Os Discursos sobre a Loucura como Instrumento de Poder em Michel Foucault

 SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 7
CAPÍTULO I 14
2 UM OLHAR SOBRE A “HISTÓRIA DA LOUCURA” NA IDADE CLÁSSICA 14
2.1 O POR QUÊ DE UM ESTUDO DA LOUCURA EM MICHEL FOUCAULT 14
CAPÍTULO II 29
3 OS DISCURSOS SOBRE A LOUCURA 29
3.1 EM BUSCA DE UM DOMÍNIO 29
3.2 O PODER PSIQUIÁTRICO 35
CAPÍTULO III 44
4 A CASA DOS LOUCOS 44
4.1 DO INTERNAMENTO À TERAPIA 44
4.2 A ANTIPSIQUIATRIA E A DESPSIQUIATRIZAÇÃO 51
5 CONCLUSÃO 59
6 REFERÊNCIAS 61
7 ANEXO 62


1 INTRODUÇÃO

Durante todo o decorrer da história, pouca importância fora dada com a questão do “insano”. Durante a Idade Média, tal problema era visto simplesmente como um erro, uma falha da razão. Neste período, o maior enfoque de exclusão seria dado, segundo Foucault, sobre o leproso (FOUCAULT, 1972, p. 3). Porém, com o advento da Idade Moderna, observaremos o surgimento de um novo ideal que consistirá na exaltação da razão. É a partir deste ideal de racionalidade, que o louco acaba se tornando um sinal de contradição nestes meios, de modo que já não será tratado apenas como um mero erro, mas, também, como uma ameaça à razão. No início da contemporaneidade, novas idéias, teorias e instituições, iriam reforçar este discurso de forma que o louco não seja mais um problema da sociedade, mas sim, um problema puramente do domínio científico. Com o surgimento da Psiquiatria e as mistificações da ciência, a loucura ganharia casa e padrastos, por meio de discursos que a legitimariam como doença. Assim, considerando certos domínios científicos, a loucura passaria a ser criminosa, perigosa e talvez “contagiosa”.

Ora, analisando esta situação, queremos mostrar nesta pesquisa, que estes discursos seriam aceitos por uma pluralidade de receptores onde também se tornariam emissores destes. No entanto, a problemática aqui apresentada não estaria apenas sobre um idealizador, cruel que dominaria um monopólio do discurso, mas de uma sociedade em sua complexidade que concomitantemente exclui e deporta não só os loucos, mas todo e qualquer indivíduo que ameaçar a sua “suposta” tranqüilidade.

Desta forma, queremos, por meio do pensamento de Michel Foucault, pesquisar o discurso sobre a loucura durante os séculos XV a XIX como formas de poder, isolamento e punição, no intuito de mostrar que tanto o saber médico, quanto a internação psiquiátrica, tornaram-se alguns dos instrumentos de poderes institucionais da época. Conseqüentemente, este saber médico juntamente com outras ciências podem ter sido os grandes responsáveis por estabelecerem a fronteira entre a racionalidade e a loucura sem ao menos ter total conhecimento de o que ela realmente é. A loucura, entretanto, será vista pelo mundo psiquiátrico como a ameaça de uma doença à sociedade. E como toda doença, deve-se fazer existir uma cura.

Durante o século XVIII, o fenômeno de exclusão para com os loucos torna-se muito mais evidente com as internações. Serão os hospícios que se transformarão em fins terapêuticos e penitenciários. Desta forma, cabe-nos a pergunta: como surgiu esta necessidade de um aprisionamento do louco?

Para tanto, como ilustração, podemos observar que no final da Idade Média quando os leprosários já não recebiam mais doentes, surgiria um novo problema, uma nova forma de substituir os internatos para enchê-los novamente de “doentes”; este problema seria a loucura. A respeito deste assunto, Foucault (1972, p. 8) demonstra um fato curioso:

É sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no século XVIII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da Loucura, num espaço moral de exclusão. De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser buscada, mas sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a Loucura.”

A partir desta concepção sobre a loucura, Foucault afirma que a medicina demorará para se apropriar da Loucura e se utilizaria de medidas talvez pouco científicas, ou seja, com alguns métodos de punição. Num primeiro momento, a loucura seria tratada sobretudo na Idade Moderna, com exclusão: os loucos seriam colocados em navios, Stultifera Navis (A nau dos loucos), e lançados ao mar. Porém, após o século XVIII, quando a loucura deixa de ser apenas um erro ou ilusão para tornar-se uma ameaça, surge o internamento, uma ilha dentro da própria civilização cuja maior preocupação não seria talvez com a perturbação da mente do louco, mas sim, com a perturbação que este poderia causar com o seu modo de agir. No entanto, no século XIX a Psiquiatria (FOUCAULT, 1997, p. 27) toma as rédeas da loucura e, com as promessas de cura, justificaria as formas de asilamento:

1 Assegurar sua segurança pessoal e de sua família;
2 Libertá-los das influências pessoais;
3 Submetê-los à força a um regime médico;
4 Impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais;

Assim, denota-se que estas justificativas estão imersas em um discurso de poder, ou melhor, questões de poderes voltados à própria relação institucional, onde se construiria um saber acerca da loucura em total domínio da medicina.

Este discurso de continência e domínio da loucura parece vicioso na história; o período marcado pelo método cartesiano e conhecido como o “século da razão” temerá esta figura alienada e a sua ameaça racional. Restará se defender, tratando os loucos como animais e isolando-os para que não promovam a desordem.

Foucault, influenciado por Nietszche, parece fazer uma genealogia da loucura com um novo modo de analisar o Insano, ou seja, não será por uma via médica especulativa e neurológica e nem mesmo por uma via psicológica, mas sim, por uma ótica, da qual, busca-se a raiz da patologia mental na história das relações humanas.

A História da Loucura tornou-se uma obra ousada mesmo porque Foucault, no início de seus estudos, possuía um grande interesse pela psicologia, chegando a se especializar em psicopatologia fazendo estágios em hospitais psiquiátricos e mantendo contatos com os internos (LOGOS, 1990, p. 693). Mesmo assim, procurou através da história do internamento, as ilusões da ciência psiquiátrica e as mistificações da própria ciência moderna. Ao contrário do que se poderia pensar, não será uma descrição sobre uma história da loucura, baseada em teorias relativas ao tratamento dos doentes mentais, mas a partir das práticas de isolamento: práticas de isolamento se assemelham a práticas discursivas, pois talvez seja através dos discursos que surgirá esta sina de isolamento e punição da loucura. E desta forma, procuraremos apresentar neste estudo alguns elementos para os quais possamos compreender estas questões sobre a loucura. Assim, sistematizamos este trabalho em três capítulos.

No primeiro capítulo temos como título geral “Um olhar sobre a história da loucura na Idade Clássica”, de modo a dizer o porquê do estudo da história da loucura em Foucault. Neste capítulo, buscaremos expor os fatos iniciais da loucura na sociedade já dita como Moderna e o seu olhar experencial sobre o louco. Trata-se de uma análise sobre a loucura que não se tomará um rumo de prová-la cientificamente, mas sim, de abrir os horizontes da questão num sentido histórico de exclusão e reclusão. Assim sendo, este capítulo será dedicado aos questionamentos das próprias intuições impostas pela sociedade/ciência sobre a insanidade.

Já no segundo capítulo intitulado “Os discursos sobre a loucura”, procuraremos investigar o modo pelo qual se deu o domínio sobre a loucura. Neste tópico trabalharemos praticamente o centro de todas as discussões sobre a doença mental, os discursos que a envolvem, como também a construção de uma análise de como se deu a afirmação do louco como doente e suas classificações, bem como a configuração do poder psiquiátrico em seu domínio.

O louco já como uma propriedade da ciência, terá seu chão fixo no isolamento. “A casa dos loucos” é o que procuraremos mostrar num terceiro capítulo. As práticas discursivas estão imbricadas às práticas concretas de asilamento, no entanto, procuraremos observar nesta parte as internações de modo discriminado, como fruto do saber médico e como instrumentos de poder, utilizando-se de exemplos históricos e experiências da loucura. E mesmo nesta afirmação de domínio, faremos uma exposição dos questionamentos de uma antipsiquiatria e os movimentos de despsiquiatrização que procuraram duvidar de uma posição privilegiada do médico no asilo.

Para a pesquisa deste monografia, utilizamos basicamente, levantamentos bibliográficos com análise crítica e reflexiva acerca da loucura e de suas internações considerando as seguintes fontes: como obra referencial deste trabalho, temos a “História da Loucura na Idade Clássica”, de forma que não é de nossa pretensão realizar uma análise completa da obra, mas sim, das categorias de análise para a compreensão dos discursos sobre a loucura. Assim, utilizamos também outros livros de Foucault como “Vigiar e Punir”, “A Ordem do Discurso”, “Microfísica do Poder”, entre outros, para melhor compreensão da reclusão, das práticas discursivas, e do poder-saber. E conseqüentemente utilizamos outros referenciais teóricos sobre o assunto, entre eles inclui-se também revistas e dicionários especializados.

Neste sentido, queremos dizer que foi através de um pensar sobre as incertezas da loucura que motivou o estudo deste trabalho. De modo que pretendemos ao decorrer do mesmo, entreter-nos com essas formas do saber que ainda hoje são altamente emergentes.


BOSCH, Hieronymus. A Nau dos Insensatos.

CAPÍTULO I

2 UM OLHAR SOBRE A “HISTÓRIA DA LOUCURA” NA IDADE CLÁSSICA

“Porém eu, que, ainda que pareço pai, não sou contudo senão padrasto de D. Quixote, não quero deixar-me ir com a corrente do uso, nem pedir-te, quase com lágrimas nos olhos, como por aí fazem muitos, que tu, leitor caríssimo, me perdoes ou desculpes as faltas que encontrares e descobrires neste meu filho; e porque não és seu parente nem seu amigo, e tens a tua alma no teu corpo, e a tua liberdade de julgar muito à larga e a teu gosto e estás em tua casa, onde és senhor dela como el rei das suas alcavalas...” Miguel de Cervantes

2.1 O POR QUÊ DE UM ESTUDO DA LOUCURA EM MICHEL FOUCAULT

No final do século XV, o pintor holandês Hieronymus Bosch acabaria por compor uma de suas mais conhecidas obras intitulada “A Nau dos Loucos”. Uma representação plástica e, ao mesmo tempo, singular de um espírito misterioso, composto por diversas faces e comumente denominado por loucura.

Desta forma, o quadro denuncia historicamente as primitivas reações da loucura manifestada na Idade Clássica. Assim sendo, encontra-se num contexto de Renascença onde se enfrenta a dura condição enquanto louco ao ser lançado numa viagem sem retorno:

Esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos.

Esse costume era freqüente particularmente na Alemanha em Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinqüenta anos que se seguiram, têm-se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui apenas loucos detidos pelas autoridades municipais. (FOUCAULT, 1972, p. 9).

Fato semelhante e anterior a esta prática de exclusão, são, na Idade Média, os leprosários. Lançados muito mais ao esquecimento desta célula doente, o leproso. Assim, assumindo de certa forma esta herança, o louco preenche as propriedades excludentes deixadas pela lepra. (FOUCAULT, 1978, p. 8).

Neste sentido, encontramos no processo dos navios insanos, não uma exclusão pela simples indiferença da loucura, mas sim, porque esta já na Idade Moderna começava a se revelar tão assustadoramente quanto à lepra de modo que o horror da loucura faça-se presente a necessidade de procurar esquecê-la. Conveniente é, para o homem moderno, não enxergar os tolos e alienados, uma vez que, estes destoavam seus povoados, contribuindo assim, para a danação de suas cidades:

Água e navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem, E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. É esse ritual que, por esses valores, está na origem do longo de toda a cultura ocidental? Ou, inversamente, é esse parentesco que da noite dos tempos, exigiu e em seguida fixou o rito do embarque? Uma coisa pelo menos é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu. (FOUCAULT, 1972, p. 8).

Jogando aos mares os loucos, as cidades acabariam por comercializar indiretamente o mercado de dementes. Ora, dizer de uma viagem sem rumo não implica em dizer que não terá seu fim. É fato de que os loucos expulsos de suas cidades não paravam à beira do caminho. Os barcos, deles carregados, iriam atracar em outras cidades onde se diria: “malditos sejam os marinheiros que trouxeram este louco! Por que não o jogaram no mar?” (FOUCAULT, 1972, p. 13).

Era esta insolente ambigüidade da figura do louco que perpassa desde a Idade Média atingindo a Renascença para se tornar a ameaça do desatino, do simples defeito, do perigo constante identificado na idéia do mal. Desta forma, surge sua denúncia expressa pela arte. A literatura ocidental traz consigo todo o pensar crítico, onde sua imagem marginal torna-se o centro e o reflexo da verdade:

Antes de mais nada, toda uma literatura de contas e moralidades. Sua origem, sem dúvida, é bem remota. Mas ao final da Idade Média, ela assume uma superfície considerável: longa série de vícios e defeitos, aproximam-nos todos não mais do orgulho, não mais da falta de caridade, não mais do esquecimento das virtudes cristãs, mas de uma espécie de grande desatino pelo qual, ao certo, ninguém é exatamente culpável mas que arrasta a todos numa complacência secreta. A denúncia da loucura torna-se a forma geral e crítica. Nas farsas e nas sotias, a personagem do Louco, do Simplório, ou do Bobo assume cada vez maior importância. Ele não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro do teatro, como o detentor da verdade. (FOUCAULT, 1978, p. 14).

Assim se identifica na literatura uma sutil transposição:

A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do vazio da existência, mas esse vazio não é mais reconhecido com termo exterior e final, simultaneamente ameaça e conclusão; ele é sentido do interior, como forma contínua e constante da existência. E enquanto outrora a loucura dos homens consistia em ver apenas que o termo da morte, agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte. (FOUCAULT, 1972, p. 16).

Desta maneira, a morte se remete ao vazio. Certifica-se da contingência humana e visa sua aniquilação como espetáculo. A loucura, por sua vez, por meio de sua ilusão, demonstra sua entidade reflexa nos homens, da forma mais presente de seu espírito: “ela reina sobre tudo o que há de mau no homem. Mas não reina também, indiretamente, sobre todo o bem que ele possa fazer?“ (FOUCAULT, 1972, p. 23). Desta forma, ela ocupa o primeiro lugar do agir humano, sendo mãe de todos os pecados. Assim, se evidencia a loucura como uma razão própria.

Foucault deixa claro esta percepção ao citar a personificação mitológica e satírica da loucura feita por Erasmo quanto à própria sociedade e seus sistemas de governos: “tantas formas de loucura nelas abundam, e são tantas e novas a nascer todo dia, que mil Demócritos não seriam suficientes para zombar delas.” (FOUCAULT, 1972, p. 24).

Assim, esta razão crítica da loucura encontra-se, sobretudo na arte, seu reconhecimento à razão. Não que esta se confunda com o desatino, mas que, apesar de sua nitidez ofuscada, a loucura reconhece seu lugar no interior da realidade humana. Uma realidade cuja preocupação ética volta-se num tempo clássico com novas experiências do espírito da loucura: “As figuras da visão cósmica e os movimentos da reflexão moral, o elemento ‘trágico’ e o elemento ‘crítico’.” (FOUCAULT, 1972, p. 27). No elemento trágico, encontramos a experiência dos rostos furiosos, dos fantasmas e da alquimia das representações de Bosch, Brueghel, Thierry Bouts e Dürer. Enquanto que numa representação crítica mostrase as mais sátiras denúncias do erro humano, de sua gênesis brotada de dentro do coração do homem, das experiências de Brant e Erasmo.

Submetida a tais visões, a loucura, ainda no Renascimento, terá seu aspecto sombrio, burlesco e natural no espírito humano. Razão pela qual, seria justificável o seu afastamento se esta, ao mesmo tempo, representasse o que há de trágico e defeituoso no homem.

Com a passagem dos séculos XVI e XVII, a loucura aos poucos se encontra com uma nova figura de si: a ilusão. Segundo Foucault (1972, p. 38), “o amor decepcionado em seu excesso, sobretudo o amor enganado pela fatalidade da morte, não tem outra saída a não ser a demência”. E será assim que, expresso pelos movimentos literários (sobretudo com Cervantes e Shakespeare), a loucura toma seu lugar como delírio ou a paixão demasiada.

A ilusão da loucura torna-se névoa que aos poucos ofusca a razão. Neste momento, aquela experiência trágica sobre a loucura, definitivamente, nestes séculos, perde aos poucos sua força dando espaço assim ao seu leve desprezo e sua fuga aos mares:

A experiência clássica da loucura nasce. A grande ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a pintura de Bosch perderam sua violência. Algumas formas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevitável cortejo da razão. A loucura deixou de ser, nos confins do mundo, do homem e da morte, uma figura escatológica; a noite na qual ela tinha os olhos fixos e da qual nasciam as formas do impossível se dissipou. O esquecimento cai sobre o mundo sulcado pela livre escravidão de sua Nau: ela não irá mais de um aquém para um além, em sua estranha passagem; nunca mais ela será esse limite fugidio e absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca, porém o hospital. (FOUCAULT, 1972, p. 42).

Neste sentido, Foucault apresenta esta eminente passagem da modernidade onde se deixará as velhas naus ancoradas em seus portos, dando o espaço da loucura para as internações. O louco na sua ilusão, na sua razão desatinada, escandaliza, por vezes, uma sociedade que agora chegara a encontrar o caminho da dúvida e a busca da verdade racional. A contribuição cartesiana trouxe para a época clássica a loucura como absurdo, o erro ao lado do sonho, assim como, o mundo exterior possa também estar dotado de erros:

Como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, a menos que me compare com alguns insanos, cujo cérebro é tão perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bílis, que eles asseguram constantemente serem reis quando na verdade são muito pobres, que estão vestidos de ouro e púrpura quando estão completamente nus, que imaginam serem bilhas ou ter um corpo de vidro? (DESCARTES apud FOUCAULT, 1972, p. 45).

Assim, esta concepção do insano revelará a incapacidade dos mesmos a uma integração à sociedade e a prestação de serviços a qualquer trabalho. Desta forma, neste sistema de florescimento do racionalismo, a internação constituirá, ao mesmo tempo, uma medida econômica e social ao perceber os parâmetros desta em meio ao grupo:

A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. (FOUCAULT, 1972, p. 78).

Torna-se, desta maneira, o louco como uma ferida heterogenia, um mal-estar profundo perante a sociedade moderna, racionalista e sobretudo burguesa. Eliminar estes elementos não sociáveis era a constituição do sonho burguês. “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’.” (FOUCAULT, 1972, p. 79). Nesta dinâmica social, faz-se as exigências concretas dos asilos, prisões, hospícios e hospitais na afirmação de instituições que ordenam o sonho burguês de sociedade, promovendo assim, estas réplicas de exclusão já de tempos ulteriores. A evidente discriminação dos a-sociais retomam seus famosos ciclos na história revelados pelas práticas de exclusão. A perturbação essencialmente política e moral perpassa através dos anos como discursos defensivos, para o bem e a segurança do grupo, dos contratos não observados, da incapacidade de observá-los, para a sua punição. Fator pelo qual está incluso num sistema correcional onde desta forma se constrói o que chamamos de disciplina, ou seja, todo um conjunto de coação, regras e contratos, sobre o indivíduo a favor de uma eficácia técnica e política de uma sociedade. Assim vemos a disciplina descrita por Foucault no livro “Vigiar e Punir” (1987, p. 127):

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.

Era então, em vista destes corpos dóceis que na história parece identificar-se as sociedades com suas disciplinas e punições. Trata-se aqui, de um dever (moral) a ser cumprido. Entretanto, é necessário que todos os indivíduos pratiquem as ordens disciplinares de forma que, para aqueles que não as cumprem (bandidos, vagabundos, libertinos, loucos, assassinos, homossexuais, doentes venéreos, entre outros.), faz-se necessária a correção. Assim, este presente método (o punir), adquiriu elementares formas nas mais diversas culturas do mundo Ocidental:

A título de hipótese, pode-se distinguir, segundo os tipos de punição privilegiados, sociedades de banimento (sociedade grega), sociedades de resgate (sociedades germânicas), sociedades de marcagem (sociedades ocidentais do final da Idade Média), e sociedades que enclausuram (a nossa?). (FOUCAULT, 1997, p. 27).

Estes métodos ou táticas punitivas resumem uma inspiração social quanto às aproximações representativas de cada espécie deste grupo dos a-sociais. Um exemplo disto serão os doentes venéreos que, possuindo uma doença causada por um desvio puramente moral, durante o século XVII possuirão um tratamento médico diferenciado, submetidos assim, a formas punitivas em ocasião de seus pecados: “ é preciso pagar sua dívida para com a moral pública, e deve-se estar preparado, nas sendas do castigo e da penitência”. (FOUCAULT, 1972, p. 84).

Grande espaço torna-se o campo das soluções para os problemas dos asociais. Grande espaço também será para as soluções do louco. As punições tornam-se na Idade Clássica, os remédios solucionadores e eficazes para aqueles que atravessam o mundo moral. Por este caminho também andará a medicina com sua percepção comandada por uma intuição ética, que por mais tarde, prolongar-seá na formação dos primeiros hospícios do século XIX: “às vezes é bom abafar fortemente a imaginação de um alienado e imprimir-lhe um sentimento de terror.” (PINEL apud FOUCAULT, p. 88). No entanto, estando ainda num contexto de século XVII, a preocupação maior com aqueles que desrespeitam a ordem social será de acolhida aos mesmos nas internações com a preocupação de simplesmente não deixar estas personagens vagarem livremente pelas ruas da cidade:

A instituição visa apenas impedir a mendicância e a ociosidade, na medida em que são fontes de desordem: ela também funciona como centro de trabalho forçado, embora seja de fato o lugar privilegiado da ociosidade. A loucura acha-se compreendida aqui sob as categorias da pobreza, da mendicância e do ócio. (MARIETTI, 1977, p. 106).

Estas causas explícitas do internamento continuarão à procurar, para uma integração do grupo, a proteção dos conflitos, em nome da família burguesa, encarando os delírios a favor de condenação éticas. Neste sentido, encaremos aqui, aqueles elementos heterogêneos numa exposição de maior objetividade, onde se exibe e se explica a loucura em certas faces: do amor desatinado, das profanações e das blasfêmias, e da magia por momentos satânica e por outros ilusória e insana.

1 – A partir do Classicismo, o amor assumirá dois lados amplamente opostos. O primeiro se refere a um amor racional levando em si todas as implicações que o espírito humano possa chegar, em virtudes, ao seu reto agir, de forma que no segundo revela-se o amor desatinado, perdido em seus desejos materiais e imerso nos perigos sutis da carne. Um amor que ultrapassa as barreiras da vida humana e se entrega aos mais primitivos instintos do homem. É neste olhar que a psicanálise atribuirá, no século XX, à loucura o resultado de alguma sexualidade perturbada. “Sempre dentro dessas categorias da sexualidade, seria necessário acrescentar tudo o que se diz respeito à prostituição e à devassidão.” (FOUCAULT, 1972, p. 90).

É assim, nestes desejos impuros, que se condena a sodomia e a homossexualidade. Obviamente que estes sentimentos possuíam no Renascimento formas toleráveis, sobretudo a homossexualidade. Entretanto, agora, encontram suas indulgências sob a via de severos castigos. A sodomia tinha sua perseguição na França constando apenas a condenação e não o seu internamento. Assim vemos o veredicto1 dado pelo tenente de polícia Hérauldt:

Étienne Benjamin Deschauffours é declarado devidamente culpado de ter cometido os crimes de sodomia mencionados no processo. Como reparação, e outros casos, o dito Deschauffours é condenado a ser queimado vivo na Place de Grève, suas cinzas jogadas ao vento, seus bens confiscados pelo Rei. (FOUCAULT, 1972, p. 88).

No entanto, a sodomia só deixará de ser perseguida com as punições da homossexualidade. Esta, pertencente ao amor desatinado, perde sua “liberdade de expressão” permanecendo apenas no interdito de uma sensibilidade que escandaliza e dessacraliza o amor. (FOUCAULT, 1972, p. 89). Assim, certifica-se do profundo distanciamento entre o que é racional e o que é desatino de acordo com o prisma da sexualidade humana:

Em todos os tempos, e provavelmente em todas as culturas, a sexualidade foi integrada num sistema de coações; mas é apenas no nosso, e em data relativamente recente, que ela foi dividida de um modo tão rigoroso entre a Razão e o Desatino, e logo, por via de conseqüência e degradação, entre a saúde e a doença, o normal e o anormal.

Nestes caminhos diversos, vê-se um denominador comum implícito, revelado nas figuras dos doentes venéreos, homossexuais devassos e pródigos, condenados assim, pela moral em ocasião de suas libertinagens sexuais. É a insanidade que assombra estes desvios. E é por estes desvios que ela assume a conduta de culpabilidade, entregando assim, estas formas (ainda que pecaminosas) para as justificativas do internamento.

2 – Encontra-se nos perigos da sociedade Clássica e na sua escandalização, as presentes categorias de profanação e blasfêmia já vistas no século XVI sob formas violentas e furiosas no campo do sagrado, mesmo pertencendo ao seus interditos religiosos. Eram assim condenados por severas penas: “golilha, pelourinho, incisão nos lábios com ferro em brasa, seguida pela ablação da língua e enfim, em caso de nova reincidência, a fogueira.” (FOUCAULT, 1972, p. 93). Dois âmbitos, o da Reforma e o da Contra Reforma alternaram as visões de blasfêmias e punições, mas, especialmente com a Contra Reforma (que após as grandes lutas religiosas da Reforma viu-se a relatividade das condenações) trará novamente estes tradicionais castigos: “Entre 1617 e 1649, houve 34 execuções por causa de blasfêmias”. (FOUCAULT, 1972, p. 93). No entanto, tais execuções e penas reduzirão e chegarão mesmo a desaparecer não por uma perda do rigor de severidade, mas porque entrase o internamento como reclusão dos blasfemadores: “as casas de internamento estarão cheias de blasfemadores.” (FOUCAULT, 1972, p. 93).

A violência destas profanações traz consigo o espírito de desordem, e por isso, vê-se liberta de seus perigos fora das leis e entregue à clausura dos hospitais. Perigo este, que possuirá em seu campo toda uma lista de sacrilégios que os próprios homens da Idade Clássica temiam. Destes sacrilégios, encontramos o suicídio.

Assim, visto como um próprio homicídio a si, o suicídio enquanto um “crime de lesa-majestade humana ou divina” (FOUCAULT, 1972, p. 45), terá com punição em caso de seu fracasso, a própria morte: “Aquele que empregou mãos violentas sobre si próprio e tentou matar-se não deve evitar a morte violenta que pretendeu dar-se”. (FOUCAULT, 1972, p. 94).

Porém, com o internamento, o suicídio perderá seu valor original de profanação. A pena de morte que lhe era comedida, agora abre espaço para outras punições, entre elas, a coação, onde se impede de o suicida de realizar tal ato: “em si mesma, a tentativa de suicídio indica uma desordem da alma”. (FOUCAULT, 1972, p. 95). Não perdendo, entretanto, sua fúria contra si, o suicídio terá seus métodos punitivos voltados para um sistema de retenção do indivíduo: “a jaula de vime, com um buraco feito na parte superior para a cabeça, e à qual as mãos estão amarradas, ou o ‘armário’ que fecha o indivíduo em pé, até o pescoço, deixando apenas a cabeça de fora”. (FOUCAULT, 1972, p. 95).

Deste modo, encontramos presente, tanto nas punições de blasfêmias quanto a estas punições do suicídio, a visão das condenações éticas. É neste mesmo espaço do sacrilégio ao profano, que se encontra em par, a Insanidade. “Ela abrange assim não apenas todas as formas excluídas da sexualidade como também todas essas violências contra o sagrado”. (FOUCAULT, 1972, p. 94). Assim, certificase cada vez mais a Insanidade como a excelência nas renegações da conduta moral, demonstrando-se assim,. toda sua alteridade oposta e inimiga.

3 – A legislação contra a magia durante o século XVII possuía um rigor extremo e impiedoso par aqueles que praticarem estes rituais maléficos e sombrios:

Se se encontrar no futuro pessoas suficientemente más a ponto de misturar à superstição a impiedade e o sacrilégio... desejamos que as que forem culpadas sejam punidas com a morte. (FOUCAULT, 1972, p. 96).

Obviamente que até esta época e anterior a mesma, as condenações religiosas contra bruxas e feiticeiros, supersticiosos e adivinhos, possuíam condenações severas. No entanto, Foucault preferirá se ater mais em nível dos rituais e de seus conteúdos. “Deixemos de lado, por um momento, o horizonte religioso da feitiçaria e sua evolução [...]” (FOUCAULT, 1972, p. 95). Também pelo fato de se analisar a perda do sentido da magia na Idade Clássica e suas inconsistências na realidade do internamento. Assim, já no que vimos anteriormente, as durante o século XVII perde-se no campo religioso e ganha-se o caráter moral das intenções de magias malignas. Estas intenções representarão profundo desrespeito à sociedade com suas poções e venenos. Porém, as condenações terão, por fim, diminuídas ainda no século XVII em vista de um novo episódio, uma nova consciência social: “encarada deste modo, a mágica vê-se esvaziada de toda sua eficácia sacrílega: ela não é mais profana, ilude”. (FOUCAULT, 1972, p. 96).

Assim, é interessante observar que as práticas de, por exemplo, queimar bruxas em praças públicas, agora se torna incomum devido ao próprio esvaziamento de seu poder sombrio e de suas intenções malignas. O internamento torna-se proteção destas condenações, uma vez que estas não se acabarão, nem perderão o seu rigor, mas sim, as suas práticas:

No entanto, as práticas condenadas não desaparecem: o Hospital Geral e as casas de internamento recebem em grande número pessoas que mexeram com feitiçaria, magia, adivinhação, às vezes mesmo alquimia. (FOUCAULT, 1972, p. 96).

Desta maneira, a magia revela-se como ilusão, exterior à realidade. Assim, ela “cega os que não tem o espírito reto nem uma vontade firme”. (FOUCAULT, 1972, p. 97). Não há poderes transcendentais na magia, mas sim, o erro que se encontra também presente nos bobos e ingênuos. Ela em si não é crime, mesmo resultando em intenções maléficas, pois provém de um espírito que a provoca, de um espaço que a condena como ilusão e que a transforma em perigo. Desta forma, a magia pertence também aos mares da insanidade.

Encara-se, então, como raiz destas desordens, uma força culposa que há tempos já era vista como presente no agir humano e que agora toma-se em amplas faces e se reduz na denominação de insanidade. Desta forma, se dirige o internamento ao domínio: um domínio que trará não só reclusão mas todos os sistemas de correção para a sua identificação. Dominar a loucura, significa procurar quem ela realmente é, e por que ela habita sobre o homem de forma tão obscura e degradante. É o que mais tarde, a medicina e a psiquiatria procurarão realizar ao enquadrá-la em diagnósticos sob formas de protocolos de doenças. No entanto, a procura de sua domesticação permanecerá ainda nos séculos XVII e XVIII como coação de suas atividades, de forma que o internamento nestas épocas, terá seu olhar intuitivo e confuso, mas sem as pretensões de seu conceito.

O movimento experiencial da loucura traz os discursos de seu espírito misterioso no modo mais prático possível. Entretanto, tratá-la e transformá-la em corpo dócil e imprimir-lhe valores morais, parecia ainda objetivos distantes de serem alcançados com os simples castigos aplicados pelas casas de internamento. Mas um elemento se mantém certo: a loucura nestes períodos, torna-se livre dentro dos hospitais. Neles, ela poderá manter-se escondida, e isenta de grandes penas. No entanto, sua busca não estará na proteção de si, mas na proteção dos outros. Mas, quem serão distintamente estes outros? Qual será a justificativa do internamento de certos loucos, uma vez que já não se valha da quebra de leis, pois estes se tornaram isentos de seu cumprimento e de suas penas? Quem deverá ser internado e quem deverá ser julgado?

Parece que tais questionamentos culminam-se na preocupação dos limites da insanidade. Foucault demonstrará de modo histórico, não simplesmente a exclusão que se tem desta, mas também, os olhares que identificaram quem é o louco. Os olhares que apontam onde estará o delírio, a fúria, o ócio e a ilusão, mas que não foram capazes de captar o seu verdadeiro espírito. Uma consciência que procura libertar-se de equívocos pela racionalidade, mas vê-se presa e impossibilitada de alcançar as formalidades desejadas.

Assim, é necessário que se volte para seus discursos de dominação, uma vez que a loucura continuará misteriosa e sombria. Desta forma, a ela apresenta-se, assustadoramente, como entidades nebulosas e, ao mesmo tempo, telúricas para todo o Mundo Clássico.

CAPÍTULO II

3 OS DISCURSOS SOBRE A LOUCURA

“Não espereis de mim nem definição nem divisão de retórico. Aqui, não caberia tal coisa. Definir-me seria impor-me limites que a minha força desconhece. Dividir-me seria distinguir os diferentes cultos que me prestam, e eu sou adorada igualmente em toda a Terra.”
Erasmo de Roterdã

3.1 EM BUSCA DE UM DOMÍNIO

Determinantemente encontramos, em todo momento da história do louco, uma situação que lhe força a ficar distinto, ou talvez, muito mais que isto: uma situação que o exclui. Seria um olhar que ao mesmo tempo em que o vê, também o julga. Entretanto, é somente devido à experiência (a este contato com o louco) que será possível julgá-lo, ou melhor, cabe aqui sublinhar antes o reconhecimento de sua loucura, para posteriormente, buscar seu conhecimento.

Não obstante, sua exclusão tornou-se complexa e variada ao decorrer de seus momentos. A simples exclusão traria apenas o reflexo de um poder social, mas não o domínio do louco, de modo que as naus e o grande internamento possuiriam a preocupação principal de uma defesa moral e normativa. Assim, era necessário transformar o louco em objeto, e sua loucura em alvo. Somente assim, torna-se possível a busca de sua conquista que tem por base a mudança do cenário do delírio misterioso para o triunfo da razão clara e distinta.

Desta forma, podemos analisar dois fatos já postos em questão: sociedade/louco, razão/loucura. Tanto um quanto outro giram em torno de um mesmo pressuposto: o poder. Tal e qual nos é apresentado, desde as práticas de exclusão até chegar ao engendramento das divisões de doenças, o poder possuirá uma presença constante e disforme, pautada por reações como a literatura e arte, governo e polícia, médicos e psiquiatras.

Assim, é de suma importância entender o poder à maneira que Foucault o compreende, uma vez que se faça reflexão da loucura sob suas idéias. Neste sentido, o filósofo Gilles Deleuze põe a questão “o que seria o poder para Foucault” e, ao mesmo tempo, a sua breve explicação (1991, p. 79):

O poder não é essencialmente repressivo (já que “incita, suscita, produz”); ele se exerce antes de se possuir (já que só se possui sob uma forma determinável – classe – e determinado – Estado); passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes (já que passa por todas as forças em relação) um profundo nietzscheísmo.

O poder, desta forma, é relacional e acontece antes de sua ação, de seu domínio: é o que denominamos de relações de poder. Não pertence apenas aos dominantes mas também aos dominados. Assim, não torna-se puramente único e repressivo, mas sim, múltiplo, microfísico e produtor. Ao mesmo tempo em que se utiliza exclusão e disciplina, também se formará saber.

Porém, neste percurso um tanto quanto capilar do poder, deve-se desvelar os seus instrumentais, e como diria Deleuze (1991, p. 79): “não nos perguntamos ‘o que é o poder? E de onde vem?’ mas – como se exerce?”. Ou seja, fazer uma análise do poder em Foucault é essencialmente observar o seu misterioso campo de atuação e captar aquilo que passa e perpetua-se na história de um modo desapercebido. É mirar em seus interditos, seus truques e mistérios, e perceber aquilo que poucos enxergam, escutam e sentem. Conta-se então, com uma raiz do poder nascida não apenas de jogos e interesses, mas também, de olhares, falas e contatos muito mais próximos do que se imagina. Mas, não devemos a nenhum momento esquecer do aspecto dominante do poder. Obviamente que se existe a reclusão e exclusão, são por conseqüências de forças ou ações que encontramos de uma rede heterogênea formada por discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas que “metodologicamente se definem por dispositivos.” (FOUCAULT, 1979, p. 244).

Desta maneira, estes chamados dispositivos de poder que assumem variadas formas na sociedade, atuaram de maneira constante sobre o louco na Idade Clássica, principalmente a partir de sua experiência para seus discursos e enunciados científicos. Assim, o discurso sobre o louco tratará de um domínio mais palpável e eficaz, iniciando, primeiramente, sobre o próprio reconhecimento de seu discurso, ou melhor, o discurso que o próprio louco enuncia:

Desde a Alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato [...] Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. (FOUCAULT, 1996, p. 10–11).

Em contrapartida, os discursos aceitos são as formas explícitas do poder; são os nossos discursos muitas vezes estratégicos que procurarão manifestar nossos desejos:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder [...] – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 1996, p. 10).

Assim, efetua-se não apenas os jogos abertos de poder, mas também, tratase de critérios de verdades. Estes critérios enunciam-se a partir de verificações morais e, principalmente, racionais. Será o privilégio de estar são, que dará força ao discurso de reconhecimento sobre o louco e, para mais tarde, lança-lo ao mar, interná-lo, defini-lo, puni-lo e curá-lo. É justamente desta história que Foucault se apropria em mostrar, ou seja, não será (como já havemos dito anteriormente) uma história da loucura baseada na preocupação científica ou médica, mas sim, uma história crítica da idéia de loucura, onde a própria loucura se encontra nas mãos de pressupostos culturais:

Uma importante inovação de Foucault foi recontar a História da Psiquiatria através de uma abordagem diferente daquela dos historiadores da psicopatologia, psiquiatras e psicólogos. A história da loucura que constava nos registros científicos do alienismo e da psiquiatria era, na verdade, a história linear de uma suposta doença mental; era contada sob a ótica da ciência e do saber médico [...]. O pano de fundo da argumentação de Foucault é a idéia de que a loucura não é natural, mas cultural, idéia que já existia, por exemplo, na antropologia ou no culturalismo e em correntes sociológicas antecedentes. (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 12-13).

Neste sentido, a loucura torna-se capturada pela forma insubstituível do discurso. Este, capaz de expressar toda uma carga de condutas, costumes, sentimentos e desejos, procura na loucura a sua verdade. Disto, é que nos  asseguramos que expressando todos estes elementos, os discursos que precedem a loucura (e já revelados como dispositivos) são de fato instrumentos de poder. Esta nobre ferramenta que se pôde fazer valer da experiência do louco para as suas condutas, tornar-se-á cada vez mais repleta de certificações racionais. No entanto, como proposições racionais no campo epistemológico do louco, encontra-se as restrições e as liberdades de seu próprio interior uma vez que:

As “coisas”, em conseqüência de toda cultura, se encontrem derivadas no discurso, (pelo menos se tem consciência daquelas que são dizíveis no discurso e aí “dizíveis” deve-se entender não somente no sentido de “lingüisticamente” dizíveis, mas também dizíveis “segundo as convenções”, “segundo o conformismo”, segundo o que é preciso dizer e não dizer “– e nessas restrições de conveniência estão em jogo relações de forças sócioeconômicas, pois “não se deve dizer” o que aqueles que dominam não querem ouvir: Nietzsche e Marx estão, diante disso, longamente explicados). (MARIETTI, 1977, p. 42).

Estes jogos de forças e relações tendem a se desenvolver na produção de saberes muitas vezes excludentes como a Stultifera Navis, e recludentes como as internações. Mas o importante a dizer é como se procurará o domínio sobre a loucura, pois esta é uma preocupação que nascerá após uma longa experiência do desatino e uma suposta evolução da sociedade da razão.

Assim sendo, estas conseqüências da sociedade/razão possibilitará uma abertura para o discurso científico que traz consigo mesmo a noção de que “nem tudo é verdadeiro...” (FOUCAULT,1979, p. 113). E desta maneira se diz, indica e toma para si o que de fato seria realmente concreto, constatado, científico. Um novo critério de verdade surge, impondo normas ao conhecimento, num círculo restrito; na inclusão dos iniciados e entendidos e na veracidade de suas palavras. Trava-se uma espécie de fim das tecnologias de verdades com localizações, calendários, rituais e meios produtivos para as atualizações das práticas científicas:

Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos séculos a existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco sendo desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo discurso filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento. Ela não é encontrada mas sim suscitada: produção em vez de apofântica. (FOUCAULT, 1979, p. 114).

A ciência teria como fonte do saber, a prova e a comprovação, segundo as quais estão regrado aos seus procedimentos que aos poucos tornaram-se universais. Conseqüentemente, estas são as novas formas de produção de verdades incluídas como discursos, se tornando assim, saberes e instrumentos de poder; é o que Foucault denomina de saber – poder, onde também se aplica os diversos outros tipos de dispositivos:

Trata-se sim de formas de poder– e– de– saber, de poder – saber que funcione se efetivam ao nível da “infra estrutura” e que não dão lugar à relação de conhecimento sujeito – objeto como nome do saber. (FOUCAULT, 1979, p. 117)

Mas talvez se pergunte: onde estará tal consistência da ciência para as afirmações de tais verdades? A comprovação empírica com certeza é o que possibilitou o reforço para os grandes discursos científicos. Mas em sua origem possui um elemento de interessante importância técnica da verdade. Uma comprovação empírica só será de fato executada por meio de procedimentos que carregam em si as técnicas universais. E é então neste momento que se certifica da validade científica:

Produzir fenômenos numa aparelhagem de laboratório não é o mesmo que suscitar ritualmente o acontecimento da verdade. É uma maneira de constatar uma verdade através de uma técnica cujas entradas são universais. A partir daí, a produção de verdade tomou a forma da produção de fenômenos constatáveis por todo sujeito de conhecimento. (FOUCAULT,1979, p. 117).

Neste sentido, podemos observar que, tanto o poder médico quanto o poder psiquiátrico, manifestam suas verdades a partir das normas do conhecimento, nesta produção da verdade na forma da comprovação e, por meio desta, se justificando. Assim, neste domínio do discurso, a psiquiatria partirá para as suas mais constantes preocupações: procurar a partir destes procedimentos universais científicos, a comprovação e a situação da loucura. Dos diagnósticos aos quadros nosológicos, o médico do asilo será capaz de dizer a verdade do doente e submetê-lo aos tais procedimentos.

3.2 O PODER PSIQUIÁTRICO

Se por um lado, no início da Idade Clássica, o contato experencial com a loucura outorgava poderes para a razão, agora uma nova formação aos poucos se enquadra e cada vez mais vai se afirmando em seu poder sobre o louco. “Aos insanos internados faltava apenas o nome de doentes mentais e a condição médica que se atribuía aos mais visíveis.” (FOUCAULT,1972, p. 119). Assim, era a falta da prática médica que nos permite ver o instinto social em seu modo infalível, como postulados baseando-se na razão de modos ditos claros. No entanto, não se trata de um poder unicamente de exclusão, mas também de um consenso de diversão, ou melhor, o louco já havendo revelado há tempos sua separação entre razão e loucura, se aproximava cada vez mais da noção de animalidade. Assim, esta visão de uma besta desatinada transformava-o em atração de espetáculos já na Idade Média e que não cessaram até mesmo no século XIX: “em 1815, ainda, a acreditar num relatório apresentado na Câmara dos Comuns, o Hospital de Bethleen exibe furiosos por um penny, todos os domingos”. (FOUCAULT, 1972, p. 146).

Desta forma, a loucura desdobra-se não apenas sobre os risos de uma platéia entretida com a fúria ou atitudes bizarras dos loucos, mas também, de sua cogitação natural, animalesca, e instintiva. Neste aspecto de animalidade é que se observa a experiência desta fúria no internamento resultando em uma noção de domesticação e a rápida adaptação dos asilos para jaulas de zoológicos: “No hospital de Nantes, o ‘zoológico’ tem o aspecto de jaulas individuais para animais ferozes”. (FOUCAULT, 1972, p. 150). Assim, era a comparação do louco em sua fúria. Entretanto, Foucault apresenta esta experiência, não e tão somente em nível de um princípio racional e do desejo ou instinto demasiado, mas também, do relacionamento moral, citando assim Marthurim Lê Picard (FOUCAULT, 1972, p. 151):

Pela rapacidade é um lobo, pela sutileza um leão, pela fraude e engodo uma raposa, pela hipocrisia um macaco, pela inveja um urso, pela vingança um tigre, pela maledicência, pelas blasfêmias e detrações um cão, uma serpente que vive de terra pela avareza, camaleão pela inconstância, pantera pela heresia, basilisco pela lascívia dos olhos, dragão que sempre arde de sede pela bebedeira, um porco pela luxúria.

É neste sentido que tais percepções e atribuições da loucura se formam no período Clássico. Também é mister salientar que surgem controvérsias acerca desta aproximação do louco e sua animalidade e sua defesa como ser humano no sentimento de compaixão pelos enfermos e insanos já pregado por São Vicente de Paula no século XVII, a proteção e a doação pelo irmão internado porque a “norma é, aqui, Nosso Senhor, que quis ficar rodeado por lunáticos, endemoniados, loucos, tentados, possuídos.” (FOUCAULT, 1972, p. 156).

Certamente que ainda na razão clássica, o louco possui uma sentença e uma visão ao mesmo tempo paradoxal: mesmo encontrando-se ora animal, ora humano, por vezes, é sempre perdoado, porém, isolado. Deste modo, Foucault mostra de forma sintetizada esta estranha e múltipla moralidade (1972, p. 161):

Nisso consiste, sem dúvida, o paradoxo maior da experiência clássica da loucura; ela é retomada e envolvida na experiência moral de um desatino que o século XVII proscreveu através do internamento; mas ela está ligada também à experiência de um desatino animal que forma o limite absoluto da razão encarnada e o escândalo da condição humana. Colocada sob o signo de todos os desatinos menores, a loucura se vê ligada a uma experiência ética e uma valorização moral da razão; mas, ligada ao mundo animal e a seu desatino maior, ela toca em sua inocência monstruosa.

Eis então, que tempos mais tarde, surge a psiquiatria no mundo clássico, no intuito de rejeitar, com todas as suas forças, as antigas práticas conceituais sobre o louco, de modo a querer enquadrá-lo numa objetividade puramente patológica. No entanto, “contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo de animalidade.” (FOUCAULT, 1972, p. 162). Parece-nos então, que um saber, ainda que se preocupe em encontrar seu critério puramente científico, estará preso em seus escândalos morais por parte da figura um tanto quanto decadente (a seus olhos) do louco.

Assim, a psiquiatria retoma as práticas disciplinares num processo convenientemente de domesticação. “O poder disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior <>; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. (FOUCAULT, 1987, p. 153). Conseqüentemente, o apropriar-se do louco traz consigo o poder disciplinar, mas não perde suas discussões e debates que sempre retornam no curso do tempo. Debates estes, que emergem consciências variadas do louco na Idade Clássica, como podemos observar:

1. consciência crítica da loucura – apresenta-se fundamentalmente de modo moral a partir de julgamentos que não a define mas a denuncia;

2. consciência prática da loucura – mesmo esta, considerando o louco como figura inferior à razão, também o julga como uma ameaça à ordem, atribuindo assim, estranhos poderes à loucura como o misterioso poder de desordem;

3. consciência enunciativa da loucura – caracteriza-se pela capacidade de dizer sem recorrência ao saber que: “esse aí é um louco”. Assim, neste olhar substancial, percebe-se a evidência da loucura diante de alguém que irrecusavelmente é louco;

4. consciência analítica da loucura – uma consciência que possuirá o saber objetivo da loucura sob um olhar que a domina e elimina os seus perigos. (FOUCAULT, 1972, p. 166-169).

Nestas consciências, médicos e sábios interrogavam sobre a loucura, quem é o louco, como o reconhecemos e como podemos apontá-lo sem errar. Deste modo, percebe-se que por mais que se procure defini-la, a loucura aparece silenciosa quanto sua forma, porém, não escapa aos olhos de quem a vê. Talvez então, a alteridade do louco demonstra melhor resposta para quem ele é e como ele é. No entanto, este reconhecimento aos poucos irá se fechando. Não basta porém, somente apontar quem é o louco, mas também demonstrar a própria sanidade por parte de quem o julga. Podemos ver assim estas idéias expressas nas palavras Boissier de Sauvages apontadas por Foucault (1972, p. 181): ”A saúde do espírito no que ela tem de material depende da regularidade, da igualdade, da liberdade do curso dos espíritos nesses pequenos canais”.

Sendo assim, o louco já não pode nem mais dizer que é louco, muito menos reconhecer a loucura de outro pois está sob o olhar do terceiro personagem da história: o são. Este, que possui a verdade, torna-se sábio, que por sua vez, torna-se médico. E como já vimos anteriormente, a loucura como discurso científico possuirá sua verdade objetivada, constatável – passando, portanto, para as mãos médicas, acaba por se integrar nas normas e nas classificações patológicas: “a configuração de uma tecnologia de poder-saber da psiquiatria em torno dela que fazem surgir a existência de um objeto doença.” (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 19).

Essa apropriação da loucura como doença, em seu discurso científico, procura num modo de classificação de espécie, torná-la possível à medicina e, por sua vez, a psiquiatria já com classificações desde Paracelso como Lunatici, Insani, Vesani e Melancholici até chegar às divisões de Plantero, Linnè e Weickhard. (FOUCAULT,1972, p. 193-195).

É a partir destas necessidades de espécies, que surgiram da classificaç1ão da loucura como doença, que nascerão as especulações e definições diversas e hierárquicas de acordo com os seus sintomas.

 

Uma das teses fundamentais que História da loucura traz é a da constituição histórica da doença mental. As noções de doença mental e loucura, sinônimos na história oficial da psiquiatria, são separadas e diferenciadas, com o objetivo de mostrar que muda a verdade sobre a loucura. E mais que isso, não apenas muda a verdade sobre a loucura, mas a forma de relação que se estabelece com o diferente, a forma de experiência da loucura, a forma de viver a sanidade. (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 19).

O olhar psiquiátrico torna-se desta forma responsável até então por dividir a loucura em diversas espécies de doenças e em procedimento de qualquer saber médico à busca de uma cura:

 

No dispositivo da psiquiatria, trata-se, antes da própria produção da loucura, ou melhor, da produção da doença mental. È um dispositivo histórico e político que não se exerce apenas na forma do direito ou da interdição, que se processa por mecanismos que extravasam o Estado, que possui táticas pontuais localizadas, nos tratamentos e diagnósticos, mas um efeito estratégico global definido – instituir uma certa relação com a loucura, que atende a objetivos próprios, tais como a normalização do processo saúdeloucura, a produção de um homus pscologicus e de uma norma de sanidade como controle sobre o funcionamento psicológico dos indivíduos. (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 20).

 

Parece bastante forte esta questão da produção da loucura em Foucault, mesmo porque na passagem de uma dita classificação e identificação para a terapêutica se enxerga, mesmo que timidamente, a sutil dominação de normalidade. De fato uma construção que já não está nas mãos de uma simples moral ou dos olhos daqueles que se dizem são, mas, agora, pertencerá à uma ciência acompanhada de seus profissionais que por métodos indutivos ou não, podem guardar o normal e produzir a loucura.

 

Para além de uma psiquiatria que se estabelece sobre o louco, vemos seus poderes construídos por meio de grandes discursos sobre o mesmo. Um conhecimento do louco enfim constatável, que propiciaria a satisfação de não mais ter medo e confiar numa ciência que resolverá este problema antropológico de normalidade. Neste sentido, temos a abertura para o conhecimento psicológico que se funda no estatuto mental, neurológico, comportamental e (não muito diferente das raízes psiquiátricas) moral.

 

No entanto, estranhamente encontramos nesta possibilidade científica da psiquiatria, métodos que podem se classificar como de baixa experimentação científica. Ora, tomemos como exemplo atual a discussão que hoje se faz acerca dos métodos da homeoterapia4 que não se utiliza das verdades conhecidas pela ciência mas que possui resultados testemunhados – a ciência em seu passado não agia de modo diferente, pois revela-se em métodos e pressupostos um tanto quanto alquímicos.

 

Historicamente podemos notar numa presente especulação de Foucault, o relato de pressupostos procurados pela medicina na Idade Clássica, como o exemplo de que a loucura seria causada por supostos vapores e calores presentes no corpo e não mais por conseqüências da alma:

 

Os cabelos do homem são bons para eliminar os vapores, se queimados e dados para que o doente aspire a fumaça... A urina do homem recém expelida... é boa para os vapores histéricos. (LEMERY apud FOUCAULT, 1972, p. 303).

 

Tais experiências chegaram em nível de pesquisas fisiológicas analisadas do próprio material de estudo que é o corpo do demente. “Em autópsias, Bonet viu o cérebro dos maníacos seco e quebradiço [...] na demência, a substância era muito rígida, ou pelo contrário, excessivamente solta.” (FOUCAULT, 1972, p. 218). Os estudos fisiológicos como de Bonet ou de Meckel concentraram-se nas regiões cerebrais. Entretanto, a busca de uma causalidade para a loucura ultrapassa o nível fisiológico. O mundo exterior passará também a ser visto com um dos agentes que provocam a loucura. Esta dedução comportamental terá em vista não só os fatores que despertam o desejo e aguçam a imaginação, mas também, se construirá por meio de análises de internos com fez Black5 no asilo de Benthleem indicando as seguintes etiologias:

 

Disposição hereditária, bebedeira, excesso de estudo, febres, seqüelas do parto, obstrução das vísceras, contusões e fraturas, doenças venéreas, varíola, úlceras demasiado rapidamente dessecadas; reveses, inquietação, pesar; amor, ciúme; excesso de devoção e apego à seita dos metodistas; orgulho. (BLACK apud FOUCAULT, 1972, p. 223).

 

Desta forma, o não–ser da loucura revelado pela razão agora possui conseqüências externas, que tornam-se capazes de persuadir qualquer indivíduo que esteja são. Elementos ou figuras da loucura como a ‘demência’, a ‘melancolia’ e a ‘hipocondria’ tornam-se únicas nas noções psiquiátricas, mesmo porque, estas revelam a experiência profunda do desatino:

 

Não se trata de fazer a história das diferentes noções da psiquiatria, relacionando-as com o conjunto do saber, das teorias, das observações médicas que lhes são contemporâneas; não falaremos da psiquiatria na medicina dos espíritos ou na fisiologia dos sólidos. Mas, retomando uma a uma as grandes figuras da loucura que se mantiveram ao longo da era clássica, tentaremos mostrar como se situaram no interior da experiência do desatino. (FOUCAULT, 1972, p. 251).

 

Desta forma, a psiquiatria partirá destes experimentos para de fato procurar um sistema terapêutico para a loucura; uma vez que esta estará sob sua vigilância e observação. Sobre o incontestável olhar do médico, a loucura se faz verdade e seu discurso é capaz de fabricar alienados. Num princípio de reclusão ultrapassa a noção de internamento: busca-se então, a recuperação para a normalidade.

 

CAPÍTULO III

 

4 A CASA DOS LOUCOS

 

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos. Excedeuse ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que exitaram a mais viva admiração em Itaguaí.
Machado de Assis

 

4.1 DO INTERNAMENTO À TERAPIA

 

Uma realidade nova está para surgir no internamento após o surgimento da psiquiatria na história do louco. Graças então a uma nova consciência sobre o mesmo que não se permanecerá à visão do desatino, da desordem. O louco, neste momento, é o doente que se difere dos outros perigosos do internamento. Esta passagem se certificará da necessidade de surgir a mudança de lar. O louco não é mais confundido com os bandidos, assassinos e etc. Ele é fraco de saúde, desprovido de sanidade mental e deve possuir um lugar especial que não é mais o internamento. Procura-se então, a Psiquiatria, um novo internamento para o louco, tratando-se de uma doença, um hospital – a casa dos loucos:

 

Fenômeno quase tão repentino quanto o do grande Internamento do século XVII mas que, ainda mais que este, passou despercebido. No entanto, sua significação é essencial. Já em 1695 havia sido aberto em Aix um hospital para os insensatos, com a condição de que fossem violentos e perigosos, o que indicava bem o caráter puramente repressivo, ainda, dessa instituição.

 

Mas no século XVIII o internamento em casas reservadas estritamente aos loucos começa a ser praticado de modo regular [...] Esse é um dado quase inteiramente novo em relação ao século XVII. Muitos loucos, que cinqüenta anos antes teriam sido encerrados nas grandes casas de internamento, encontram agora uma terra de asilo que é só deles. (FOUCAULT, 1972, p. 382).

 

O hospital já não passa a ser o espaço artificial da loucura, um lugar onde o louco possa manifestar livremente sua loucura, mas que agora possuirá dentro de seus sintomas a esperança e a necessidade de sua cura, pois o hospital, agora nos cuidados da medicina, passa a ser residência experimental e constatável do saber médico:

 

Sabemos bem que a biologia de Pasteur simplificou prodigiosamente todos estes problemas. Determinado o agente do mal e fixando-o como organismo singular, permitiu que o hospital se tornasse um lugar de observação, de diagnóstico, de localização clínica e experimental, mas também de intervenção imediata, ataque voltado para a invasão microbiana. (FOUCAULT, 1979, p. 119).

 

Podemos muito bem dizer que o internamento psiquiátrico (a exemplo dos hospitais na Idade Clássica) tornou-se o grande laboratório experimental da loucura. Entretanto, se parte da percepção relacional de cura, onde se enxerga a melhora do louco quanto ao seu delírio, “a volta às afeições morais dentro de seus justos limites”. (ESQUIROL apud FOUCAULT, 1979, p. 119). Desta forma constrói-se a partir deste pressuposto o processo último de cura, o critério valioso da verdade alcançado pelo médico. Neste sentido, faz-se possível analisar toda uma ocasião de experiências terapêuticas nos asilos, em busca desta melhora do doente mental.

 

Todavia, encontramos como um dos primeiros momentos deste lugar terapêutico, o contato com a natureza, de modo a imaginar que esta, sendo a forma visível de verdade, dissiparia com o erro. Assim, este tipo de retiro, será uma das recomendações de Esquirol ao fazer planos para a construção de um hospital psiquiátrico.

 

As prescrições dadas habitualmente pelos médicos eram, assim, a viagem, o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo artificial e vão da cidade. Esquirol se lembrará disso, quando, ao projetar os planos de um hospital psiquiátrico, recomendava que cada pátio fosse largamente aberto com vista para um jardim. (FOUCAULT, 1997, p. 47).

 

Assim, seguem-se estas idéias terapêuticas praticadas nos hospitais como por exemplo a imersão onde a água, numa visão de panacéia, era o líquido que purificava qualquer loucura, ou mesmo os banhos gelados, no intuito de consolidar o organismo. (FOUCAULT, 1972, p. 313-316). Mas a visão na natureza como dissipação do erro não pára por aí: as chamadas regulamentações dos movimentos serão aplicadas, uma vez que a loucura, sendo desordem, poderá suscitar no doente, movimentos naturais que lhe devolva o bom senso. Nesta imaginação, destacam-se as terapias como andar de cavalo, viagem no mar, exercícios ao ar livre e o famoso processo de centrifugação por uma espécie de máquina giratória descrita por Foucault:

 

Um pilar perpendicular é fixado no teto e no assoalho; amarra-se o doente numa cadeira ou numa cama suspensa a um braço horizontal móvel ao redor do pilar; graças a uma ‘engrenagem pouco complicada|’, imprime-se ‘à máquina o grau de velocidade desejado’. Cox cita uma de suas próprias observações; trata-se de um homem atingido por uma melancolia lia sob a forma de estupor: “sua pele estava escura, os olhos amarelos, o olhar constantemente fixo no chão, os membros parecendo imóveis, a língua seca e sulcada e o pulso lento”. (1972, p.320-321).

 

Desta forma, o asilo não só estará aberto para as terapias de cunho físico, mas também, por meio de formas discursivas ou teatrais. A intenção era de confrontar ou se utilizar da própria loucura para obter resultados:

 

Lusitanus narra assim a cura de um melancólico que se acreditava danado, desde sua vida terrestre, por causa da enormidade dos pecados que tinha cometido. Na impossibilidade de convence-lo através de argumentos razoáveis, segundo os quais ele poderia salvar-se, aceita seu delírio, e faz com que lhe apareça um anjo vestido de branco, espada na mão, que, após severa exortação, anuncia-lhe que seus pecados foram redimidos. (FOUCAULT, 1972, p. 329-330).

 

A representação teatral não se prende apenas à pura imagem do delírio, pois ela ultrapassa a noção do simples engano, da pobre mentira: ela continua o discurso delirante. O louco em sua loucura obedece sim, a uma razão, “há uma voz que fala; ela obedece à sua gramática, e enuncia um sentido”. (FOUCAULT, 1972, p. 330). O louco possui um mundo próprio e uma língua própria que deverá ser descoberta e interpretada pela ciência. O médico é aquele que sabe falar na língua dos doentes, mas que trará o limite entre a doença e a saúde. O psiquiatra então, representa o verdadeiro limite da loucura; ele é a referência da loucura por saber de seus sintomas, entender seu idioma e encontrar (obtendo resultados) a sua cura.

 

Seu conhecimento e seu saber lhe permitem emitir verdades e manifestar sua vontade sobre o corpo do doente. Deste modo, podemos perceber que os procedimentos utilizados (por mais heterodoxos que sejam) partem das determinações do médico do Asilo em seu total direito sobre o louco. Sua relação com o doente será curiosamente de senhor para com seu vassalo, do mestre que bem entende de sua propriedade e nela exerce sua liberdade:

 

Isolamento, interrogatório particular ou público, tratamentos - punições como a ducha, pregações morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina rigorosa, trabalho obrigatório, recompensa, relações de vassalagem, de posse, de domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico – tudo isto tinha por função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”, aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e absorve depois de a ter sabiamente desencadeado. (FOUCAULT, 1979, p. 122).

 

Este espaço de grande laboratório dado ao médico que é o asilo, concedeulhe poderes científicos e sociais do mesmo nível de um biólogo ou físico. E como já  temos visto, o desvinculamento da internação não provocará uma idéia de prisão, mas sim, um profundo processo imaginário de cura. Nestas intenções, as justificativas para o internamento tornam-se constantes. O estudo científico da loucura expressará suas essências num papel cada vez mais sistemático e essencial para a existência dos asilos. Como vimos, este papel do hospital primeiramente é, de fato, reduzir a loucura em sua total verdade onde a mesma se expressa de modo objetivo e experimental. Estabelecer então, conseqüentemente, à própria razão através do retiro e da natureza do mundo é querer de fato que a loucura seja conduzida à verdade única no homem que é seu estado puro: racional, moral e natural.

 

A instituição permite estabelecer critérios para a busca desta verdade. Voltamos então à sutileza efetiva do poder, exercida e obtida pelo olhar, a visibilidade e a observação do médico. A esta concepção do espaço institucional, temos a noção de geografia do poder já pesquisada por Goffman que, assim como Foucault, analisou os modos de como este poder se atua através das disciplinas e punições. Será dentro deste espaço de poder que teremos os frutos das relações de poder, no caso, o objeto científico da loucura – o corpo do louco. Assim nos explica o artigo escrito por Costa-Rosa (2003, p. 37):

 

A vida no contexto institucional produz “suposições” referentes à natureza, aos modos de ser e agir dos seus diversos habitantes: costumo ser normativa e normativizante. Esses atores institucionais podem enfrentar de modo variável essa “definição de si mesmos” que a instituição produz: podem resistir abertamente “e desafiar com desfaçatez os olhares de redefinição que as pessoas lhes dirigem”.

 

Percebemos bem esta força do discurso médico: além de se estar reafirmando através de dados científicos, objetivos e comprovados, também possui o espaço institucional em suas mãos, que lhe garante a possibilidade de fazer suposições acerca de seus pacientes, de modo que, submetê-los aos métodos mais bizarros possíveis, dentro dos muros do hospício, não represente grandes problemas.

 

No hospício não há uma reprovação da loucura dos loucos, mas um julgamento; uma ciência de doenças mentais que invadiu os asilos e que racionalmente julga atos, vigia corpos e observa, escuta e fala com os doentes: “mas ao mesmo tempo uma psicologia da loucura torna-se possível, uma vez que sob o olhar é ela continuamente convocada, na superfície de si mesma, a negar sua dissimulação.” (FOUCAULT, 1972, p. 482).

 

No entanto, fica-se a constante pergunta: deste conhecimento médico se conhece de fato a loucura? Vejamos o papel do retiro (asilo) em seu início: era a preocupação propriamente de cura, mas que por traz disto, está a verificação da qual aspirou uma confusa divisão de doenças mentais. Os médicos Pinel e Tuke, conseqüentemente, procuraram abrir as portas para a busca deste conhecimento mas nada sistematizaram – não fizeram propriamente ciência, e, mesmo assim, o médico possuía sua posição moral e social inabalável porque domina um saber camuflado.

 

Acredita-se que Tuke e Pinel abriram o asilo ao conhecimento médico. Não introduziram uma ciência, mas uma personagem, cujos poderes atribuíam a esse saber apenas um disfarce ou, no máximo, sua justificativa. Esses poderes, por natureza, são de ordem moral e social; estão enraizados na minoridade do louco, na alienação de sua pessoa, e não de seu espírito. Se a personagem do médico pode delimitar a loucura, não é porque a conhece, é porque a domina; e aquilo que para o positivismo assumirá a figura da objetividade é apenas o outro lado, o nascimento desse domínio. (FOUCAULT, 1972, p. 498).

 

O hospital, reflete assim, uma estrutura delicada no seu interior. É um processo de finuras éticas que se traduzem em nada mais do que as próprias aspirações da sociedade burguesa. Este é o caminho pelo qual o asilo deve percorrer: transferir uma sociedade em sua estrutura familiar, jurídica e normativa para uma esfera micro, um estado constituído de paredes e muros que é o hospício. Um país onde reside sua nação insana que segue, na sua dinâmica, os mesmos padrões dos homens sãos e civilizados. O louco reside em sua casa, mas vive com o espírito voltado para fora destes muros, não porque este se desprendeu de sua loucura, mas porque a civilização habita no seu lar. O vigilante desalienador que lhe é o espelho, o mestre cidadão e burguês: “o médico só pôde exercer sua autoridade absoluta sobre o mundo asilar na medida em que, desde o começo, foi Pai, Juiz, Família e Lei”. (FOUCAULT,1972, p. 498). O louco, deste modo, regride, aceita sua minoridade perante o médico e a sociedade; é uma criança que necessita de cuidados para que aprenda novamente os bons e bonitos modos.

 

Assim, as relações entre médico e doente no asilo caracterizadas nas formas mais variadas (vassalo, lacaio, objeto e criança) terão ainda seus impasses. Mesmo existindo a personificação do saber científico e a representação de justo e civilizado na pessoa do médico, sua atuação estará para ser questionada. Mas ainda restará um perigo: será o domínio representado na pessoa do médico que deverá ser substituído ou o médico em si? Talvez seja este o fator importante que se possa procurar quando mencionamos a psiquiatria e as hipóteses de suas possíveis extensões de poder: a psicologia e a psicanálise.

 

4.2 A ANTIPSIQUIATRIA E A DESPSIQUIATRIZAÇÃO

 

Os interesses de cura médica para o louco não são por menos de ordem fisiológica e psicológica. No entanto, encontrava a psiquiatria uma insuficiência destes desenvolvimentos, no seu estudo de um objeto ainda ofuscado e misterioso que é a loucura. As confusões das divisões taxionômicas – dos quadros nosológicos ajudaram ainda mais para a medicina se afirmar perante o louco como a sociedade e não propriamente como ciência. O método de esterilização descoberto por Pasteur polemizou ainda mais estas desconfianças acerca da cientificidade do mundo médico, pois seria ele próprio o direto transmissor da doença nos hospitais: “o médico transmitia as doenças que ele devia combater”. (FOUCAULT, 1997, p. 51). O médico pode disseminar doenças, já que não mais possui domínio sobre elas. Eram as novas descobertas científicas que cobravam do poder médico que se provara desvinculado de seus métodos. Fato é que após estas suposições, um novo olhar acerca de qualquer doente está para aparecer. O médico é questionado ao seu agir.

 

Assim, esta vontade e liberdade do médico sobre o doente encontra suas dificuldades durante o século XIX numa chamada idade da antipsiquiatria. Esboçada a crise, as suspeitas eram da própria produção de doenças que antes eram certezas: “Charcot produzia a crise da histeria de que descrevia”. (FOUCAULT, 1997, p. 51). A contaminação dos hospitais transmitem a desconfiança do poder médico e de todos os seus instrumentais. Conseqüentemente, esta revolta encontra-se num nível mais de reforma do que propriamente de anulação médica. A questão não gira em torno de uma total derrubada da instituição psiquiátrica mas de melhores recursos e técnicas justas e mais científicas a fim de derrubar todas as ignorâncias que os psiquiatras vinham procedendo de formas imprudentes: “a psicocirugia e a psiquiatria farmacológica são as suas duas formas mais notáveis.” (FOUCAULT, 1997, p. 52).

 

A integração de um estudo científico detalhado do corpo do doente, suas funções e formas anatômicas, juntamente com elementos químicos e eficazes para corrigir qualquer disfunção deste corpo, foi a possibilidade da substituição daquela suspeita alquímica do médico para as certezas científicas dos remédios. O louco ainda poderá viver nos hospitais, porém, será tratado com elementos químicos objetivos, elementos terapêuticos metodologicamente empíricos e não mais intuições do psiquiatra.

 

Mas, outra forma de despsiquiatrização que enfraquece as relações de poder entre o médico e o doente será a regra de uma liberdade discursiva do louco – acabou-se os perigos de uma taumaturgia psiquiátrica, mas retoma-se um poder semelhante ao da autoridade médica:

 

Não mais poderás te vangloriar de enganar o teu médico, já que não mais responderás às perguntas feitas; dirás aquilo que te vem à cabeça, sem que tenhas nem mesmo de me perguntar àquilo que penso, e se quiseres me enganar infringindo essa regra, não serei enganado realmente; tu serás enganado, preso na armadilha, já que terás perturbado a produção da verdade e aumentado de algumas sessões a soma daquilo que me deves. (FOUCAULT, 1997, p. 53).

 

Assim, o divã, (a psicanálise), toma forma neste espaço de despsiquiatrização. Entretanto, neste nível ainda não é uma autêntica revolta antipsiquiátrica pois está justamente com os pés fundados nas relações de dominação. A antipsiquiatria posta em questão por Bernhein, Lang e Basaglia contestava justamente o poder do médico sobre o doente produzindo uma verdade fabricada. É assim que Basaglia apresenta as prescrições de Esquirol: “o puro poder do médico [...] aumenta tão vertiginosamente quanto diminui o poder do doente.” (FOUCAULT, 1997, p. 55).

 

Neste sentido, falar de antipsiquiatria deduz uma forma de não se buscar uma substituição do poder psiquiátrico, mas de se lutar contra uma instituição que estabeleça o lugar do internamento para uma justificativa de sua estratégia de dominação. São por estas razões que Foucault trata a psicanálise como uma forma de despsiquiatrização e não de antipsiquiatria, pois sua linguagem e seu estudo, ainda que não se encontre no interior do asilo, delegam saberes, autoridades e promessas de cura equivalentes ao da psiquiatria, ou seja, se por um lado à psicanálise é merecedora de aplausos por retirar o louco do asilo, por outro, é denunciada por mascarar e reconstituir este poder médico transferindo a produção de verdade da psiquiatria para si. Foucault relembra dos casos positivos e negativos da psicanálise quando menciona sua atuação em alguns países dentre eles o Brasil:

 

E em certos países ainda (eu penso no Brasil), a psicanálise desempenhava um papel político positivo de denúncia da cumplicidade entre os psiquiatras e o poder. [...] A psicanálise, em algumas de suas atuações, tem efeitos que entram no quadro do controle e da normalização. (FOUCAULT, 1979, p. 150).

 

Os questionamentos acerca dos desenvolvimentos do poder psiquiátrico realmente chegaram a estas formas de despsiquiatrização. No entanto, interessante seria observar os discursos que possam sustentar a busca da antipsiquiatria. Desconfianças que duvidam destas dominações do louco. Já no final do século XIX e início do século XX a literatura brasileira encontrava-se envolvida com o tema da loucura, principalmente presente nas obras de um dos grandes escritores brasileiros: Machado de Assis – que se via imerso num cenário onde o alienismo em seu poder sobre o louco explícito pelo início das Casas de Internamento no Brasil estava apenas tomando seu espaço na República.

 

Assim, em sua principal obra sobre o assunto, o conto O Alienista, Machado de Assis constrói toda uma história em torno de um personagem o alienista Simão Bacamarte, que chegando a uma vila (Itaguaí) procuraria implantar a ordem e a ciência: “a ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo”. (ASSIS, 1996, p. 9). Assim, Bacamarte fundaria a Casa Verde no intuito de se estudar os loucos da Vila. Interessantemente é observar a sincronia das propostas de Bacamarte com o já comum asilo na Europa e a preocupação daqueles que se encontravam iniciados nas modernas noções de ciência para trazer esta preocupação do asilo para a realidade brasileira. As intenções de Bacamarte eram sustentadas com a sua posição científica, de que se tratava de ciência, era então inquestionável sua eficácia:

 

Mas a ciência tem o inefável Dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, - o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”, - expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores. (ASSIS,1996, p. 9).

 

A figura de Bacamarte, no entanto, aos poucos, passa a se tornar temerosa pois, é ele que bem através de um discurso ditado em código (erudito e incompreensível) que lhe passa o pleno direito do olhar e a majestosa posição de apontar o equilíbrio e a loucura. Sim, é o perfeito equilíbrio entre as faculdades que determinaria a padronização da normalidade. Mesmo os gênios e os estudiosos não estão longe das garras da loucura:

 

O padre Lopes confessou que não imaginaria a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seu recamos de grego latim, e suas borlas de Cícero, Apuleiro e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! Um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua. (ASSIS, 1996, p. 12).

 

Diante desta determinação de normalidade e insanidade, o Alienista amedronta e preocupa aqueles que estão à sua volta. Mesmo porque, a Casa Verde aos poucos vai se enchendo de amigos e conhecidos também. Até então, ao ponto de a casa estar sob seu total domínio: “Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais.” (ASSIS, 1996, p. 21).

 

Mas em grande ironia, Machado de Assis põe em questão este suposto limite de normalidade em poder do alienista. Assim, numa procura incessante sobre tais limites, Bacamarte encontra uma verdadeira e coerente revelação de sua teoria após libertar todos os internados da Casa Verde: “Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim – ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio?” (ASSIS, 1996, p.47). E nesta ilustre descoberta, Bacamarte chega a conclusão de que Louco era quem era perfeito. Ora, em que a todo tempo se julgava possuidor de todo equilíbrio de faculdades se vê obrigado a internar a si próprio: E por final, satiricamente, Machado de Assis destaca que Bacamarte chega a conclusão de que era ele próprio era louco:

 

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram. _ A questão era científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática. (ASSIS, 1996, p. 48).

 

Nesta aguda ironia, percebemos a preocupação antipsiquiátrica do conto de Machado de Assis que possui em base este paradoxo de cientificidade. Nesta mesma perspectiva, podemos analisar alguns fatos importantes de estudo dos hospitais psiquiátricos como um meio crítico do saber médico. Em especial, encontramos o estudo feito pela professora Maria Clementina Pereira Cunha no hospital do Juquery. Fundado na cidade de São Paulo pelo então recém-formado médico Francisco Franco da Rocha no final do século XIX. Em seu livro “O Espelho do Mundo”, Pereira Cunha procura mostrar os múltiplos rostos daqueles que por diversos motivos se vêem presos e dominado nas mãos de grandes médicos. Assim, seu estudo se encontra dirigidamente aos métodos pelos quais caracterizaram o Juquery (1986, p.15):

 

A despeito disto, o Juquery se mantém intocado desde afinal do século XIX, apesar de que tanto o hospício quanto a psiquiatria, em suas correntes mais ortodoxas, sejam severamente questionados em todo o Ocidente. A violência asilar e o uso direto da psiquiatria em práticas repressivas de governos totalitários – como atestam a psiquiatrização das dissidências no Leste europeu ou a presença de psiquiatras como assistentes “médicos” em sessões de tortura das ditaduras militares no Brasil, como em todo o Cone Sul – tem acendido o debate e fundamentado a posição dos críticos da psiquiatria e do asilo.

 

Deste modo, no interior do Juquery, a arrogância psiquiátrica se traduz em práticas de mascaração do poder científico: “dar conta das funções originárias que conduzem historicamente à gênese do saber psiquiátrico”. (CUNHA, 1986, p. 57). Seu fundador era um dos primeiros da turma de especialistas no assunto que chegaram no Brasil: “tido e havido como o ‘Pinel brasileiro’ [...] Franco da Rocha desempenhava um papel fundamental na história da medicina mental e das formas científicas”. (CUNHA, 1986, p. 63). Dentro do edifício do Juquery, as experiências retomadas nesta reclusão social tornam-se inúmeras, bem como também as suas divisões de doenças:

 

A extrema importância atribuída à produtividade – indispensável à cura ou ao controle da loucura – é modificada no caso das mulheres. Para elas, a reclusão do trabalho doméstico, encerrado entre as paredes daquela “casa coletiva. A agulha, o fogão, a sala de trabalhos manuais, espaços fechados condizentes com a idéia da normalidade da condição feminina. (CUNHA, 1986, p. 88-9).

 

Um hospício não muito diferente de outros é como se apresenta o Juquery; visões positivistas quanto à sua organização e o caráter de incessante busca de um remédio universal, neste caso, “o trabalho dos internos volta a ser prescrito como panacéia para a instituição, condição de sua viabilidade, caminho de dignificação e recuperação dos loucos”. (CUNHA, 1986, p. 208).

 

Neste sentido é que se situa a antipsiquiatria; questionar em primeiro ponto todas essas estratégias dos “jogos de poder institucional”. (FOUCAULT, 1997, p. 55). É desta maneira que a psiquiatria clássica caminhou, nos direitos estratégicos de um poder que se encontra no seu suposto saber da verdade. Diferentemente, é claro, caminha a antipsiquiatria:

 

Dando ao indivíduo a tarefa e o direito de levar a cabo a sua loucura, de levá-la a seu termo, numa experiência que pode ter a contribuição dos outros, mas nunca em nome de um poder que lhe seria conferido por sua razão ou por sua normalidade; separando as condutas, os sofrimentos, os desejos do estatuto patológico que lhes havia sido conferido, libertando-os de um diagnóstico e classificação, mas de decisão e de decreto; invalidando, enfim, a grande retranscrição da loucura na doença mental, que havia sido empreendida desde o século XVII e concluída no século XIX.

 

A antipsiquiatria, por sinal, exige a eliminação total do controle médico nos mares da loucura bem como sua perda do estatuto de doença mental. Neste sentido, o problema se encontra no nível institucional deste conhecimento, a uma produção de verdades sobre a loucura. Entretanto, será realmente possível desvincularmos destas relações de conhecimento? Será de fato real, as implicações mais sinceras de uma antipsiquiatria?

 

Para Foucault, estas questões se colocam “concretamente todos os dias no que se diz respeito do papel do médico”. (1997, p. 57). Assim, estas possibilidades de uma mudança da constituição de um poder-saber encontra-se em aberto, nesta buscas de novas formas de Verdades da Loucura.

 

5 CONCLUSÃO

 

Considerando os níveis discursivos dos saberes ao longo da história da loucura, percebemos que o inevitável se afirma: o poder obtido pelas lutas de forças de indivíduos livres. Livres em seus discursos, no seu saber e na sua influência entre as relações. Entretanto, a condição do louco enquanto tal, desprovido da sua força do discurso, permite-lhe entrar para a estabilidade de escravidão. Uma exclusão nas evidências de saberes.

 

Neste sentido, a investigação do poder e seus dispositivos, permite-nos descobrir os fatos que se refletem (não somente no passado), mas no presente, ou seja, nosso estudo pelas presentes figuras do louco ao longo da história remete-nos à consciência dele na sua evidência, ainda válida em nossos dias. Nosso olhar o transforma e o põe como significação de anormalidade. Assim, a possibilidade das variadas formas de verdade se conclui com as figuras presentes na realidade. O louco já não possui o domínio de si, está entregue aos olhos e as vontades alheias. É lançado aos mares, sem rumo, expulso; não participa do cogito da humanidade, ele não é (não-ser); será pois, internado, escorraçado, punido e integrado aos a-sociais, para depois se transformar em doente mental e habitar os asilos na soberania médica.

 

As contribuições de Foucault para a história da psiquiatria são importantes para perceber estas estratégias. Desta forma, procuramos caracterizar neste trabalho, como Instrumentos de poder, as táticas deste saber que se estende à psiquiatria e as técnicas de asilamento numa relação do dominante e mestre da loucura para com o adestrando, o doente, o louco. Esta questão parece caminhar a uma certa negação destas formas. Porém, não se encontra luta para com as idealizações de certas estruturas ou mesmo na simples desconstrução de instituições. É um pensamento que parte da eliminação de um domínio da loucura para a busca do exercício do poder. É uma verdadeira antipsiquiatria – uma anticiência. Um estatuto que não se preocuparia em demarcar o espaço da normalidade. Foge-se do dispositivo manicomial e encontra-se a liberdade para as outras invenções de verdades.

 

Foucault nos propõe esta libertação para as verdades, para a possibilidade das lutas e das forças, da liberdade do louco. Mas como ele mesmo diz: “não se trata de chegar a uma conclusão.” (FOUCAULT, 1972, p. 505). É por isso que não tratamos de resoluções categóricas para os problemas de verdades sobre a loucura. E assim a efetuação de uma análise da instituição médica permite ver suas formas explícitas, e por que não, implícitas do poder. Dirigimo-nos então, à procura de um controle que não seja baseado nesta relação de domínio de liberdade, mas que busque primeiramente a necessidade de uma devolução ética para a loucura: iniciase, portanto, um grande desafio que se encontra sujeito às incertezas da linguagem sã do homem.

 

6 REFERÊNCIAS

 

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ASSIS, Machado de. O Alienista. 27ª ed., São Paulo: Ática, 1996.

 

BENELLI, Silvio; COSTA-ROSA, Abílio. Geografia do poder em Goffman. Estudos de Psicologia. Campinas, PUC – Campinas, v.20, n.2, maio/ago. p.35 – 49.

 

CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

 

DELEUZE, Gilles. Foucault. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991.

 

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

 

________. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972.

 

________. Microfísica do poder. 14ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1979.

 

________. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

 

________. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1994.

 

LOGOS. Enciclopédia luso-brasileira de filosofia. Lisboa: Verbo, 1990.

 

MARIETTI, Angèle Kremer (Org.). Introdução ao pensamento de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

 

PEREIRA, Antônio. A analítica do poder em Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

 

VITHOULKAS, George. A homeopatia: origens e futuro de uma nova medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Publicado por: Junio Luiz Camargo

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