Guerra de Canudos
CANUDOS - a luta pela utopia real.
“El hombre era alto y tan flaco que parecía siempre de perfil.”
Eis o líder Antônio Conselheiro, no romance de Mario Vargas Llossa, La Guerra del fin del mundo. Não era nem tão alto nem tão magro. No entanto a descrição é perfeita. Llosa captou bem o espírito do Conselheiro, ao esboçar-lhe os traços físicos. Um homem ascético, um místico com pudor de santidade, líder que não guiava o povo mas irradiava paz e confiança. Um homem manso, mas que vai levantar-se contra as injustiças. Que não decreta a guerra nem a ela incita, mas endurece quando chega a batalha.
Antônio Conselheiro é um dos personagens mais caluniados da história do Brasil. Fanático, louco, supersticioso, traidor, ignorante e arruaceiro - dos documentos oficiais estes rótulos passam aos livros de história. Apenas recentemente começou a mudar a imagem falsa que construíram para Conselheiro.
Nasceu no Ceará, em 1828, na vila de Quixeramobim. Aos seis anos fica órfão de mãe. Antes de completar oito o pai casa-se de novo e o menino Antônio Vicente Mendes Maciel será muito maltratado pela madrasta. Torna-se tímido e lembrará a infância como um “período de dor”, mas aprende aritmética, geografia, latim e francês.
Aos vinte e sete anos, com a morte do pai, toma conta da venda da família. Está cheio de dívidas que paga a duras penas. Casa-se com uma prima. Abandona o comércio, vai ser empregado e finalmente juiz de paz em Campo Grande. Depois vive em Ipu, onde se torna requerente do fórum. O casamento não dá certo e sua mulher foge com um soldado.
A partir daí Antônio Conselheiro começa a perambular pelo sertão. Conhecia o sofrimento do povo, a quem defendia no fórum. Nas suas andanças entra em contato íntimo com a miséria. Liga-se à Joana Imaginária, escultora de imagens em barro e madeira, e o misticismo vai tomando conta da sua vida. Com Joana tem um filho e deixa ambos em 1865. Andando, vai para Pernambuco e Alagoas. Passa por Segipe e chega à Bahia.
Já não vaga à toa. Vai construindo cemitérios e igrejas de elegante arquitetura, a pedido dos padres. A imagem já é a do conselheiro que entra para a história: uma bata azul, barbas grisalhas, alpercatas e bordão. Come frugalmente - frutas e verduras.
E prega.
É quando começam a vigiá-lo, porque embora seu discurso seja católico, diverge um tanto dos padres. Percebe que os padres estão sempre do lado dos fortes e ricos; fica com os humildes. Uma espécie de anarquista místico: figura impressionante com sua barba e bata azul, chapelão, bolsa com livros e caderno onde anota o que pensa. Fala contra o latifúndio, diz que a salvação do homem virá pelas suas obras e declama os evangelhos em latim.
Discursa vibrando o bordão, escandindo as palavras. Não demora, é preso: o povo já o ouvia atentamente, era um perigo à ordem. Em 1876, não tendo do que acusá-lo a não ser de falar a verdade, denunciam-no como assassino da mãe e da esposa.
Inventa-se uma história fantástica para explicar como ele matou a mãe: ela o havia convencido a simular uma viagem e esconder-se, para comprovar a traição da mulher. Assim fez. Escondido, viu um vulto chegar à sua casa e preparar-se para pular a janela. Seria o amante da mulher: Conselheiro matou--o a tiros. Em seguida entrou e assassinou a mulher. Quando foi conhecer o amante, virando o cadáver, descobriu que era sua mãe , autora da intriga para que ele matasse a mulher.
A partir daí começam a explicar a peregrinação de Antônio Maciel pelos sertões: estaria alucinado e pretendia compensar o assassinato de sua mãe com sua loca pregação. A história, evidentemente mentirosa, pois sua mãe morreu em 1834, quando ele tinha seis anos, e a sua esposa estaria viva em Sobra, serviu para enviá-lo preso a Salvador. Nunca quis falar sobre o “crime” às autoridades, preferindo responder a qualquer pergunta com sua pregação mística, o que aumentava a crença de que era mesmo assassino e . sobretudo, louco.
A prisão de Antônio Conselheiro inquieta o povo. As autoridades baianas mandam-no para o Ceará, com a recomendação de não o deixarem voltar a Bahia, onde os padres não o viam com bons olhos. Em Fortaleza, para onde o remetem, chega maltratado pelas torturas. É a própria imagem de um santo do sertão: magro, seco, vegetariano, dormindo no chão duro e falando que é preciso obter o céu aqui na terra.
Finalmente em 1º de julho de 1876 libertam-no. De tudo, ele tira um ensinamento: é pior difamar do que agredir um homem. Nas sua prédicas, ao comentar a injusta prisão, cita Santo Agostinho: “Mas ofenderam Nosso Senhor Jesus Cristo seus inimigos d’Ele murmuraram do que quando o crucificaram.”, como relata Edmundo Moniz em A guerra social de Canudos.
Livre ele volta à Bahia. Agora tem uma missão. Fez o seu aprendizado e soube o preço. Não é um louco e menos um vagabundo, com a “tendência acentuada para a atividade mais inquieta e mais estéril, o descambar para a vadiagem mais franca”, como afirma preconceituosamente Euclides da Cunha.
É um líder do povo.
Deus e o diabo pelejam na terra do sol.
A terra é o próprio inferno, terra do cão, por isso ele sempre vence. A batalha tem que ser ganha trazendo o céu para a terra. Então venceremos o Satanás.
Não é coisa de doido.
Não é fanatismo.
É o povo que entende da pregação de Antônio Conselheiro, quando ele propõem um cristianismo primitivo nos sertões da Bahia. O povo viu os bons morrerem pela independência , ali mesmo na Bahia, e ela não veio, ou chegou para os ricos continuarem explorando. Assistiu o 13 de maio e continuou escravo: não tinha mais pelourinho, mas o jagunço do senhor de terras substituiu mais brutalmente o capitão-de-mato, expulsando o lavradordas roças. E por fim, a malfadada republica, coisa de ateus e maçons, confirmando o mando do coronel e garantindo suas terras ociosas.
Essa visão simples e mitificada não é, apesar das aparências, alienada ou mística. Ela trata de entender, sentir e viver criticamente uma situação que não se pode teorizar, pela própria opressão social e política da sociedade brasileira. Não sabendo explicar teoricamente, não sendo possível planejar politicamente , aplica uma espécie de “crítica mágica” para repudiar a realidade. O misticismo no caso, deixa de ser uma alienação para ser a única arma do sertanejo.
Esse peculiar “sentir religioso” é uma forma de separar-se ideologicamente das classes dominantes. Lembrando Feuerbach, Rui Facó, em Cangaceiros e fanáticos, diz que:
“Ao elaborarem variantes do cristianismo, as populações oprimidas do sertão separavam-se ideologicamente das classes e grupos que as dominavam, procurando suas próprias vias de libertação. As classes dominantes, por sua vez, tentando justificar o seu esmagamento pelas armas - e o fizeram sempre - apresentavam-nas como fanáticos, isto é, insubmissos religiosos extremados e agressivos.”
O sertanejo criou sua religião própria, citando ainda Facó, que lhe serve de instrumento para a luta libertária. A igreja, por outro lado, estabelece uma “religião oficial”, denunciando estes “desvios” libertários das massas como ofensa aos seus dogmas, quando na verdade ofendem essencialmente o sistema de poder. Em Canudos, como em muitos outros movimentos, a igreja fez “o papel de polícia ideológica no meio rural, antecipando-se às forças repressivas”.
Os sertanejos que se uniram em Canudos tentaram construir uma sociedade socialista, segundo Edmundo Moniz:
“... tendo em vista o fato da burguesia unir-se aos latifundiários quando se apossou do poder político com a proclamação da República em vez de efetivar a reforma agrária, tarefa histórica que lhe competia realizar.”
Um dos dramas do povo brasileiro é essa incapacidade de dar o passo decisivo nos grandes momentos históricos. Ao separar-se o Brasil de Portugal as classes dominantes afastaram o povo da luta, em duras repressões, e por isso perdeu-se a oportunidade de liquidar o escravismo já em 1822 ou 24, como propunha, embora dubiamente, José Bonifácio. Perderíamos duas oportunidades de modernizar a economia brasileira: em 13 de maio de 1888 e no 15 de novembro de 1889, quando não se promoveu uma mais justa distribuição de terras e controle do poder absoluto dos latifundiários.
Canudos será a resposta mais trágica do povo sertanejo, tentando livrar-se da condição miserável a que era submetido pelo grande latifúndio. Nesse sentido, é movimento raro na história do Brasil: o único de que não participam as elites intelectuais ou políticas. Todo ele é feito por gente do povo, com idéias próprias, elaborando um cristianismo peculiar que, ao contrário da visão predominante, é extremamente lúcido, já que a consciência crítica condiciona-se à sua realidade social, sua fonte geradora.
A ideologia de Canudos, portanto, tem que ser entendida a partir de uma realidade material. Porém, intelectuais e jornalistas ligados as classes dominates tentaram transformar essa força original e lúcida em expressão fanática, destacando seu discurso místico.
Poucos marxistas, inclusive, percebem que Canudos nega a religião como “um sol fictício”, como dizia Marx, para se mover “em torno de si mesmo” . Os intelectuais que reportam e explicam Canudos fazem-no com a visão de sua classe; são incapazes, justamente por pertencerem às classes dominantes, de entender a inversão revolucionária que os sertanejos fizeram - a harmonia entre seus reais interesses de classe e uma ideologia específica. Da mesma forma são incompetentes ou insensíveis para comover-se com a condição humana do sertanejo, visto como o “outro”, o “marginal”, o “jagunço”, o “bandido” ou por fim, como todos eles entendem, inclusive Euclides da Cunha, o inimigo.
Em meio a esse quadro, Antônio Conselheiro vai pelos setões, pregando e convencendo o povo. Fala de Deus e da religião, de forma que o povo entende que também se fala de justiça e igualdade. Fala da possibilidade de um novo mundo, livre da exploração e miséria. Cita, desmentindo ser um ignorante, s grandes utópicos, como Tomás Morus, por exemplo.
Prega a obediência civil como reação às leis injustas.
Acontece que no sertão todas as leis são injustas: a lei é a do senhor latifundiário. A “lei civilizada” é ficção para uso e deleite dos intelectuais da elite, influenciados por estranhas “ciências” européias que os induzem a acreditar que mestiços e pobres sào uma raça inferior.
Desde 1888 Conselheiro vinha sendo seguido por multidões de ‘gente inferior” - ex-escravos, vagabundos, marginalizados. Uma de suas primeiras ações nesse período acontece em Bom Conselho, quando reúne o povo, faz uma breve prédica e manda arrancar o edital de cobrança de impostos. O povo obedece, queima o edita e faz festa, com foguetes e banda. Começa a trajetória propriamente política do Conselheiro. Uma patrulha de 35 soldados tente prende-lo mas é dispersada pelo povo. Daí para frente será sempre perseguido como um perigo social. É então que depois de muito ameaçado leva seu povo, e todos os que chegam, para o Belo Monte e ali funda a sua utopia.
Bem real, enquanto durou.
A cidade foi levantada em 1893, perto do rio Vaza-Barris. Chamava-se Belo Monte, mas passou para a historia como Canudos, nome dado pelos inimigos, referindo-se aos bambus que ali cresciam, como canudos, e, aos mesmo tempo negando-lhe o carisma de seu verdadeiro nome. A notícia correu pelos setões. Fazendas e vilas despovoavam-se porque em Belo Monte “havia descido o céu”. Não tinha polícia do governo e o trabalho era igual para todos. Não se pagavam impostos e bastava levantar casa onde o Conselheiro indicasse. Toda a produção era distribuída de acordo com as necessidades de cada um.
Nunca houve roubo.
Nunca houve opressão.
Todos eram livres e iguais.
Todos trabalhavam.
E rezavam, dando graças ao Senhor Bom Jesus.
Canudos teve 35 mil habitantes. De longe, parecia um presépio: as casas amontoavam-se, desordenadamente. Só havia uma rua e, no seu início, a primeira igreja, onde Antônio Conselheiro pregava. Posteriormente começou-se a construir outra capela.
Muitas vezes apresentou-se a cidade de Belo Monte como uma prova da incapacidade dos sertanejos, mas tudo nela, como demonstra bem Edmundo Moniz em A guerra social de canudos, tinha razão de ser. A aparente confusão das casas obedecia uma estratégia de defesa, pois o Conselheiro sabia que o governo da República os atacaria.
As casas eram dispostas de forma impedir uma invasão de tropas regulares, servindo cada uma de trincheira para a outra.
Canudos não tinha cadeia. Os presos, raros os inadaptados ao regime de igualdade, eram detido em casas comuns e depois expulsos. Antônio Conselheiro teve o cuidado de verificar, antes de decidir-se pelo local, que para chegar a Belo Monte qualquer invasor teria de atravessar caminhos difíceis e próprios para emboscadas.
Ali erigiu sua utopia.
Uma utopia real, que nunca teve polícia ou cobrador de impostos. Onde, ao contrário do sertão, havia duas escolas para as crianças. Onde as decisões eram tomadas à noite, após o trabalho, com a participação de todos.
Plantavam-se e criavam-se cabras.
Uma das fontes de renda de comunidade foi a venda das peles de cabra, que a Republica exportava, inclusive. A importância da cabra na economia de Canudos, alias, é um estudo ainda a ser feito. Dava o alimento - leite e carne - e o couro para roupas e sapatos. O excedente vendia-se a comerciantes que o levavam para Salvador: a exportação do couro de cabra chegou a ser um dos mais importantes itens da economia baiana. Dos chifres desses animais os sertanejos faziam pentes, bijuterias, piteiras para cachimbos e, quando chegou a guerra, até balas de munição.
Canudos era um oásis no deserto da fome brasileira: ali não havia miséria alguma. Enfim era um magnífico exemplo para o povo e não podia ser aceito pelas classes dominantes. Era prova de que é possível, e quem o provava era um bando de “fanáticos” e mestiços, tendo um estranho profeta maluco a guiá-los.
Se Canudos não fosse destruída outros Belos Montes surgiriam pelo sertão baiano. Começou então uma campanha contra a comunidade sertaneja. Primeiro foram os padres, para lá enviados na tentativa de convencer os “conselheiristas” de que viviam em pecado e heresia. Embora fossem admitidos e tivessem liberdade de pregar tanto quanto o Conselheiro, ninguém os ouvia. Eles chegavam prometendo o céu para depois da morte, mas o povo de Canudos já o tinha transferido para a terra , expulsando o diabo e vivendo com recato e pudor, livre e satisfeito nas suas necessidades básicas; os padres eram gordos e gordurosos, defensores dos coronéis que defloravam as filhas do povo e deixavam o povo morrer de fome.
Com uma utopia tão real não houve discurso que vencesse. Em alguns sentidos Canudos antecipou-se às conquistas que, ainda hoje, são de pequenos grupos sociais. Por exemplo, a mãe solteira era bem acolhida e o casamento era uma opção: o amor livre era respeitado e a mulher que não quisesse casar não era obrigada a abster-se sexualmente. Numa sociedade livre como a de Canudos isso era normal, e foi aproveitado pelo cinismo dos padres para denunciar a comunidade como depravada. Mesmo quando se sabia que os padres do interior baiano, na época, eram amamcebados e cheios de filhos que raramente conheciam.
Nunca houve estupro ou violência sexual em Canudos, até a chagada das tropas do goerno para “civilizar” o sertão. Quando se dizia a Antônio Conselheiro que uma moça solteira se entragara-se a um homem, ele respondia com seu pitoresco comentário: “Surgiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem e do mal.”
Ninguém atirava a primeira pedra.
Numa comunidade pacífica, onde ninguém atira pedras, isolada em meio ao sistema capitalista brutal como o existente no Brasil, o poder logo atira bombas. As bombas já tinham começado a atingir Antônio Conselheiro dez anos antes, em 1887, quando o bispo da Bahia dizia que ela estava “pregando doutrinas subversivas e fazia grande mal a região e ao Estado”.
Em 1887 o Estado a que ele “fazia mal” era monárquico. No entanto um dos pretextos para se destruir Canudos foi o seu monarquismo, não faltando a denúncia de que Conselheiro recebia dinheiro e armas de fora do Brasil para derrubar a República. Durante a guerra chegou-se a noticiar que ele tinha oficiais austríacos comandando seus homens.
O pretexto para a guerra contra Canudos foi a pretensa invasão de uma vila, por Conselheiro, para conseguir madeira. Na verdade, por trás de tudo, o motivo real era destruir um “mau exemplo” de liberdade popular. Havia também o interesse político no episódio, favorecendo as disputas entre os republicanos.
Canudos enfrentou quatro expedições militares. A cada uma delas, repelida, seguiu-se outra mais forte, com mais soldados. Na verdade são cinco expedições, pois a ultima, teve uma derrota, retrocedeu e rearmou-se para finalmente destruir Canudos.
A primeira expedição, com cem soldados comandados pelo tenente Pires Ferreira, partiu de Salvador em 7 de novembro de 1896. Dirigiu-se a Juazeiro, que pretensamente seria invadida por Conselheiro em busca de madeira. Não houve invasão alguma e o normal seria a volta dos soldados, mas o tenente resolveu encontrar os “inimigos” pela estrada do Uauá, pretendendo chegar até Canudos.
Desinformado sobre Canudos e seu líder, não acata e acha absurdas as advertências do povo de Juazeiro de que sua missão é suicida. Na tarde de 12 de novembro de 1896, antecipando em um dia a saída para não começar a campanha contra os “fanáticos supersticiosos” no dia 13, começa, com dois guias, a marcha pelos duzentos quilômetros que o separam de Canudos.
No dia 19 está em Uauá com seus soldados. Ao despertar, na manhã seguinte, percebe uma multidão de “conselheiristas” que chegam de Canudos - mulheres, velhos e crianças em procissão, cantando e rezando - para fazer-lhe um apelo pela paz.
Porém, pensando que fosse uma cilada a tropa abre fogo. Uma pequena guarda que acompanhava a procissão reagiu com seus trabucos antiquados. Os caboclos comandados por Quinquin Coiam atacam os soldados com foices e paus. Os soldados se apavoram e gastam toda a munição, trava-se uma luta corpo a corpo durante cinco horas. Morrem dez soldados, um sargento e os dois guias, ficando vinte feridos. O médico militar enlouquece, impressionado com a luta.
Essa primeira tentativa absurda de “conquistar” Canudos, terminada em rápida derrota, irritou as autoridades. As expedições seguintes seriam definitivas e bem armadas. Tornava-se uma ‘questão de honra”: em todo país a notícia de que um bando de fanáticos vencera a tropa do governo causava críticas e inquietação. Dentro do Exército nascia um sentimento de desforra: era inadmissível ser derrotado por uns pouco jagunços.
Os militares que fariam a guerra contra o Conselheiro pouco sabiam de Canudos. Tanto da sua situação geográfica e física - cinco mil casas “atravancadas” sobre várias colinas - quanto do seu tipo de comunidade. Avaliavam mal o significado dos duzentos quilômetros que separavam esta vila da estação ferroviária, em Queimadas, sem nenhuma intermediária.
Dirigiam-se para lá tropas de todo o Brasil, para combater num terreno muito diferentes do que conheciam. As dificuldades de abastecimento agravavam-se com o precário transporte por terras onde os sertanejos emboscavam. A sede central desse exército ficava em Salvador, a seiscentos quilômetros de Canudos.
Enquanto esse exército dependente de marchava, sofrendo fome algumas vezes, a divisão de tarefas em Canudos facilitava os preparativos para a resistência. O tipo de luta dos sertanejos - guerrilha, emboscada, tocaia, ataques com pouca gente seguidos de fuga - permitia-lhes usar armas leves e antiquadas, tirando grande proveito dos facões e foices. Podiam fabricar ferrões e lanças em suas forjas e consertar nas suas oficinas as armas de fogo.
A segunda expedição, chefiada pelo major Febrônio de Brito, teve trezentos soldados do exército e cem da polícia militar baiana. A confusão se estabeleceu de início: tanto o governador da Bahia como o comandante do distrito militar do governo federal davam ordens, pretendendo cada um impor sua autoridade. Aos quatrocentos soldados Febrônio conseguiu juntar mais 250, além de metralhadoras e canhões, e em 25 de novembro de 1896 partiu para Monte Santo, de onde atacaria Canudos.
Essa expedição não tinha marchado 25 quilômetros quando foi retida: uma nova tropa, agora chefiada pelo coronel Pedro Tamarindo, deveria unir-se a ela.
Depois de várias intrigas políticas entre o governados Luís Viana e as autoridades federais, só em 25 de dezembro de 1896 o major Febrônio chegou a Monte Santo. Tinha razão seiscentos soldados, dois grandes canhões e duas modernas metralhadoras. Organiza-se e somente em 12 de janeiro de 1897 marcha para vencer Antônio Conselheiro.
Seria fácil: por isso deixou um terço da munição em Queimadas e recusou a ajuda em mantimentos de alguns fazendeiros. Marchava para uma “guerra padrão”. Em três colunas, com artilharia pesada entrou na caatinga. Dois dias depois, com os soldados já exaustos verificou surpreso que a “munição de boca” tinha acabado. Estavam a dez quilômetros de Canudos e seria perigoso voltar, teriam que avançar, combater e vencer, para escapar da fome.
O sol baiano queimava. Carros de bois ficavam sem tração: os tropeiros contratados fugiram levando os animais. Os soldados tiveram que empurrar os carros. Era 15 de janeiro de 1897. De repente, viram o inimigo: sertanejos entrincheirados nas pedras, insultando-os:
- Avança, fraqueza do governo!
O susto foi grande. Os oficiais tiveram trabalho para impedir a debandada da tropa, mas o canhão, que pela primeira vez soou naquelas terras, confundiu momentaneamente os sertanejos. No entanto, comandados por João Grande, um negro esperto e corajoso, logo aprendeu a evitar o bombardeio. O combate durou cinco horas. Às 15 horas os sertanejos silenciaram seus trabucos e desapareceram.
Ignorante das táticas dos sertanejos, o major Febrônio acreditou ter ganho a batalha: afinal conquistaram a posição, mas veio o dia seguinte, 16 de janeiro, e de surpresa os sertanejos atacaram com armas brancas. A luta foi entre facões e punhais, foices e baionetas. Raros tiros à queima roupa. Os oficiais perderam o controle sobre os soldados. Não tardou os sertanejos “fugiram”. Novamente o major Febrônio entendeu ter havido vitória ao seu lado.
Não demorou a perceber o engano: estavam cansados, não haviam progredido realmente, e, o mais grave, tinha gastado quase toda a munição, ficando praticamente sem projéteis para a artilharia. Assim, estavam impossibilitados de conquistar Canudos. Não havia saída: teriam que se retirar, pois um novo confronto com os sertanejos poderia ser o fim. A retirada foi terrível. O caboclo Pageú, que ficaria famoso, tornou ainda mais sofrida a figa oficial, atacando de surpresa onde o terreno dificultava a caminhada da tropa.
Finalmente os sertanejos encurralaram os soldados em Bendegó de Baixo. Por pouco não conseguem exterminar a tropa. Os fugitivos chegam a Monte Santo esfarrapados, famintos, carregando os feridos. A população recebe-os com visível desprezo. A notícia se espalha: Conselheiro pôs a “fraqueza do governo” a correr.
É então que entra em cena um dos mais trágicos personagens dessa guerra contra o povo do sertão. O coronel Moreira César foi escolhido para chefiar a terceira expedição contra Canudos. Truculento, epiléptico, frágil e obcecado, é um dos mais conceituados militares republicanos florianistas, justamente porque exerceu essas “qualidades” reprimindo os federalistas de 1893, em Santa Catarina.
Em 3 de fevereiro de 1897 deixa o Rio, com destino a Salvador, de onde partirá para a caatinga, na tentativa de pôr fim ao reinado de Antônio Conselheiro. Chefiará uma grande tropa : terá 16 milhões de tiros disponíveis para o mais moderno armamento que o exército brasileiro dispõe. Leva oficiais experimentados e muito dinheiro. Não pode falhar, pensa o governo.
No entanto, repete todos os erros de Febrônio. Seus soldados usam as tradicionais fardas azul-vermelhas, destacando-se como alvo fácil na caatinga. O pano do uniforme prende-se aos espinhos do mandacaru, dificultando os movimentos, enquanto os sertanejos protegem-se com suas roupas de couro de cabra. Além de tudo, obcecado por um ataque global, Moreira César não leva em conta a extrema mobilidade dos sertanejos, que aparecem e somem entre o mato, evaporando em meio às pedras.
Enquanto seu exército avança às cegas, os sertanejos têm uma organização perfeita, dividindo-se em vanguardas que irritam os federais, provocando pequenas escaramuças; mantém grupos na retaguarda, para guardar munição; outros para transportá-la e dividi-la nos combates; possuem até uma rede de espiões que conseguem infiltrar-se entre os oficiais do Exército, e uma capacidade quase instintiva de ajuntarem-se todos, quando sentem o inimigo fraco, para atacá-lo duramente.
São as “gentes brutais” de que falam os intelectuais da época. Negros e mestiços como João Grande, Macambira, Manuel Quadrado, Taramela, Nicolau Mangaba, Vicentão, entre outros - os “jagunços” que sabem vencer coronéis e generais.
Moreira César e os seus oficiais não percebem que essa gente vence porque defende sua terra, tem uma causa, e como está na sua “pátria” - o sertão, que vai virar mar e será o céu - combate com as táticas que nascem das próprias circunstâncias.
O coronel tem mais de mil homens e 16 milhões de tiros. Mas tem também frequentes ataques de epilepsia e perde a razão vez por outra. Leva a fama de ter fuzilado rebeldes em Santa Catarina e ser o mandante de um assassinato de um jornalista. É de um homem “duro” assim que o governo precisa. E há toda uma fabulação por trás de Canudos, na luta pelo poder, com os florianistas tentando criar um herói.
Orgulhoso, não quis ouvir as informaçõesde derrotado Febrônio de Brito e, ao partir para Canudos, telegrafou ao ministro da guerra: “Só temo que Antônio Conselheiro não nos espere”. Em 11 de fevereiro de 1897 estava marchando para lá. Sofreu dois ataques epilépticos e recusou os conselhos médicos para repousar e não seguir.
Depois de várias estripulias, de perseguir suspeitos pelo caminho e sofrer alguns percalços da desorganização crônica do Exército brasileiro, sente-se pronto para liquidar Canudos.
Enquanto isso os sertanejos “desaparecem”. A tática de Conselheiro, agora, é deixar as tropas aproximarem-se o máximo de Canudos e atacá-las de surpresa, apoderando-se de suas armas. A batalha se deu, como previram, no local escolhido por eles. Cavaram trincheiras e esperaram. Estavam protegidos por pedras, espinheiros e pelo sol inclemente.
A preparação da batalha demonstra a superioridade dos sertanejos sobre os oficiais brasileiros. Sem saber, Moreira César estava derrotado desde que aceitara o terreno da luta, onde os sertanejos criaram uma tática que ele não conhecia ou não conseguia entender. A vitória de Canudos foi completa: três colunas foram desbaratadas e seus comandantes, dois capitães e um coronel, mortos em combate.
O núcleo da expedição, comandado diretamente por Moreira César foi em Pitombas, ficou em posição desfavorável; não podia recuar em ordem e foi obrigado a avançar para a morte. O “batismo de fogo” de Moreira César foi em Pitombas, sendo ferido levemente no ombro. Ali os canhões de nada valeram. De repente, porém os sertanejos desapareceram. No silêncio que se seguiu à “fuga” encontraram uma espingarda de chumbo, entregue ao comandante. Ele entusiasmou-se e disse:
- Essa gente está desarmada.
Marchou para Angicos, onde chegou à 2 de março. Pouco depois estava em Umburanas, praticamente às portas de Canudos. Dirigiu-se à tropa, otimista:
- Vamos almoçar em Canudos!
Tomou posição nos morros que circundavam Canudos, alinhou os canhões e mandou bombardear o reduto de Conselheiro, de onde só vinham o eco rouco das bombas caindo e o repicar dos sinos. Ordenou que se tomasse a vila sem mais um tiro, “à baioneta”. Acreditava que os sertanejos estavam apavorados, afinal eram “mulatos, negros fanáticos”. A infantaria avançou de baioneta calada, seguida da cavalaria. Todo o exército de Moreira César cairia como uma onda destruidora sobre os habitantes de Canudos.
Quando boa parte dos soldados já entrava na cidade, de dentro das frágeis casas de barro, de buracos cavados no chão e das trincheiras nas pedras, começou a reação dos sertanejos. Do alto do morro Moreira César observava a luta. Percebeu que não seria tão fácil. Decidiu-se a comandar de perto. Montou seu cavalo e mal aproximando-se do local foi atingido por um tiro no ventre. Voltou, ainda montado, para ser socorrido.
Depois de cinco horas de luta as tropas começaram a recuar. No leito do hospital de campanha, Moreira César gritava para que continuassem atacando. Mas os oficiais decidiram que não havia condições e resolveram pela retirada.
Na madrugada de 3 de março de 1897 o coronel estava morto. A retirada foi uma debandada.os sertanejos decepavam os fugitivos a foiçadas. Morreram muitos oficiais, entre eles o coronel Tamarindo. Sentindo-se perdidos, os soldados corriam, desvestindo as fardas para não serem identificados e mortos.
Os sertanejos capturaram as armas, inclusive quatro canhões. Os estrategistas de Canudos, “fanáticos e jagunços”, impuseram ao Exército nacional uma das mais humilhantes derrotas.
A fuga foi desastrosa. Não se enterraram os mortos, deixaram os feridos. O cadáver de Moreira César foi abandonado. Não se podia explicar a derrota: seria aceitar que os sertanejos tinham uma capacidade superior de luta. Mais que nunca, então, criou-se o mito de uma campanha heróica, contra os traidores e fanáticos ajudados por monarquistas “de fora”.
Tinham que se inventar heróis.
Um deles já estava morto. Morto em batalha, na visão militarista, é herói. E para emoldurar ainda mais a “decisão e fidelidade” dos subalternos, criou-se a figura do cabo Roque. Esse cabo, diziam os “enviados especiais”, abraçara-se ao cadáver de Moreira César para protegê-lo da sanha dos fanáticos, e assim morrera, protegendo seu ídolo, varado de “balas jagunças”.
Portas e cronistas escreveram a lenda do cabo Roque, que mais tarde apareceu vivo, ignorando o heroísmo e desprezando o herói morto, Moreira César. Dele disse Euclides da Cunha, irônico, que foi “vítima da desdita de não ter morrido, trocando a imortalidade pela vida”. A história do Brasil está cheia de heróis assim...
Na verdade o “imortal cabo Roque” era padioleiro. Carregava com seus companheiro o corpo de Moreira César numa padiola quando os sertanejos atacaram. Ele próprio contou a um repórter que não se abraçara ao cadáver do coronel, mas que fugira com seus companheiros.
Centenas de cadáveres forma abandonados. Os sertanejos não os tocavam, retirando-lhes apenas as armas. Ficavam esses mortos insepultos como aviso às próximas expedições. A quarta e última, aliás, foi assustada pelo cadáver do coronel Tamarindo, mumificado pelo ar seco do sertão. Com dragonas e galões dourados intactos, foi encontrado balançando sobre uma árvore.
A derrota e principalmente a morte a morte de Moreira César abriu uma série crise política republicana. Os florianistas acusavam os liberais de conspirar com os monarquistas para enfraquecer a República. No fundo da questão a “linha dura” do Exército articulava uma ditadura militar e Canudos era um ótimo e talvez único pretexto. Aconteceram manifestações contra jornais e políticos monarquistas. O coronel Gentil de Castro, diretor de um jornal monarquista, foi assassinado. Escapou da morte o visconde de Ouro Preto e até Rui Barbosa teve que se esconder-se para não ser morto.
Para acalmar a opinião pública, envenenada por falsas opiniões sobre Canudos, era urgente esmagar Antônio Conselheiro. O governo não podia correr o risco de dizer que Canudos era apenas um “antro de fanáticos” sem conotações monarquistas restauradoras, para não irritar ainda mais a opinião pública. Portanto, a única saída era acabar com o pretexto dos militares florianistas e garantir o poder.
Com esse esse espírito organizou uma quarta expedição, que teria duas fases, com o maior cuidade e eficiência. A primeira expedição fora comandada por um tenente à frente de cem homens. A segunda, por um major com seiscentos homens. A terceira, a de Moreira César, por dois coronéis - ele e Tamarind, ambos mortos em combate - com 1200 soldados. A quarta expedição que se formava seria comandada por quatro generais, com vinte mil homens, dos quais metade entraria em combate. E o próprio ministro da guerra foi ao local acompanhar a luta.
O ministro convidou o general Artur Oscar de Andrade Guimarães para chefiar a “expedição final”. Em 21 de março de 1897 ele já estava em Queimadas. Em pouco tempo vinte batalhões estavam prontos, com soldados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Rio Grande do Sul, Piauí e da capital do país. Esses soldados, em duas colunas, marchariam para Canudos, cercariam a comunidade e a destruiriam, contando com todos os recursos de que necessitassem.
Seis coronéis com seis brigadas com vários batalhões. Apesar do esforço do governo a desorganização era grande: faltavam animais, a munição perdia-se, os canhões estavam em péssimo estado. Mesmo assim formou-se o grande exército. Tinham aprendido algumas lições: os oficiais já não ostentavam as divisas, pois os sertanejos escolhiam os mais graduados, e foi até proibido fazer continência aos superiores, para não identificar seus postos.
Com esse espetacular exército, aos poucos os republicanos empurraram os sertanejos que os emboscavam para perto de Canudos, até os jogarem na cidadela, que seria arrasada. Contra os clavinotes e foices, trabucos e punhais, atiravam com metralhadoras e canhões. Ia se impondo uma vitória da superioridade da força bruta contra a astúcia dos sertanejos, agora reduzidos à defensiva.
O caráter da gente que iam matando aparece quando os republicanos atingem o local onde o grosso das forças de Moreira César foi derrotado. Ali estavam ainda os cadáveres fardados, mumificados pelo clima seco. Nos seus bolsos, porém, o dinheiro que traziam intocado - nessa guerra o saque e o roubo ficavam por conta dos “combatentes pela civilização”. A gente do povo tinha uma manifesta “honestidade primitiva”.
O que foi a última batalha, com seus trágicos, pode ser conhecido em Os Sertões, de Euclides da Cunha, em A guerra social de Canudos, de Edmundo Moniz, e especialmente em No calor da hora, de Walnice Nogueira Galvão, uma coletânea das mais importantes reportagens da época. É uma epopéia que não pode ser resumida; sua narrativa exige espaço e reflexão, introduzindo o narrador a se envolver, incapaz de conter-se diante do genocídio que se cometeu e da trágica capacidade de um povo acuado.
Canudos, depois de muita luta, foi derrotado. Não se rendeu: os sertanejos defenderam casa por casa, matando e morrendo com armas brancas. Recuando e atirando viram o fogo destruir as casas, queimar vivos e mortos. Os canhões não deixaram pedra sobre pedra: das igrejas restaram os escombros. Em 5 de outubro de 1897 tudo estava terminado.
Aqueles homens que desafiaram uma sociedade injusta, fundando uma utopia real, onde viviam livres e tendo tudo em comum, estavam mortos. Dos seus 35 mil habitantes, restaram poucas centenas de mulheres e crianças. Antônio Conselheiro morrera dias antes, doente. Desenterraram seu corpo, cortaram-lhe a cabeça e mandaram-na aos cientistas do governo, para que desvendassem o que haveria “dentro de um crânio fanático”. Tratava-se agora de difamar ao máximo o “velho bandido”. O crânio foi examinado pelo antropólogo Nina Rodrigues, que não encontrou nada de anormal.
Mas a campanha na imprensa já tinha feito o trabalho. Favila Nines, da Gazeta de Notícias, especializou-se em criar uma imagem de terror nos sertões, imposto pelos sertanejos de Canudos, chamados por ele de “inimigos da pátria”.:
“Canudos está definitivamente concluído. Arrasado completamente o arraial pelo incêndio, o resto das igrejas pela dinamite, nada mais resta senão um vasto cemitério com dez quilômetros quadrados de superfície, onde os cadáveres insepultos estão aos montes, uns meio cremados, outros em putrefação e outros mumificados pela ação do calor solar, que chega as vezes à 30 graus. Nas sepulturas, principalmente dos inimigos, foram enterrados aos três e quatro em uma cova só; é a vala comum dos inimigos da pátria”.
Os que incendeiam homens cercadoss são considerados “leais” e as vítimas, “pérfidos bandidos”. Dessa forma o correspondente de A Notícia, M. de Figueiredo, queixa-se dos métodos de luta do sertanejo, “que não trepida em lançar mãos dos recursos extremos para exterminar o inimigo leal que o persegue”. Esse Figueiredo, aliás, é de um extremismo que só encontra rival nas mentiras que disseminou sobre Canudos. Diz, por exemplo, que Antônio Conselheiro distribui farta ração entre os homens e deixa as mulheres e crianças em jejum; que matam os que discordam dele e tentam fugir. E mais: que as doenças dos canudenses seriam tratadas com as fezes secas do líder, que as distribuiria em saquinhos de papel. E vaticina: “Só exterminando o seu ídolo, exterminando depois, um a um, e, em seguida, deitando fogo ao antro do celerado Conselheiro”.
Outro jornal, O País, passa a imagem de que Canudos é um ardil dos monarquistas “estrangeiros”, que certamente viriam conquistar o Brasil. Uma de suas “cartas” fala em traição à pátria:
“A religião não passa de um meio de que o monarquismo é o fim, a que estão ligados os mais elevados representantes dessa morta instituição nos grandes centros civilizados e dinheirosos do país”.
Tudo o que parecia grotesco e grosseiro tinha grande influência em predispor o povo brasileiro ao genocídio que se cometia, publicado no “calor da hora”. A imprensa de maneira geral servia aos poderosos, preparava o terreno para o assalto final, a acabou justificando o que aconteceu depois - a concretização do vaticínio de M. Figueiredo. E mais: criado o mito do “fanatismo” daquelas “gentes inferiores”, era possível dispor dos seus restos bem como se entendesse.
Depois de queimar Canudos, oficiais, soldados, e jornalistas não tiveram dúvidas em apossar-se dos seus restos humanos. Crianças, especialmente as claras, foram seqüestradas. Umas, para serem vendidas como escravas. Outras destinadas à prostituição ou ainda ser “mascotes” de homens “generosos”. O tipo de guerra explica esse comportamento. Favila Nines, o jornalista da Gazeta de Notícia, conta candidamente:
“Cheguei a contar até 122 cadáveres nas ruas, mas calculo em mais de 200, porque em muitas casas havia montes de 8, 15 e 20, e tendo-se ateado fogo aos prédios, muitos foram incinerados. Os prisioneiros sobem a 160, na maior parte mulheres e crianças, visto ter o general ordenado não aprisionar homens que são de uma nudez revoltante e cínica”.
Matavam-se os homens. Mulheres e crianças distribuíam-se entre a soldadesca e até mesmo para o repórter. Ele conta que encontrou uma “jaguncinha com belos cabelos loiros e olhos azuis”, que levará para o Rio. É uma “lembrança” de Canudos. Eram “objetos” dados “gostosamente” a quem quisesse escravizar ou prostituir:
“O general Artur Oscar, que sabe aliar à bravura denodada de um soldado um belo coração de pai, dá gostosamente estas crianças a quem possa tratar, e por isso eu levarei a minha pobre Josefa. Quase todos os oficiais já têm uma desgracinha destas para proteger, o que faz com o maior carinho e dedicação. Até o general Artur tem uma, e o general Barbosa duas protegidas.
Na sua crônica ele narra vários encontros com oficiais e soldados levando sua “jagincinha”: são sempre loiras de olhos azuis. Alguns levam meninos.
O jornalista Lélis Piedade, do Jornal de Notícias, conta sua disputa com a mãe de uma “jaguncinha”. A mãe não lhe queria dar a filha. Então, ele diz, mostrou à mulher que podia “toma-la à força com o consentimento do comandante da praça, major Manuel José de Freitas, um oficial correto em tudo”. A mulher entregou a “jaguncinha”.
São centenas de crianças que os soldados sequestam, os oficiais “adotam”, e os jornalistas “protegem”. Carregam também toda a sorte de objetos como lembranças da campanha de Canudos. Favila Nunes, muito sinceramente, conta por que deixou de socorrer um soldado:
“... que caiu ferido na virilha; deixei-o agonizando porque tinha de atender ao Cândido Mariano, que me forneceu alguns troços de jagunços para minha coleção de curiosidades canudenses”.
A mentalidade dos que combatiam em Canudos explica o desprezo que as elites brasileiras sentem pela gente do povo. Essas tais “curiosidades” servem pitorescamente para serem mostradas aos inimigos ou se usam, nada mais.
Que fim levaram as crianças?
A tal ponto venderam e prostituíram essas crianças que o governo foi obrigado a criar um comitê de socorro para acalmar a opinião pública estarrecida, especialmente na Bahia. Ne, a intensa campanha contra Antônio Conselheiro e seus “jagunços” convenceu o povo baiano de que se podia escravizar e prostituir crianças e mocinhas.
Esse Comitê Patriótico da Bahia, no relatório transcrito em No Calor da Hora, denuncia os fatos. Diz que conseguiu livrar da “verdadeira escravidão em que se achavam e por ventura, da prostituição no futuro”, em muitas mulheres e crianças de ambos os sexos. A “caridosa” proteção dos generais era falsa, pois: “... se achavam as desgraçadas prisioneiras de Canudos, muitas das quais mortas de inanição, sem que uma só alma caridosa lhes procurassem salvar a vida ...”
O hospital do Exército, mesmo com leitos vagos, não aceitou cuidar de algumas mulheres que estavam à morte e algumas morreram por falta de atendimento médico. As meninas “loiras e de olhos azuis”, como a que o jornalista Favila Nunes levou ou a que Lélis Piedade tomou da mãe, segundo o relatório, estavam às portas da prostituição.
“Pelas crianças, porém, notadamente por elas, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. E pesa-nos dize-lo que grande parte dos menores reunidos pela comissão, dentre eles meninas pobres e mocinhas, se achavam em casa de quitandeiras e prostitutas. Foi, pois, para lamentar, a distribuição indevida das crianças, sendo muitas remetidas para vários pontos do Estado e para esta capital, como uma lembrança viva de Canudos ou como um presente.”
O relatório denuncia o comércio de órfãos e de “raparigas e meninas (que foram) defloradas” etc. uma das vítimas de 12 anos foi “desvirginada” pelo praça do 25º batalhão de infantaria, de nome José Maria”.
Poderíamos nos estender longamente citando essas “pequenas tragédias” que se seguiram à queda de Canudos. Não foram casos isolados: aconteceram às centenas. A impot6encia do Comitê para recuperar crianças escravizadas recusavam-se a entregá-las, mostrando recibos de oficiais e soldados. Entre vários casos cite-se o de um dos fornecedores das tropas do governo, Emílio Cortes, homem rico, que se recusou a devolver um menino porque tinha o recibo do próprio general. Donas de prostíbulos enviavam as meninas para o interior, escondendo-as do Comitê.
Assim terminou Canudos, mas não a ânsia de liberdade.
Seus mortos falam, na história do povo brasileiro. Talvez se possa lembrar Rui Barbosa, num dos seus textos mais ignorados sobre Canudos e Conselheiro:
“Os mortos pululam entre os vivos; inclinam-se daquelas galerias, apinham-se em torno desse anfiteatro, encostam-se às nossas cadeiras, não se vêem, mas se ouvem, se sentem, como se palpam. Vêm das catingas do norte, dos campos devastados, da guerra, das ruínas lavradas pelo fogo, dos destroços do petróleo e da dinamite; são desarmados, mulheres e crianças; mostram no colo o sulco da gravata sinistra; mutilados, esvicerados, carbonizados, estão dizendo: Falai por nós, voz da Bahia, voz da justiça, voz da verdade. Falai por nós, legisladores brasileiros, que falai por vossas almas, por vossos filhos. Temei a expiação, com que Deus pune o egoísmo insensível à causa dos mortos. As iniqüidades que bradam os céus recaem sobre a terra indiferente em chuva de iniqüidades. Separai a vossa sorte da sorte dos maus, ou a maldade será soberana, empestará o solo, e por mais de uma geração desencandeará sobre o povo o flagelo dos crimes que nos exterminam. Felizes os nossos companheiros, que morreram arrostando os leões; nós acabamos às garras das hienas. Somos as vítimas da boa-fé, a hecatombe da carniça.”
Para destruir Canudos o Exército brasileiro perdeu cinco mil soldados. Gastou-se uma enorme fortuna para armar e alimentar a tropa de repressão. A matança foi apresentada ao povo do Brasil como um ato de saneamento contra as forças do atraso, do fanatismo.
Hoje há uma represa em Canudos. É uma cidade submersa.
O que ficou debaixo das águas?
Bibliografia:
Chiavenato, Júlio José
As lutas do povo brasileiro: do descobrimento à canudos
São Paulo.
Publicado por: Brasil Escola
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