foi fundamental pra criação dos CAPS [Centros de Atenção Psicossocial], nas articulações com os Estados, com os municípios, principalmente, e foram criados CAPS em todos os Estados do Brasil, em muitos municípios e etc. E a Reforma Psiquiátrica foi avançando até... foi, era Domingos Sávio. Depois, o Pedro Gabriel Delgado. Depois, o Roberto Tykanori, como coordenadores de saúde mental. Nós, é... nós, eu digo, nós todos... é... nossos... o grupo da reforma, nós tivemos uma influência na política de saúde mental do Brasil durante mais de vinte anos. [...] Muito foi implementado, né. Agora, desde o governo Temer, nós perdemos... com a saída da Dilma, com o golpe, nós perdemos a hegemonia. Começaram a colocar, na coordenação de saúde mental do Ministério, pessoas que eram contra a reforma, né? Ou algumas contra e outras que não se importavam com isso, que não iam levar a frente mesmo. Então, realmente, esse desmantelamento, ele foi gradativo. Radicalizado, agora, no governo Bolsonaro porque... no governo Bolsonaro, nada que seja humanista, que fale solidariedade, que seja progressista é visto com bons olhos, né. E as instituições públicas não são vistas com bons olhos, a não ser que rezem da partilha do governo. Certamente, a Reforma Psiquiátrica não faz parte desse modelo. Aliás, nenhuma reforma progressista, né.

A: Entendi. Uma outra pergunta que eu queria fazer para o senhor tem a ver também com uma outra questão que o próprio Paulo Amarante levantou na naquele evento. Que ele falou sobre a importância de fazer uma interlocução com outros campos de saber, como as ciências sociais, da importância de trabalhar com a cultura, para transformar a ideia das pessoas sobre os transtornos mentais e de fazer uma interlocução com outros profissionais, né? O senhor vê essa importância também de fazer uma interlocução com os profissionais do campo da comunicação, como os jornalistas, talvez, por meio de formações mais amplas de como... em comunicação em saúde, que repercutam as ideias, por exemplo, da Reforma Psiquiátrica, do campo “psi”... Você acha que os profissionais de comunicação, especialmente os jornalistas, poderiam ser atores, assim, nessa luta antimanicomial no nosso país? Ou você acha que isso tem que estar atrelado às instituições da psiquiatria, da psicologia...?

R: Olha, só. É... Na década de 90, a mídia, majoritariamente, abriu espaço para defesa da Reforma Psiquiátrica, é... Nos debates que nós tínhamos, eu participei de vários pelo Brasil e os outros colegas companheiros... a mídia era majoritariamente a favor da reforma porque era... porque a reforma era um ideal humanista nas pessoas, né? Era o imperativo do processo civilizatório. Quer dizer, uma sociedade que se pretende civilizada, se afastando da barbárie, ela não pode conviver com manicômios. Isso é um indicador do processo civilizatório de uma sociedade e a mídia comprava isso, é a parceira nossa nessa discussão, né.

A: Entendi, e...

R: Eu, eu... você tá falando aí e eu tô pensando... Eu, quando assumi o Pinel, o Pinel dava muita mídia, muita, muita, muita! Sempre favorável. Eram matérias enormes na televisão, Folha de São Paulo, Globo, Jornal do Brasil, etc. Até no Le Mond saiu, na Newsweek. Enfim, é... houve um Congresso Mundial de Psiquiatria aqui no Rio de Janeiro, quando eu era diretor, não sei se foi em 95 ou 96, nós tínhamos, assim, delegações de vários países, Japão, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Ucrânia... que iam visitar o Pinel pra conhecer a reforma do Pinel. A gente tinha pessoas de outros Estados, da enfermagem, médicos, que iam conhecer o trabalho do Pinel. Então, o Pinel sempre foi muito famoso. O Pinel, em mil novecentos e... se não me engano, em 76, ele entrou no Aurélio Buarque de Holanda [Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa], como adjetivo da loucura: ser Pinel é ser louco, não é isso? Bom, a primeira entrevista que eu dei, assim que eu assumi a direção do Pinel, foi a Elaine Rodrigues, falecida, que era jornalista. Naquela época tinha jornalista setorial. A Elaine era... A Elaine Rodrigues era do setorial saúde. Depois, nós ficamos muito amigos. Mas ela foi fazer uma entrevista comigo... nós tínhamos amigos comuns, jornalistas, amigos mesmos... que eram amigos dela também. Ela gostava muito de fazer hospital, caçar corrupção nos hospitais e etc. E a Elaine falou “mas, o, Ricardo... você não pretende mudar o nome do Pinel, não? Pinel fica essa coisa, assim, tão... ‘É Pinel, É Pinel...’ Tão pejorativa...”. Eu falei “Elaine, olha só, o Pinel é uma marca tão conhecida... o ‘pinel’ tem no Rio de Janeiro, tem ‘clínica pinel’ em Porto Alegre, tem ‘banda pinel’ na Bahia, tem ‘hospital pinel’ lá no Amazonas. Clínica, etc... então, o Pinel é uma das marcas mais conhecidas, entrou no Aurélio, é... Que que a gente vai fazer? Se mudar o nome pra, sei lá... qualquer lugar que você imaginar, todo mundo vai chamar ‘pinel’. Então, o que que a gente tem que fazer... o pinel é case tão conhecida quanto a Coca-Cola, quanto marca de Gillette, etc. Então, não adianta. O que que a gente tem que fazer é associar essa marca muito poderosa à liberdade e a algo de qualidade, de solidariedade, e, assim, a gente trabalhou. A TV Pinel também nasceu por conta dessa, dessa intervenção na sociedade, na cultura. A TV Pinel sempre nasceu associada à cultura. Todos os profissionais de fora do Pinel, que foram trabalhar na TV Pinel, são pessoas de outras áreas, da cultura. Da mídia e da cultura, como o Valter Filé, a Noale, enfim... Aliás, contratamos o CECIP que era um dos expoentes da comunicação e tinha alguns dos cineastas de maior prestígio, né. Então, a TV Pinel já nasceu dentro da cultura, como uma proposta de intervenção cultural. Não psiquiátrica, de intervenção cultural. A TV Pinel é filha, não da psiquiatria, ela é filha da cultura, né.

A: Muito legal esse ponto. Esse ponto é muito interessante.

R: É.

A: O Valter Filé, ele falou que a... ele me deu a proporção, né, de como a TV Pinel foi importante porque, inclusive, uma equipe de um CAPS de São Paulo, uma vez, um tempo depois, procurou a TV Pinel pra buscar uma formação porque eles tavam tentando fazer uma espécie de TV Pinel no CAPS lá de São Paulo.

R: Tá.

A: E tinham muito dinheiro. E aí eles contrataram uma equipe profissional, né, pra fazer as gravações. Só que os usuários daquela outra TV Comunitária, não tavam aguentando, e ele explicou o porquê. Porque eles contrataram uma equipe muito...

R: Tem outra TV comunitária? De onde? De São Paulo?

A: São Paulo.

R: Ou de Belo Horizonte?

A: Essa era de São Paulo.

R: Porque tinha outra que era “Sala de Espera”, em Belo Horizonte.

A: Não, essa é...

R: Tem outra TV comunitária também, de sala de espera de pacientes. Tá...

A: Essa é de São Paulo.

R: Tá.

A: Ela veio depois da TV Pinel. E aí o Valter me explicou, ele falou que a equipe, que era muito profissional, queria fazer uns takes, né, umas gravações muito certas, muito bem feitas e os usuários dessa outra TV não aguentavam porque era uma repetição, aí eles não conseguiam seguir o roteiro certinho. Aí ele foi e mostrou um vídeo pra eles, né, para essa equipe que foi a “A Endoidada”, que foi criado a partir da novela “A indomada”.

R: Sim, eu assisti. [risos]

A: E o Valter falou que, durante a gravação, não tinha continuidade pra aquilo. E aí eles foram entender que a coisa tinha que ser feita pelo improviso, pela criatividade dos usuários, pela liberdade deles, né. E parece que era por essa liberdade que eles tinham, em que eles desenvolviam a sua autonomia, né, a sua autoestima. A Vera Roçado também falou muito sobre isso, sobre como os usuários conseguiam desenvolver sua autoestima, sua autonomia, né?

R: Sim...!

A: Muito além da questão, é... de tratar tudo pelo biológico, né, pela medicação, mas por um campo psicossocial. E aí a TV Pinel se atrelou muito a isso, não foi?

R: É... eu vou só fazer um parêntesis, que eu acho... algumas pessoas falam que a primeira televisão... eu não tô querendo colocar em primeiro lugar, que foi a primeira, etc., a questão não é essa. A questão é que o exemplo de Trieste com os usuários com uma televisão, ele é completamente distinto da TV Pinel. A TV Pinel foi a primeira televisão feita por usuários. O que aconteceu em Trieste é que os usuários criaram uma produtora de televisão como qualquer produtora. Recebe filme, vai editar, cobra a hora e etc. É uma empresa. É... como televisão, a TV Pinel, pelo menos, nunca ninguém me falou que conhecesse alguma. Então, a experiência de Trieste é diferente da TV Pinel. Não sei se é melhor ou pior, essa não é a discussão.

A: Trieste?

R: Trieste, onde o Franco Basaglia começou a Reforma Psiquiátrica Italiana.

A: Entendi...

R: Cidade de Trieste, na Itália.

A: Tá bem.

R: Tá? É... então, essa é uma questão importante... mas eu ia falar uma coisa que agora me fugiu, daqui a pouco eu lembro.

A: Desculpa te interromper.

R: Eu achei importante. Não, não... É... tava ligado a isso também, mas daqui a pouco eu lembro!

A: Que eu tava falando pro senhor que a Vera Roçado falava sobre a, né... a capacidade da atuação dos usuários e, por meio dessa atuação, por meio dessa liberdade de se expressar, deles conseguirem desenvolver sua própria autonomia, sua autoestima... pelo vídeo.

R: É, eu lembrei...

A: A Doralice, parece que isso era uma fala da Doralice também de... como pelo vídeo, pela imagem, eles conseguiam mudar sua própria imagem, né, sua autoestima.

R: Sim, porque, na verdade, eles se viam como pessoa qualquer, eles não se viam como doentes, como pacientes. Eles se viam como pessoa, como um repórter, um editor de VT, um câmera e etc. Eu... eu agora me lembrei do que eu ia te falar! O primeiro programa da TV Pinel, que você assistiu, ele ficou pronto e, antes da... do lançamento oficial no auditório do Pinel, que ficou lotado, enfim, foi uma festa. Eu apresentei o programa na ilha de edição pra alguns convidados, veio o Domingos Sávio, que é meu amigo, que era o coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, uma figura admirável. Enfim, muito amigo. Veio o Willians Valentine, lá da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], enfim, algumas pessoas que... e aí eu pedi pra botarem o programa e ficamos assistindo mais três, quatro pessoas... eu não me lembro mais quem... e aí, sempre, assim, vinha uma pergunta do Willians ou do Domingos e falava: “E esse aí? É paciente ou é funcionário? E aquele ali? É paciente ou é...?” [risos] “...ou é contratado...?”, coisa e tal. Eu falei: “olha só, a TV Pinel já começou com o maior sucesso porque a gente não sabe quem é quem, todo mundo é igual!”. O fato de você ter um transtorno mental não significa que você olhe pra pessoa e tenha que dizer “ah, tá passando ali o louco”, não é isso. Se você não sabe quem é, é porque a TV Pinel já nasce cumprindo o papel para a qual ela foi criada, que a loucura tem que ser relativizada e tem que ser vista como uma condição humana. E, como tal, que cada um de nós pode, eventualmente, enlouquecer também, né?

A: Nossa, que interessante! Muito interessante isso.

R: É mesmo, eu fiquei muito... na verdade, eu fiquei muito feliz, né, porque as pessoas me perguntavam quem era quem.

A: Sim, e parece que isso foi utilizado em outros programas também. Quando iam pra Cinelândia... fizeram um episódio, por exemplo, em que... faziam muito “povo-fala” [enquetes] com as pessoas na rua e aí parece que uma pessoa perguntou pro repórter, eu não sei se foi bem o Maycon... mas perguntou pro repórter se ele era...

R: Pinel! [risos]

A: Se ele era um pinel, se ele era...

R: Se ele era pinel!

A: Se ele era pinel ou se não. Se ele era um funcionário, uma coisa assim. Isso, inclusive, não era uma questão só de quem... era uma questão das pessoas que viam de fora, né, a TV Pinel, e de como isso, na verdade, demonstrava a potência, né, de transformação de toda essa experiência.

R: Sim.

A: Né? É muito interessante. Mas, eu tinha separado essas perguntas pro senhor e elas já chegaram ao fim. Eu ia... eu queria perguntar muito sobre o seu olhar como psiquiatra diante dessa experiência toda, o campo da psiquiatria e diante desse desmonte todo, federal, municipal, estadual, da saúde mental porque isso acompanha muito a trajetória da TV Pinel.

R: Claro.

A: Isso faz pouco tempo. A TV Pinel parece que ainda existe, né?

R: Não sei.

A: O João Aranha tá lá, a Vera Roçado...

R: Mas o João... mas eles têm produção e programa? Eu acho que o João fica lá tomando conta do acervo, não sei qual é o trabalho. Que eu saiba, a Vera tá afastada também, a Noale não trabalha mais lá... o João... o Filé também há muito tempo.

A: O Filé, hoje, é professor universitário. A Noale tá trabalhando em outro projeto. Ela me disse que existe um “facebook” que posta algumas coisas, mas só. Entendeu?

R: A rigor, é o que sobrou da TV Pinel, é... o que tá nas... o que pode ser colocado nas mídias, mas a TV não produz mais nada, que eu saiba...

A: Uhum. O João falou que eles tão tentando, agora, organizar uma espécie de site pra disponibilizar o material bem organizado da TV Pinel.

R: Ah, show. Isso... eu acho que isso é fantástico. É, realmente...

A: Eles estão tendo alguns problemas de contrato e tão resolvendo tudo isso, mas, fora isso, foi isso que restou mesmo da TV Pinel. É... foi graças ao João, graças a você, primeiramente, que eu tive acesso ao material, que me ajudou muito, que é fantástico.

R: Sim, com certeza, com certeza...

A: A gente tava tentando fazer uma... doar essa cópia pra biblioteca da PUC, né, pra difundir...

R: A cópia do material que você conseguiu?

A: Sim, só que existe um problema de contrato e o João não conseguiu essa autorização pra gente doar, mas enfim...

R: Mas por que não conseguiu?

A: Não sei, ele me explicou. Ele falou que teve algum problema durante esse processo e não conseguiu. Ele me explicou aqui...

R: A Vera Roçado sabe disso? Acompanhou isso?

A: Ele falou que não deu seguimento porque ficou um pouco enrolado. A empresa que faz a contratação teve o convênio encerrado com a prefeitura e aí isso tá um caos, segundo ele.

R: Tá, mas aí... acontece o seguinte, você tá falando do acervo da TV Pinel?

A: É, porque parece que o acervo é ligado a uma empresa.

R: Não pode. O acervo é, o acervo é propriedade do Instituto Philippe Pinel. Não pode ser ligada a empresa.

A: Parece que tem alguma coisa no meio disso, eu não soube...

R: Só se fizeram um contrato que passaram a propriedade... não pode a propriedade intelectual ser passada pra empresa. Eu tenho o máximo interesse em participar dessa história porque eu não posso admitir que um acervo tão rico vá se perder no meio da secretaria de saúde ao longo dos anos, isso tem que se passar pra comunicação, pra escola de comunicação. A PUC, a UFRJ, não importa, mas alguém que dê o valor que esse material merece e que vá preservá-lo. Isso eu acho que... passando pro município, eu já... dependendo de quem esteja lá na secretaria municipal, isso não terá valor nenhum. Isso, no final das contas, vai ser jogado fora por conta de um burocrata qualquer.

A: Pois é...

R: Isso tem que passar pra universidade!

A: Essa era a ideia porque o material, além de estar lá no Pinel, ele tá na Biblioteca de Manguinhos, na Fiocruz, só que...

R: Bom, já está também num lugar de excelência, né?

A: Sim, sim. Só que a biblioteca, durante a pandemia, teve fechada e por isso eu não consegui acesso ao material. Por isso, também achei que seria muito legal a ideia de expandir o acesso ao material pra outras bibliotecas, acho que seria interessante. Mas ele falou que vai me contactar pra ver se a gente consegue resolver isso, mas é isso... Vou... Eu esqueci a gravação...

[Depois da interrupção da gravação, o entrevistador agradeceu a presença de Ricardo Peret e por sua contribuição à pesquisa. Destacou a importância da TV Pinel e de como ela foi capaz de influenciar sua trajetória profissional. Lembrou sobre a importância e o exemplo de Valter Filé, Noale Toja e Ricardo Peret para a Reforma Psiquiátrica e para a luta antimanicomial, pela constituição de mídias comunitárias que promoveram o acesso a direitos por meio da solidariedade e da ampliação da democracia nas margens sociais e, pessoalmente, para o entrevistador, por terem sido exemplos de cidadãos.]

1 O SUS foi instituído pelas Leis Federais 8.080/1990 e 8.142/1990 e tem os princípios do acesso universal, público e gratuito; da integralidade, ao promover cuidados que mirem os indivíduos em seus contextos sociais e de saúde; e da equidade ao atender igualmente o direito à saúde de cada cidadão. Enfim, “a saúde como direito de todos e dever do Estado”, como previsto na Constituição Federal de 1988 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 13).

2 A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é formada pelos CAPS, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento (UAs) e os leitos de atenção integral. Dessa estratégia também faz parte o programa de Volta para Casa (10.708/2003), serviço que oferece auxílio para pacientes que passaram por longas internações em hospitais psiquiátricos ou a aqueles que, por falta de alternativas, foram submetidos a tratamentos que os privaram de seus direitos básicos de cidadania. Ver também Brasil (2011).

3 A Emenda Constitucional n° 95, conhecida como Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, alterou a atual Constituição Federal do Brasil para instituir um novo regime fiscal, afetando o investimento no SUS. Ver também Brasil (2016).

4 Para Foucault, um dispositivo pode ser entendido como uma configuração de domínios sobre o saber e de exercícios do poder. Sobre esse conceito, ver também Foucault (2017).

5 A pesquisadora Djamila Ribeiro apresenta uma importante discussão sobre os grupos subalternizados na sociedade a partir da ótica apresentada pelo termo lugar de fala. Para a filósofa, a existência de hierarquias estruturadas na sociedade inferiorizam produções intelectuais, os saberes e as vozes de grupos minoritários. Ver também Ribeiro (2017).

6 Sobre O Nascimento da Clínica, ver também Foucault (1980).

7 Ver também Brasil (1988).

8 Segundo os pesquisadores, a abordagem sobre anos em que os textos foram publicados surgiram a partir de uma escolha aleatória na pesquisa. (GUARNIERO; BELLINGHINI; GATTAZ, 2012)

9 “Psiquiatras traçam perfil de Wellington a partir de vídeos: A falta de expressão facial revelaria incapacidade de estabelecer vínculos afetivos”, em matéria publicada pela Revista Veja, em 2011. Ver também Vargas (2011).

10 A citação é um trecho da fala de uma aluna do Projeto de Capacitação em Produção de Vídeo da TV Maxambomba, em uma entrevista feita por Luciana Lobo Miranda (2002) para sua tese de doutorado.

11 Entrevista concedida por PEREIRA, José Valter. Entrevista com Valter Filé [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista I.mp4 (1 hora e 18 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta monografia.

12 Entrevista concedida por TOJA, Noale de Oliveira. Entrevista com Noale Toja [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista II.mp4 (1 hora, 2 minutos e 44 segundos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B desta monografia.

13 Fala transcrita de Elizabeth Costa, usuária da TV Pinel.

Disponível em TV PINEL? Qual é o canal?. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e TV Maxambomba. Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel/Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), abril de 1996. 1 fita Super VHS (S-VHS), (44 min. e 30 seg.).

14 O termo “usuário”, neste contexto, refere-se a indivíduos que utilizavam os serviços oferecidos pelo então Instituto Philippe Pinel (IPP). O termo sempre foi o mais utilizado para se referir a essas pessoas, tanto pelos profissionais que trabalhavam no IPP, quanto por outras pesquisas que também abordaram a atuação da TV Pinel.

15 Transcrição do discurso de Ricardo Peret no primeiro programa da TV Pinel.

Disponível em TV PINEL? Qual é o canal?. Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e TV Maxambomba. Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel/Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), abril de 1996. 1 fita Super VHS (S-VHS), (44 min. e 30 seg.).

16 Entrevista concedida por PERET. Ricardo. Entrevista com Ricardo Peret [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista III.mp4 (1 hora, 6 minutos e 1 segundo). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice C desta monografia.

17 Entrevista concedida por PEREIRA, José Valter. Entrevista com Valter Filé [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista I.mp4 (1 hora e 18 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta monografia.

18 Entrevista concedida por PEREIRA, José Valter. Entrevista com Valter Filé [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista I.mp4 (1 hora e 18 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta monografia.

19 Entrevista concedida por PEREIRA, José Valter. Entrevista com Valter Filé [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista I.mp4 (1 hora e 18 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta monografia.

20 Entrevista concedida por PERET. Ricardo. Entrevista com Ricardo Peret [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista III.mp4 (1 hora, 6 minutos e 1 segundo). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice C desta monografia.

21 Id., 2021, p. 162.

22 Entrevista concedida por TOJA, Noale de Oliveira. Entrevista com Noale Toja [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista II.mp4 (1 hora, 2 minutos e 44 segundos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B desta monografia.

23 Id., 2021, p. 138.

24 Entrevista concedida por TOJA, Noale de Oliveira. Entrevista com Noale Toja [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista II.mp4 (1 hora, 2 minutos e 44 segundos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B desta monografia.

25 Entrevista concedida por PERET. Ricardo. Entrevista com Ricardo Peret [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista III.mp4 (1 hora, 6 minutos e 1 segundo). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice C desta monografia.

26 Entrevista concedida por PEREIRA, José Valter. Entrevista com Valter Filé [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista I.mp4 (1 hora e 18 minutos). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice A desta monografia.

27 Antes da fala de Clovis, foi inserida uma vinheta com a frase “de doente a cidadão”. Essa era uma parte do programa com idealização de um usuário da TV Pinel.

28 Relato de Clovis L. Braga, então usuário da TV Pinel.

Disponível em: ENLOUQUECER É.... Produção: Equipe da TV Pinel. Assessoria: Centro  de Criação de Imagem Popular (CECIP) e TV Maxambomba. Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel/Ministério da Saúde. Rio de Janeiro, RJ: VídeoSaúde, distribuidora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), outubro de 1998. 1 fita Super VHS (S-VHS), NTSC (51 min. e 20 seg.).

29 Entrevista concedida por PERET. Ricardo. Entrevista com Ricardo Peret [out. 2021].

Entrevistador: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim. Madrid, España, 2021. Entrevista III.mp4 (1 hora, 6 minutos e 1 segundo). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice C desta monografia.   

BOMFIM, Arthur Coutinho Gonçalves. Gente é pra brilhar: A TV Pinel e sua luta por liberdade, democracia, saúde e arte. Orientadora: Sandra Korman Dib. 2021. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo) – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.


Publicado por: Arthur Coutinho Gonçalves Bomfim

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