A CULTURA DA PRONÚNCIA EM RAZÃO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE

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1. RESUMO

O presente trabalho analisa a aplicação do brocardo in dubio pro societate na decisão de pronúncia, esta, que é o ponto limiar entre a análise técnica, do Juiz togado e a análise dos jurados, que nos casos de competência do Tribunal do Júri, são os juízes naturais da causa e decidem com base na íntima convicção.

O Júri é composto por duas fases, sendo que na primeira, que é chamada de iudicium accusationis, o juiz togado instruirá o processo a fim de verificar se preenche os requisitos legais do artigo 413 do Código de Processo Penal. A segunda fase é chamada de iudicium causae, momento em que os jurados decidirão o mérito, de forma sigilosa e soberana.

Tem se que o in dubio pro societate deve ser aplicado quando o juiz sumariante encontrar-se em dúvida ao fim da primeira fase do procedimento do Júri.

Ocorre que, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro impede a aplicação do brocardo in dubio pro societate, pois, este conflita com princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Pronúncia. Tribunal do Júri. Favor Rei. Impronúncia

2. INTRODUÇÃO

Este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) tem por objetivo ser apresentado ao Centro Universitário Euro-Americano (UNIEURO) como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito

A proposta é a análise dos aspectos processuais do Tribunal do Júri, mais especificamente a aplicação do brocardo in dubio pro societate, que é utilizado quando o magistrado encontra-se em dúvida no momento de pronunciar ou não o acusado.

O Júri é competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, seu procedimento é composto por duas fases, sendo que na primeira, chamada de iudicium accusationis, ou sumário de culpa, é feita uma análise superficial sobre os fatos e a autoria do crime, onde são produzidas provas em juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa a fim de avaliar se há condições para iniciar a segunda fase, que é chamada de iudicium causae, onde o mérito da causa será analisado pelos jurados que comporão o conselho de sentença e darão o veredito final sobre o destino do réu.

A pronúncia é uma decisão proferida pelo magistrado ao final da primeira fase do Júri; é ela que declara a existência ou não de indícios suficientes de autoria e materialidade do crime; é o ponto crucial que separa a análise técnica, sob o prisma estritamente jurídico, da análise do mérito realizada pelos jurados, que, abrigados pela íntima convicção, julgam influenciados por diversos sentimentos, nem sempre com a técnica jurídica necessária.

Se o ônus de provar o que alega na denúncia é da acusação, em caso de dúvida se estão presentes os indícios de autoria, deve o acusado ser pronunciado? Será que o acusado deve “pagar” pela ineficiência da acusação?

A formação jurídica transforma o modo de pensar sobre os mais variados assuntos. A busca incessante pelo que cada um entende por justiça faz com que o operador do Direito se proponha a estudar por todos os dias de sua vida. Temas simples, corriqueiros são capazes de gerar tempestades no mundo jurídico, isso é Direito, não uma ciência exata, sem grandes controvérsias, mas sim um grande mar de entendimentos que, pautados pela razoabilidade, se desenvolvem sempre na busca do que a sociedade anseia: a Justiça.

O operador do Direito não pode ser movido pela inércia, deve ter seus próprios posicionamentos, deve pensar o Direito. Assim o tema foi escolhido, mesmo sendo um posicionamento ainda minoritário, mas sempre pautado pelos princípios e ideais de justiça. O presente Trabalho de Conclusão de Curso procura demonstrar que o entendimento que prevalece atualmente, embora relativamente pacificado, pode ser revisto à luz da ordem constitucional vigente.

Para a elaboração do trabalho, utilizar-se-á o método de pesquisa bibliográfica em todos os ramos do Direito, afinal ele é uno e indivisível, está em tudo.

Será apresentado em três capítulos. De início, analisa-se o Processo Penal sob o prisma constitucional que espraia, por todo o ordenamento jurídico, as suas características, visando dar garantias mínimas ao indivíduo, que é levado a julgamento. A dignidade da pessoa humana, imprescindível que é, será analisada com seus principais desdobramentos no Processo Penal, aplicáveis ao tema. Os princípios da Presunção de Inocência, in dubio pro reo e favor rei, serão vistos para concretizar o intento do trabalho. Em um segundo momento, analisa-se as principais características do Júri, de forma sucinta e objetiva. Por fim, será analisada a aplicação do in dubio pro societate, sob a análise constitucional, garantindo a manutenção da competência constitucional do Júri, mas com respeito ao devido processo legal.

Criado pela doutrina e sem previsão legal alguma que o ampare, o in dubio pro societate é usado atualmente de forma indiscriminada e muitas vezes banalizada, fazendo com que o acusado seja submetido ao julgamento popular em total desrespeito à dignidade humana e à lei processual vigente, que, com clareza solar, requer que existam indícios suficientes de autoria para que haja a decisão de pronúncia.

Não se buscará aqui, de forma alguma, usurpar a competência atribuída, pela Constituição Federal de 1988, ao Tribunal do Júri, mas sim reanalisar a pronúncia sob o prisma garantidor que a Constituição de 1988 inaugurou no sistema jurídico brasileiro.

A dúvida aqui abordada não é a dúvida sobre a autoria do delito, isso é competência dos jurados que comporão o conselho de sentença. O presente trabalho versa sobre a suficiência de elementos comprobatórios que consubstanciarão os “indícios suficientes de autoria”. Se o magistrado entende que estão presentes os “indícios suficientes de autoria”, deve pronunciar o réu, mas, se tem dúvida, deve impronunciá-lo, afinal o ônus da prova ainda é de quem alega e, sendo assim, o acusador não se desincumbiu de seu ônus probatório, não pode ver sua pretensão acolhida.

O tema é abordado sob o ponto de vista crítico e pautado nos princípios constitucionais, visando à garantia da dignidade humana do indivíduo que está sendo levado a julgamento popular.

Nesse diapasão, o processo demonstra-se como um direito garantia, tanto para o acusado, que terá a segurança de que não será privado de sua liberdade sem o devido processo legal, onde todos os seus direitos serão respeitados, até mesmo durante o cumprimento de sua pena, quanto para a sociedade, que, embora tenha interesse na punição do culpado, tem interesse maior ainda na correta aplicação da Lei penal.

3. PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL

O Código de Processo Penal Brasileiro, data do ano de 1941, período em que reinavam as características de um sistema autoritário e opressor que se baseava na ideia de que o Direito Penal era o verdadeiro baluarte para as soluções das mazelas da sociedade, pautava-se na culpabilidade e periculosidade do agente (OLIVEIRA, 2013, p. 5). Com essa postura, o Estado tornava o homem mero objeto do processo e intentava a todo custo sua condenação, com base no triste entendimento de que para punir vale tudo.

Noutra seara, a Constituição da República de 1998 inaugura um sistema que, priorizando a Dignidade da Pessoa Humana, define direitos e fixa garantias fundamentais, o que faz com que o processo passe de mera formalidade para a aplicação da lei penal e torne-se também uma garantia do indivíduo em face do Estado (OLIVEIRA, 2015, p. 8).

Um processo justo faz-se necessário para que o jus puniendi do Estado seja aplicado de maneira legítima e proporcional, garantindo ao indivíduo, a quem está sendo imputada a infração penal, o devido processo legal e, à sociedade, a certeza de que o responsável pela prática do delito será condenado com justiça.

Sendo assim, o Processo Penal não pode ser aplicado de maneira isolada de tal modo a desrespeitar a Constituição Federal de 1988, devendo, aliás, ser interpretado e efetivado sob a ótica dela.

Nessa perspectiva Constitucional do processo, deve-se entender que as garantias outorgadas pela Constituição Federal não podem ser meras previsões, devem ser realmente efetivadas, pois derivam de seu caráter democrático que, limitando os poderes do Estado, busca proteger o indivíduo proporcionando, a todos os cidadãos, a segurança de que não serão privados de seus bens, nem de sua liberdade sem o devido processo legal.

Convém salientar que o processo como garantia não se aplica somente para proteger o indivíduo, ou seja, as garantias não são absolutas, há também o dever de o Estado garantir com efetividade a proteção da sociedade contra condutas tidas como perniciosas à coletividade.

Sobre o assunto, preleciona Dezem (2016, p. 8):

Desta forma, podem surgir conflitos entre o modelo garantista e a eficiência que se espera do sistema penal. Vale dizer: no extremo, um sistema que privilegie absolutamente os direitos e garantias individuais dificilmente conseguirá a punição de algum culpado. Por outro lado, novamente levado ao extremo, sistema que se afaste dos direitos e garantias individuais e busque cegamente a efetividade do processo não cumprirá da mesma forma com os mandamentos constitucionais.

Entre o garantismo e a eficiência deve-se adotar uma postura equilibrada, ponderada, pois é bem verdade que nem a impunidade nem a arbitrariedade são benéficas para a sociedade e adotar qualquer um desses dois extremos, como sendo a regra, não alcança o fim maior do Direito, que é a justiça.

3.1. SISTEMAS PROCESSUAIS

Rangel (2015, p. 46) entende que sistema processual é o conjunto de regras e princípios que norteiam a aplicação do Direito penal pelo Estado, de acordo com o momento político em que ele se encontra.

Para se identificar os valores de uma sociedade, é importante verificar a forma com que ela aplica o seu poder de punir, concretizado pelo Direito Penal e o Processo Penal vigente, É com base nesses dois ramos que se pode constatar a verdadeira essência e os ideais do Estado.

Nesse sentido, Dezem (2016, p. 7):

O Direito Processual Penal, assim como o Direito Penal, representa grande concentração dos valores existentes em cada sociedade. É na forma como se lida com o poder-dever de punir e seu instrumento que se pode verificar se há efetivamente sociedade que respeita o Estado Democrático de Direito e os valores constitucionalmente fixados.

Assim, em uma democracia o sistema processual mais compatível é o acusatório, pois confere garantias mínimas que visam proteger o indivíduo de possíveis arbitrariedades no decorrer do processo. Já em um Estado repressivo, a presença do sistema inquisitivo é mais comum, tendo em vista seu caráter extremamente invasivo e opressor.

Neste momento, é importante analisar algumas características de cada sistema.

3.1.1. Sistema inquisitivo

Conforme exposto acima, o sistema inquisitório é característico de um Estado opressor, visto que as funções de acusar, defender e julgar encontram-se nas mãos de um mesmo órgão, que, em razão disso, tende a perder sua imparcialidade, fato que, sem dúvida, prejudica, desmesuradamente, a posição do réu, visto que, ao iniciar a persecução penal, o acusador, que também julgará a causa, já emitiu um juízo de valor que contaminará todo o processo. Há, ainda, outra importante característica desse sistema, o sigilo, que visa esconder dos olhos do povo o que acontece no processo, tornando secretos os atos de “justiça”.

O sistema inquisitivo é marcado pelo desrespeito às garantias mínimas como o contraditório e a ampla defesa, pois o acusado não é tratado como sujeito de direitos, mas sim um objeto do processo, podendo ser submetido a qualquer tipo de tratamento degradante, como a tortura, a fim de se obter uma confissão, que, nesse sistema, é tratada como a prova das provas, aqui, o juiz é dotado de ampla iniciativa probatória.

3.1.2. Sistema acusatório

Ao contrário do sistema inquisitivo, o sistema acusatório tem características mais garantidoras, pois a acusação é formulada por uma pessoa incumbida somente dessa tarefa, que toma para si o ônus de provar todos os fatos constantes na peça de acusação, já a defesa é feita por meios independentes e desvinculados da atividade acusatória e, em uma terceira posição, encontra-se o julgador, que, antes de formulada a acusação, não tem nenhum contato com o processo. Essa divisão de funções privilegia a igualdade de condições, a paridade de armas da acusação e defesa e, também, é capaz de garantir uma ampla imparcialidade do julgador. Aqui já se abandona o sigilo, que se torna a exceção, sendo que a publicidade é a regra. A confissão já não tem valor absoluto e as provas devem, inicialmente, ser produzidas pelas partes para comprovar suas alegações. As garantias mínimas, como o contraditório e a ampla defesa, percorrem todo o processo, norteando as condutas das partes e do juiz.

3.1.3. Sistema adotado no Brasil

O Brasil adotou o sistema acusatório, pois o artigo 129, I da Constituição Federal de 1988, determina que é função privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública.

Nessa vertente, Dezem (2016, p. 19) citando outros autores e o Supremo tribunal Federal, afirma:

De nossa parte, acompanhamos o posicionamento do STF e de autores como Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes, Fauzi Hassan Choukr, Geraldo Prado, e entendemos que o sistema processual efetivado por meio da Constituição Federal e dos tratados internacionais que o Brasil se obrigou a respeitar é o sistema acusatório.

Na mesma linha, porém com uma ressalva de que o nosso sistema acusatório não é puro devido a alguns momentos marcados pelo sistema inquisitorial, Rangel (2015, p. 53):

O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que constam do inquérito policial são verdadeiros. Inclusive, ao tomar depoimento de uma testemunha, primeiro lê seu depoimento prestado, sem o crivo do contraditório, durante a fase do inquérito, para saber se confirma ou não, e, depois, passa a fazer as perguntas que entende necessárias. Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente informativo, inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade processual. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o sistema acusatório adotado entre nós é puro. Não é. Há resquícios do sistema inquisitivo, porém já avançamos muito.

De toda forma, até com essa ressalva, pode-se verificar que o nosso sistema é o acusatório, pois tanto a jurisprudência quanto a doutrina majoritária entendem dessa maneira.

3.2. BASILARES PRINCÍPIOS APLICÁVEIS AO TEMA

Para que o Estado, no exercício de sua função jurisdicional, aplique o Direito ao caso concreto, deve se utilizar de normas dotadas de amplo caráter valorativo, quais sejam os princípios. Desta feita, a seguir analisar-se-á alguns princípios norteadores do Processo Penal que são de extrema importância para o desenvolvimento do tema.

3.2.1. Dignidade da Pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana é tida como um superprincípio que orienta a interpretação e aplicação de todo o sistema jurídico, fazendo com que o homem, na posição de destaque que recebe, seja tratado de forma condizente com seu valor.

Tarefa extremamente difícil é conceituar o que seria dignidade humana, mas, para atingir o objetivo do trabalho, tomar-se-ão alguns conceitos para, com base neles, extrair um mínimo comum.

Moraes conceituando a dignidade humana (2016, p. 74):

[...] A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos e a busca ao Direito à Felicidade.

Para Sarlet (2006, p. 60) dignidade da pessoa humana é:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo ato contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Ante os conceitos apresentados, constata-se que a dignidade é um valor que é próprio do ser humano que o distingue dos demais seres, uma qualidade que lhe merecedor do respeito do Estado e de seus concidadãos.

A valorização do Homem e a sua colocação como sujeito de direitos mínimos devem-se primeiramente ao Cristianismo, que estabeleceu uma relação entre o divino e o humano, fato que fez com que até as penalidades aplicadas à época tendessem a respeitar um mínimo de dignidade.

Nessa seara, Greco Filho (2013, p. 43):

Inegavelmente foi a doutrina cristã que mais valorizou a pessoa humana, definindo o homem como criado à imagem e semelhança de Deus. Mediante essa concepção, estabelecendo um vínculo entre o indivíduo e a divindade, superou-se a concepção do Estado como única unidade perfeita, de forma que o homem-cidadão foi substituído pelo homem-pessoa. Imediatamente, sentiu-se tal influência na mitigação das penalidades atrozes, no respeito ao indivíduo como pessoa e em outros campos.

Já na antiguidade a posição social que o indivíduo ocupava e o reconhecimento que lhe dispensavam era o mensurador da dignidade humana e isso permitia que alguns indivíduos fossem mais dignos que outros (SARLET, 2006, p. 30).

Reconhecer a dignidade como fundamento de um sistema significa dar-lhe importância ímpar no ordenamento jurídico e, a partir dela, deve-se interpretar as demais normas do ordenamento.

Assim, Dezem (2016, p. 28):

É importante observar que, em nosso sistema, a dignidade da pessoa humana apresenta-se como fundamento do Estado Democrático de Direito, o que significa dizer que todo o sistema processual penal deve ser lido à luz da dignidade da pessoa humana. Ele é o norte interpretativo que guia o intérprete e aplicador do direito.

Note-se que o fundamento é a base de todo um sistema e a dignidade humana foi alçada a esse patamar de referência, não podendo de forma alguma ser desrespeitada, pois sem ela não há Estado Democrático de Direito

A concretização da dignidade humana é feita com o reconhecimento e efetivação dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal

3.2.2. Favor rei

Para que o jus puniendi seja aplicado de forma legítima e com a maior justeza possível, as partes devem dispor de igualdade de condições.

Assim entende Dezem (2016, p. 32):

A ideia de processo justo não sobrevive caso haja tratamento diferenciado concedido a qualquer dos sujeitos parciais do processo. Significa que os sujeitos processuais parciais não podem ter tratamento diferenciado no processo, seja pela concessão de indevidos privilégios, seja por atuação condescendente do magistrado.

Acontece que a máquina estatal dispõe de um amplo aparato, tecnológico e humano para reunir subsídios que fundamentem a persecução penal do indivíduo, fazendo com que o acusado se encontre desde já em posição desvantajosa em relação ao titular da ação penal.

Nesse sentido, Lima (2016, p. 640):

Afinal, de um lado geralmente está o Ministério Público, titular da ação penal pública, com todo seu poder e aparato oficial, sendo auxiliado por outro órgão estatal – Polícia Judiciária –, que municia o dominus litis com os elementos de informação necessários ao oferecimento da denúncia. Do outro lado coloca-se o acusado, invariavelmente num plano de inferioridade, até mesmo por conta do caráter seletivo do direito penal. Por isso, não basta uma mera igualdade formal.

Dessa maneira, surge a necessidade de se estabelecer uma igualdade, não só formal, mas também substancial/material entre as partes, favorecendo a ampla defesa e o contraditório, tutelando a garantia do devido processo legal e a justiça do processo.

Para mitigar a desigualdade, são criados mecanismos para reequilibrar as posições, dentre os quais, que se materializam por meio de privilégios em favor do acusado, encontra-se o princípio favor rei.

Esse princípio busca estabelecer a paridade de armas e de forma isonômica, intenta à igualdade substancial. Para o presente trabalho o desdobramento mais importante desse princípio é quando se trata de interpretação. O Favor rei se materializa pela opção que favoreça o réu, pois, se o titular da ação penal, mesmo dispondo de aparatos privilegiados, não consegue extirpar a dúvida, que pelo menos essa beneficie o réu.

Nessa linha, ensina Capez (2016, p. 117):

A dúvida sempre beneficia o acusado. Se houver duas interpretações, deve-se optar pela mais benéfica; na dúvida, absolve-se o réu, por insuficiência de provas; só a defesa possui certos recursos, como os embargos infringentes; só cabe ação rescisória penal em favor do réu (revisão criminal) etc.

No mesmo pensamento, Rangel (2015, p. 35):

O princípio do favor rei é a expressão máxima dentro de um Estado Constitucionalmente Democrático, pois o operador do direito, deparando-se com uma norma que traga interpretações antagônicas, deve optar pela que atenda ao jus libertatis do acusado.

Assim, embora constitua um verdadeiro privilégio, não o é indevido, o Favor rei é deveras importante, pois intenta estabelecer uma igualdade substancial, tratando com igualdade os iguais e com desigualdade os desiguais.

3.2.3. Presunção de inocência

Fruto de um Estado de Direito, a presunção de inocência é um princípio norteador, que faz com que o indivíduo tenha a seu favor a presunção de que é inocente até um momento específico, que é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória declarando-o culpado. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, LVII, prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, sendo assim, durante todo o trâmite processual, permanecerá sobre o indivíduo o manto da inocência.

Com ideais iluministas, a presunção de inocência surge para inibir os abusos do Estado que se sustentava em um sistema processual inquisitório e intentava a condenação do indivíduo a qualquer preço, sendo que o acusado já tinha em seu desfavor a presunção de ser culpado.

De acordo com Rangel (2015, p. 24), a partir de então, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o processo passa a ser influenciado pelo sistema acusatório, donde deriva maior proteção ao acusado que passa a ser considerado presumidamente inocente.

Em alguns casos, pode haver uma confusão entre a presunção de inocência e o in dubio pro reo, mas Moraes (2011, p. 316) explicita que os dois não se confundem:

O princípio da presunção de inocência não se confunde com o princípio in dubio pro reo, pois, apesar de ambos serem espécies do gênero favor rei, existe substancial diferenciação entre eles: enquanto o primeiro sempre tem incidência processual e extra-processual, o segundo somente incidirá, processualmente, quando o órgão judicial tenha ficado em dúvida em relação às provas apresentadas, devendo então optar pela melhor interpretação que convier ao acusado.

Dessa forma, enquanto o Princípio Presunção de Inocência está presente por toda a persecução penal, dentro e fora do processo, o in dubio pro reo só se fará necessário quando o magistrado se encontrar em dúvida, o que faz com que este seja um instrumento de efetivação daquele.

Assim, Moraes (2011, p. 316) arremata:

Note-se que se a acusação não tiver conseguido provar as alegações ofertadas contra o acusado, não existindo, pois, qualquer dúvida no espírito do magistrado, permanecerá a existência do principio da presunção de inocência, sem, contudo, ter havido necessidade de utilização do in dubio pro reo.

O Estado Democrático de Direito tem como característica principal o respeito às garantias fundamentais. Sendo assim, o jus puniendi só será aplicado após um devido processo legal que respeite as garantias e direitos fundamentais da pessoa, tais como a ampla defesa, o contraditório, o dever de fundamentação das decisões judiciais. Nesse sentido, a presunção de inocência exerce papel primordial na manutenção do caráter de garantia do processo, harmonizando a persecução penal com os ditames constitucionais.

No decorrer do processo, serão analisados os fatos apresentados e as provas colhidas para que se dê prosseguimento à persecução penal, fato que garante ao indivíduo que ele só perderá seu status de inocente e será condenado, caso se mostrem presentes provas bastantes para uma fundamentação feita a contento.

O mais importante é a regra de tratamento que deve ser observada por parte do julgador que não deve considerar o indivíduo culpado, mas além disso, deve tratá-lo como verdadeiro inocente.

Nesse diapasão preleciona Lopes Jr (2014, p. 218):

Sob a Perspectiva do julgador, a presunção de inocência deve (ria) ser um princípio da maior relevância, principalmente no tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado. Isso obriga o juiz não só a manter uma postura negativa (não o considerando culpado), mas sim a ter uma postura ativa (tratando-o efetivamente como inocente).

Essa presunção de inocência que milita em favor do acusado faz com que a acusação, ao intentar a persecução penal, reúna todos os elementos necessários para comprovar a culpabilidade do acusado, de forma a não deixar pairar dúvidas sobre o julgamento da causa. Já quanto ao acusado, dele não se exige a prova de sua inocência.

Nessa vertente, Lima (2016, p. 44):

Por força da regra probatória, a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado além de qualquer dúvida razoável, e não este de provar sua inocência. Em outras palavras, recai exclusivamente sobre a acusação o ônus da prova, incumbindo-lhe demonstrar que o acusado praticou o fato delituoso que lhe foi imputado na peça acusatória.

A dignidade da pessoa humana desdobra essa presunção de inocência do indivíduo que, como se vê, é posto em posição de destaque e com garantias mínimas, com o objetivo de conter o uso abusivo do poder do Estado.

3.2.4. In dubio pro reo

Sabe-se que o sistema acusatório defere ao indivíduo o status de inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Isso indica que até o trânsito em julgado da sentença condenatória, não cabe ao acusado provar que é inocente, mas sim, exclusivamente, a quem o acusa provar a ocorrência do crime (materialidade), bem como quem o cometeu (autoria).

Estando intimamente ligado à presunção de inocência, o in dubio pro reo nos informa que, em caso de dúvida razoável, deve o juiz optar por resguardar o interesse do réu. Observe que, em uma sociedade que valoriza o indivíduo, é melhor absolver um culpado a condenar um inocente. Esta última possibilidade se mostra mais gravosa à sociedade.

Nessa senda, Rangel (2014, p. 35):

A melhor solução será, indiscutivelmente, absolver o acusado, mesmo correndo o risco de se colocar um culpado nas ruas, pois antes um culpado nas ruas do que um inocente na cadeia.

Ora, se cabe à parte que acusa provar a culpabilidade do acusado e afastar o seu status de inocência, se o juiz se encontra em dúvida é porque a acusação não se desincumbiu de seu ônus, em consequência não pode ter acolhida sua pretensão.

3.3. INTERPRETAÇÃO IN MALAM PARTEM

Interpretar in malam partem é interpretar a norma em prejuízo do réu. Mas antes de adentrar nessa possibilidade, é interessante saber que o ato de interpretar uma determinada norma é buscar o seu significado, alcançando-lhe o sentido e a vontade.

Cunha, citando Aníbal Bruno (2016, p. 59):

Toda expressão verbal do pensamento precisa ser interpretada. O que pretende dizer o velho adágio de in claris non fit interpretativo é que, sendo a lei clara, não cabe procurar-lhe um sentido diferente daquele que resulta evidentemente do texto. Apenas, se a lei é clara, a interpretação é instantânea. Conhecido o texto, aprende-se imediatamente o seu conteúdo. Mas, se é obscura ou incerta, precisa, então, submeter-se a lei ao processo interpretativo sistemático, processo lógico, que obedece a regras e preceitos, cujo conjunto constitui a Hermenêutica, ou ciência da interpretação.

Do exposto, constata-se, junto ao autor, que até leis mais simples requerem interpretação.

As formas de interpretação podem ser:

Declaratória: quando a letra da lei corresponde exatamente ao que o legislador quis dizer;

Restritiva: quando se reduz o alcance das palavras para buscar o que o legislador intentou com a edição da norma, ou seja, o legislador falou mais do que queria; e

Extensiva: quando se amplia o alcance das palavras para buscar o intento do legislador, ou seja, o legislador falou menos do que queria.

Para verificar se é possível interpretar a norma em prejuízo do réu, é mister, mesmo que de forma sucinta, analisar a diferença entre normas materiais, normas genuinamente processuais e normas mistas. É o que se faz a seguir.

3.3.1. Normas materiais

São normas que versam sobre o Direito Penal material, como a aplicação da pena, tipificação de crime, extinção da punibilidade, direito de punir do Estado etc.

Essas normas só admitem retroatividade, analogia, interpretação restritiva ou extensiva, pro reo, vedada qualquer forma de ampliação prejudicial ao réu, por força do princípio da legalidade.

3.3.2. Normas genuinamente processuais

São as que não versam sobre o direito processual, cuidando exclusivamente sobre procedimento. Aqui se admite a aplicação das mesmas regras de interpretação das leis em geral, tais como a analogia, interpretação extensiva, bem como princípios gerais de Direito.

3.3.3. Normas mistas

São normas que, embora se encontrem previstas em diploma processual, versam sobre Direito material. Albergam duplo conteúdo, ou seja, tratam de processo e Direito Penal material (DEZEM, 2016, p. 37).

Nesse sentido, Nucci (2016, p. 51) ensina:

São aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, regendo atos praticados pelas partes durante a investigação policial ou durante o trâmite processual, têm forte conteúdo de Direito Penal. E referido conteúdo é extraído da sua inter-relação com as normas de direito material, isto é, são normalmente institutos mistos, previstos no Código de Processo Penal, mas também no Código Penal, tal como ocorre com a perempção, o perdão, a renúncia, a decadência, entre outros. Uma vez que as regras sejam modificadas, quanto a um deles, podem existir reflexos incontestes no campo do Direito Penal.

Lima (2016, p. 96) afirma que não há consenso na doutrina e cita duas posições:

Não há consenso na doutrina acerca do conceito de normas processuais materiais ou mistas. Uma primeira corrente sustenta que normas processuais materiais ou mistas são aquelas que, apesar de disciplinadas em diplomas processuais penais, dispõem sobre o conteúdo da pretensão punitiva, tais como aquelas relativas ao direito de queixa, ao de representação, à prescrição e à decadência, ao perdão, à perempção, etc.Uma segunda corrente, de caráter ampliativo, sustenta que normas processuais materiais são aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, meios de prova, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que produzam reflexos no direito de liberdade do agente –, ou seja, todas as normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão.

Ponto curial de se notar é a possibilidade de interpretar in malam partem as normas mistas, ou seja, as que versam sobre Direito Penal material, mas se encontram previstas em diploma processual. Ocorre que, se a norma é mista, deverá prevalecer o conteúdo de Direito Penal.

Nesse sentido, Távora e Alencar (2016, p. 38):

E se a lei for híbrida, hipótese em que pode surgir o fenômeno das normas heterotópicas (heterotopia é o fato de uma norma com conteúdo processual penal se situar, topicamente, em diploma de natureza penal, substancial)? Em outras palavras, como deve ser aplicado um enunciado novo que traz, a um só tempo, normas tanto de direito processual quanto de direito material? Como não pode haver cisão, deve prevalecer o aspecto penal. Se este for benéfico, a lei será aplicada às infrações ocorridas antes da sua vigência. [...]

Essa diferenciação é salutar, pois o legislador teve a intenção de diferenciar o tratamento que deve ser dispensado às diferentes normas, processuais ou materiais.

Assim, nas precisas lições de Badaró (2015, p. 106):

Do ponto de vista da interpretação da lei processual penal, o que pretendeu fazer o legislador foi demarcar a diferença entre o direito penal e o processo penal. Naquele, não se admite qualquer forma de ampliação hermenêutica dos preceitos incriminadores, muito menos do emprego da analogia. Já no processo penal o art. 3 do CPP prevê que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito".

Do exposto, conclui-se, que se a norma é processual material, devem-se aplicar, a ela, todos os princípios que regem o Direito Penal, tais como a irretroatividade e a vedação à analogia, interpretação restritiva ou extensiva, salvo se benéficas ao réu.

4. JúRI

Atualmente previsto na Constituição Federal de 1988, no título dos direitos e garantias fundamentais, tem-se que o Júri é uma garantia do acusado, mas nem sempre foi assim. O Júri passou por diversas transformações e dificuldades, algumas de suas características se perderam no tempo em decorrência das diversas reformas no ordenamento jurídico pátrio.

4.1. BREVE HISTÓRICO

O Júri é uma instituição antiga e não se sabe afirmar com certeza quando e onde surgiu. A doutrina afirma que os judices jurati, dos romanos, os dikastas gregos e os centeni comites dos germanos foram os percussores do julgamento popular.

Apesar da importância de seu surgimento, para o presente feito utilizar-se-ão as lições de Tourinho Filho (2012, p. 139), entendendo que a origem do Júri se deu com o Quarto Concílio de Latrão, em 1215, que aboliu os Juízos de Deus, mais conhecidos como ordalia.

Vale lembrar que o Júri como conhecemos atualmente, é de origem inglesa em razão da aliança formada por Portugal e Inglaterra, principalmente no início do Século XIX, depois da Guerra travada por Napoleão na Europa (RANGEL, 2014, p. 604).

Com o caráter indiscutivelmente democrático, o Júri nasce na Inglaterra com a intenção de diminuir o poder absoluto do déspota, que se utilizava dos juízes para fazer valer sua vontade, passando o poder de fazer justiça às mãos do povo, na figura do Júri.

Em suas precisas lições, Tourinho Filho (2012, p. 140) informa que havia dois Júris, o Grande Júri, que era formado por 24 cidadãos com a tarefa de verificar se o acusado deveria ser julgado ou não, sendo que, se a resposta fosse positiva, o acusado seria remetido ao Pequeno Júri, composto por 12 cidadãos que decidiriam sobre o mérito da causa. Aqui a participação popular é notável.

No Brasil, o Júri se instala em 1822, inicialmente com competência para julgar os crimes de imprensa. Dois anos depois, já com a Constituição de 1824, a competência foi estendida às causas cíveis e criminais.

Posteriormente, instituiu-se o Júry de Acusação ou Grande Júri, que era composto por 23 jurados, com a finalidade de verificar se seria o caso de pronuncia do investigado, o que o levaria para o julgamento do Júri de Sentença ou Pequeno Júri, composto por 12 jurados, que após os debates das partes resolveriam sobre a materialidade e autoria do delito. Aqui é patente a influência do modelo de Júri inglês.

Daí é de se notar o grande viés democrático de tal instituição, visto que os jurados debatiam sobre procedência da acusação, fazendo as vezes do atual juiz togado no sumário de culpa e também sobre o mérito da causa. Porém o espírito democrático do Júri foi se perdendo pouco a pouco com o passar dos anos.

Rangel (2015, p. 610) atribui, ao Código de Processo Criminal de 1932, o nascimento da distância dos jurados e dos réus, vez que somente poderiam ser jurados os eleitores e somente poderiam ser eleitores os que gozassem de condições econômicas mais favorecidas, sendo que os réus eram, em regra, os menos abastados economicamente.

Embora com essa crítica pontual, é de se reconhecer que a participação dos jurados nas duas etapas do Júri, tinha o poder de conferir ao julgamento grande legitimidade e transparência.

Mais tarde, com a edição da lei nº 261 de 1841, não só se acaba com o Grande Júri, mas também atribui a decisão de procedência ou não da acusação às autoridades policiais e aos juízes municipais, o que comprometeria sobremaneira o julgamento dos acusados.

De acordo com Rangel (2015, p. 613):

A decisão da procedência (ou não) da pretensão acusatória não mais pertencia aos jurados (grande júri) e sim às autoridades policiais e aos juízes municipais, sendo que, quando a decisão de pronúncia fosse dada pelos delegados e subdelegados de polícia, ela dependeria de confirmação por parte dos juízes municipais. Os delegados, subdelegados e juízes municipais eram nomeados pelo Imperador, sendo que os dois primeiros poderiam ser também pelos Presidentes das Províncias, o que retirava deles a independência para proferir uma decisão que desagradasse a Corte. E mais: quem elaborava a lista dos jurados eram os delegados de polícia, que escolhiam os cidadãos que podiam ser eleitores, excluindo da lista os que não tivessem bom-senso, integridade e bons costumes (arts. 27, 28 e 29 da Lei nº 261 , de 1841 ).

Interessante notar a progressiva decadência da democracia almejada pelo Júri, e, nesse ponto, é importante transcrever um dos critérios de escolha dos jurados inscrito na Lei nº 261, de 1841, in verbis:

Art. 27. São aptos para Jurados os cidadãos que puderem ser Eleitores, com a excepção dos declarados no art. 23 do Codigo do Processo Criminal, e os Clerigos de Ordens Sacras, com tanto que esses cidadãos saibão ler e escrever, e tenhão de rendimento annual por bens de raiz, ou Emprego Publico, quatrocentos mil reis, nos Termos das Cidades do Rio de Janeiro, Bahia, Recife e S. Luiz do Maranhão: trezentos mil réis nos Termos das outras Cidades do Imperio; e duzentos em todos os mais Termos. (grifos nossos)

A ênfase ao critério econômico fazia com que os acusados, em grande maioria pobres, fossem julgados por pessoas que tinham padrões econômicos altos. A desigualdade econômica era o divisor dos bons e maus cidadãos, perdeu-se o sentido do julgamento pelos pares.

No ano de 1871, o Código de Processo Criminal do Império passa por uma reforma que extingue as atribuições das autoridades policiais para pronunciar os acusados, visando separar as funções de investigar e julgar.

Após duros golpes, durante certo tempo, mais algumas mudanças ocorreram.

Em 1891, a primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil inclui a instituição do Júri no título referente aos cidadãos brasileiros. Em 1934, o Júri passa a ser previsto no capítulo que tratava do Poder Judiciário.

A constituição de 1937, nem sequer previu a instituição do Júri, pois este é incompatível com o regime ditatorial, nessa vertente afirma Rangel (2015, p. 620):

Ditadura e júri não são bons amigos. Não convivem no mesmo ambiente político, pelo menos enquanto o júri for visto como uma instituição democrática. A própria criação do júri, que vimos acima, visava retirar das mãos do déspota o poder de decidir a vida das pessoas. Agora, com a ditadura, é o déspota que retira o poder das mãos do júri.

Em 1938 o Decreto 167, regulando a instituição do Júri, retira a soberania dos veredictos dos jurados, possibilitando que o Tribunal de Apelação reformasse a decisão do Júri. Importante lembrar que o Tribunal de Apelação era controlado por Vargas.

O atual Código de Processo Penal, datado do ano de 1941, embora com algumas alterações quanto ao rito, mantém para o Júri, a mesma estrutura da época da ditadura.

Já a constituição de 1946 estabelece o número ímpar de jurados, reestabelece a soberania das decisões do Júri e atribui a competência obrigatória para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Com o movimento, que alguns chamam de Revolução e outros de Golpe, os militares ascendem ao poder e, em 24 de Janeiro de 1967, uma nova constituição nasce e mantém a instituição do Tribunal do Júri.

O movimento “diretas já” colocou fim ao regime militar e culminou com a promulgação da Constituição Democrática de 1988, apelidada, por Ulisses Guimarães, de “Constituição Cidadã”, que deu uma nova roupagem ao Júri, insculpindo-o no rol de direitos e garantias fundamentais, buscando compatibilizar o Tribunal Popular aos anseios da Democracia, alçando o Júri ao patamar de garantia.

4.2. CARACTERÍSTICAS CONSTITUCIONAIS DO JÚRI

Em seu Artigo 5º, inciso XXXVIII, a Constituição Federal de 1988 reconhece o Júri como instituição, atribuindo-lhe competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, além de assegurar a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania dos vereditos. É mister transcrever o referido artigo da Carta Magna a fim de trazer ao leitor uma melhor compreensão do que se fala.

Preceitua a Constituição Federal de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII - e reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

Neste momento, é importante analisar de forma sucinta e objetiva as características Constitucionais uma a uma.

4.2.1. Plenitude de defesa

Em todo o processo é assegurado, às partes, a ampla defesa e o contraditório, como prevê a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LV, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Já a plenitude de defesa encontra-se prevista no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea b, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII - e reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

Alguns entendem que a ampla defesa e a plenitude de defesa são a mesma coisa, porém, a doutrina mais acertada tende a diferenciar esses dois termos, afirmando que esta última é mais ampla que a primeira.

Conforme as lições de Nucci (2016, p. 700):

A dupla previsão formulada no art. 5.º não é inútil, nem se pode considerá-la uma mera superfetação. Os vocábulos são diversos e também o seu sentido. Amplo quer dizer vasto, largo, muito grande, rico, abundante, copioso; pleno significa repleto, completo, absoluto, cabal, perfeito. O segundo é, evidentemente, mais forte que o primeiro. Assim, no processo criminal, perante o juiz togado, tem o acusado assegurada a ampla defesa, isto é, vasta possibilidade de se defender, propondo provas, questionando dados, contestando alegações, enfim, oferecendo os dados técnicos suficientes para que o magistrado possa considerar equilibrada a demanda, estando de um lado o órgão acusador e de outro uma defesa eficiente. Por outro lado, no Tribunal do Júri, onde as decisões são tomadas pela íntima convicção dos jurados, pessoas leigas, sem qualquer fundamentação, onde prevalece a oralidade dos atos e a concentração da produção de provas, bem como a identidade física do juiz, torna-se indispensável que a defesa atue de modo completo e perfeito – logicamente dentro das limitações impostas pela natureza humana.

No mesmo sentido, Távora e Alencar (2016, p. 53):

Por fim, assinale-se que a ampla defesa não se confunde com a “plenitude de defesa”, estabelecida como garantia própria do Tribunal do Júri no art. 5º, XXXVIII, “a”, CF. É que o exercício da ampla defesa está adstrito aos argumentos jurídicos (normativos) a serem invocados pela parte no intuito de rebater as imputações formuladas, enquanto que plenitude de defesa autoriza a utilização não só de argumentos técnicos, mas também de natureza sentimental, social e até mesmo de política criminal, no intuito de convencer o corpo de jurados. (grifos nossos)

Até a possibilidade de inovar na tréplica é albergada pela plenitude de defesa (BADARÓ, 2015, p. 650).

Dessa maneira, verifica-se que a plenitude de defesa não fica restrita às provas dos autos, podendo as partes apelar para o lado emocional e extraprocessual, claro que sempre pautadas pela razoabilidade e boa-fé.

4.2.2. Sigilo das votações

Visando proteger a formação da livre convicção, o sigilo garante ao jurado a vedação a qualquer constrangimento decorrente de seu voto. É também uma forma de não permitir que o jurado seja intimidado e induzido a votar contra a sua vontade.

Tendo em vista a garantia desses valores supracitados, as votações do Júri ocorrem em sala especial reservada ao juiz, ao membro do Ministério Público, ao advogado, aos jurados, e aos auxiliares da justiça. Caso não exista essa sala especial, o juiz presidente determinará que o plenário seja esvaziado para proceder à votação.

Insta salientar a importância da Lei nº 11.689/2008, que alterou a forma de apuração das votações, pois, antes da reforma, o juiz revelava todos os votos constantes na urna, o que poderia violar o sigilo caso a votação fosse unânime, pois seria consequência lógica saber o conteúdo dos votos dos jurados (LIMA, 2016 p. 1310).

Também em decorrência do sigilo, é mister que os jurados fiquem incomunicáveis, previsão contida no artigo 466, § 1º, do Código de Processo Penal. Essa medida evita que o jurado sofra influências externas em seu julgamento, ouvindo opiniões ou até mesmo influencie no julgamento dos outros, opinando para convencer outro jurado, nesse ou naquele sentido. Também não podem manter qualquer contato com o mundo exterior, seja por meio de mensagens em aparelhos eletrônicos, ou ligações e, caso seja necessário, em virtude da suspensão do julgamento, dormirá em local apropriado, que atenda as suas necessidades básicas.

Cabe ao oficial de justiça assegurar essa incomunicabilidade, atuando como um fiscal dos jurados, sempre presente nos locais onde eles se encontrarem.

Essa incomunicabilidade é restrita à causa, não abarcando assuntos diversos ao julgamento, pois não se pode exigir do jurado que fique mudo por todo o julgamento, que não raro dura horas ou até dias.

4.2.3. Soberania dos vereditos

A soberania é uma característica imprescindível ao Tribunal do Júri, pois, como afirma Rangel (2015, p. 623): “Júri, sem soberania, não é Júri”. A soberania busca dificultar que juízes togados façam revisões de mérito das decisões do Júri.

A soberania está prevista no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea c, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII - e reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

c) a soberania dos veredictos;

O Júri é a representação da vontade popular, a participação do povo nas decisões do Poder Judiciário. Da soberania, extrai-se que uma decisão tomada pelo conselho de sentença não pode ser modificada no mérito, por juízes togados, pois os jurados são os juízes naturais da causa.

Para a maioria da doutrina, ser soberana não significa que é irrecorrível, pois existem restritas hipóteses em que caberá recurso das decisões, conforme artigo 593, inciso III, do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:

a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;

b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados;

c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança;

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

§ 1  Se a sentença do juiz-presidente for contrária à lei expressa ou divergir das respostas dos jurados aos quesitos, o tribunal ad quem fará a devida retificação.

§ 2  Interposta a apelação com fundamento no III, c, deste artigo, o tribunal ad quem, se lhe der provimento, retificará a aplicação da pena ou da medida de segurança.

§ 3  Se a apelação se fundar no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

É cediço na doutrina e jurisprudência pátrias que não fere a soberania dos vereditos quando o Tribunal dá provimento à apelação com base na alínea “d” do supracitado artigo, pois haverá somente a cassação da decisão dos jurados, devendo, após isso, ser determinado novo julgamento popular.

Assim entende Lima (2016, p. 1313), quando afirma:

Não há qualquer incompatibilidade vertical entre o art. 593, III, “d”, do CPP e o art. 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição Federal. A soberania dos veredictos, não obstante a sua extração constitucional, ostenta valor meramente relativo, pois as decisões emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade. Assim, embora a competência do Júri esteja definida na Carta Magna, isso não significa dizer que esse órgão especial da Justiça Comum seja dotado de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em consequência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos. É que, em tal hipótese, o provimento da apelação, pelo Tribunal de Justiça, não importará em resolução do litígio penal, cuja apreciação remanescerá na esfera do Júri.

No mesmo sentido Badaró (2015, p. 651):

A possibilidade de o Tribunal de justiça dar provimento à apelação, para cassar a decisão dos jurados que foi “manifestamente contrária à prova dos autos” (CPP, art. 593, caput, III, d) não fere a soberania dos veredictos. A decisão dos jurados não é substituída pelo Tribunal de justiça, que se limita a cassá-la, determinando que novo julgamento seja proferido. A soberania significa que o tribunal popular dará a última palavra quanto ao mérito dos crimes de competência do júri. Entretanto, não significa que haverá um único veredicto.

Já, em oposição a esse entendimento, temos Tourinho Filho (2012, p. 153):

[...] Para o legislador constituinte, pois, o conceito de soberania saiu meio deturpado. Se o Júri é soberano, como pode o Tribunal Superior anular a sua decisão sob a alegação de que esta foi contra a prova dos autos, quando se sabe que o Júri tem inteira liberdade de julgar de acordo com sua íntima convicção? [...]

Perceba-se que a soberania restringe as hipóteses de recurso das decisões do Júri, faz com que a possibilidade de análise do mérito somente seja feita pelos jurados, portanto não se trata de sentença comum, como a de um juiz togado que poderia ser reformada ou cassada pelo tribunal ad quem.

4.2.4. Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida

A competência para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados, surge como última característica constitucional do Júri. Entende-se que essa competência é mínima e, em razão disso, não pode ser afastada nem por emenda constitucional, tratando-se de cláusula pétrea. Por ser mínima poderá a lei infraconstitucional alargar sua competência (LIMA, 2016, p. 1315).

Os crimes dolosos contra a vida estão previstos no Título I da Parte Especial do Código Penal Brasileiro, mais especificamente o Homicídio (art. 121), Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122), Infanticídio (art. 123), o Aborto e suas formas (arts 124 a 126).

Também poderão ser analisados pelos jurados, os crimes que não sejam dolosos contra a vida, mas lhe sejam conexos.

4.3. PROCEDIMENTO BIFÁSICO

O Júri é composto por duas fases. A primeira, chamada iudicium accusationis ou instrução preliminar, é feita por um juiz togado, que analisará a denúncia e colherá as provas em audiência de instrução e julgamento, momento em que averiguará a formação de culpa do acusado, por fim decidindo pela pronúncia, absolvição ou impronúncia do acusado e, caso entenda que não houve crime doloso contra a vida, desclassificará o crime.

Já a segunda fase, chamada de iudicium causae, só acontece caso o juiz tenha proferido uma decisão de pronúncia submetendo o acusado a julgamento popular, momento em que será julgado o mérito da causa, colocando fim ao julgamento do caso.

Assim, faz-se necessária uma análise das decisões a serem tomadas pelo juiz na primeira fase do Júri. É o que se fará em seguida.

4.4. DECISÕES A SEREM TOMADAS NA 1ª FASE

Na primeira fase do Júri, o juiz sumariante poderá proferir as seguintes decisões desclassificar o delito, absolver, impronunciar ou pronunciar o acusado.

4.4.1. 2.4.1 Desclassificação

Caso o juiz se convença de que o fato narrado na exordial acusatória constitui infração penal, que não seja crime doloso contra a vida, deverá desclassificar a imputação, nos exatos moldes do artigo 419 do Código de Processo Penal, in verbis.

Art. 419. Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no § 1o do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja.

Caso o magistrado seja competente para julgar a causa, tomará para si o julgamento do mérito, caso não o seja, deverá remeter os autos para quem (o juiz) o seja.

Vale lembrar que a desclassificação, que encerra o procedimento do Júri, é a que ocorre quando não há crime doloso contra a vida, pois, caso o juiz entenda que em verdade houve outro crime doloso contra a vida, deverá pronunciar o acusado, submetendo a causa ao julgamento pelo conselho de sentença, formado pelos jurados.

A desclassificação tem direta ligação com o livre convencimento motivado, sendo possível até que o juiz desclassifique o crime para infração mais grave.

4.4.2. Absolvição sumária

Diferente do procedimento comum ordinário, no Júri a absolvição sumária só ocorrerá após a audiência de instrução realizada na primeira fase (iudicium accusationis). Isso se dá em razão de que os verdadeiros juízes naturais da causa são os jurados.

Nesse sentido, leciona Lima (2016, p. 1318):

No procedimento do júri, a absolvição sumária também é possível, porém só poderá ocorrer após a audiência de instrução. Nesse sentido, o art. 411, § 9º, do CPP estabelece que, encerrados os debates na audiência de instrução, o juiz proferirá a sua decisão, ou o fará em 10 (dez) dias, sendo que a absolvição sumária é uma das 4 (quatro) possíveis decisões que pode ser então proferida, além da pronúncia, desclassificação e impronúncia.

Em discordância com esse entendimento, Dezem (2016, p. 392) citando Badaró, entende que no Júri existem duas hipóteses de absolvição sumária, aplicando o artigo 397 do Código de Processo Penal aos processos de competência do Tribunal do Júri:

Badaró sustenta ser possível esta aplicação do art. 397 na medida em que o § 4.º do art. 394 do CPP determina a aplicação da absolvição sumária do art. 397 a todos os ritos de primeiro grau. Além disso, por economia processual, não há sentido em se esperar até a audiência de instrução para a aplicação do art. 415 do CP.

Os argumentos apresentados por Badaró são, a meu ver, irretocáveis. Acrescento, porém, ainda outro. Quanto ao argumento de que parte das hipóteses do art. 415 é similar ao art. 397 é preciso que se entenda que os juízos de cognição são distintos.

Embora adote o mesmo posicionamento de Gustavo Badaró, de que existe a possibilidade de aplicação do artigo 397 do Código de Processo Penal ao rito do Júri, Dezem (2016, p. 393) também cita decisão do STJ contrária ao seu entendimento:

O STJ contudo entendeu pela não aplicação da absolvição sumária do art. 397 do CPP argumentando que a especialidade do procedimento do Tribunal do Júri afastaria esta possibilidade, posição que não concordamos:

"1. Os artigos 406 e seguintes do Código de Processo Penal regulamentam o procedimento a ser seguido nas ações penais deflagradas para a apuração de crimes dolosos contra a vida, assim, rito especial em relação ao comum ordinário, previsto nos artigos 394 a 405 do referido diploma legal.

2. Por conseguinte, e em estrita observância ao princípio da especialidade, existindo rito próprio para a apuração do delito atribuído ao recorrente, afastam-se as regras do procedimento comum ordinário previstas no Código de Processo Penal, cuja aplicação pressupõe, por certo, a ausência de regramento específico para a hipótese.

3. Se as normas que regulam o processo e o julgamento dos crimes dolosos contra a vida determinam que o exame da viabilidade de absolvição sumária do réu só deve ocorrer após o término da fase instrutória, não há dúvidas de que deve ser aplicado o regramento específico, pois, como visto, as regras do rito comum ordinário só têm lugar no procedimento especial quando nele houver omissões ou lacunas." (STJ, RHC 52086/MG, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 18.12.2014)

Perceba que a decisão do Superior Tribunal de Justiça tem fulcro na especialidade do procedimento do Tribunal do Júri.

Sendo assim, verifica-se que mesmo com a discussão abordada acima, é possível verificar que nos casos de competência do Tribunal do Júri, o termo absolvição sumária é adotado para a absolvição que ocorrerá na primeira fase do Júri, pois os juízes naturais dos crimes dolosos contra a vida são os jurados, nesse entendimento, Rangel (2015, p. 674):

Trata-se de um verdadeiro julgamento antecipado do caso penal no processo penal brasileiro, pois o juiz natural da causa é o Tribunal do Júri, porém, nesse caso, o juiz singular (presidente do Tribunal do Júri, que preside o processo), verificando a presença dos requisitos previstos no are. 415 do CPP, antecipa o julgamento e dá ao réu o status libertatis.

Trata-se de decisão em que o juiz deverá estar convicto de que ocorreu alguma das hipóteses do artigo 415 do Código de Processo Penal:

Art. 415 O juiz, fundamentadamente, absolverá o acusado quando>:

a) provada a inexistência do fato;

b) provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

c) o fato não constituir infração penal;

d) demonstrada causa de isenção de pena ou exclusão de crime

Parágrafo único: não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput art. 26 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva

Da simples análise do artigo supra, verifica-se a dificuldade da ocorrência da absolvição sumária, visto que deve haver um juízo de certeza para que seja proferida uma sentença de absolvição sumária.

Essa decisão analisa o mérito e produz coisa julgada material, exceto no que tange à inimputabilidade, isso significa que o réu não poderá ser processado pelo mesmo fato novamente.

4.4.3. Impronúncia

Diferente do que ocorre quando da absolvição sumária, na impronúncia o juiz não analisa o mérito. O artigo 414 do Código de Processo Penal preceitua:

Art. 414. Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz fundamentadamente impronunciará o acusado:

Parágrafo único: enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova.

Como prova nova, deve ser considerada a que traz novas informações, novos dados ao processo, pois, se após a impronúncia os fatos permanecerem inalterados, não poderá ser oferecida nova denúncia.

Nas lições de Lima (2016, p. 1322):

A decisão de impronúncia é tomada com base na cláusula rebus sic tantibus, ou seja, mantidos os pressupostos fáticos que a ela serviram de amparo, esta decisão deve ser mantida; modificando-se o panorama probatório, é possível o oferecimento de nova denúncia ou queixa, desde que ainda não tenha ocorrido a extinção da punibilidade (CPP, art. 414, parágrafo único).

Essa decisão não analisa o mérito e, consequentemente, não produz coisa julgada material. Isso significa que o réu poderá ser processado pelo mesmo fato novamente, mas desde que seja preenchido o requisito da prova nova.

4.4.4. Pronúncia

A decisão de pronúncia encerra a primeira fase do Júri. Entende-se que com a pronúncia, estar-se-á declarando a procedência da acusação e submetendo o réu ao julgamento popular. A pronúncia tem previsão legal no artigo 413 do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 413 O juiz, fundamentadamente pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

Até antes das modificações feitas pela Lei 11.689/06, a pronúncia era legalmente referenciada como sentença.

A maioria da doutrina entende que a pronúncia tem natureza de decisão interlocutória mista, que é mero juízo de admissibilidade da acusação, pois, embora encerre uma fase, não põe fim ao processo, não resolve o mérito da causa e também não extingue o feito sem resolução do mérito.

Nesse sentido, alterando o pensamento em razão da mudança do termo “sentença” por “decisão interlocutória”, Tourinho Filho (2012, p.163):

Na pronúncia, embora o juiz se limite a encerrar a primeira etapa do procedimento do Júri sem julgar o mérito, fica contudo encerrada a primeira fase, daí falar-se em decisão interlocutória mista não terminativa. Se em edições anteriores usávamos a expressão “sentença”, assim o fizemos por ser ela empregada no texto do revogado §1º do art. 408 do CPP. [...]

Essa denominação de “decisão interlocutória”, que somente declara a admissibilidade da acusação, tem sua razão de ser e será abordado em momento oportuno no item 3.1.

Embora não haja necessidade de provas robustas, para a pronúncia é necessário um lastro probatório mínimo, mais forte do que o necessário para o recebimento da denúncia.

Semeando esse entendimento, Távora e Alencar (2016, p.1694):

Apenas há juízo de admissibilidade da acusação. Enquanto para o recebimento da denúncia se faz preciso um suporte probatório mínimo, para a pronúncia se requer um suporte probatório mais robusto, médio, que, no entanto, não é equivalente ao conjunto probatório que se exige para a condenação. Na decisão de pronúncia não há juízo de certeza do cometimento do crime, porém é mister que haja possibilidade da acusação, ou seja, o contexto processual deve evidenciar que os fatos estão aptos ao julgamento pelos leigos, seja para absolver ou condenar o acusado.

A materialidade do fato deve estar comprovada para que seja admitida a pronúncia, aqui não se permite haver dúvidas. A doutrina e jurisprudência pátrias são convergentes nesse ponto.

Lima (2016, p. 1336):

Para que o acusado seja pronunciado, deverá o juiz sumariante estar convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. Como se denota da própria redação do art. 413, caput, em relação à materialidade do crime, deve o juiz estar convencido. Há necessidade, portanto, de um juízo de certeza. É bem verdade que os jurados podem, posteriormente, vir a absolver o acusado no plenário do Júri por entenderem não estar provada a materialidade do delito. Porém, o juiz sumariante não pode permitir o julgamento de alguém pelo Júri sob a mera possibilidade de ter havido um crime doloso contra a vida. (Grifos nossos)

No mesmo sentido Badaró, citando Marques (2015, p. 660):

Quanto ao primeiro requisito - materialidade do fato -, para que o acusado seja pronunciado, é necessário que haja prova plena da materialidade delitiva. Como observa Frederico Marques: “A prova do crime, que se exige para a pronúncia, não é diversa da prova que se exige para a condenação”. Isto é, a prova do corpo de delito deve ser cabal e fora de dúvida. Se houver dúvida sobre a materialidade, o art. 414, caput, determina que o acusado deve ser impronunciado.

Ainda, nessa mesma linha, Oliveira (2015, p. 731):

Na decisão de pronúncia, o que o juiz afirma, com efeito, é a existência de provas no sentido da materialidade e da autoria. Em relação à materialidade, a prova há de ser segura quanto ao fato. [...]

Já quanto à autoria ou participação é necessário que existam indícios suficientes, ou seja, deve haver um mínimo de lastro probatório que permita deduzir que o acusado é o autor do fato.

Nas lições de Lima (2016, p. 1336):

No tocante à autoria, todavia, exige o Código de Processo Penal apenas a presença de indícios suficientes de autoria. Em outras palavras, em relação à autoria ou participação, não se exige que o juiz tenha certeza, bastando que conste dos autos elementos informativos ou de prova que permitam afirmar, no momento da decisão, a existência de indício suficiente, isto é, a probabilidade de autoria.

Convergindo com esse entendimento, Oliveira (2015, p. 731):

[...]Já em relação à autoria, bastará a presença de elementos indicativos, devendo o juiz, tanto quanto possível, abster-se de revelar um convencimento absoluto quanto a ela. É preciso considerar que a decisão de pronúncia somente deve revelar um juízo de probabilidade e não o de certeza.

Na pronúncia, o ponto culminante para o presente trabalho é quando o juiz se encontra em dúvida quanto à presença ou não de indícios suficientes de autoria. A doutrina e jurisprudência, ainda majoritárias, entendem que, em havendo dúvida, deve o magistrado utilizar-se do in dubio pro societate (na dúvida em favor da sociedade) e pronunciar o réu, submetendo-o ao julgamento popular.

Com esse pensamento, afirma Capez (2016, p. 683):

Na fase da pronúncia vigora o princípio do in dubio pro societate, uma vez que há mero juízo de suspeita, não de certeza. O juiz verifica apenas se a acusação é viável, deixando o exame mais acurado para os jurados. Somente não serão admitidas acusações manifestamente infundadas, pois há juízo de mera prelibação.

Também entendem, assim, Távora e Alencar (2016, p. 1695):

Note-se que vigora, nesta fase, a regra do in dubio pro societate: existindo possibilidade de se entender pela imputação válida do crime contra a vida em relação ao acusado, o juiz deve admitir a acusação, assegurando o cumprimento da Constituição, que reservou a competência para o julgamento de delitos dessa espécie para o tribunal popular. É o júri o juiz natural para o processamento dos crimes dolosos contra a vida. Não deve o juiz togado substitui-lo, mas garantir que o exercício da função de julgar pelos leigos seja exercido validamente. Todavia, o in dúbio pro societate deve ser aplicado com prudência, para evitar que acusados sejam pronunciados sem um suporte probatório que viabilize o exame válido da causa pelos jurados.

Bomfim (2012, p. 792) citando decisão do STJ, entende:

[...] Na dúvida, cabe ao juiz pronunciar, encaminhando o feito ao Tribunal do Júri, órgão competente para o julgamento da causa. Nessa fase vigora a máxima in dubio pro societate (STJ, HC 106.550/SP, 5ª T., Rel. Felix Fischer, DJe, 23.3.2009).

Importante lembrar que a pronúncia deve ser feia de forma comedida, sob pena de adentrar no mérito e usurpar a competência do Júri, também delimita quase tudo o que vai ser levado ao plenário.

É assim que se chega ao objetivo do trabalho, analisar o cabimento de tal brocardo (in dubio pro societate) na decisão de pronúncia. Afinal, diante de todo o exposto, seria justo admitir que a dúvida sobre a suficiência de indícios leve o acusado ao julgamento popular?

5. IN DUBIO PRO SOCIETATE EM DETRIMENTO DO IN DUBIO PRO REO

Neste capítulo far-se-á a análise do problema jurídico proposto inicialmente, que é sobre a viabilidade da aplicação do in dubio pro societate na decisão de pronúncia. Tal brocardo é uma criação que se perpetuou com o tempo, acabando por se tornar uma regra a ser seguida na decisão de pronúncia.

O surgimento desse brocardo é abordado por Campos (2006, p. 18):

Com base na terminologia infeliz do Código ao mencionar em seu artigo 408 que bastam, para a decisão de pronúncia, “indícios de autoria”, criou-se um mito, o do in dubio pro societate, qual seja: se, terminada a instrução da primeira fase do rito escalonado do Júri, houver dúvida a respeito da autoria, o juiz deve remeter o caso para que seja decidido pelo tribunal leigo, preservando, assim, a competência constitucional do Júri.

Acontece que a aplicação rotineira do brocardo in dubio pro societate tornou-se uma regra, em virtude da antiga redação do artigo 408 do Código de Processo Penal e, mesmo diante de um dispositivo tão claro quanto é o atual artigo 413 do Código de Processo Penal, a jurisprudência e doutrina dominantes tendem a insistir que a dúvida deve militar contra o acusado, que é presumido inocente, com a justificativa de que deve prevalecer o interesse da sociedade.

A primeira fase do Júri tem semelhança com o procedimento ordinário comum, usado para os demais crimes dolosos. Em síntese,tem seu início com o recebimento da denúncia, segue com a citação do acusado, sua resposta, réplica, se for o caso, possibilidade de absolvição sumária, audiência de instrução e julgamento, alegações finais e termina com a decisão de pronúncia, impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação.

Após a instrução da iudicium accusationis, estando o juiz convencido de que os indícios suficientes de autoria estão presentes, deverá pronunciar o réu, com a devida fundamentação deixando explícitas as razões que o levaram a constatar a presença de tais indícios suficientes. Badaró (2015, p. 662), em suas precisas lições ensina:

A decisão de pronúncia, como de resto qualquer decisão judicial, deve ser motivada, por expresso mandamento constitucional (CR, art. 93, IX), O art. 413, § 1°, do CPP dispõe que o juiz deverá indicar quais os elementos de prova existentes nos autos que caracterizam a “materialidade do fato” e quais representam os “indícios suficientes de autoria”. Ou seja, deve indicar os elementos de prova dos autos que lhe permitem concluir que há certeza da materialidade e probabilidade de autoria.

Claro, o juiz deverá fundamentar com extrema cautela, pois não poderá adentrar no mérito, emitindo juízo de valor e pré-condenando o acusado, sob pena de usurpar a competência constitucional dos juízes naturais da causa, os jurados. E é nesse sentido que Lima (2016, p. 1338) preleciona:

Sem embargo da necessidade de fundamentação da decisão judicial de pronúncia, sob pena de nulidade absoluta (CF, art. 93, IX), deve o juiz sumariante (ou Desembargadores, no julgamento de eventual recurso) ter extrema cautela para que não o faça nos mesmos moldes que uma sentença condenatória. Deve o magistrado se limitar a apontar a prova da existência do crime e os indícios suficientes de autoria ou participação, valendo-se de termos sóbrios e comedidos, para que não haja indevida influência no animus judicandi dos jurados, que podem ser facilmente influenciados por uma pronúncia dotada de excessos.

Se o juiz estiver convencido de que não há os indícios suficientes de autoria, deverá impronunciar o réu, mas não sem antes fundamentar sua decisão, rebatendo todas as alegações feitas e indicando as razões de seu entendimento, nos exatos moldes do artigo 414 do código de Processo Penal, in verbis:

Art. 414. Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.

Por outro lado, para absolver sumariamente o acusado, é necessário ter a certeza de que estão presentes as hipóteses do artigo 415 do Código de Processo Penal.

Nesse sentido, Nucci (2016, p. 728):

É preciso ressaltar que somente comporta absolvição sumária a situação envolta por qualquer das situações suprarreferidas quando nitidamente demonstradas pela prova colhida. Havendo dúvida razoável, torna-se mais indicada a pronúncia, pois o júri é o juízo competente para deliberar sobre o tema.

Agora, se o juiz, mesmo após a instrução do processo, encontrar-se em dúvida, ao invés de impronunciar ou absolver o acusado, de acordo com o in dubio pro societate, deverá pronunciar e mandá-lo a julgamento popular. Essa postura, que é requerida do magistrado, é extremamente prejudicial ao acusado, pessoa que tem a seu favor o benefício da dúvida.

Em discordância com a aplicação do in dubio pro societate, Dezem (2016, p. 394):

Discordamos, contudo, desta orientação. A lei exige certeza da materialidade e indícios suficientes de autoria. Caso paire no magistrado dúvidas quanto à materialidade ou dúvida quanto à presença dos indícios suficientes de autoria, deve o juiz impronunciar o acusado. O in dubio pro reo não permite outra forma de julgamento. [...]

No mesmo sentido, Badaró (2015, p. 661):

[...] No entanto, se estiver em dúvida se estão ou não presentes os indícios suficientes de autoria, deverá impronunciar o acusado, por não ter sido atendido o requisito legal. Aplica-se, pois, na pronúncia, o in dubio pro reo.

Ainda, Lopes Jr.(2014, p.1026) afirmando que é inadmissível a pactuação de juízes com o in dubio pro societate:

Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário. Também é equivocado afirmar-se que, se não fosse assim, a pronúncia já seria a “condenação” do réu. A pronúncia é um juízo de probabilidade, não definitivo, até porque, após ela, quem efetivamente julgará são os jurados, ou seja, é outro julgamento a partir de outros elementos, essencialmente aqueles trazidos no debate em plenário. Portanto, a pronúncia não vincula o julgamento, e deve o juiz evitar o imenso risco de submeter alguém ao júri, quando não houver elementos probatórios suficientes (verossimilhança) de autoria e materialidade. A dúvida razoável não pode conduzir a pronúncia.

Desta feita, eis alguns pontos de extrema relevância que, a seguir, serão analisados em conjunto com os argumentos que refutam sua aplicação.

5.1. A inofensiva pronúncia

As decisões proferidas por um juiz comum, ou por órgão colegiado, na maioria das vezes podem ser analisadas novamente em grau de recurso, o que não acontece com os casos em que são levados a julgamento popular, pois, as decisões dos jurados são soberanas, e sigilosas, impedindo que sejam revistas, salvo as restritas hipóteses do artigo 593, III do Código de Processo Penal.

Nesse sentido Rangel (2015, p. 653) assevera:

A desculpa de que os jurados são soberanos não pode autorizar uma condenação com base na dúvida. É bem verdade que há o recurso da decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, d, do CPP), mas também é verdade que, se for dado provimento ao recurso, o réu vai a novo júri e, se os jurados condenarem-no novamente, somente a revisão criminal, nas hipóteses taxativamente previstas no art. 621 do CPP, pode socorrê-lo.

A decisão de pronúncia tem, sim, extrema relevância, pois é ela que submete o acusado ao julgamento soberano dos jurados.

Ocorre que, quando se trata de Júri, na atual sistemática, a tendência é menosprezar essa decisão a fim de minimizar os danos que ela verdadeiramente causa ao indivíduo.

Bretas (2010, p. 19) adverte que o menosprezo da pronúncia é o primeiro passo do que ele considera uma armadilha dogmática:

[…] Em primeiro lugar, quando se afirma que a sentença de pronúncia tem natureza declaratória, a tendência natural é minimizar a sua importância. Afinal, trata-se apenas de uma “inofensiva” decisão interlocutória, incapaz de gerar grandes estragos. Assim, não haveria, em tese, motivos para se preocupar com esta decisão juridicamente neutra e “indolor” ao acusado que, porventura, fosse “declarado” ao júri. Deste modo, a primeira tendência é esvaziar o conteúdo e o peso natural da pronúncia e, via de consequência, banalizá-la.

A pronúncia é considerada decisão interlocutória mista não terminativa, simplesmente pelo fato de não analisar o mérito e, em razão disso, entende-se, que nessa fase, vigora o in dubio pro societate. A partir daí, afirma-se que não está se decidindo o mérito a fim de dispensar a análise do conjunto probatório.

Com a aplicação do in dubio pro societate, a banalização da pronúncia se instaura. O juiz sumariante, diante da dúvida, decidirá de acordo com o “interesse da sociedade”, alegando que não pode adentrar no mérito da causa, pois, não é seu juiz natural. Os jurados, por sua vez, como juízes naturais da causa, decidirão abrigados pela íntima convicção. Observa-se, que por certo, nas causas de competência do Júri, o acusado é relegado a último plano, seus interesses são deixados de lado, em detrimento de um “interesse maior”, que, na verdade, em nada interessa para a sociedade. Acaba que em um julgamento sem provas suficientes, o acusado é deixado à mercê da boa vontade dos jurados.

5.2. Interpretação de indícios “suficientes”

Antes da reforma trazida pela lei 11.689 de 2008, o artigo 408 do Código de Processo Penal, previa os requisitos para que fosse proferida a pronúncia:

Art. 408. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento.

A lei 11.689/08, além de modificar a numeração do artigo da pronúncia, ainda alterou significativamente seus requisitos, requerendo não só indícios, mas sim, que estes demonstrem suficiência. Eis a previsão insculpida no artigo 413 do Código de Processo Penal:

Art. 413 O juiz fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (grifos nossos).

Da própria leitura do artigo supratranscrito, diante do adjetivo “suficientes”, é possível verificar a inaplicabilidade de tal brocardo in dubio pro societate.

Questão de extrema importância é a interpretação dos requisitos da pronúncia, especificamente o que o Código de Processo Penal quis mostrar com os termos “indícios suficientes”.

O artigo 239 do Código de Processo Penal informa o que deve ser considerado como indício:

Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.

O Código de Processo Penal é claro em prever que, para a decisão de pronúncia, é necessário o convencimento da materialidade do fato e a presença de indícios suficientes de autoria.

Mas, afinal, o que realmente consubstanciaria os “indícios suficientes”? Perceba que meros indícios não são aptos a ensejar a pronúncia, mas, sim, indícios suficientes.

Badaró (2015, p. 661) se encarrega de deixar isso claro em suas lições:

Por seu turno, quanto aos “indícios de autoria”, não basta qualquer indício, e sim “indícios suficientes de autoria”. De qualquer forma, embora se exija um conjunto probatório que indique, com alto grau de probabilidade, que foi o acusado o autor do delito, não se exige a certeza da autoria.

Lins e Silva afirma que a palavra suficiente não deixa dúvidas sobre o seu sentido e tem sua razão de estar ali e, citando Aurélio Buarque de Holanda, ensina:

Veja-se que o Código de Processo Penal só autoriza a pronúncia quando há indícios suficientes: o adjetivo não está aí colocado por mero capricho ou por enfeite de redação do legislador. Suficiente, segundo o Aurélio, é aquilo que satisfaz, que é bastante, apto ou capaz, no caso, de condenar (LINS E SILVA 2001).

Suficiente não deixa dúvida, ao contrário, expurga toda ela do processo. Se houve dúvida sobre a suficiência de indícios de autoria, é porque o acusador, mesmo dispondo de todo o aparato persecutório do Estado, não se desincumbiu de seu ônus de provar o que alegou, sendo assim não pode ter a sua pretensão atendida.

Nessa vertente, Rangel (2015, p. 653):

Entendemos, como já deixamos claro no item 3.2.3, supra, que, se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção.

Nesse sentido, Pitombo (2003, p. 13) entende ser absurdo afirmar que, se há dúvida, deve-se decidir em prol da sociedade:

É fácil, na seqüência, perceber que a expressão in dubio pro societate não exibe o menor sentido técnico. Em tema de direito probatório, afirmar-se “na dúvida, em favor da sociedade” consiste em absurdo lógico-jurídico. Veja-se: em face da contingente dúvida, sem remédio, no tocante à prova — ou melhor, imaginada incerteza — decide-se em prol da sociedade. Dizendo de outro modo: se o acusador não conseguiu comprovar o fato, constitutivo do direito afirmado, posto que conflitante despontou a prova, então se soluciona a seu favor, por absurdo. Ainda porque não provou ele o alegado, em face do acusado, deve decidir-se contra o último. Ao talante, por mercê judicial o vencido vence, a pretexto de que se favorece a sociedade: in dubio contra reum.

Na primeira fase do Júri, o Ministério Público almeja a pronúncia. A instrução feita pelo juiz nessa fase serve exatamente para que o acusador se valha de todos os meios legais de que dispõe para comprovar que existem indícios suficientes do que alegou na exordial acusatória. Se o acusador almeja a pronúncia, mas não se desonerou de seu ônus, nada mais justo do que não ver seu pleito ser acolhido.

Sabe-se que não é necessária a certeza da autoria, pois, se assim fosse, haveria um pré-julgamento do acusado, fato que por si só usurparia a competência do Júri e comprometeria toda a essência do julgamento popular. Desta feita, o juiz sumariante, deve restringir-se a apontar os indícios suficientes de autoria e deixar que o julgamento do mérito seja feito pelos jurados. Nesse sentido, preleciona Badaró (2015, p. 661):

[...] Quanto à autoria, o requisito legal não exige a certeza, mas sim a probabilidade da autoria delitiva: deve haver indícios suficientes" de autoria. É claro que o juiz não precisa ter certeza ou se convencer” da autoria. [...]

Buscando o espírito das leis, Montesquieu (1748, p. 91), com extremada precisão, ensina: “[...] Nos governos republicanos é da natureza da constituição que os juízes observem literalmente a lei. Não existe um cidadão contra o qual se possa interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida”.

Embora a certeza não seja exigida, não há como interpretar de maneira diversa o requisito legal “suficientes” para onerar, injustamente, o acusado que já tem contra si um gravame gerado pelo processo, além de não dispor de meios necessários para cessar a sanha persecutória do Ministério Público. O juiz deve demonstrar a suficiência de indícios para fundamentar corretamente a decisão de pronúncia justa, que, embora seja considerada uma decisão interlocutória, deve obediência aos requisitos impostos pela lei.

5.3. Ausência de previsão

Vale ressaltar que o in dubio pro societate não tem previsão legal alguma no ordenamento jurídico brasileiro. É mera criação doutrinária incompatível com a ordem constitucional vigente, que, como vimos, prima pela dignidade da pessoa humana.

Coadunando esse entendimento, Choukr (2014, p. 837):

Tal "princípio" não existe fora do seu mero emprego retórico (e este emprego existe a saciedade), e ele nada mais é que fruto direto das manipulações ideológicas que alteraram as estruturas do Tribunal do Júri e que afastaram o juiz natural do momento de admissibilidade. Como um funcionário burocrático do Estado é o responsável por este momento, nada mais lógico que onerar o acusado (e o próprio Estado) com a dilação elástica do procedimento, deixando que tudo se resolva em plenário.

Também para Nucci (2016, p. 716), tal brocardo não tem aplicação legal, nem constitui um princípio, em verdade sua aplicação é restrita ao campo didático.

Observa-se que tal brocardo colide frontalmente com a presunção de inocência, com o in dubio pro reo e a dignidade da pessoa humana, três princípios basilares do Estado de Direito, sendo que esse último, como visto em tópico supra, é alçado ao patamar de fundamento da República, o que, ao certo, lhe imprime especial importância e, quando em conflito com outra previsão ou entendimento antagônico, deve prevalecer.

Refutando o in dubio pro societate em razão da presunção de inocência, Tourinho Filho (2013, p. 763):

Afirmar, simplesmente, que a pronúncia é mera admissibilidade de acusação e que estando o Juiz em dúvida, aplicar-se-á o princípio do in dubio pro societate é desconhecer que num País cuja Constituição adota o princípio da presunção de inocência torna-se heresia sem nome falar em in dubio pro societate.

Coadunando com esse entendimento, Pitombo (2003, p. 13) leciona: “Subjacente à assertiva in dubio pro societate acha-se o vedado procedimento de ofício e a quebra da denominada presunção de inocência (arts. 5 º, inc. LVII, e 129, inc I, da Constituição da República)”.

No mesmo sentido, Lima (2016, p. 599):

Como já foi dito, da regra de julgamento do in dubio pro reo decorrente do princípio da presunção de inocência, tem-se que o ônus da prova recai precipuamente sobre o Ministério Público ou sobre o querelante. A inversão do ônus da prova significaria, portanto, adotar a regra contrária: in dubio pro societate ou in dubio contra reum. Diante da hierarquia constitucional do princípio da presunção de inocência, forçoso é concluir que nenhuma lei poderá, então, inverter o ônus da prova com relação à condenação penal, sob pena de ser considerada inconstitucional.

Ora, se nem a lei poderia inverter esse “status” de inocência do acusado, quiçá um brocardo que contraria a ordem constitucional vigente. Tal criação doutrinária revela seu caráter desumano e prejudicial ao Estado Democrático de Direito, que ao submeter à sorte a vida de uma pessoa que será julgada e não se preocupa se um inocente pode ser condenado.

5.4. Interesse da sociedade

Os defensores da aplicação do in dubio pro societate, no momento da decisão de pronúncia, fundamentam-no na ilusória ideia de que o interesse da sociedade deve prevalecer sobre o individual.

Essa justificação é característica do sistema inquisitório e é lembrada por Távora e Alencar (2016, p. 23): “No sistema inquisitivo (ou inquisitório), permeado que é pelo princípio inquisitivo, o que se vê é a mitigação dos direitos e garantias individuais, em favor de um pretenso interesse coletivo de ver o acusado punido”.

Note que supostamente o interesse coletivo de ver o acusado punido a qualquer custo é o que fundamenta a persecução desse sistema inquisitório que, como já observado no presente trabalho, não é mais adotado no Brasil, visto ser incompatível com o sistema constitucional vigente.

Neste ponto, vale ressaltar que o indivíduo, que está sendo acusado, também faz parte da sociedade; é igual a todos os outros, afinal, é essa a razão de ser da República. Montesquieu (1748, p. 91) ensina em bom tom sobre a igualdade e a importância dos homens em uma República: “Os homens são todos iguais no governo republicano; são iguais no governo despótico: no primeiro, porque são tudo; no segundo, porque não são nada”.

Em uma República, cada homem tem sua importância, não se deve retirar essa característica de uma pessoa, nem mesmo quando ela se encontra acusada de um crime; mesmo nessa posição ela ainda é igual às outras, é digna, como as demais e merece ser tratada como tal. Observe que não são somente os culpados que são julgados.

Se há dúvidas, um inocente pode ser condenado, o que é inaceitável em um Estado Democrático de Direito, visto que, além de um inocente preso, ter-se-á um culpado solto. Pronunciar, quando há dúvida, não atende o interesse da sociedade, pelo contrário, caso um inocente seja condenado, o prejuízo será duplo. Não se pode permitir que se instaure esse quadro de injustiça.

5.5. Intima convicção e ausência de provas

Embora os jurados decidam baseados na íntima convicção, isso não significa que devem julgar sem provas, devem sim, ter a sua disposição, provas suficientes para que mesmo que intimamente possam fundamentar sua decisão.

Sobre a necessidade de um conjunto probatório suficiente, Nucci (2016, p. 716):

[...] Em suma, não devem seguir a júri os casos rasos em provas, fadados ao insucesso, merecedores de um fim, desde logo, antes que se possa lançar a injustiça nas mãos dos jurados; merecem ir a júri os feitos que contenham provas suficientes tanto para condenar como para absolver, dependendo da avaliação que se faça do conjunto probatório. [...]

O conselho de sentença, que é formado por sete jurados leigos, é influenciado por diversos sentimentos internos. Esses julgamentos pelos pares não seguem as leis das ciências exatas, estão sujeitos ao erro. A propósito, Montesquieu (1748, p. 34) ensina de maneira magistral:

O homem, como ser físico, é tal como os outros corpos, governado por leis invariáveis. [...] Cumpre que ele se oriente e, entretanto, é um ser limitado; está sujeito, como todas as inteligências finitas, à ignorância e ao erro, e perde ainda os frágeis conhecimentos que possui; torna-se, como criatura sensível, sujeito de mil paixões. Tal ser poderia a todo instante, esquecer seu criador.

Em verdade o que deveria ser julgado pelos jurados seria o fato, porem, nem sempre é assim que acontece e Rangel (2015, p. 637) chama atenção sobre o convencimento do jurado, afirmando que a pessoa do acusado, não deveria, mas pode influenciar no julgamento dos jurados:

Contudo, essa não é a regra no Tribunal do Júri, onde a pessoa do réu influencia na decisão dos jurados e o que se leva em conta são seus aspectos físicos, sua posição na sociedade,sua profissão, seus antecedentes criminais, enfim tudo, menos o fato.

O jurado julga pelo que sente, pelo que vê, porém, precisa de subsídios para, como um verdadeiro juiz, formar convencimento sobre determinado fato que lhe é apresentado. A íntima convicção não exclui o dever de fundamentar mesmo que intimamente. Além se ser o juiz natural da causa, o jurado também deve ter a consciência de que está fazendo justiça.

5.6. Lavar as mãos como Pilatos ou atuar como um filtro?

A Bíblia Sagrada, no Evangelho de Mateus (27:24), narra a história do que talvez tenha sido o maior julgamento popular já conhecido, o de Jesus de Nazaré:

Quando Pilatos percebeu que não estava obtendo nenhum resultado, mas, ao contrário, estava se iniciando um tumulto, mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão e disse: "Estou inocente do sangue deste homem; a responsabilidade é de vocês".

Ao enviar um presumido inocente a julgamento indistintamente, sem um mínimo probatório, retirando-lhe a dignidade, o juiz age como Pilatos, nesse sentido:

O juiz lava a mão como Pilatos e entrega o acusado (que ele não condenaria) aos azares de um julgamento no Júri, que não deveria ocorrer, pela razão muito simples de que o Tribunal de Jurados só tem competência para julgar os crimes contra a vida quando este existe, há prova de autoria ou participação do réu e não está demonstrada nenhuma excludente ou justificativa. (LINS E SILVA, 2001).

Tourinho Filho (2013, p. 762), também, faz essa observação, afirmando que agir como Pilatos não é ser Juiz:

Ao invés, quando da pronúncia, se o Juiz não estiver seguro de que a condenação é de rigor, cumpre-lhe impronunciar ou absolver o réu, conforme o caso. Lavar as mãos como Pilatos e permitir que o réu seja submetido a um julgamento soberano – em que muitas vezes, dependendo dos jurados, da eloquência do Promotor, ou do Advogado do assistente da Acusação, que podem exercer certo fascínio – não é ser Juiz

Curiosa e interessante é a observação que é feita por Rangel (2015, p. 617), relacionando a simbologia religiosa com o Júri:

Em regra, em todo plenário do tribunal do júri, há a imagem de Jesus Cristo pregado na cruz simbolizando essa máxima. A imagem representa o caminho que deve ser seguido para chegarmos à verdade: o do amor, o do sentimento mais puro que deve existir no seio do coração dos homens. Razão pela qual os jurados juram examinar com imparcialidade e a decidir de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça (art. 464 do CPP).

Ocorre que a finalidade do procedimento bifásico acaba por ser esquecida. As duas fases do Júri não estão ali por mero acaso. Júri não é brincadeira, não é jogo de azar, em verdade o tema discutido ali é deveras importante. Trata-se de vidas, seja a que se esvaiu ou quase se esvaiu, seja a que está prestes a seguir um caminho de segregação.

Assim, Campos (2006, p. 18) alerta sobre a importância e a seriedade do procedimento bifásico:

Analisando-se a finalidade do nosso procedimento do Júri, chegamos à conclusão que o rito só é escalonado em duas fases porque o legislador entendeu que remeter alguém a julgamento por seus pares não é um passeio dominical, mas algo muito sério, constrangedor ao extremo para o réu, que ocupa o banco da ignomínia e, porque não, constrangedor também para a sociedade, que vê um integrante seu em posição vexatória, expondo até às vísceras as mazelas daquele agrupamento humano.

Em alguns momentos, o magistrado se depara com situações em que o anseio popular contraria os preceitos da Constituição e é sabido que as decisões do Poder Judiciário devem sempre atentar-se ao interesse da sociedade, porém, em seu voto no julgamento da ADPF 347 MC/DF, sobre o sistema prisional brasileiro, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, faz uma advertência importante sobre a opinião pública, pois, embora ela seja muito importante, não tem diploma de bacharel em Direito:

Todavia, essa atenção não pode implicar desprezo aos mais relevantes princípios e regras da Carta Federal. A opinião pública não possui diploma de bacharel em Direito. Como destaquei no julgamento no qual o Supremo assentou a aplicação da anualidade eleitoral à Lei da Ficha-Limpa – a Lei Complementar nº 135, de 2010 –, apesar de ser “muito bom quando há coincidência entre o convencimento do juiz e o anseio popular”, o magistrado não pode se deixar impressionar se a necessária observância da Constituição pressupor rumo diverso do desejado pela opinião pública. (grifos nossos)

Ao juiz cabe resguardar os preceitos constitucionais a fim de efetivá-los, mesmo que, em fazendo isso, não esteja agindo de acordo com o que a maioria da população deseja momentaneamente.

Verifica-se que, antes de ir a julgamento popular é necessária uma análise por um juiz togado. Para Tourinho Filho (2013, apud GRECO FILHO, 1999, p. 762), a função desse juiz é impedir uma injustiça contra uma pessoa que não mereça estar ali, impedindo que ela seja submetida a um julgamento popular, cuja decisão é dotada de soberania.

O juiz deve se utilizar do controle que a ele é outorgado, atuando na iudicium accusationis com a intenção de verificar se o caso é digno de ser mandado ao julgamento popular. Fará isso analisando as provas, e em exercício mental criando uma situação hipotética de que seria ele o juiz da causa, perguntar-se-ia se seria provável a condenação? Se a resposta fosse positiva, remeteria ao tribunal do Júri, caso negativa, deveria impronunciá-lo (CAMPOS, 2006, p. 18).

Casos de grande repercussão causam ojeriza à sociedade, que merece uma resposta Estatal para a autoria do delito e, não raras vezes, tende a requerer o açoite do acusado, sem nem mesmo saber se realmente é o culpado ou não. Porém, não é porque a sociedade quer uma resposta para o ocorrido que deve o magistrado submeter, a julgamento popular, um caso sem os “indícios suficientes” de autoria do delito.

5.7. Limitação do juiz, ante o seu papel na iudicium accusationis

É cediço que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, sob pena de nulidade. A Constituição Federal de 1988 traz essa previsão expressa em seu artigo 93, inciso IX, in verbis:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicas, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

Observação importante é a de que o que é suficiente ou não é muito subjetivo, o que é suficiente para um, pode não sê-lo para outro, exatamente por isso é imprescindível que seja observado o dever de fundamentar.

Na pronúncia, o magistrado fica limitado, visto que não pode se valer da dúvida para livrar um acusado do julgamento popular e, caso nesse momento opte pelo in dubio pro reo, às vezes é até censurado, como afirma Lopes Jr. (2014, p. 1025): “[...] A jurisprudência brasileira está eivada de exemplos de aplicação do brocardo, não raras vezes chegando até a censurar aqueles (hereges) que ousam divergir do “pacífico entendimento”...”.

Bretas (2010, p. 21) observa a dificuldade que o juiz enfrenta para absolver ou impronunciar o acusado:

Em quarto lugar, se existe o in dubio pro societate, então qualquer decisão que não seja a pronúncia exigiria fundamentação muito mais trabalhosa do que a sempre prática declaração inofensiva de pronúncia. Portanto, para não pronunciar o acusado, o juiz teria, pela frente, um trabalho cansativo para se desvencilhar dos tortuosos meandros do mito do in dubio pro societate e, finalmente, demonstrar, à exaustão, que não era o caso de pronunciar o acusado.

A aplicação do in dubio pro societate limita o juiz, pois, caso não disponha de subsídios suficientes para fundamentar uma absolvição sumária (art. 415) ou uma impronúncia (art. 414), encontrando-se em dúvida, deverá pronunciar o réu e deixa-lo à mercê da sorte.

5.8. Garantia ou martírio

A previsão do Júri, estabelecida no artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal de 1988, confere a essa instituição o caráter de garantia individual do direito de liberdade. Desta feita, o juiz natural dos crimes dolosos contra a vida é o conselho de sentença, formado por juízes do povo.

Nesse sentido, Tourinho Filho (2013, p. 773):

[...] Se a instituição do Júri está no capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais do homem, indaga-se: é direito ou garantia? Para nós, é uma garantia. Garantia de que nos crimes dolosos contra a vida (que qualquer pessoa pode cometer, dependendo das circunstâncias) o réu será julgado não pelos Juízes profissionais e sim pelo povo, que decide de acordo com os costumes, com a experiência dada pela vida. [...] (grifos nossos)

Acontece que a previsão constitucional é distorcida, fazendo com que se institua um desmesurado incentivo da pronúncia, tornando-a regra, sob a alegação de que não cabe ao magistrado analisar o mérito, e, caso haja dúvida, a resposta é a pronúncia, na dúvida, em prol da sociedade:

Nessa vertente, Choukr (2014, p. 837):

Num exercício de linguagem bastante casuístico, a jurisprudência vai respondendo no "direito vivido" com decisões que buscam "incentivar" a pronúncia. A lógica do raciocínio, na medida em que o juízo de admissibilidade não pertence ao juiz natural, é exatamente deixar que tudo se resolva em plenário. [...]

Também nesse sentido, Bretas (2010, p. 20) adverte:

Em terceiro lugar, se a pronúncia não pode invadir o terreno da prova, por consequente, está criado um álibi jurídico para legitimar que pronúncias sejam proferidas, a toque de caixa, sem o mínimo comprometimento com a prova dos autos, sob o pretexto de se tratar de “seara desautorizada”. É a terceira cabeça do monstro: o evasivo subterfúgio do in dúbio pro societate serve como cortina de fumaça para que uma enxurrada incontável de casos sejam pronunciados, em contrapartida a um número bastante reduzido de absolvições sumárias, impronúncias e desclassificações, proferidas a conta gotas.

A finalidade do Júri é a de dispensar, ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, um juízo de consciência, atuando o jurado com uma sensibilidade de que o Juiz, frente ao seu conhecimento técnico, já não dispõe, sendo assim o Juiz Popular atua como um baluarte da liberdade (TOURINHO FILHO, 2013, p. 774).

O in dubio pro societate retira de pronto todo o caráter de garantia individual e deturpa o sentido do julgamento popular, pois se um juiz togado em um processo criminal comum se depara com a dúvida sobre o conjunto probatório, a absolvição será a resposta para solucionar o caso.

Ora, qual seria o sentido de conferir uma garantia para remeter a um julgamento soberano um processo que deixou o juiz sumariante em dúvida quanto à suficiência de indícios? Se até o juiz togado, dotado de vasto conhecimento técnico, restou-se em dúvida, quiçá o jurado que não raras vezes encontra-se pela primeira vez diante de tal situação como juiz da causa.

Choukr (2014, p. 837) observa que o maior prejudicado é o réu, portador da garantia:

O custo desse mecanismo é alto para todos os envolvidos, mas, sobretudo, para o réu, que poderia ter o caso solucionado com mais presteza se, efetivamente, o juiz natural (que é uma "garantia") fosse o responsável pela deliberação do prosseguimento ou não do caso.

Campos (2006, p. 18) entende por inadmissível uma garantia que coloca em risco a liberdade de um possível inocente:

Ora, qual o sentido de ser do Júri como garantia individual se, na prática, remetem-se a julgamento pelo Conselho de Sentença processos sem prova ou cujo conteúdo é débil, em hipóteses que o próprio juiz togado, de plano, absolveria? É para dar chance aos jurados de condenar um possível inocente? Se assim fosse, que garantia individual estúpida seria essa! Melhor, então, que não houvesse o Júri: o próprio juiz se incumbiria de absolver de plano o imputado, por ausência ou falha dos elementos de convicção, sem que o réu corresse o risco de ser condenado pelo órgão criado para proteger sua liberdade. Protegê-la cassando-a?

Rangel (2015, p. 653) assevera sobre os riscos de dissipar a duvida em plenário.

O processo judicial, em si, instaurado, por si só, já é um gravame social para o acusado, que, agora, tem a dúvida a seu favor e, se houve dúvida quando se ofereceu denúncia, o que, por si só, não poderia autorizá-la, não podemos perpetuar essa dúvida e querer dissipá-la em plenário, sob pena de essa dúvida autorizar uma condenação pelos jurados. Um promotor bem falante, convincente em suas palavras, pode condenar um réu, na dúvida. Júri é linguagem.

Mesmo verificando que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida tem previsão constitucional e deve ser respeitada, deve-se atentar também que não se pode conferir caráter absoluto a tal previsão, visto que em determinados momentos poder-se-á deparar com uma situação de extrema injustiça e que a ignorância poderá resultar em uma condenação injusta.

Não se pode deixar que uma garantia se torne um martírio para seu titular.

5.9. Impronuncia

Nos moldes do parágrafo único do artigo 414 do Código de Processo Penal, verifica-se que a decisão, que impronuncia o réu, não faz coisa julgada material, possibilitando, caso surjam novas provas e não tenha ocorrido a extinção da punibilidade, o oferecimento de nova denúncia ou queixa.

Nesse sentido, prevê o Código de Processo Penal em seu artigo 414, parágrafo único:

Art. 414. Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado.

Parágrafo único. Enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova.

É bom para o MP que poderá obter mais provas

Em verdade, diante da dúvida, mais apropriado seria a impronúncia. A sociedade merece uma resposta para o crime, mas isso não pode justificar um julgamento sem provas.

Nesse sentido, Nucci (2016, p. 716):

[...] Jamais se pode enviar a júri um caso em que as provas, uníssonas, demandam absolvição por insuficiência de provas. Mesmo que o julgador não possa absolver sumariamente, é mais adequado optar pela impronúncia, quando perceber ser totalmente inviável uma condenação justa, no futuro.

Badaró (2015, p. 661):

[...] No entanto, se estiver em dúvida se estão ou não presentes os “indícios suficientes de autoria”, deverá impronunciar o acusado, por não ter sido atendido o requisito legal. Aplica-se, pois, na pronúncia, o in dubio pro reo. [...]

Diante da própria previsão legal, não há que se interpretar de forma diversa a suficiência dos indícios, pois, se assim for feito, estar-se-á interpretando in malam partem algo que não permite interpretação diversa do próprio significado de sua escrita.

O Favor Rei, importante Princípio do Processo Penal, no momento da pronúncia, deve desdobrar-se em in dubio pro reo como regra de julgamento, pois, caso a parte que tem o ônus da prova, não se desincumba de sua responsabilidade probatória, não poderá ver sua pretensão acolhida.

Aliás, nos casos, se o juiz, mesmo depois realizados os atos instrutórios, encontrar-se em dúvida, já que não tem a certeza necessária para fundamentar uma absolvição, a solução seria simplesmente atender ao que preceitua o artigo 414 do Código de Processo Penal. Em síntese, se o magistrado tem dúvida sobre a existência de indícios suficientes de autoria ou participação, deve impronunciar o acusado.

A impronúncia é uma decisão que alberga o direito do acusado, que terá a certeza de que só será condenado caso haja provas bastantes para subsidiar sua condenação e também atende ao interesse da sociedade, visto que, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade do indivíduo, poderá, com base em novas provas, ser formulada nova acusação em seu desfavor, minimizando a subsistência de processos infundados e a condenação de pessoas inocentes.

Em razão de sua real importância e utilidade, tanto para o acusado, quanto para a sociedade, deve a impronúncia ser enxergada com bons olhos, do ponto de vista dos operadores do Direito, a fim de que ela possa cumprir sua verdadeira finalidade, que é a de livrar do julgamento popular processos que não contenham subsídios probatórios para fundamentar uma condenação, mesmo que essa fundamentação seja abrigada pela íntima convicção e o sigilo.

6. Conclusão

Depois de analisar o Processo Penal sob o prisma da Constituição Federal em vigor, perquirindo os principais princípios aplicáveis ao tema, abordando o Júri em sua história, sua importância, suas dificuldades e influências até o momento atual, cumpre destacar que em momento algum, houve a intenção de impor pensamentos de maneira absoluta ou ofender as opiniões contrárias e, se isso em algum momento foi feito, de imediato apresentam-se as devidas vênias. Na feitura do trabalho, sempre pairou a impressão de que algo possa ter ficado para trás, aqui também as vênias se fazem de rigor, passando então, à conclusão a que se chegou após toda a abordagem no presente feito.

No presente trabalho haveria outros tantos meios de se chegar à mesma conclusão, sobre inaplicabilidade do in dubio pro societate na decisão de pronúncia, porém com o fito de não se alargar muito sobre o complexo assunto, restringiu-se aos princípios da Dignidade Pessoa Humana, Presunção de Inocência, Favor Rei, In Dubio Pro Reo e observada a possibilidade de interpretação contra o réu.

Insta salientar, mais uma vez, que a dúvida aqui abordada não é sobre a competência constitucional, outorgada pela Constituição da Republica de 1988, ao Júri. Na pronúncia, não se pode apurar se o acusado é o autor ou não do delito, isso não compete ao juiz sumariante, mas sim aos jurados.

Em verdade, o que se defende aqui é a inaplicabilidade do in dubio pro societate quando o conjunto probatório deixa o juiz togado em dúvida sobre a sua suficiência. Se é suficiente e não resta dúvida que existem indícios, o juiz deve pronunciar o acusado, mas se há dúvida no espírito do juiz, a impronúncia é a saída para o caso, que, desde a primeira fase já se mostra deficiente.

Inicialmente, a Dignidade da Pessoa Humana, princípio basilar que é, constitui em verdade, um fundamento da República Federativa do Brasil e deve ser utilizada como fator inibidor da banalização da decisão de pronúncia. Da dignidade humana, derivam outros tantos princípios, que, visam garantir a situação peculiar de importância ímpar do homem, diante do ordenamento jurídico pátrio.

A pronúncia é o ponto que separa a análise técnica, feita pelo juiz togado, da análise feita pelos jurados, que, em razão da íntima convicção, julgam de acordo com a sua consciência. O termo “indícios suficientes” não pode ser interpretado de forma contrária ao seu próprio significado, para mandar ao julgamento popular um caso dubio, carente de provas. A palavra suficiente não deixa margem para dúvida, não se pode ignorar sua própria significação para incentivar a pronúncia, suficiente, é o que basta.

Sendo assim, não há que se falar em possibilidade de interpretação in malam partem do termo “indícios suficientes”, visto que ele, por si só, já é de clareza solar, inexistindo a possibilidade de pronunciar o acusado diante da dúvida. Se o juiz não encontrou subsídios para fundamentar a pronúncia, a outra face da moeda é a impronúncia, deve ser usada.

Ponto curial é que essa norma princípio da Presunção de Inocência, é mitigada em razão de um entendimento doutrinário e jurisprudencial, contrário à ordem Constitucional vigente e ate mesmo à Legislação Processual Penal.

Neste ponto, é de se ressaltar que não há previsão legal alguma que fundamente a aplicação de tal brocardo, que em alguns casos, é alçado ao patamar de princípio. Daí é possível enxergar a real dimensão do absurdo ilógico que é a aplicação do in dubio pro societate.

Ora, se a Constituição Federal de 1988 prevê, expressamente, a Dignidade da Pessoa Humana como fundamento da República, reconhecendo o homem como centro do sistema, conferindo-lhe a Presunção de Inocência, é no mínimo absurdo e desleal, pronunciar uma pessoa com dúvida sobre a existência de indícios suficientes de autoria. Cabe à acusação o ônus de demonstrar a presença dos indícios, se esta não se desincumbiu de seu ônus, não poderá ver sua pretensão acolhida.

Não é de hoje que a essência da República é a de valorização do homem, afinal ele é o centro de tudo, não há que se falar em desrespeito aos direitos de um, com a falsa premissa de que assim fazendo estará sendo atendido o interesse da coletividade. Do ponto de vista baseado na justiça, deve-se verificar qual o interesse da sociedade em submeter ao julgamento popular, um processo falido, carente de provas, arriscando-se a condenar um inocente? Como já explicitado, é melhor absolver um culpado do que condenar um inocente, vez que, caso ocorra esse último, o prejuízo para a sociedade será em dobro, pois um inocente estará preso enquanto o culpado gozará de sua plena liberdade.

Apesar de o ordenamento jurídico dispensar a fundamentação formal dos jurados quando da votação, isso não significa que ela não existirá, que ela possa ou deva ser infundada, pelo contrário, o jurado deve dispor de um conjunto probatório suficiente, para, mesmo que intimamente, possa fundamentar sua decisão.

Não pode o acusado ser abandonado à sorte do dia, assim como nas épocas inquisitoriais cuja justiça era deixada a cargo das provas ordálicas ou juízos de Deus.

O desideratum maior do Poder Judiciário é o alcance da Justiça, com isso não se querendo dizer que ela só será alcançada ao seguir entendimentos judiciais e doutrinários firmados em determinada época, petrificados, mas sim, entender que antes mesmo das leis positivas e até mesmo antes do homem social, já existiam relações de justiça possíveis, como bem afirmava Montesquieu (1748).

Não poderia deixar de citar a importância e a razão do juiz na primeira fase do Júri. Razão outra não seria, senão a de atuar como mais um mecanismo de limitação do poder de punir do Estado, analisando a suficiência do conjunto probatório. Claro e certo que não deve ele adentrar no mérito da causa, mas também não pode se abster totalmente e, diante de um caso com conjunto probatório dubio, pronunciar o acusado. Importante paralelo foi feito com Pilatos que embora não exercesse o papel de juiz, naquele instante do julgamento de Jesus, fez as vezes de um juiz sumariante que alberga suas decisões no brocardo in dubio pro societate.

Também, nessa vertente, a aceitação doutrinária e jurisprudencial sobre a aplicação do tema subverte todo o sistema Processual Penal, sempre na busca desmesurada da aplicação da pena, incentivando o maior número de pronúncias possível.

Em verdade, essa cultura da pronúncia limita a atuação do magistrado, que, não dispondo de subsídios para fundamentar a absolvição sumária, diante de uma situação de dúvida, em que a impronúncia seria de rigor, deve pronunciar e mandar a julgamento popular um processo duvidoso, e, caso adote postura diversa, irremediavelmente, verá sua decisão ser reformada.

Nesse contexto, a chamada cultura da pronúncia se estabelece e faz com que o Júri, que é uma garantia, se torne um martírio sem fim ao acusado, que se fosse julgado por um juiz togado, abrindo mão dessa garantia, certamente seria absolvido por restarem inexistentes indícios suficientes para fundamentar a condenação.

A presunção de inocência tem guarida constitucional, está presente em todo o processo, serve como regra de tratamento, vez que o indivíduo não só pode, mas deve ser tratado como inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória; também serve como regra de julgamento, neste ponto utilizando-se do in dubio pro reo.

Diante de todo exposto, é de bom grado que, diante da dúvida sobre a suficiência dos indícios de autoria, a jurisprudência e doutrina brasileiras consigam olhar com bons olhos a verdadeira utilidade da decisão de impronúncia, que não faz coisa julgada material, podendo a acusação, em caso de aparecimento de provas novas, apresentar nova exordial acusatória.

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Publicado por: Vinicius Azevedo de Lima

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