A morte é tudo menos o fim: o morrer ambivalente no mundo helênico a partir de uma perspectiva interdisciplinar (séculos VIII-IV a.C.)
História
A presente monografia analisa os modos como os gregos lidavam com a questão do morrer durante a Idade do Ferro, o Período Arcaico e o Período Clássico
1. INTRODUÇÃO
O mundo helênico é composto por diversas pólis, cada qual com a sua especificidade, em virtude dessa pluralidade, é necessário tratá-lo como uma unidade cultural, a fim de melhor compreender os elementos socioculturais compartilhados pelas comunidades da bacia mediterrânea. Por essa razão, a presente monografia adota essa abordagem metodológica para analisar os modos como os gregos lidavam com a questão do morrer durante a Idade do Ferro, o Período Arcaico e o Período Clássico. De fato, essa periodização abarcar um grande intervalo de tempo, contudo, essa escolha permite a apropriação de um maior número de fontes iconográficas e literárias com o intuito de construir um panorama menos específico e mais geral, o que é a proposta da atividade avaliativa da UC de História Antiga. É igualmente válido esclarecer que a relação entre os gregos e a morte pouco muda na longa-duração. Ademais, uma perspectiva interdisciplinar mostra-se vantajosa para esse estudo, porquanto a arqueologia, a antropologia e a sociologia fornecem conceitos e fontes de fundamental importância para o entendimento das práticas mortuárias na Grécia Antiga, ou seja, não vamos nos limitar ao campo da História, ainda que o presente texto seja acima de tudo um produto da História Cultural (com passagens na História Social).
Portanto, procuramos defender a ideia de que, no mundo helênico, a morte caracteriza-se pela sua ambivalência, isto é, não era o fim, nem o começo, não era um ou outro, era ambos, o fim e o começo. A partir dessa perspectiva, é essencial começar o artigo com a esquematização dos rituais fúnebres para assim vislumbrar os múltiplos sentidos que a morte carregava para os gregos. O recurso da literatura, principalmente a Ilíada de Homero, documentos e fontes arqueológicas ajuda a entender como o morrer impacta as relações sociais e a mentalidade dos gregos. Em seguida, busca-se dimensionar a importância da forma como o indivíduo morre para aquela cultura – com ênfase na bela morte e no ultraje do cadáver – e os mecanismos utilizados para interromper ou alcançar a imortalidade, tal como os poemas épicos, respectivamente. Por fim, as representações antigas do mar são o ponto chave para compreender a ambivalência da morte, haja vista que o desaparecimento do cadáver rompe com os mecanismos de perpetuação do indivíduo no mundo dos vivos.
2. RITUAIS FUNERÁRIOS NA GRÉCIA ANTIGA
Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a idéia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino (DE COULANGES, 2006, n.p).
Em determinadas culturas, havia o medo da morte e do retorno dos espíritos dos mortos devido à crença de que os mortos continuavam exercendo grande influência no mundos dos vivos, seja para o bem, seja para o mal. As almas daqueles que se foram poderiam contribuir para uma colheita abundante, por exemplo, mas caso fossem desrespeitadas poderiam causar calamidades, enfermidades e até a morte. Sendo assim, os ritos funerários surgem entre esses povos com o intuito de suprir a necessidade de manter os espíritos a uma distância segura dos vivos[1]. A Grécia Antiga durante a Idade do Ferro não foge dessa essa lógica. Evidentemente, o mundo helênico é composto por diversos corpos sociais, cada qual com a sua especificidade, tratá-lo como uma unidade cultural, no entanto, está longe de reduzir essa pluralidade a um universo homogêneo, muito pelo contrário, essa abordagem metodológica faz-se necessária para melhor compreender elementos socioculturais compartilhados pelas comunidades que compõem a bacia mediterrânea. Os rituais funerários, nessa perspectiva, são essenciais, enquanto aspectos idiossincráticos, para analisar como os gregos, em sua diversidade e particularidade, venciam as barreiras impostas pela morte.
Podemos esquematizar a passagem para o mundo pós-morte em três etapas: próthesis, purificação do cadáver com banho, óleos e unguento das vestes e acessórios para perfumar o corpo e afastar os insetos e, em seguida, depositá-lo na klíne (cama fúnebre ou esquife); ekphorá (cortejo fúnebre, ou seja, o transporte do corpo para o local do enterro); e sepultamento do morto. Não é possível mensurar com precisão o local onde a próthesis acontecia, a escolha variava de acordo com as estações do ano e fatores meteorológicos, porém as evidências iconográficas permitem dizer que era em um espaço familiar (oíkos), independente de ser em um ambiente fechado (como dentro de casa) ou aberto (como o pátio), mas os vasos do Período Arcaico e Clássico indicam que aquele era mais recorrente[2].
Como os mortos precisavam ser honrados da maneira adequada, cada indivíduo tinha uma forma gestual específica de prestar solenidade durante essa etapa. A partir de fontes iconográficas, parece seguro afirmar que as mulheres lamentavam o falecimento do ente querido com as duas mãos na cabeça como se fossem arrancar os cabelos (figura 1) ao passo que os homens levantavam uma mão em direção ao morto e a outra era levada à cabeça[3]. Para além de respostas, as representações pictóricas também nos trazem questionamentos, tal como a divisão de gênero na estrutura das exéquias. Embora, de fato, a lamentação seja um papel fundamentalmente feminino, a literatura antiga esclarece que essa prática não se restringe às mulheres. Na Ilíada de Homero, a próthesis de Pátroclo é conduzida por Aquiles, enquanto o funeral de Heitor é celebrado por cantores profissionais e pelas suas parentes[4].
Além da próthesis e da ekphorá, o sepultamento configura-se como uma parte igualmente importante para as práticas fúnebres, haja vista que erige o lugar onde o morto continuará existindo material e imaterialmente, seja por meio do rito em si, seja por meio dos rituais pós-deposicionais – oferendas em datas celebrativas ou de tempos em tempos pelos familiares daqueles que se foram (SOUZA, 2020, 336). Em razão do valor do enterro para os gregos, a tradição exigia que a cerimônia fosse realizada de três maneiras: ou pela cremação primária, que era feita diretamente na cova; ou pela cremação secundária, que acontecia em uma pira próxima à cova; ou pela inumação do cadáver no túmulo. Junto com os restos humanos – seja o corpo preservador, esqueletizado ou carbonizado –, eram depositados objetos como oferendas.
Desse modo, a cerimônia de enterro é muito reveladora quanto às particularidades culturais de cada pólis grega ao longo da bacia do mediterrâneo, além do mais, também nos fornece um vislumbre do funcionamento das hierarquias sociais no interior de cada cidade-estado. A depender do mobiliário funerário presente nas sepulturas, podemos medir o prestígio do morto e, em virtude disso, a sua posição na sociedade antiga. A quantidade, qualidade, variedade e dimensões dos vasos, ânforas e outros objetos (figura 2), por exemplo, denotavam os status do indivíduo entre os seus pares (SOUZA, 2020, 329). Por outro lado, as oferendas que possivelmente haviam pertencido ao falecido indicavam o gênero sexual do mesmo, já que armas e ferramentas eram atribuídas a homens enquanto ornamentos para vestes e utensílios domésticos, a mulheres. Deve-se ressaltar, contudo, que, como a sepultura refletia o poder político, social e cultural de um determinado grupo, esse espaço também vai ser utilizado como uma plataforma de projeção, ou seja, muitas vezes o túmulo não vai refletir o prestígio do indivíduo, mas sim as ambições da sua família[5].
De acordo com Camila Diogo de Souza (2020, 333-334), os lécitos atenienses de fundo branco do século V a.C. apresentam uma quarta e final etapa dos rituais mortuários que complementa a próthesis, a ekphorá e o enterro. Nesses vasos, existem pinturas que retratam o processo de travessia do indivíduo do mundo dos vivos para o mundo dos mortos através dos rios Stýx (ninfa filha Thétis) e Léthe (representação do esquecimento, filha de Éris) que corriam da caverna de Hýpnos (personificação do sono e irmão da morte, Thánatos) até o Hades. E, embora o “óbolo de Caronte” seja recorrentemente associado a moedas de bronze colocadas no morto com o intuito de garantir a sua salvaguarda para o submundo, as fontes literárias e arqueológicas do final do século V a.C. na Ática mostram que outros objetos – principalmente vasos e píxides – também eram usados como bilhete de travessia (figura 3).
A luz dessas práticas mortuárias, é possível entender que os rituais fúnebres, por meio de sua estrutura e dinâmica interna, atribuem um “sentido de ritual” ao morto e, assim, produzem um “corpo ritualizado”. O “sentido de ritual” serve para criar contextos socioculturais em que o corpo ritualizado possui certo poder de influência, ou seja, ele transforma o cadáver em um “agente social ritualizado”[6]. Tendo em mente que as exéquias funerárias expressam as disputas internas das pólis, o “corpo ritualizado”, enquanto ser social, pode atuar como um argumento baseado na descendência linear, a fim de fundamentar o poder político de um grupo em detrimento das reivindicações de outros. Essa estratégia vai se consolidar durante o século VIII e VII a.C., quando as necrópoles passam a ser o espaço exclusivo para se enterrar aqueles que morreram[7].
De fato, o culto aos mortos vai ser instrumentalizado politicamente pelas famílias que buscavam galgar mais espaço na sociedade grega. Um exemplo disso é a necessidade de a legislação funerária de Sólon do século VI incidir diretamente sobre a maneira como a ekphorá e o sepultamento eram realizados com o intuito de controlar os excessos e de reafirmar a autoridade da pólis frente aos clãs mais poderosos. Essa medida acarretou uma limitação do número de pessoas que poderiam participar do cortejo fúnebre, além de restringir a quantidade de comida consumida no banquete celebrado após o enterro. A veneração exacerbada, entretanto, correspondia igualmente a um desejo de ser rememorado por aqueles que vierem depois, ou seja, o empenho de uma pessoa para com os seus antepassados refletia a sua vontade de ser cultuada na mesma devoção pelos seus descendentes[8].
Em suma, as fontes arqueológicas e literárias datadas da Idade do Ferro, do Período Arcaico e do Período Clássico sobre a Grécia Antiga relatam como os rituais fúnebres eram conduzidos e, assim, nos permite ter um vislumbre da relação dos vivos com os mortos. A partir de uma análise da próthesis, da ekphorá e do sepultamento, é correto afirmar que a morte, no mundo helênico, não era tratada como o fim, pelo contrário, ele era vista como uma transformação do indivíduo física e metafisicamente, uma transição do mundo dos vivos para o Hades. Sob essa ótica, as pessoas nunca morriam de fato porque as práticas funerárias e os rituais pós-deposicionais as cristalizavam na memória coletiva. Além disso, mesmo no pós-morte elas não só detinham uma identidade – graças ao processo de ritualização –, mas também se constituíam como seres sociais inseridos em cenários de disputa por poder e prestígio. Logo, ainda que os vivos instrumentalizassem politicamente a morte, os mortos, enquanto “corpos ritualizados” com “sentido de ritual” pertencentes a uma cultura em que a morte possui um grande peso simbólico, influenciavam os contextos socioculturais como verdadeiros agentes no funcionamento da pólis e não meras ferramentas ideológicas.
3. A BELA MORTE
Na Grécia Antiga, houve uma maneira de morrer em combate a qual foi a mais cobiçada pelos guerreiros porque, além de conferir a eles o maior prestígio, valor e honra que uma pessoa poderia conquistar durante a sua passagem pelo mundo dos vivos, também garantia a sua glória por toda a eternidade. Padecer no campo de batalha, contudo, era insuficiente para reivindicar a kalòs thánatos (bela morte) – modo como as orações fúnebres atenienses chamavam essa morte –, se o hoplita quisesse obter essa honra heróica, era necessário cair defendendo a pólis. Por mais que a morte parecesse inevitável, os gregos entendiam que a única forma de vencê-la era ir em sua direção em vez de esperar que o passar dos anos a causasse naturalmente. Se por um lado, ao renunciar a uma vida longa, o soldado perderia as homenagens adquiridas com a vitória, por outro, ele seria glorificado com a imortalidade.
Nessa perspectiva, a morte definitiva seria cair no esquecimento enquanto viver de verdade seria ser louvado por várias gerações, ou seja, o objetivo máximo do herói é dedicar a sua vida ao combate para assim, quando morrer, inscrever a sua história na memória coletiva de sua comunidade. O feito heróico, então, exige a existência de uma tradição de poesia oral, a fim de que as experiências dos indivíduos sejam passadas adiante e glorificadas. É conveniente ressaltar, entretanto, que isso não significa que os guerreiros eram personagens fictícios e a bela morte apenas uma convenção de estilo. Afinal, em razão da honra heróica, os cantos épicos não se restringiam a um simples entretenimento, ao contrário, sedimentavam um conjunto de valores, saberes e crenças de cunho moral e pedagógico no interior da civilização grega[9].
Para a maioria dos gregos, o auge do ser humano encontra-se na juventude, exalando vigor e beleza, só que, com o passar dos anos, a velhice iria desfazer essas características valorosas do indivíduo, destituindo-o de toda a sua glória até não sobrar nada. A bela morte, então, impede que o guerreiro siga esse caminho de degradação, permitindo que ele alcance a eterna juventude. Em Esparta, porém, o hoplita que consegue retornar para casa depois de uma batalha é recebido com respeito e com as mesmas honrarias daqueles que morreram em combate e, mesmo quando envelhece, é tratado com admiração por parte dos demais cidadãos da pólis. Percebe-se, portanto, que a bela morte está associada a um ideal estético, pois o último segundo de vida é aquele que será perpetuado por toda a eternidade. Em decorrência disso, o guerreiro precisa se preocupar com a sua aparência caso queira uma imortalidade bela e gloriosa. O cabelo e a barba, por exemplo, representavam a vitalidade e a maturidade do homem, sendo atributos valorosos dignos de serem levados para o mundo dos mortos. Jean-Pierre Vernant (1978, 52) afirma que “Na Ilíada, os companheiros de Pátroclo e o próprio Aquiles cortam sua cabeleira sobre o cadáver de seu amigo defunto antes de dá-lo às chamas. Vestem-lhe o corpo inteiro com seus cabelos como se o revestissem para a sua última viagem, com sua jovem e viril vitalidade”.
O contraponto da beleza guerreira é o ultraje do cadáver, visto que violar o corpo do morto, retirando-lhe a sua virilidade, vitalidade e glória, o impede de ser merecedor da bela morte. Seguindo essa linha de raciocínio, no campo de batalha, não basta apenas matar o inimigo, é necessário destituí-lo do direito à bela morte impedindo que os ritos fúnebres sejam realizados. Afinal, o ritual funerário é de fundamental importância para a consagração da morte heróica, uma vez que limpa as sujeiras e feridas, embeleza e perfuma o corpo, garantindo que o indivíduo esteja no seu ápice durante a passagem para o Hades. Outra parte vital das práticas mortuárias é a cremação, pois essa salva o cadáver da corrupção do tempo ao passo que cristaliza a juventude e beleza do herói – juntamente com os valores sociais, políticos e pessoais encarnados em seu corpo –, enviando-as para o além (VERNANT, 1978, 55).
Haviam três modos de ultrajar o cadáver que não somente negavam a bela morte ao herói, como também o apagavam da memória coletiva, sentenciando-o ao esquecimento e, logo, à verdadeira morte. É conveniente mencionar que essa ofensa está longe de se restringir apenas ao hoplita abatido em combate, pelo contrário, afetava todo o coletivo associado a ele, visto que o soldado pertence a uma camada social, clã, ethos específico e, por essa razão, carrega consigo essas marcas identitárias. Desse modo, o corpo é o encontro dos símbolos de uma determinada estrutura social, então, o ataque a esse corpo afeta também a estrutura social que ele representa[10].
A primeira forma de ultraje consistia em sujar o corpo ensanguentado de terra e arrancar-lhe a pele, assim, o soldado abatido tornava-se irreconhecível, perdendo os seus traços humanos e aproximando-se de uma massa de poeira e sangue. A segunda forma de destituir uma pessoa de toda a sua beleza heróica e reduzi-la a uma matéria inanimada era esquartejar os membros em pequenos pedaços, atacando a integridade física do corpo humano. E, por fim, o último modo de ultraje era deixar o defunto apodrecer naturalmente, negando-lhe o acesso à pira fúnebre e, como consequência, impedindo a travessia para o Hades. A fim de dimensionar o impacto da bela morte e do ultraje para os gregos antigos, Jean-Pierre Vernant (1978, 60) analisa um trecho da Ilíada de Homero em que os deuses estão ativamente envolvidos na preservação do corpo dos heróis:
À inquietude de Aquiles com o corpo de Pátroclo, que corre o risco de apodrecer, comido de vermes, Tétis responde: “jaza ele um ano inteiro, sua carne permanecerá sempre intacta, émpedos, ou mesmo até em melhor estado, è kaì areíron”. Juntando o gesto à palavra, a deusa destila no fundo das narinas de Pátroclo ambrosia e néctar vermelho, para que sua carne fique intacta, émpedos. Durante todo o tempo em que Aquiles se encarniça contra o cadáver de Heitor, arrastando-o no pó, dando-o à devoração dos cães, Afrodite, dia e noite, afasta as feras do morto: “ela unge-o com um óleo divino, cheirando à rosa, de medo que Aquiles lhe arranque toda a pele ao arrastá-lo”. Por sua vez, Apolo traz do céu uma nuvem escura; “ele não quer que o ardor do sol lhe resseque muito rápido a pele que cobre os tendões e os membros”. Muito rápido – antes que o corpo, entregue a Príamo, seja objeto do ritual funerário que o enviará, intacto, para o além, na inteireza de sua beleza.
Em vista disso, pode-se concluir que, mesmo a morte sendo um fenômeno inevitável, os gregos buscavam formas de contorná-la por meio da atribuição de novos significados e da inserção da história do morto na memória coletiva com os poemas épicos. Por mais que a pessoa não estivesse entre os vivos, os seus feitos heróicos permitiam que ela transcendesse a barreira da carne e alcançasse a imortalidade na palavra cantada. Logo, a morte, mais precisamente a bela morte, em vez de ser o fim; o ponto mais baixo na vida de um guerreiro, tornava-se justamente o contrário; o auge de toda a sua jornada pessoal e o fator que garantia a sua sobrevivência.
4. O MAR E A MORTE
Se por um lado o mar teve um papel fundamental na expansão helênica para além dos limites do Egeu, conectando a porção ocidental à porção oriental da bacia mediterrânea, o que resultou na formação de assentamentos, dinamização do comércio (como das vinhas e oliveiras), aumento da extração mineral, intensificação da urbanização e trocas entre culturas[11], por outro, o mar estava permeado por um conjunto de símbolos que criavam uma imagem negativa sobre esse ambiente. Em decorrência disso, a morte em alto mar era desvalorizada e temida pelos gregos, sendo o contraponto da bela morte. Essa visão temerosa manifesta-se nas representações do mar em poemas e cerâmicas como um lugar repleto de seres mitológicos que não apenas matam os navegantes, como também destroem os seus corpo – e sem corpo não há ritos fúnebres, nem a travessia para o Hades –; kêtos, Caríbdis, Scylla e as sereias, podem ser citados como exemplo.
O maior problema que se impõe àqueles que arriscam a se aventurar em alto mar é a ausência da possibilidade de retornar o cadáver para o oíkos e, portanto, prestar as devidas honrarias fúnebres. Em função disso, o espírito acaba por habitar uma espécie de limbo em um estado de profunda inquietação, uma vez que não pertence mais ao mundo dos vivos, mas não pode fazer a travessia para o Hades sem a celebração das exéquias. Como visto no capítulo anterior, a bela morte apresenta-se como a melhor maneira de morrer, pois torna os feitos do guerreiro dignos de serem perpetuados na memória do coletivo. Ainda que morrer por velhice não seja o ideal, o indivíduo continua presente na história da sua própria família por meio dos rituais pós-deposicionais. Já a morte em alto mar, essa, além de impedir a passagem para o outro lado, carece de mecanismos que permitam ao morto ser recordado, impondo dificuldades aos seus pares. Negado o direito de realizar a passagem para o submundo, impossibilitado de voltar para o seu oíkos e retirado da memória do seu povo, o indivíduo entra para o esquecimento definitivo, desaparecimento total, e encontra o seu fim, sendo essa a verdadeira morte[12].
Tendo em vista que o mar apresenta um perigo grandioso para os navegantes por impor a morte como um obstáculo intransponível, o caráter ambivalente da morte é trazido à luz. A morte causada pelo envelhecimento, conquanto sem glória, ainda permitia que o indivíduo continuasse vivo na memória dos familiares graças aos rituais pós-deposicionais. E até mesmo as três formas de ultraje (sujar, esquartejar e deixar o cadáver apodrecer) podiam ser balizadas com o auxílio dos deuses como mencionado anteriormente. A morte em alto mar, todavia, não podia ser contornada por retirar da equação o seu elemento mais importante: o corpo. Em razão da ausência do cadáver, o mar desnuda os gregos de suas práticas mortuárias e os relembra do aspecto ambivalente da morte. O conceito de ambivalência abrange perspectivas opostas, mas ao mesmo tempo complementares, por entender que há casos em que é necessário conciliar argumentos contrários, a fim de melhor compreender a complexidade de um determinado tema[13]. Sob essa ótica, a morte é o fim porque o indivíduo deixa de existir no plano terreno, independente da realização dos ritos fúnebres, mas é também o começo, pois, mesmo não pertencendo ao mundo dos vivos, é justamente os ritos fúnebres que tornam o falecido presente na memória coletiva.
Desde Homero, o imaginário grego acerca dos perigos do mar era atravessado por criaturas monstruosas de proporções anormais ou por seres híbridos que causavam um estranhamento justamente porque se opunham à compreensão daquilo que é natural. Kêtos (figura 4) e Caríbdis, a exemplo, eram forças brutais que destruíam as embarcações, essa aparecia como um monstro ferozes que habitavam as profundezas do estreito de Messina ao passo que a primeira poderia ser um animal marinho. Outrossim, as sereias (figura 5) e Scyla (figura 6) eram figuras bestiais que atacavam os tripulantes, porém, diferentemente de Kêtos e Caríbdis, elas são seres sorrateiros que fazem uso de suas habilidades de sedução e canto para devorar os marinheiros. Afinal, a Scyla era apresentada como uma garota sem qualquer vestimenta acima da cintura porque na parte debaixo escondia uma cauda e cabeças, enquanto as sereias eram representadas como meio mulher meio passáro que tocavam músicas para atrair os barcos em direção aos rochedos. As fontes imagéticas e a literatura antiga nos revelam, portanto, o mar como um lugar de atração, mas ao mesmo tempo que atrai as pessoas, as leva a uma morte violenta que destrói o corpo (JOURDAN, 2019, 18-19).
Conquanto existam forças que corroboram para o fracasso das navegações, da mesma forma existem divindades que auxiliam os marinheiros ao longo das viagens, seja direta, seja indiretamente. Poseidon (soberano dos mares) pode proporcionar uma passagem tranquila ou turbulenta, Nereu (velho do mar) consegue aquietar as ondas e Atena (deusa da sabedoria) tem a capacidade de transmitir os saberes náuticos, bem como de implantar a métis[14] nos navegadores (JOURDAN, 2019, 20). Sendo assim, os gregos tinham uma relação conflitante com o mar, pois esse era adorado por ser o ponto de ação dos deuses na vida das pessoas ao passo que era abominado por ser um ambiente hostil e o habitat de figuras horrendas.
Em conclusão, devido ao risco de ser esquecido, apagado da história, isto é, o risco de ir ao encontro da morte definitiva, o imaginário grego representava o mar como o recanto de monstruosidades, ainda que continuasse sendo louvado como o espaço dos deuses e outras divindades. Esse era o preço que o mar cobrava por viabilizar a expansão da cultura helênica para outros domínios. Ademais, os rituais fúnebres, inclusive a bela morte, foram maneiras que os gregos antigos encontraram para contornar a morte – um obstáculo aparentemente intransponível –, seja por meio da lamentação ou dos ritos pós-deposicionais, seja por meio da reverberação dos heróis na poesia épica. A morte em alto mar, todavia, bem como o ultraje, rompe essa lógica, haja vista que impossibilita o retorno do cadáver para o oíkos e, assim, o morto não consegue receber as devidas honras fúnebres. Como consequência, o mar revela a ambivalência do morrer, ou seja, a morte como o fim e o começo.
5. CONCLUSÃO
Em suma, as fontes arqueológicas e literárias datadas da Idade do Ferro, do Período Arcaico e do Período Clássico sobre a Grécia Antiga sobre os rituais fúnebres retratam como era a relação dos vivos com os mortos. Isso nos permite formular o entendimento de que a morte não era tratada como o fim no mundo helênico, pelo contrário, ela era vista como uma transformação física e metafisicamente do indivíduo, uma passagem para o Hades. Logo, as pessoas nunca morriam de fato porque as práticas mortuárias as mantinham vivas na memória coletiva. Além disso, graças à condução de cada ritual, o morto não somente detinha uma identidade e simbologia própria, mas também se constituía como ser social envolvido em campos de disputa por poder e prestígio.
Em vista disso, pode-se concluir que, mesmo a morte sendo um fenômeno inevitável, os gregos buscavam formas de contorná-la por meio da atribuição de novos significados e da inserção da história do morto na memória coletiva. Os poemas épicos, por exemplo, repetiam os feitos heróicos dos guerreiros que conquistaram a bela morte, fazendo com que eles alcançassem a imortalidade pela palavra cantada. No entanto, as formas de ultraje poderiam ter o efeito contrário e, assim, sentenciar o morto ao esquecimento, senão fosse pela intervenção dos deuses em algumas situações. Outrossim, o mar nega ao morto o direito de ser recordado pelos vivos, haja vista que impossibilita o retorno do cadáver para o oíkos e, assim, ele não consegue receber as devidas honras fúnebres. Por consequência, a ambivalência do morrer torna-se evidente: a morte é o fim e o começo.
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7. IMAGENS
Figura 1: Desenho da cena de lamentação presente no lárnax encontrado em Tanagra, região da Beócia.
Figura 2: Lécito de fundo branco com a pintura de uma mulher visitando um túmulo para deixar vasos, lécito e píxide na sepultura.
Figura 3: Lécito de fundo branco detalhando a passagem para o Hades com a pessoa falecida oferecendo um píxide ao barqueiro Caronte para poder atravessar o rio Stýx.
Figura 4: Representação de um monstro gigante com corpo de serpente e barbatanas nadando em direção a um arqueiro para morder o seu braço.
Figura 5: Pintura de uma embarcação afastando-se de um rochedo, onde se encontram três sereias. Dentro do barco tem quatro remadores em fileira dupla e um condutor, todos virados para as sereias. Há um homem amarrado no mastro com, aparentemente, três mãos, duas presas e uma voltada para as criaturas.
Figura 6: Escultura de Scyla com o rosto voltado para a esquerda, o corpo na posição frontal, a cintura circundada por cabeças de cachorros e caudas de serpentes e um objeto em cada mão.
[1] FRAZER, James George. The fear of the dead in primitive religion. London: Macmillan publishers, 1936. p. 1-2.
[2] SOUZA, Camila Diogo de. Os rituais funerários na Grécia Antiga: construindo a memória (i)material. in SOUZA, Camila Diogo de; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira (org.). Morte e vida na Grécia Antiga: olhares interdisciplinares. Teresina: EDUFPI, 2020. p. 332.
[3] Idem; DIAS, Carolina Kesser Barcellos The iconography of death: continuity and change in prothesis ritual through iconographical techniques, motifs, and gestures depicted in Greek pottery. CLASSICA. Revista Brasileira de Estudos Clássicos, Belo Horizonte, Vol. 31, no. 1, p. 61-87, 2018. Disponível em: <https://www.redalyc.org/pdf/6017/601770917004.pdf>. Acesso em: 01 de set. de 2024. p. 69.
[4] Ibidem, p. 66-67.
[5] VLACHOU, Vicky. Death and Burial in the Greek World. ThesCRA VIII. Los Angeles: The J. Paul Getty Museum, p. 363-384; pl. 39-40, 2012. p. 367.
[6] BELL, Catherine. Ritual theory, ritual practice. New York: Oxford University Press, 1992. p. 98-107.
[7] SOUZA, Camila Diogo de. Considerations about burials and funerary practices in Geometric Argos, Greece (from ca. 900 to 700 B.C.E.). In: ROCHA, L.; BUENO-RAMIRES, P. & BRANCO, G. (Eds.). Death as Archaeology of Transition: Thoughts and Materials. Papers from the II International Conference of Transition Archaeology: Death Archaeology, 29th April – 1st May 2013. BAR International Series 2708. Oxford: Archaeopress, p. 307-318, 2015a. p. 313.
[8] BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. Manuel José Simões Loureiro (Trad.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 379-380.
[9] VERNANT, Jean-Pierre. A bela morte e o cadáver ultrajado. Discurso, São Paulo, n. 9, p. 31-62, 1978. p. 43.
[10] RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. p. 40.
[11] HARRIS, W. V. O Mediterrâneo e a História Antiga. Mare Nostrum, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 76-112, 2011. p. 97-98.
[12] JOURDAN, Camila Alves. Morrer e viver em um mar de “monstros”: o imaginário helênico sobre a morte no mar (séculos VIII-IV a.C.). 2019. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019. p. 15-16.
[13] AUGÉ, Marc. A Sense for the Other: The Timeliness and Relevance of Anthropology. Amy Jacobs (Trad.) Califórnia: Stanford University Press, 1998. p. 30.
[14] Jean-Pierre Vernant e Marcel Détienne (2008, 10) definem o complexo conceito de métis como resultado de “metamorfoses de uma divindade aquática, os saberes da Atena e de Hefesto, de Hermes ou de Afrodite, de Zeus e de Prometeu [...] o domínio do navegador, o faro do político, o olho clínico do médico, as artimanhas de uma personagem malandra como Ulisses [...] uma mesma postura de espírito, um mesmo modelo quanto à maneira por que os gregos se representaram em um certo tipo de inteligência comprometida com a prática, confrontada por obstáculos que é preciso dominar sendo astuto, para obter êxito nos domínios mais diversos da ação”.
Publicado por: Gabriel Henrique Santos Mendes