O contraditório e a ampla defesa na fase do inquérito policial

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1.   RESUMO

O presente artigo científico tem como intuito analisar, de forma clara e objetiva, a aplicação dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa durante a tramitação do procedimento de inquérito policial, sendo feito um exame do período histórico de promulgação do Código de Processo Penal e uma avaliação da evolução social brasileira nas oito décadas de vigência do Decreto-lei n. 3.689/1941, analisando-se a concepção do inquérito como procedimento de caráter inquisitivo, especialmente com a expressa adoção do sistema acusatório no âmbito do processo penal pela Lei n. 13.964/2019, com a reavaliação do modelo de investigação criminal em face da ordem constitucional inaugurada em 1988 e das recentes alterações da legislação infraconstitucional e advento de novas teses jurisprudenciais, por meio das quais foram reconhecidos direitos ao investigado e ao advogado na fase de investigação extrajudicial, permitindo-se o reconhecimento de prerrogativas, garantias e instrumentos que permitem que o indiciado e seu defensor possam influir no resultado da investigação promovida pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, com indicação expressa das hipóteses em que se percebe a aplicação mitigada dos postulados do contraditório e da ampla defesa e as formas de garantir que estes princípios sejam observados e respeitados, inclusive para modificação do valor probatório dado aos elementos de informação colhidos no procedimento investigativo para o fim específico de convencimento do julgador, permitindo a utilização dos elementos do inquérito como verdadeiras provas, ainda que de valor relativo em relação às produzidas em juízo, com a admissão de uma mudança de paradigma e reconhecimento da aplicação mitigada dos citados princípios constitucionais na fase de investigação.

Palavras-chave: Inquérito policial. Contraditório. Ampla defesa.

ABSTRACT

This current scientific article aims to analyze, in a clear and objective way, the applicability of the constitutional principles with reference to the adversarial principle and ample defense during the proceeding of the police investigation procedure, as of an examination of the historical Criminal Procedure promulgation period and also an appreciation of brazilian social evolution in the eight decades of the Decree-law n. 3.689/1941 validity, analyzing the police investigation content as an inquisitive procedure, chiefly with the express acceptance of the accusatory system in the criminal procedure field by Law n. 13.964/2019, with the reappreciation of criminal investigation model due to the constitutional order proclaimed in 1988 and the recent adjustments of infra-constitutional legislation just as the advent of new jurisprudential theses, by which the investigated and the lawyer rights were recognized in the extrajudicial investigation phase, allowing the acknowledgement prerogatives, protections and instruments able to enable the investigated and his defender to impact on the outcome of the investigation furthered by either the police authority or the Public Prosecution Service, with expressed indications of the hypotheses in whither is possible to perceived the mitigated application of the adversarial and ample defense postulates and ways to guarantee its observation and respect, even to modify the probative value of the informative elements collected in the investigative procedure to the specific purpose of convincing the judge, allowing the utilization of the investigation elements as if true evidence, even though its value is minor compared to the ones produced in court, with the admittance of a paradigm modification and an ackowledgement of the mitigated application of the constitutional principles quoted in the investigation stage.

Keywords: Police procedure investigation. Adversarial principle. Ample defense.

2. Introdução

Pelo presente trabalho, buscou-se demonstrar que a inquisitividade do inquérito policial, característica reconhecida pela maioria da doutrina como elementar ao procedimento de investigação, está inadequada à ordem jurídico-constitucional inaugurada pela Constituição Federal de 1988.

Com efeito, o Código de Processo Penal foi erigido há mais de 80 anos e sob a vigência de um governo autoritário (ditadura de Getúlio Vargas), sendo que o procedimento concebido como inquisitivo era adequado ao período; todavia, com o advento da Carta de Outubro, não mais se pode admitir que o inquérito policial seja reconhecido como absolutamente inquisitivo, de modo que, pelo presente artigo, buscar-se-á demonstrar que a citada característica deve ser revista, com a admissão do contraditório e ampla defesa no âmbito do inquérito policial, especialmente diante das mudanças legislativas posterior à Constituição de 1988.

3. O contexto histórico do advento do Código de Processo Penal e as características do processo penal brasileiro

O processo penal brasileiro é passível de algumas críticas. O Código de Processo Penal brasileiro entrou em vigor no ano de 1941 e, não obstante as diversas reformas promovidas pelos legisladores ao longo do tempo em que vigora, não condiz com a realidade político-social do Século XXI, seja pelos avanços tecnológicos relativos à comunicação (internet, redes sociais, aplicativos de conversas e utilização do modelo de processo eletrônico), seja pela necessidade de celeridade quanto à tramitação do feito como forma de resposta devida à sociedade quando à persecução penal e o direito social de punir, respeitando, sempre, os direitos fundamentais do investigado ou do acusado.

Dentre as diversas críticas feitas ao processo penal brasileiro, destaca-se a concepção do modelo de inquérito policial como procedimento inquisitorial, sem a aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Vale dizer: o inquérito policial é concebido como um procedimento administrativo, de natureza inquisitorial, ao qual não são aplicadas as garantias do contraditório e da ampla defesa em prol de garantir o resultado da investigação (apuração dos elementos de informação relativos à autoria, à materialidade e às circunstâncias do delito para fundamentar a opinio delicti do titular da ação penal).

Em breve consulta feita em diversos manuais de Processo Penal, verifica-se que a maioria dos doutrinadores afirma que o inquérito policial possui natureza inquisitorial, sem que sejam reconhecidos os direitos fundamentais da ampla defesa e do contraditório, conforme as seguintes transcrições:

Investigação preliminar como procedimento inquisitorial (nossa posição): cuida-se, a investigação preliminar, de mero procedimento de natureza administrativa, com caráter instrumental, e não de processo judicial ou administrativo. Dessa fase pré-processual não resulta a aplicação de uma sanção, destinando-se tão somente a fornecer elementos para que o titular da ação penal possa dar início ao processo penal. Logo, ante a impossibilidade de aplicação de uma sanção como resultado imediato das investigações criminais, como ocorre, por exemplo, em um processo administrativo disciplinar, não se pode exigir a observância do contraditório e da ampla defesa nesse momento inicial da persecução penal (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 5º ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Ed. JusPodivm, 2017. Pág. 120/121)

Caracteriza-se como inquisitivo o procedimento em que as atividades persecutórias concentram-se nas mãos de uma única autoridade, a qual, por isso, prescinde, para a sua atuação, da provocação de quem quer que seja, podendo e devendo agir de ofício, empreendendo, com discricionariedade, as atividades necessárias ao esclarecimento do crime e da sua autoria. É característica oriunda dos princípios da obrigatoriedade e da oficialidade da ação penal. É secreto e escrito, e não se aplicam os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois, se não há acusação, não se fala em defesa. Evidenciam a natureza inquisitiva do procedimento o art. 107 do Código de Processo Penal, proibindo arguição de suspeição das autoridades policiais, e o art. 14, que permite à autoridade policial indeferir qualquer diligência requerida pelo ofendido ou indiciado. (Capez, Fernando. Curso de Processo Penal – 27 ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2020. Pág. 188/189)

O inquérito é, por sua própria natureza, inquisitivo, ou seja, não permite ao indiciado ou suspeito a ampla oportunidade de defesa, produzindo e indicando provas, oferecendo recursos, apresentado alegações, entre outras atividades que, como regra, possui durante a instrução judicial. (...) O inquérito destina-se, fundamentalmente, ao órgão acusatório, para formar a sua convicção acerca da materialidade e da autoria da infração penal, motivo pelo qual não necessita ser contraditório e com ampla garantia de defesa eficiente. (Nucci, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. Ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2020. Pág. 361)

Caráter inquisitivo. O inquérito é um procedimento investigatório em cujo tramitar não vigora o princípio do contraditório que, nos termos do art. 5º, LV, da Constituição Federal, só existe após o início efetivo da ação penal, quando já formalizada uma acusação admitida pelo Estado-juiz. (Gonçalves, Victor Eduardo Rios, Direito processual penal esquematizado® / Victor Eduardo Rios Gonçalves, Alexandre Cebrian Araújo Reis. – 8. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. [Coleção esquematizado® / coordenador Pedro Lenza]. Pág. 60)

Quanto ao inquérito policial, a autoridade policial, de ofício, independentemente de provocação, deve investigar as infrações cuja apuração seja de ação penal pública incondicionada que lhe chegarem ao conhecimento, sem que tenha a obrigação de dar oportunidade ao investigado de se manifestar a respeito de cada ato apuratório; ou seja, não vigem, no inquérito policial, ou nas demais investigações criminais, os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º LV, da CF), válidos apenas quando do ajuizamento da ação penal. (Campos, Walfredo Cunha. Curso completo de processo penal – Salvador : JusPodivm, 2018. Pág. 118)

As supracitadas transcrições das doutrinas evidenciam um reflexo que emana da concepção do Código de Processo Penal e que representa o momento histórico em que foi elaborado e outorgado, em plena ditatura do Estado Novo (governo de Getúlio Vargas – 1937 até 1945).

De fato, o Código de Processo Penal foi editado e entrou em vigor durante um regime ditatorial, marcado pela supressão de direitos políticos e garantias fundamentais, sendo que, em seu cerne, estava reconhecida a possibilidade de atos unilaterais de investigação sem o reconhecimento de garantias mínimas aos investigados, o que condizia com a ordem constitucional vigente à época – Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937.

A citada Carta constitucional trazia, em seu texto, um forte protagonismo do chefe do Executivo e a previsão da possibilidade de relativização de garantias fundamentais e de submissão do Poder Legislativo à vontade do Presidente, conforme a seguinte demonstração:

Art. 73 - O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional e superintende a Administração do País.

Art. 74 - Compete privativamente ao Presidente da República:

c) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único do art.167; (Redação dada pela Lei Constitucional nº 9, de 1945)

d) adiar, prorrogar e convocar o Parlamento;

Art 123 - A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios consignados na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como as exigências da segurança da Nação e do Estado em nome dela constituído e organizado nesta Constituição.

Art 166 - Em caso de ameaça externa ou iminência de perturbações internas, ou existência de concerto, plano ou conspiração, tendente a perturbar a paz pública ou pôr em perigo a estrutura das instituições, a segurança do Estado ou dos cidadãos, poderá o Presidente da República declarar em todo o território do Pais, ou na porção do território particularmente ameaçada, o estado de emergência.

§ 1º - Para nenhum desses atos será necessária a autorização do Parlamento nacional, nem este poderá suspender o estado de emergência ou o estado de guerra declarado pelo Presidente da República.

Art 168 - Durante o estado de emergência as medidas que o Presidente da República é autorizado a tomar serão limitadas às seguintes:

a) detenção em edifício ou local não destinados a réus de crime comum; desterro para outros pontos do território nacional ou residência forçada em determinadas localidades do mesmo território, com privação da liberdade de ir e vir;

b) censura da correspondência e de todas as comunicações orais e escritas;

c) suspensão da liberdade de reunião;

d) busca e apreensão em domicílio.

e) atos decorrentes das providências decretadas, com fundamento no § 2º do art. 166.

Pela análise dos citados dispositivos, verifica-se que a ordem constitucional brasileira, à época do Estado Novo, reconhecia o Presidente da República como autoridade máxima e suprema do país, concedendo-lhe, a título de exemplo, as prerrogativas de dissolução da Câmara dos Deputados e de adiamento do Parlamento, bem como de suspensão de direitos e garantias fundamentais sem a necessidade de autorização do Poder Legislativo e com a imposição de limites ao exercício desses direitos decorrentes das atividades do Estado.

Ao confrontar o modelo do processo penal e, especificamente, da investigação policial para com a ordem constitucional vigente à época, é inegável que a natureza inquisitiva do inquérito policial atendia às necessidades do Estado brasileiro governado autoritariamente por Getúlio Vargas.

Felizmente, superado o Estado Novo e também períodos de grave instabilidade política no Brasil (suicídio de Vargas em 1955, renúncia de Jânio Quadros em 1961, crise da sucessão presidencial por João Goulart e adoção do Parlamentarismo no mesmo ano de 61 e o nefasto Regime Militar inaugurado em 1964), foi inaugurada uma ordem jurídico-constitucional pautada pela defesa e garantias de direitos fundamentais no Estado Brasileiro, com o advento da Constituição Federal de 1988.

4. A Constituição Federal de 1988 e os direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa

Dentre os diversos direitos fundamentais reconhecidos pela Carta Constitucional de 1988, estão as garantias de contraditório e ampla defesa, expressamente reconhecidas no art. 5º, inciso LV, da CF/88:

Art. 5º. (...)

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Pela análise do citado dispositivo constitucional, constata-se que as garantias do contrário e da ampla defesa são reconhecidas em favor dos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral, sendo normas-princípios decorrentes do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal que embasam todos os ramos processuais.

Neste ponto, não se olvida que o inquérito policial é conceituado como um procedimento de natureza administrativa e investigatória; todavia, valer-se desta natureza (procedimento administrativo) como argumento para excepcionar a aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa configura a subtração de procedimento previsto na legislação infraconstitucional em detrimento da ordem constitucional vigente.

Como é cediço, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º, CF/88) e, considerando os postulados da força normativa da Constituição e da carga normativa das normas garantidoras de princípios – características basilares da moderna concepção do Direito Constitucional denominada “Neoconstitucionalismo” – é inconcebível aceitar que um procedimento previsto na legislação infraconstitucional esteja excluído da aplicação de normas constitucionais, especialmente em face da eficácia irradiante dos direitos fundamentais e do dispositivo garantidor de eficácia imediata das garantias fundamentais.

Em uma simples conclusão: admitir que um procedimento infraconstitucional escape dos postulados constitucionais é admitir que exista exceção quanto à aplicação das normas da Constituição, especialmente se tratando de direitos fundamentais.

Por este motivo, é necessário reconhecer que há uma aplicação (ainda que mitigada) das garantias constitucionais do contraditório e ampla defesa ao procedimento de inquérito policial, superando a máxima relativa à “inquisitividade do inquérito”.

5. O (discreto) movimento doutrinário de reconhecimento da aplicação do contraditório e da ampla defesa

Mesmo em face da existência de entendimento doutrinário majoritário acerca da característica inquisitiva e, portanto, da impossibilidade de reconhecimento do contraditório e da ampla defesa no âmbito do inquérito policial, há uma vertente acadêmica que reconhece a aplicação do contraditório e ampla defesa no âmbito do inquérito policial, conforme a transcrição das lições que seguem indicadas:

No entanto, parece crescente na doutrina brasileira, ao menos em pesquisas e encontros acadêmicos (seminários, congressos etc.), o entendimento segundo o qual a presença do contraditório no inquérito policial seria uma exigência constitucional. (Pacelli, Eugênio. Curso de processo penal / Eugênio Pacelli. – 25. ed. – São Paulo: Atlas, 2021. Pág. 92)

Investigação preliminar como procedimento sujeito ao contraditório diferido e à ampla defesa: de um lado, parte da doutrina sustenta que as investigações preliminares – não apenas o inquérito policial, mas também procedimentos investigatórios diversos, como, por exemplo, um procedimento investigatório criminal presidido pelo Ministério Público – estão sujeitas ao contra­ditório diferido e à ampla defesa, ainda que com um alcance mais limitado que aquele reconhecido na fase processual. Isso não apenas por conta das mudanças introduzidas pela Lei nº 13.245/16, mas notadamente devido à própria Constituição Federal, que assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV), assim como a assistência de advogado (art. 5º, LXIII). O inciso LV do art. 5º da Constituição Federal não pode ser objeto de interpretação restri­tiva para fins de se concluir que a expressão processo administrativo ali utilizada não abrange as investigações preliminares, que têm natureza jurídica de procedimento administrativo, nem tampouco para se alegar que o fato de mencionar acusados, e não investigados ou indiciados, seja um impedimento para sua aplicação na fase pré-processual. (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. Renato Brasileiro de Lima -8ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. Pág. 187)

Por fim, refira-se a característica da inquisitoriedade. O inquérito policial tem caráter inquisitório, podendo a autoridade agir de maneira discricionário e unilateral, sempre nos limites da lei, mas sem a exigência de contraditório pleno. (...)

O caráter investigativo próprio do inquérito implica que os atos se realizem de maneira unilateral, via de regra. Significa isso dizer que não há contraditório pleno no que tange a obtenção e a produção de elementos informativos. Algum contraditório, porém, há em diversas etapas, a exemplo da obtenção de acesso mesmo a dados sigilosos (súmula vinculante n. 14 do STF) e da possibilidade de oferecimento de quesitos e de indicação assistente técnico no âmbito da perícia oficial.

Recentemente, fortaleceu-se noção pela garantia de presença do defensor audiência de inquirição do investigado perante autoridade policial, assim como pelo direito de apresentar razões e quesitos no curso da apuração, sob pena de nulidade do ato, como agora determina o inciso XXI do art. 7º incluído na Lei n. 8.906/1994 pela Lei n. 13.245/2016. (REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. – Salvador : Editora JusPodivm, 2017. Pág. 172)

Pela análise das citadas lições doutrinárias apresentadas, verifica-se que há um (discreto) movimento dentre os acadêmicos e doutrinadores de direito processual penal acerca do reconhecimento da aplicação mitigada do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial ou, para dizer de outro modo, de relativização da característica inquisitiva do procedimento investigatório.

Convém destacar que também foram localizados julgados reconhecendo a natureza diferida do contraditório na fase de inquérito policial, conforme passa-se demonstrar:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 2º, § 1º, DA LEI N. 12.850/13. CONDUTA DELITUOSA DE OBSTRUÇÃO DA PERSECUÇÃO CRIMINAL QUE ABRANGE O INQUÉRITO POLICIAL E A AÇÃO PENAL. ABSOLVIÇÃO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA QUANTO AO CRIME DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. PENDÊNCIA DO RECURSO DE APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. (...) Ademais, sabe-se que muitas diligências realizadas no âmbito policial possuem o contraditório diferido, de tal sorte que não é possível tratar inquérito e ação penal como dois momentos absolutamente independentes da persecução penal. (...) Recurso ordinário em habeas corpus ao qual se nega provimento. (STJ - RHC: 102117 MG 2018/0214079-3, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 04/10/2018, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/10/2018)

Nesse julgado de 2018, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que não é possível tratar como fases absolutamente distintas o inquérito policial e a ação penal, pois ambas integram a persecução penal e, corroborando a afirmação anterior, reconheceu-se que há aplicação do contraditório diferido no âmbito do procedimento investigatório de inquérito policial, ainda que atinente apenas algumas das diligências.

AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. NÃO CONHECIMENTO. IMPETRAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO CABÍVEL. UTILIZAÇÃO INDEVIDA DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO AO SISTEMA RECURSAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. CONDENAÇÃO BASEADA EXCLUSIVAMENTE NA PROVA DOCUMENTAL PRODUZIDA NO CURSO DO INQUÉRITO POLICIAL. CONTRADITÓRIO DIFERIDO. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO DISPOSTO NO ARTIGO 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. 1. Esta Corte Superior de Justiça pacificou o entendimento de que documentos produzidos na fase inquisitorial, como o processo administrativo tributário, por se sujeitarem ao contraditório diferido, podem ser utilizados como fundamento para a prolação de sentença condenatória, sem que tal procedimento implique ofensa ao disposto no artigo 155 do Código de Processo Penal. (...) (STJ - AgRg no HC: 414463 SP 2017/0220036-8, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 03/10/2017, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/10/2017)

Nesse julgado de 2017, novamente a 5ª Turma do Superior Tribunal reconheceu que os documentos produzidos na fase de inquérito são aptos serem utilizados como elementos de prova, eis que se aplica o contraditório mitigado na fase de investigação.

Ao reconhecer-se a aplicação mitigada do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, haveria verdadeira transformação quanto ao valor probatório do procedimento para a persecução penal, podendo-se afirmar que, de simples elemento informativo, transformar-se-ia elemento de prova de valor relativo ou subsidiário, passível de utilização pelo magistrado para seu convencimento ainda que dependente de provas produzidas judicialmente.

A título de exemplo: um investigado comparece perante a autoridade policial para prestar suas declarações em sede de interrogatório extrajudicial acompanhado de advogado. Durante a sua oitiva, o indiciado acaba por confessar o delito cometido, tendo-lhe sido garantida prévia entrevista e acompanhamento pelo advogado durante todo o ato. Deflagrada a ação penal e citado o réu, este não mais comparece aos autos do processo criminal, restando prejudicado o interrogatório judicial. Pergunta-se: pode valer-se o juiz do interrogatório prestado na fase extrajudicial como elemento de prova de forma isolada? Na atual sistemática, não. Todavia, no exemplo apresentado, mesmo que o réu não tenha sido interrogado em juízo, poderia ser atribuído ao seu interrogatório na fase de investigação valor probatório relativo, permitindo-se a utilização da confissão para condenação (obviamente acompanhada de outros elementos de prova).

Pode-se questionar se a solução apresentada se assemelha à regra disposta no art. 155 do CPP2, a qual permite que o juiz utilize-se de elementos informativos da fase de inquérito para condenação quando existentes provas judiciais; entretanto, a mudança pretendida quanto à conclusão apresentada relaciona-se à atribuição de um maior grau de valoração da confissão extrajudicial feita em razão de o réu ter sido acompanhado de advogado, eis que houve o exercício (ainda que mitigado) da ampla defesa no ato realizado perante a autoridade policial.

6. Hipóteses concretas de contraditório e de ampla defesa reconhecidas na legislação e na jurisprudência

Convém esclarecer que a legislação brasileira e o próprio Poder Judiciário têm criado, em alterações recentes, mecanismos que permitem concluir que a característica da inquisitividade do inquérito policial está sendo superada aos poucos, tais como as seguintes hipóteses:

Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (...)

III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo; (...)

XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

Súmula vinculante n. 14: É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

Art. 14 do Código de Processo Penal: O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

Art. 5º, inciso LXIII, Constituição Federal: o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

Art. 6o , inciso V, do Código de Processo Penal: Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (...) ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;

Art. 7º, inciso XXI, da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da OAB): assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:

Passa-se à análise de cada uma das hipóteses apontadas, as quais evidenciam inegável aplicação do contraditória e da ampla defesa na fase de inquérito policial.

6.1. Nova previsão do juízo de garantias no Código de Processo Penal – Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime)

Inserido no Código de Processo Penal com advento da Lei n. 13.964/2019 (e com aplicação suspensa pelas ADI 6.298, ADI 6299 e ADI 6300), o instituto do juiz de garantias tem por objeto o controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais do investigado, conforme consta do caput do art. 3º-B do Código de Processo Penal.

Vale salientar que a citada mudança legislativa reconheceu, de forma expressa, a estrutura acusatória ao processo penal (art. 3º-A do CPP) e a função fiscalizatória do juízo de garantias, de modo que o Código de Processo Penal passa prever a proteção dos direitos do investigado e da legalidade da investigação criminal pelo Poder Judiciário.

O reconhecimento expresso da estrutura acusatória do processo e da função fiscalizatória do juiz de garantias em relação aos direitos do investigado na fase inicial da persecução penal demonstram, de forma indubitável, o reconhecimento pelo legislador dos direitos individuais no âmbito do inquérito policial, permitindo, de forma clara e inconteste, a possibilidade de socorro do investigado ao Poder Judiciário ainda que durante a investigação realizada pela autoridade policial.

6.2. Reconhecimento do direito do defensor de acessar elementos de provas em procedimento investigativo – Súmula Vinculante n. 14 do STF

Aprovada em fevereiro de 2009, a Súmula Vinculante n. 14 do STF formalizou o direito do defensor de acessar os elementos de prova já documentados em procedimento investigatório presidido por órgão com competência de polícia judiciária, no interesse do representado e que tenham relação com o exercício do direito de defesa.

De início, impende ressaltar a garantia reconhecida em favor do advogado para acessar documentos de procedimentos investigativos de competência de órgãos de polícia judiciária, sendo que, pela redação do art. 144, § 1º e § 4º, da Constituição Federal, assegurou-se o acesso de procedimentos de inquérito presididos pela Polícia Federal e pela Polícia Civil dos Estados, órgãos aos quais a ordem constitucional atribuiu a função de polícia judiciária e a apuração das infrações penais na medidas das respectivas áreas de atuação.

Também merece destaque a interpretação literal do texto da Súmula Vinculante, que estabeleceu o direito do defensor de acessar os elementos de prova já documentados.

Vale dizer: pelo texto do enunciado vinculante editado pelo e. Supremo Tribunal Federal, é possível sustentar que os elementos do inquérito policial sejam alçados à condição de prova, ainda que com força probatória mitigada ou relativa, nos termos defendidos alhures.

Por fim, convém destacar que o descumprimento do enunciado da súmula vinculante possibilita, ao advogado, o manejo de instrumentos constitucionais de singular relevância, sendo possível a utilização da reclamação constitucional ao Supremo Tribunal Federal pela inobservância de enunciado aprovado (art. 103-A da CF/88) ou a impetração de mandado de segurança em decorrência da violação do direito líquido e certo do advogado para acesso aos autos do inquérito policial.

6.3. Faculdade atribuída ao investigado para formulação de pedidos de diligência no âmbito do inquérito policial – Art. 14 do CPP

Em relação à previsão do art. 14 do CPP, merece destaque a previsão legislativa que garante ao investigado a possibilidade de requerer a produção de diligência, a qual será decidida pela autoridade policial.

Deve ser elogiada a previsão constante do Código de Processo Penal, eis que possibilidade o indiciado indicar diligência passível de produção que possa esclarecer situação relativa à autoria, à materialidade ou circunstância do crime, contribuindo para apuração da verdade na fase de inquérito policial.

Vale dizer: se o Código de Processo Penal reconhece a possibilidade de indiciado requerer diligência, fato é que há prerrogativa de provocar a autoridade no interesse da defesa para produção de elemento de informação na fase de inquérito.

Imperioso esclarecer que a ampla defesa possui diferentes espectros: positivo, entendido como a prerrogativa de influir no resultado do ato processual, da prova ou do julgamento, e o negativo, consistente no direito de não produzir prova que lhe seja desfavorável, conforme precisa lição de Renato Brasileiro de Lima:

Há entendimento doutrinário no sentido de que também é possível subdividir a ampla defesa sob dois aspectos: a) positivo: realiza-se na efetiva utilização dos instrumentos, dos meios e modos de produção, certificação, esclarecimento ou confrontação de elementos de prova que digam com a materialidade da infração criminal e com a autoria; b) negativo: consiste na não produção de elementos probatórios de elevado risco ou potencialidade danosa à defesa do réu. (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 8º ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Ed. JusPodivm, 2020. Pág. 58/59)

Além disso, o nobre prof. Guilherme Madeira também aponta quatro direitos decorrentes da ampla defesa reconhecida em favor do réu, quais sejam: o direito de propor meios de prova, direito de obter pronunciamento judicial motivado, direito à prática da prova admitida e direito de manifestação pelo órgão julgador quanto à prova produzida3.

No caso do art. 14 do CPP, há o reconhecimento do direito de propor diligências (elementos de informação) e, deste modo, de influir nas investigações encerradas em sede do inquérito policial, constituindo-se como manifestação da ampla defesa, ainda que de forma mínima ou relativa.

Saliente-se, inclusive, que Guilherme de Souza Nucci, ao comentar o texto do art. 14 do CPP, inclusive reconhece a possibilidade do indiciado (ou da vítima) de provocar a autoridade judiciária ou o Ministério Público quanto for indeferido o pedido de diligências, sendo que a autoridade policial estará obrigada atender ao pedido:

Entretanto, se a prova requerida for muito importante, pode a parte, cujo requerimento foi indeferido, dirigi-lo novamente ao promotor ou ao juiz que acompanham, necessariamente, o andamento do inquérito. Julgado viável o solicitado, a diligência pode ser requisitada pela autoridade competente, obrigando, então, o delegado a atendê-la. (Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado / Guilherme de Souza Nucci. 12 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2013. Pág. 124)

A possibilidade de provocação do órgão jurisdicional para realização de diligência indicada pela defesa na fase de inquérito demonstra a robustez da prerrogativa conferida ao indiciado e seu defensor, podendo ser reconhecido como verdadeiro direito garantido ao investigado para influir no resultado da investigação.

Dessa forma, considerando que o Código de Processo Penal prevê a possibilidade de o indiciado requerer diligências e a provocação do juízo em caso de indeferimento, é fato que há um mínimo de ampla defesa reconhecida na fase de inquérito policial.

6.4. Direito constitucional de permanecer em silêncio – art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal

Merece destaque também a previsão constitucional do direito ao silêncio em favor do preso, o que configura verdadeiro instrumento de defesa – art. 5º, LXIII, da CF/88.

O direito de permanecer calado e a previsão infraconstitucional da vedação à interpretação desfavorável do silêncio foram alçados, pela ordem constitucional de 1988, à categoria de direito fundamentais, sendo que sua observância é imperiosa pelas autoridades do país, em especial as responsáveis pelas fases da persecução penal (autoridade policial e juiz).

Especificamente quanto ao interrogatório extrajudicial, verifica-se que o Código de Processo Penal, em boa medida, utilizou-se de norma remissiva (de extensão) para garantir a observância do direito ao silêncio e da vedação da interpretação desfavorável em relação à inquirição do indiciado pela autoridade policial, conforme art. 6º, inciso V, c/c art. 186, caput e seu parágrafo único, do Código de Processo Penal:

Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (...)

V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Pela análise do teor dos citados artigos, verifica-se que há aplicação do direito ao silêncio em favor do indiciado que esteja sendo interrogado pela autoridade policial, de modo que a inobservância desta norma e de formal comunicação do direito de permanecer calado ao acusado poderá acarretar a nulidade de sua oitiva, caso esta omissão configure-se como vicio na voluntariedade ou coação, conforme as precisões lições de Renato Brasileiro de Lima:

Com o objetivo de se evitar uma autoincriminação involuntária por força do desconhecimento da lei, deve, sim, haver prévia e formal advertência quanto ao direito ao silêncio, sob pena de se macular de ilicitude a prova então obtida. O acusado deve ser advertido, ademais, que o direito ao silêncio é uma garantia constitucional, de cujo exercício não lhe poderão advir consequências prejudiciais. (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 5º ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Ed. JusPodivm, 2017. Pág. 71)

Doravante, presente o advogado, se não lhe for assegurado o direito de assistir a seu cliente investigado durante a realização de seu interrogatório policial, inclusive com a observância do direito à entrevista prévia e reservada, para que possa instrui-lo acerca de quais perguntas deve responder, ou se deve simplesmente permanecer em silêncio, ter-se-á manifesta ilegalidade, daí por que eventual confissão nessas circunstâncias deve ser considerada ilícita, assim como as demais provas dela derivadas (CPP, art. 157, caput e § 1º). (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I Renato Brasileiro de Lima- 5. ed. rev .. ampl. e atual.- Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. Pág. 190)

Para além da garantia ao silêncio perante a autoridade policial, impende destacar que o Supremo Tribunal Federal, em sede do julgamento do RHC 170843 AgR/SP, concluiu que o direito ao silêncio deverá, inclusive, ser informado ao preso no momento da voz de prisão por policial, ainda que em sede de flagrante delito, como forma de prevenir a autoincriminação (nemo tenetur se detegere), conforme constante do Informativo n. 1016-STF de 14 de maio de 2021:

DIREITO PROCESSUAL PENAL – NULIDADE - RHC 170843 AgR/SP

Direito ao silêncio e condenação com base em “interrogatório informal”

Resumo: Não se admite condenação baseada exclusivamente em declarações informais prestadas a policiais no momento da prisão em flagrante.

A Constituição Federal (1) impõe ao Estado a obrigação de informar ao preso seu direito ao silêncio não apenas no interrogatório formal, mas logo no momento da abordagem, quando recebe voz de prisão por policial, em situação de flagrante delito.

Ademais, na linha de precedentes da Corte (2), a falta da advertência ao direito ao silêncio, no momento em que o dever de informação se impõe, torna ilícita a prova. Isso porque o privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se detegere), erigido em garantia fundamental pela Constituição, importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado acerca da possibilidade de permanecer calado.

Dessa forma, qualquer suposta confissão firmada, no momento da abordagem, sem observação ao direito ao silêncio, é inteiramente imprestável para fins de condenação e, ainda, invalida demais provas obtidas através de tal interrogatório.

No caso, a leitura dos depoimentos dos policiais responsáveis pela prisão da paciente demonstra que não foi observado o citado comando constitucional.

Portanto, pela análise dos dispositivos constitucional e infraconstitucionais, constata-se que o direito ao silencio qualifica-se como verdadeiro instrumento de defesa cuja observância é necessária no âmbito do interrogatório extrajudicial e, até mesmo, no momento da prisão por agente público diverso da autoridade policial (tais como PM, PRF etc.), sendo que seu desrespeito poderá acarretar nulidade do ato de prisão ou da diligência de interrogatório.

6.5. Direito do advogado de assistir clientes investigados em sede de repartição policial – Art. 7º, inciso XXI, do Estatuto da OAB

Por fim, convém destacar que o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil estabelece que é direito do advogado assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento – art. 7º, inciso XXI, da Lei n. 8.906/1994.

A citada previsão infraconstitucional está de acordo com o disposto no art. 5º, LXIII, da Carta Magna, que reconhece o direito do preso de ser assistido por advogado, o que novamente evidencia, com a conjugação do dispositivo constitucional e do direito assegurado pela lei, que há a garantia mínima de ampla defesa no âmbito da investigação.

Sob esta prerrogativa, oportuna a transcrição da lição de Aury Lopes Junior, que novamente reconhece um mínimo de ampla defesa no âmbito da investigação pré-processual, em especial quanto ao direito de estar acompanhado por advogado e a supracitada garantia de permanecer em silêncio:

Mesmo no interrogatório policial, o imputado tem o direito de saber em que qualidade presta as declarações, de estar acompanhado de advogado e, ainda, de reservar-se o direito de só declarar em juízo, sem qualquer prejuízo.

O art. 5º, LV, da CB é inteiramente aplicável ao IP. O direito de silêncio, ademais de estar contido na ampla defesa (autodefesa negativa), encontra abrigo no art. 5º, LXIII, da CB, que ao tutelar o estado mais grave (preso) obviamente abrange e é aplicável ao sujeito passivo em liberdade. (Lopes Junior, Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020. Pág. 151)

A violação ao direito de ser assistido e acompanhado por advogado no momento do interrogatório ou ao longo da tramitação do inquérito resulta na nulidade dos elementos de informação que venha ser produzidos no procedimento, contaminando quaisquer informações e provas que decorram do ato ilegal.

7. Conclusão

Em conclusão ao trabalho apresentado, necessário ponderar que, em pleno Século XXI e passados mais de 30 anos do advento da Constituição Federal de 1988, ainda há entendimentos doutrinário e jurisprudencial majoritários acerca da natureza inquisitiva do inquérito policial, o que configura verdadeira violação aos preceitos constitucionais relativos ao contraditório e à ampla defesa.

Admitir que um procedimento previsto na legislação infraconstitucional para apuração de infrações penais não se submeta, ainda que de forma mitigada, aos direitos fundamentais processuais da ampla defesa e do contraditório é aceitar que exista exceção à Constituição Federal.

Ademais, por mais que possa a conclusão de que o reconhecimento do contraditório e da ampla defesa na fase inquérito policial possa configurar situação favorável apenas à defesa, é fato que titular da ação penal (Ministério Público e ofendido) poderá perceber vantagens no reconhecimento das citadas garantias no procedimento de inquérito, eis que haveria verdadeira alteração no valor probatório dos elementos de informação coligidos no inquérito para configurarem-se como efetivos elementos de prova de valor relativo, passíveis de presunção de veracidade e oponíveis a eventuais modificações e alterações posteriores feitas pela própria defesa no âmbito do processo.

Além disso, o exercício das garantias do contraditório e da ampla defesa no âmbito do inquérito policial permite que o procedimento investigativo contribua, de forma mais adequada, à descoberta da verdade em relação aos fatos apurados e que se evite procedimentos inadequados ou sem um mínimo de lastro probatório, com o consequente vício em relação à justa causa para exercício da ação penal4.

Portanto, perceptível a necessária mudança de paradigma para admitir que o inquérito policial, mesmo que seja de forma relativa, mitigada e diferida, se submete ao contraditório e à ampla defesa, especialmente considerando as recentes alterações legislativas que garantem direitos ao investigado em sede do inquérito policial e os direitos garantidos pela ordem constitucional de 1988.

8. Bibliografia

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- Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm

- Código de Processo Penal – Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm

- Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm

- CAMPOS, Walfredo Cunha. Curso completo de processo penal – Salvador : JusPodivm, 2018.

- CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal – 27 ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

- DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal – 8ª ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2021.

- GONÇALVES, Victor Eduardo Rios, Direito processual penal esquematizado® / Victor Eduardo Rios Gonçalves, Alexandre Cebrian Araújo Reis. – 8. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. [Coleção esquematizado® / coordenador Pedro Lenza].

- LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 5º ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Ed. JusPodivm, 2017.

- LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 8º ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Ed. JusPodivm, 2020.

- LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

- NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. Ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2020.

- NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado / Guilherme de Souza Nucci. 12 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2013.

- PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal / Eugênio Pacelli. – 25. ed. – São Paulo: Atlas, 2021.

- REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. – Salvador : Editora JusPodivm, 2017.

2 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

3 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal – 8ª ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2021. Pág. 126

4 À primeira vista, poder-se-ia pensar que o exercício do direito de defesa nas investigações preliminares, inclusive com a obrigatória presença de advogado no interrogatório policial, poderia funcionar como obstáculo à eficácia das investigações. Pelo contrário. Como exposto anteriormente, as investigações preliminares não têm como finalidade única a obtenção de elementos de informação para que o titular da ação penal possa ingressar em juízo. Também visam inibir a instauração de um processo penal infundado, temerário. Logo, o exercício do direito de defesa na investigação preliminar não depõe contra a eficácia do trabalho investigatório. (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 5º ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Ed. JusPodivm, 2017. Pág. 120)  


Publicado por: Rafael Roble de Oliveira

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