Batman vs Coringa: provocações nitzscheanas acerca da moral

RESUMO

MACHADO, Vinícius. Batman vs Coringa: provocações nietzscheanas acerca da moral. Faculdade Paulo VI, Mogi das Cruzes, São Paulo. E-mail: vinicius.robin@gmail.com

Os personagens Batman e Coringa, ao serem dísticos de uma luta moral, serão apresentados dentro de um teor filosófico e levados a extremos de dilema moral, vislumbrando-se as disposições psíquicas de cada um, em acordo com as histórias oferecidas pelo universo dos quadrinhos e do cinema. Com o método genealógico de Nietzsche pretendemos vasculhar as circunstâncias nas quais a moral nasceu, desenvolveu-se e transformou-se. Sem remeter-se a conceitos ou argumentos metafísicos, Nietzsche busca revelar preconceitos morais ignorados por conta de uma busca em terrenos não históricos. Com isso os tipos de valoração moral terão lugar de surgimento, sob condições e influências diversas. Os conceitos “bom e mau” serão contrapostos com “bom e ruim”, em tentativa de estabelecer o conhecimento das conseqüências que cada tipo de valoração causará no homem moderno. A psicologia do ressentimento será vasculhada no tocante à suas disposições na história que se apresentarão sob as formas de castigo e pena jurídica donde o “animal-homem” que se encontra encerrado na comunidade, terá que canalizar seus instintos. Tal canalização volta-se contra si impulsionados pela força do prazer em fazer sofrer caracterizando a má consciência. Tais conceitos e análises pormenorizadas por Nietzsche serão associadas aos personagens Batman e Coringa que são apresentados como antagonistas morais da cultura atual, compreendidos como tradução artística do que dela aparece.

Palavras-chave: Moral; Promessa; Memória; Crueldade; Castigo; Penalidade; Cultura; Confronto.

INTRODUÇÃO

Sim! A batcaverna será invadida por nós. Prepare pipoca intelectual e muita coca-cola de aporia porque a Filosofia aqui apreciada tentará fazer o trabalho que as escolas há muito estão devendo: retirar os preconceitos com relação aos super heróis. Ah! E os dos vilões também. Não sabemos se as crianças estão preparadas para isso, não se sabe também se elas estão preparadas para os heróis que consomem. Mas e os adultos? O que têm eles percebido até agora nos super heróis que desde a infância talvez os incomode?

Quando em 2005, o diretor Christopher Nolan apresentou um Batman altamente subversivo à polícia e ao Estado, com toda aquela análise psicanalítica do medo e três anos depois rasgou o sorriso de um Coringa que explode um hospital, impõe dilema à sociedade e ainda ri disso tudo sem um pingo de remorso... Isso era apenas a ponta do Iceberg. Justamente porque no fundo dessas duas obras cinematográficas existe um universo de Histórias em Quadrinhos que há muito deixa o cinema no chinelo.

Basta revisitar os filmes anteriores aos de Nolan para perceber a descaracterização das propostas dos quadrinhos. Mesmo assim, ainda falta muito para o cinema ser comparado aos quadrinhos. Se a combinação entre imagens, som e vibração que o cinema possibilita se utilizasse do conteúdo forte que os quadrinhos oferecem, provavelmente as bilheterias de filmes sobre super heróis careceriam do dinheiro de sua maioria pagante: o das crianças.

No presente trabalho, Batman e Coringa serão analisados naquilo que precisamente pouco ou nada se fala deles, naquilo que além de socos, pontapés, explosões, vôos rasantes e gargalhadas, merece um crédito: a moral. Este confronto que traduz as lutas mais internas da alma humana e também os desejos mais escondidos do instinto cerceado. Os roteiristas não serão visitados diretamente. A nossa análise terá como foco a emergência dos personagens, à maneira como são apresentados nas histórias, sejam elas em quadrinhos ou filmes. É como se eles existissem mesmo e estivéssemos fofocando filosoficamente sobre eles, sem que o Batman descubra, é claro. E para isso, Nietzsche, que dispensa apresentações, contribuirá com sua filosofia extemporânea. Como Nietzsche caiu qual luva aqui!

O trabalho se divide em três capítulos. No primeiro faremos uma apresentação dos dois personagens, levando em conta a pertinência do tema. O leitor perceberá que, por vezes, utilizaremos de descrições dramáticas ou até mesmo cruéis das principais

HQs (Histórias em Quadrinhos). Tanto Batman quanto Coringa merecem tal tipo de apresentação uma vez que pouco se conhece dos textos em quadrinhos e deles mesmos.

No segundo, os conceitos filosóficos de Nietzsche serão apresentados. Duas obras foram separadas para a análise do tema: Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal. Ambas trazem uma harmonia no pensamento de Nietzsche concernente à moral. O filósofo francês Gilles Deleuze aparecerá como leitor de Nietzsche. Ele fará menção a uma obra póstuma de Nietzsche a Vontade de Potência que, todavia, não foi pesquisada para este trabalho. Com relação à Genealogia da Moral, trabalhamos apenas as duas primeiras dissertações: [“Bom e mau”, “bom e ruim”] e [“Culpa”, “má consciência” e coisas afins]. Com relação a Além do Bem e do Mal vislumbramos os capítulos 5 e 9, [Contribuição à história natural da moral] e [O que é nobre], respectivamente.

No terceiro capítulo, será feita uma relação entre os conceitos de Nietzsche a respeito da moral e os dois personagens antagônicos Batman e Coringa. Algumas citações, tanto do primeiro quanto do segundo capítulos serão repetidas com o intuito de esboçar melhor as associações entre o pensamento de Nietzsche e a luta dos personagens.

O MORCEGO E O PALHAÇO

Batman: O Cavaleiro das Trevas

Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?...

Nietzsche

Batman: um personagem icônico, complexo e cicatrizado, que traduz as lutas internas mais obscuras e subterrâneas da alma humana. Icônico porque é identificável com milhares de histórias comuns, como às das pessoas que brigam para dar sentido à vida. Complexo, pois, é humano. Cicatrizado, porque teve um encontro intenso, ainda criança, com uma particularidade muito peculiar da vida: a morte.

Seja nas Histórias em Quadrinhos (HQs), nos filmes1, séries ou desenhos animados, o Batman sempre possui um ar sombrio, obscuro e misterioso. Como se tivesse algo a esconder por trás da máscara. Abordagem direta, poucas palavras, violência, impessoalidade: um tanto paradoxal para um herói que busca trazer a ordem, a paz, o bem comum.

O personagem nasceu pelas mãos dos jovens desenhistas americanos Bob Kane e Bill Finger em 19392, da editora de Histórias em Quadrinhos conhecida na época por Detective Comics, hoje DC Comics. No ano anterior, havia surgido outro personagem, também famoso: o Superman. Era a Era de Ouro dos quadrinhos e The Bat-Man (nome inicial do personagem) aparece na publicação de número 27 da editora. Kane se inspirou nos romances policiais (pulps) e no mascarado mexicano, o Zorro, para criar seu herói. (COSTA, 2001, p. 9-10)

Ao contrário do Superman, um herói de outro planeta (Krypton) que possui poderes extra naturais (levantar vôo, visão raio-x, força extrema, raio laser de aquecimento e resfriamento nos olhos e etc.), o Batman (do inglês: homem morcego) se serve de artefatos militares, tecnologia de ponta e treinamento físico e intelectual para combater o crime em Gotham City, a cidade de insanos artistas do crime. (cf. MALLOY, 2008)

E porque combater o crime? Quais as motivações que levam um homem comum chamado Bruce Wayne a vestir um traje militar, dedicar tempo e energia em uma tarefa tão arriscada, tendo uma vida dupla? Seria um sadismo inato? Teria ele um vício por adrenalina? Ou suas brincadeiras de herói na infância se desdobraram na vida adulta como um playground sangrento e real? Todas as alternativas anteriores podem fazer parte da personalidade do jovem Bruce, mas existe uma, que conduz essas e outras motivações: uma promessa 3.

Cabe, agora, uma apresentação das influências que os pais de Batman exerceram em sua vida, assim como uma descrição da gênese do personagem que culminará na questão da promessa que é pertinente ao tema do presente trabalho.

O alter ego de Batman, Bruce Wayne, é filho de Thomas e Martha Wayne. Seu pai é um dos maiores médicos e filantropos da cidade de Gotham. Ele também é dono das Empresas Wayne, uma companhia que fabrica produtos de alta tecnologia, mas não se dedica na administração de sua empresa, pois prefere estar mais disponível para ajudar as pessoas menos favorecidas e, o faz por meio do exercício da medicina e da filantropia: fazendo doações para entidades beneficentes. (NOLAN, 2005)

É em um ambiente de harmonia e alegria que o filho único do casal vive. Nas Histórias em Quadrinhos (HQs) de Batman, isso é exposto. Mostra-se a influência dos pais sob a personalidade de Bruce e o medo que ele mantém de descobrir algo sobre seus pais que venha a decepcioná-lo.

Em A Carta, Bruce, ao refletir sobre a visão que tinha dos pais na infância, comenta: “Nós carregamos nossos sentimentos da infância quando pensamos neles como mais que apenas pais. Eles eram quase... deuses. Pessoas que não fariam nada de errado e resolveriam qualquer problema que tivéssemos” (LIEBERMAN, 2006).

Em Sombras do Passado, Batman investiga uma possível relação de seu pai com a máfia no passado. Suspeitando da conduta do pai, contata um tenente e descobre que em uma festa à fantasia na qual seus pais o levaram, um mafioso chamado Lew Moxon estava com um sobrinho padecendo por conta de um tiro que havia sofrido em um assalto.

Como não havia nenhum médico disponível, Moxon, que também estava na festa, decide chamar o Dr. Wayne que mesmo relutante, pois, se tratava de um criminoso, aceita cuidar do “paciente” seguindo o Juramento de Hipócrates lembrado pelo bandido. Ao terminar a pequena cirurgia de retirada da bala, Wayne recusa o dinheiro oferecido por Moxon e decididamente diz:

Eu salvei a vida desse homem porque é a minha profissão... você mencionou o Juramento de Hipócrates... bem, os médicos também trabalham sob outro juramento... o de obedecer à lei, e isso inclui dar parte dos ferimentos à bala de que tratamos... e é exatamente o que vou fazer. (BRUBAKER, 2001)

Mesmo tendo a família sob ameaça de morte se decidisse dar parte, Thomas Wayne cumpre o juramento que fez e o bandido é preso dias depois. Ao ficar sabendo de tudo isso, Batman se recorda da tal festa na qual sua mãe havia se fantasiado de Cleópatra, seu pai de Zorro e ele, o pequeno Bruce, de Esqueleto da Morte. Recorda-se de um diálogo específico entre ele e sua mãe que parecia atemorizada quando o marido saiu para atender o bandido ferido: “– Porque cê tá [sic] com medo mamãe? – Porque seu pai é muito corajoso, Bruce... e às vezes eu tenho que sentir medo por nós dois”. Arrependido de ter duvidado de seu pai, reflete: “Você foi corajoso naquela noite, e fez a coisa certa... apesar das conseqüências... você foi o Zorro... um herói”.

Depois de esboçar as influências que Bruce Wayne teve dos pais, entraremos na apresentação de sua origem como Batman. Existem dois momentos decisivos que marcam a gênese e o desenvolvimento fundamental de Batman. O primeiro é o brutal assassinato de seus pais quando ainda era um garoto. Na consagrada HQ de Batman, O Cavaleiro das Trevas, do aclamado roteirista Frank Miller (1986), Bruce Wayne se encontra aposentado do capuz, velho e muito frustrado. Em uma cena, ele está de frente para a televisão, bebendo e trocando de canais quando se depara com o início de um filme: a Marca do Zorro. É então que traz à tona uma forte e viva memória do passado.

A descrição seguinte, presente na HQ citada acima, não apresenta texto, apenas imagens sequenciais. Descreveremos textualmente as cenas em banda desenhada, com o intuito de acentuar o caráter mnemônico4 do cruel evento testemunhado por Bruce Wayne enquanto criança e que justificará as características elementares do tema a ser estudado neste trabalho.

As cenas mostram um homem e uma mulher saindo de um prédio de cinema cujo cartaz mostra o filme: Zorro. Na frente do casal, um garoto despreocupado brinca alegre imitando o herói mascarado, numa coreografia espadachim enquanto se encaminham para um beco escuro e sujo.

A lúdica fantasia do garoto é interrompida quando olhando para o céu observa um morcego sobrevoar à luz da lua. Em seguida sente a mão de seu pai o segurar pelo ombro, empurrando-o para trás. Logo, outra mão segurando uma pistola aparece: é o anúncio de um assalto. Tentativa de diálogo e confusão. O dedo do bandido puxa o gatilho: um tiro, o pai cai no chão. Cartucho da bala ao chão. Mais confusão e o bandido tenta arrancar o colar de pérolas da mãe, o que faz os óculos dela caírem. Outro tiro, pérolas se espalham pelo chão juntamente com outro cartucho.

Em Ano Um do mesmo Frank Miller (1987), a cena em questão mostra um garoto solitário, ajoelhado em frente aos corpos ensanguentados dos pais, mortos. Um evento perfeitamente comum das grandes metrópoles, familiar aos ouvidos. A origem de Batman se diferencia de tradicionais origens de super heróis, pois não apresenta nem um fator sobrenatural ou algum tipo de acidente químico que o faz se transformar no homem morcego. Ele não ganha nenhum tipo de força sobre humana, mas toma uma decisão.

O catalisador crucial – um assalto que deu errado – é tragicamente comum. E o resto da gênese de Batman é criado a partir de uma promessa extravagante e aparentemente tola feita por um garoto a seus pais assassinados – limpar Gotham City do crime. (JENSEN, 2008 p. 85)

Eis o segundo momento que desenha a gênese de Batman e é responsável por seu desenvolvimento: uma promessa. O pequeno Bruce Wayne, em frente ao túmulo dos pais se dá o encargo de lutar contra criminosos. Em Detective Comics # 33 de Bob Kane e Bill Finger (1939), o garoto declara: “E eu juro, pelo espírito de meus pais, vingar a morte deles e devotar o resto de minha vida combatendo todos os criminosos”. (KANE, 1939)

Nas HQs de Batman, não é apresentada uma vingança comumente dita. Bruce nunca tirou a vida de Joe Chill, o bandido que matou seus pais. Apenas no filme Batman Begins de Christopher Nolan (2005), é dada uma tentativa de vingança direta, quando o jovem Bruce, já universitário, tenta assassinar Chill na saída do tribunal. Não consegue, pois, Carmine Falcone, um mafioso italiano, chega à frente e o mata primeiro. No decorrer da história, Nolan tenta fazer uma distinção entre vingança e justiça. A

promotora de justiça de Gotham, Rachel Dawes, argumenta dizendo: “Justiça tem haver com harmonia, vingança tem haver com você se sentir melhor. É por isso que temos um sistema imparcial” (Tradução nossa) 5.

Na série O Longo Dia das Bruxas de Jeph Loeb e Tim Sale (1998), o morcego relembra: “Fiz uma promessa no túmulo dos meus pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que tirou suas vidas” (LOEB, 1998, p. 29).

A promessa aparece como fator indispensável na construção deste personagem. Ela é a condutora da missão que o garoto se deu. Missão que se desdobra ao longo das histórias de Batman, nos encontros com os mais diferentes tipos de inimigos que o morcego enfrenta. Ele não tem meta poderes. Seu poder é sua vontade incorruptível em fazer da corrompida Gotham City um lugar melhor. Em O Palhaço à Meia-Noite de Grant Morrison (2007), a cidade e o morcego são descritos:

Mais uma noite na autoproclamada „cidade mais incrível do mundo‟. Onde as pessoas vão para admirar a fervilhante intensidade luminosa de suas incansáveis avenidas. Onde vidas humanas são compradas e vendidas e a inocência tem um preço. Onde sonhos se tornam reais e sangram. Onde fantasmas existem e monstros deixam suas pegadas no pó. Onde vive o homem que não tem preço, o homem que não pode ser comprado, vendido ou desviado de seu caminho particular. (MORRISON, 2007, p. 54)

Tal vontade incorruptível é expressa em sua metodologia de combate ao crime: não usar armas de fogo. Seus pais foram mortos por uma e isso o faz ter total aversão a elas. Não usá-las exige um esforço de treinamento físico nas artes marciais, unido a um conhecimento científico. Todo processo estratégico é seguido de meditação para a obtenção de concentração6.

Batman é um homem devoto a seus princípios. Ele possui uma mansão gigantesca que herdou dos pais. Há uma caverna no subsolo da mansão que veio a calhar para seu empreendimento, sua espera para atacar, seu silêncio, sua meditação, suas memórias. Lá é seu refúgio e fortaleza, sua academia de trabalho corporal e centro de inteligência, pesquisa e análise em vários níveis. Um verdadeiro quartel general privado. Ele ainda conta com a ajuda de seu fiel mordomo, Alfred Pennyworth, que possui experiência em medicina de guerra (cf. Ano Um, 1987).

Uma questão importante: porque, precisamente, escolher um morcego como símbolo? Certamente não é por acaso. A HQ O Cavaleiro das Trevas mostra que, quando criança, Bruce Wayne brincava nas dependências de sua mansão, correndo atrás de um coelho branco. O coelho entra na toca e o garoto, perseguindo o animal, acaba caindo na toca que, na verdade, se revela uma caverna grande e escura. Caído e machucado no chão, Bruce é surpreendido por uma revoada de morcegos assustados que voam por todos os lados. Depois que os morcegos se afastam e se acalmam na caverna, o menino percebe algo diferente. Já adulto conta:

Então algo se move. Oculto... algo que suga o ar viciado e sibila. Planando com graça milenar ele não se afasta como seus outros irmãos. De olhos radiantes, intocados pela alegria ou tristeza... seu hálito é quente e tem o sabor de inimigos vencidos... O odor de coisas mortas, coisas condenadas. Com certeza, ele é o mais feroz sobrevivente... O mais puro guerreiro... brilhando, odiando... tomando o meu ser. Sonhando... Eu tinha seis anos quando isso aconteceu... Quando encontrei a caverna... Imensa, vazia, silenciosa como uma Igreja... Sequiosa como o morcego. (MILLER, 1986)

Mais tarde, já decidido a iniciar seu plano de combate ao submundo de Gotham, Bruce Wayne se detém na problemática do disfarce. Faz-se necessária uma máscara. Em diálogo com Alfred afirma:

As pessoas precisam de exemplos dramáticos para lhes tirarem da apatia. E eu não posso fazer isso como Bruce Wayne. Como homem... Eu sou de carne e osso. Eu posso ser ignorado, posso ser destruído. Mas como um símbolo... Como um símbolo eu posso ser incorruptível. Eu posso ser eterno (...) Algo elementar, algo aterrorizante (tradução nossa).7

A idéia do morcego surge de maneira inusitada. Em “diálogo” com a memória de seu pai falecido, Bruce recebe a visita de uma criatura familiar e tem um “insight” criativo:

Como pai? Como devo agir? (...) Eu tenho uma fortuna. A mansão da família está sobre uma caverna... que daria um perfeito quartel general... tenho até um mordomo com treinamento em medicina de guerra... Sim pai, eu tenho tudo... menos paciência (...) Já esperei dezoito anos... dezoito anos desde... Desde Zorro. A Marca do Zorro. Desde aquela caminhada à noite. Desde o homem com olhar vazio e assustado... de voz áspera como vidro se partindo... Desde que minha vida perdeu o sentido. Sem o menor aviso, ele surge... estilhaçando a janela do seu estúdio, agora meu. Já vi esta criatura antes... em algum lugar. Ela me aterrorizou quando criança... me aterrorizou... Sim, pai. Eu me tornarei um morcego. (MILLER, 1987)

Uma justificativa que corrobora com seu trauma de infância, é dada em Batman Begins quando Alfred o interroga sobre o porquê do morcego: “Morcegos me assustam.É hora de meus inimigos compartilharem do meu pavor” (tradução nossa)8. Ou seja, causar medo na mesma medida em que possui medo.

Por fim, um fator indispensável no personagem. Fator que se torna via de regra: não matar. Executar um criminoso seria meio fácil de impedir que ele volte a cometer outros crimes, sobretudo quando se trata de criminosos em Gotham City: uma cidade que “serve o melhor do crime” 9. Isso não funciona com o Batman. Ele diria: “Não sou assassino” 10. Seus pais foram mortos por um.

Em Batman Begins, isso fica bem claro, quando ao término de seu treinamento para se tornar membro efetivo da Liga das Sombras, Bruce Wayne é submetido a um último teste: ele precisa executar um criminoso. Segue o diálogo com seu mestre e posterior inimigo Ra‟s Al Ghul:

- Mas primeiro, você precisa demonstrar seu comprometimento com a justiça.

- Não. Não sou um executor.

- Sua compaixão é uma fraqueza que seus inimigos não irão compartilhar.

- Por isso ela é tão importante. Ela nos separa deles.

- Você quer lutar contra criminosos? Este homem é um assassino.

- Este homem deveria ser julgado.

- Por quem? Burocratas corruptos? Os criminosos zombam das leis da sociedade. Você sabe disso melhor que a maioria.

- Eu voltarei a Gotham e lutarei contra homens como este... Mas não me tornarei um executor. (tradução nossa)11

Esta regra máxima será motivo de muitas discussões, as quais são encontradas em muitas das HQs de Batman. Ela será a incorruptibilidade moral do Morcego, seu não ultrapassar o limite, sua garantia de conseguir conter as forças caóticas da desordem em busca da paz, da justiça e do bem comum. Contudo, será, paradoxalmente, seu ponto mais fraco, sua vulnerabilidade, seu Calcanhar de Aquiles com relação aos que ama. Pois sem esta regra, Batman poderia ter evitado muitas mortes causadas por seu principal antípoda, que não hesita em atacar seu ponto de vulnerabilidade de maneira sádica e cruel: o Coringa.

Coringa: O Homem que Ri

Esta “audácia” das raças nobres, a maneira louca, absurda, repentina como se manifesta o elemento incalculável, improvável, de suas empresas (...), sua indiferença e seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua terrível jovialidade e intensidade do prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade.

Nietzsche

Coringa: um personagem explosivo, sádico e totalmente caótico. Explosivo, pois não hesita em explodir o que vê pela frente, deixando sua marca de destruição voluntária. Sádico, uma vez que aprecia causar dor e sofrimento às suas vítimas, tratando-as como brinquedos particulares do terror. Caótico, porque é imprevisível em suas ações e altamente perigoso para a conservação da ordem e da vida.

Some tudo isso a um escárnio constante e se tem o inimigo principal do Batman: o mais forte, o mais pertinente. Um criminoso incomum, que escolheu o crime como forma de expressão artística: tem a aparência de um palhaço. Um palhaço assassino que faz de Gotham City seu picadeiro do medo e do caos. Por isso tentaremos trazer à tona os detalhes principais que formam suas características.

O Coringa foi inventado pelos mesmos criadores de Batman, Bob Kane e Bill Finger, em parceria com Jerry Robinson. A pretensão era criar um vilão para Batman, e Kane se inspirou no personagem do ator Conrad Veidt no filme “O Homem Que Ri” 12 de 1928. Robinson contribuiu com o personagem inspirando-se em sua paixão por cartas de baralho 13(MANN, 2003).

Sua origem, como personagem do universo de Batman, é contada em Detective Comics #168 de Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson (1951), em A Piada Mortal de Alan Moore (1988) e no filme Batman de Tim Burton (1989).

A primeira obra não dá importância ao passado do Coringa, apenas o apresenta como um criminoso chamado “Capuz Vermelho” que assalta uma fábrica de baralhos eem uma luta contra o Batman, acaba caindo em um tanque que contém uma mistura química. Ele mesmo diz: “O vapor químico... tornou meu cabelo verde, meus lábios, vermelho carmim... e minha pele, esbranquiçada! Pareço um palhaço do mal! Que piada infame!”. E segue: “Concluí que minha face poderia aterrorizar as pessoas! E por causa da fábrica de baralhos e à carta que tem a face de um palhaço, decidi me autodenominar o Coringa” (KANE, 1951). 

Na segunda obra, Allan Moore apresenta um comediante frustrado que não consegue emprego e sofre por ser fraco e não ter como sustentar a esposa que está esperando um filho. No desespero, se une com bandidos para assaltar a fábrica de baralhos vestido como o Capuz Vermelho. Na manhã do assalto, ele recebe a notícia que sua esposa, ao tentar testar um aquecedor de mamadeiras, provoca um curto circuito e acaba morrendo. Mesmo abatido com o acontecimento ele vai para a fábrica. Lá encontra a polícia e o Batman. Cai no tanque químico e depois de ser levado pela correnteza até as margens de um rio, observa seu reflexo na água. Vendo o rosto modificado, senta-se ponderante e cabisbaixo. Minutos depois, levanta-se e começa a rir compulsivamente a ponto de gargalhar.

Na versão cinematográfica de Tim Burton, o Coringa é Jack Napier, um bandido braço direito do chefão do crime de Gotham. Diferentemente da versão anterior, o personagem já possui predisposição forte e habilidosa para o crime. A queda no tanque de líquido químico, sob as mesmas circunstâncias das versões anteriores, é apenas um catalisador para uma independência com relação à máfia: ele, agora, trabalha por conta própria e se dá o trabalho de fazer do crime um instrumento para sua “nova filosofia”:

Eu agora faço o que outras pessoas apenas sonham. Eu faço arte... até alguém morrer. Eu sou o primeiro artista homicida do mundo totalmente em exercício. (tradução nossa) 14

Com esta frase de autodefinição feita pelo Coringa, e após ter sido elaborada uma apresentação de sua gênese, abriremos caminho para entender a personalidade deste personagem que é moldada de acordo com as histórias mostradas nas HQs de Batman e que serão de suma importância para as pretensões deste trabalho, com relação ao tema proposto.

Ora, o fato de o nome “Coringa” ser atribuído ao personagem, não é por acaso. A carta coringa no baralho abre possibilidade de participação em várias funções dentro do jogo, ela é adequável, substitui outras cartas, é móvel. Essa é uma característica básica do Coringa: a analogia do personagem com a carta do baralho, demonstra não apenas suas características psicológicas mas também sua forma de abordagem nas histórias, seus métodos. 

Com relação a métodos, o Coringa trabalha da seguinte forma: ele faz uma aparição pública na qual anuncia uma situação que desestabiliza todo um estado de segurança, paz e ordem. Apresenta uma ameaça direta utilizando-se do medo para instaurar um ambiente de terror deixando suas vítimas vulneráveis para, assim, poder finalmente atacar. Seu “propósito” subsiste em uma “necessidade de romper com uma ordem enfadonha e restritiva. O Estado impõe essa ordem com objetivo mais social que político, e o Coringa reage tentando destruir qualquer ordem” (SPANAKOS, 2008, p. 68).

Sua primeira aparição foi em Batman #1 de 1940. Em versão mais recente, a mesma história é atualizada com mais detalhes por Ed Brubaker em O Homem que ri de 2005. Nela o Coringa se apresenta a Gotham City por meio da televisão, em uma transmissão ao vivo para toda a cidade. Ele ameaça tirar a vida de todos os cidadãos, começando pelos mais famosos, utilizando seu famoso veneno do riso (Smilex) 15. Marca data e hora e declara poeticamente: “Um de cada vez eles vão ouvir meu gemido. E então esta cidade suja irá cair comigo”. (BRUBARKER, 2005)

Isso causa um caos total nos cidadãos e coloca as autoridades de segurança em prontidão temerosa, assim como ao próprio Batman. Consegue, estrategicamente, matar a todos os famosos que prometeu. No curso da história, ele invade um centro de reabilitação para doentes mentais e os liberta distribuindo armas para os internos causando mais confusão e mortes nas ruas da cidade. Batman reflete consigo: “Nunca me preparei para isto. Estudei assassinos, ladrões, estupradores... pessoas desesperadas cometendo atos desesperados. Mas nunca imaginei algo como o Coringa”. (BRUBAKER, 2005) Depois, o Palhaço do Crime ameaça envenenar toda a cidade com o Smilex, por meio do sistema de distribuição de água. Batman impede sua última empreitada e o coloca na prisão.

Na mesma história, o morcego tenta esboçar uma explicação para os atos do Coringa dizendo:

Quando caiu no tanque de resíduos químicos, ele estava no lugar errado pelo motivo errado, mas ainda assim culpa Gotham. (...) Em sua mente doentia somos culpados apenas por estarmos vivos. Agora entendo tudo. Sua fúria e seu ódio paranóico. Ele pode ser um gênio, mas ódio é tudo que conhece. (BRUBAKER, 2005)

Em outra tentativa de explicação, no filme Batman, O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan (2008), Alfred Pennyworth, o fiel mordomo de Batman, arrisca: “Alguns homens não estão à procura de algo lógico, como o dinheiro. Eles não podem ser comprados, ameaçados, não são razoáveis ou negociáveis. Alguns homens só querem assistir o mundo pegar fogo”. (tradução nossa) 16

A ideia do jogo de baralho fica bem mais clara em Asilo Arkham de Grant Morrison (1990). Ao ser chamado pelo próprio Coringa ao Asilo Arkham17, Batman se encontra com a psiquiatra do asilo, Ruth Adams. Em conversa ela se refere ao Coringa nestes termos:

O Coringa é um caso especial. Muitos de nós acreditam que ele está além de qualquer tratamento. Na verdade, não estamos sequer certos de que ele possa ser definido como insano.(...) É bem possível que estejamos diante de um caso de super-sanidade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana. Mais adequada à vida urbana no fim do século vinte.(...) Diferente de você ou de mim, o Coringa não parece ter controle sobre as informações sensoriais que recebe do mundo externo. Por isso, alguns dias ele é um palhaço infantil. Outros, um psicopata assassino. Ele não tem verdadeira personalidade. Ele cria uma diferente por dia. O Coringa se vê como o mestre do desgoverno, e o mundo como um teatro do absurdo. (MORRISON, 1990)

Em O Palhaço à Meia-Noite, Grant Morrison (2007) retoma o tema da psique do Coringa. Em diálogo com Arlequina, a fiel discípula do Coringa, Batman diz: “Ele mudou novamente. Você sabe como ele muda depois de alguns anos. Você escreveu o livro, doutora Quinzel. Ele não tem nenhuma personalidade real, lembre-se, apenas uma série de „superpersonas‟”. (MORRISON, 2007)

Nesta linha caótica e imprevisível, a crueldade nas ações do Coringa emerge de maneira absurda. Para observarmos isso, veremos uma HQ muito importante, que explora muito bem várias características do Coringa. Em A Piada Mortal de Allan Moore (1990), o príncipe palhaço do crime se propõe um experimento: provar que qualquer um pode tornar-se louco, sob a condição de um dia ruim. Um dia ruim separaria o homem são do insano.

Na história dessa HQ, após de ter fugido do Asilo Arkham, o Coringa toma posse de um antigo e abandonado parque de diversões. Ele vai até a casa do amigo e parceiro de Batman, o Comissário de polícia Jim Gordon, que na ocasião recebe a visita de sua filha, Bárbara Gordon. Quando Bárbara abre a porta é surpreendida pelo Coringa que imediatamente lhe aponta uma arma e atira à queima roupa, deixando-a paraplégica. Seus capangas batem no Comissário e o deixam desacordado. Bárbara, agonizante, ainda questiona o Coringa pelo porque daquilo tudo, ao que ele responde: “Para provar uma coisa”. E levantando uma taça, brinda com um sorriso: “Saúde ao crime”. (MOORE, 1988)

Depois disso leva o Comissário até o parque de diversões e manda seus capangas anões vestidos de “bailarinas-demônios” retirarem as roupas de Gordon. Completamente nu e puxado por uma coleira em direção ao trem fantasma, Gordon, ainda acordando do desmaio, se dá conta do acontecimento e diz: “Você. Oh, não... eu... eu me lembro!”. O Coringa intervém com um discurso sobre a memória e a loucura:

Lembra? Oh, eu não faria isso! Lembrar é perigoso... eu vejo o passado como um lugar cheio de ansiedade. O “pretérito imperfeito”, como você chamaria. Ah, ah, ah, ah! As memórias são traiçoeiras! Num momento, você está perdido num carnaval de prazeres, com o aroma da infância, os neons da puberdade... No outro, elas te levam a lugares onde a escuridão e o frio trazem à tona coisas que você gostaria de esquecer! As memórias podem ser vis, repulsivas, brutais... como crianças. Ah, ah, ah! Mas podemos viver sem elas? A razão se sustenta nelas. Não encarar as memórias é o mesmo que negar a razão! Mas e daí? Quem nos obriga a ser racionais? Não há cláusula de sanidade. Assim, quando você estiver dentro de um desagradável trem de recordações, seguindo pra lugares do seu passado onde o riso é insuportável... lembre-se da loucura. Loucura é a saída de emergência! Você só precisa dar um passo pra trás e fechar a porta com todas aquelas coisas horríveis que aconteceram... presas lá dentro... pra sempre. (MOORE, 1990)

Logo após é levado para o interior do trem fantasma. Enquanto vai percorrendo os trilhos, Jim Gordon assiste a cenas de terror: fotos de sua filha nua, baleada e se contorcendo em dores. Tudo isso tendo como fundo musical, um Coringa altamente debochado cantando uma ode à loucura. Segue um trecho: “Quando o mundo está cheio de preocupação e todas as manchetes gritam desespero, quando tudo é estupro, fome e guerra, bem... então, só há uma coisa certa a fazer... você deve sorriiiiir...”. (MOORE, 1990)

É possível perceber que o Coringa expressa sua maneira de ver o mundo e deixa bem clara sua repulsa ao tipo de homem contemporâneo do qual a fraqueza perante a realidade trágica da vida é motivo de escárnio, de riso. Constatamos claramente: imediatamente depois de terminar sua tortura psicológica ao comissário Gordon, ele o tranca em uma jaula para animais e o apresenta, em um tom de mestre de cerimônia, nos seguintes termos à sua platéia de bizarros artistas de circo:

Senhoras e senhores! Vocês já o conhecem pelas manchetes dos jornais! Agora, tremam ao ver com seus próprios olhos o mais raro e trágico dos mistérios da natureza! Apresento... o Ho-mem co-muuum! Fisicamente ridículo, ele possui, por outro lado, uma deturpada visão de valores. Observem o seu repugnante senso de humanidade, a disforme consciência social e o asqueroso otimismo. É mesmo de dar náuseas, não? O mais repulsivo de tudo são suas frágeis e inúteis noções de ordem e sanidade. Se for submetido a muita pressão... ele quebra! Então, como ele faz pra viver? Como esse pobre e patético espécime sobrevive ao mundo cruel e irracional de hoje? A triste resposta é... „não muito bem‟. Frente ao inegável fato de que a existência humana é louca, casual e sem finalidade, um em cada oito deles fica piradinho! E quem pode culpá-los? Num mundo psicótico como este... qualquer outra afirmação seria loucura! (MOORE, 1990)

Ainda vislumbrando o fator cruel nas ações do Coringa, na HQ Morte em Família, o roteirista Jim Starlin (1988), mostra a morte do segundo Robin18, Jason Todd, pelas mãos do Coringa. O Palhaço do Crime surra o garoto com um pé de cabra: “Prepare-se para uma sova bem sovada, garoto. Mas me deixe dizer logo de cara... isso vai doer mais em você do que em mim” (STARLIN, 1988). As cenas em banda desenhada mostram uma sequência de golpes realizados por um Coringa aos risos de alegria e satisfação, na presença da mãe do garoto. Em seguida, prepara uma bomba relógio que explode, matando Jason Todd e sua mãe juntos. Momentos depois, Batman carrega nos braços o corpo deformado de seu pupilo.

Outro fator importante no personagem, ligado à crueldade e ao escárnio, é o dilema. Entendido aqui como: “situação embaraçosa com duas soluções difíceis ou penosas” 19. Em Batman, O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan (2008), são apresentados quatro casos de dilemas efetuados pelo Coringa. Os dois primeiros são direcionados especialmente ao Batman, os outros dois, são dirigidos aos cidadãos de Gotham.

Trata-se de colocar em pauta uma tragédia iminente, na qual a decisão no agir depende, em primeira ordem, de um indivíduo e em segunda ordem, de uma comunidade: escolhas que tem proporções coletivas. O Coringa quer que tanto Batman, juntamente com as autoridades de segurança, quanto a cidade participem do que ele chama de “jogo”.

No primeiro, ele ameaça matar pessoas se o Batman não revelar sua verdadeira identidade. Em rede nacional ele aterroriza dizendo: “Vocês querem ordem em Gotham... Batman deverá tirar a máscara e se revelar. Oh, e cada dia que não o fizer, pessoas morrerão. Começando esta noite. Eu sou um homem de palavra” 20. Na medida em que Batman não tira a máscara, o Coringa vai eliminando um por um, deixando pistas para as próximas vítimas. Ele consegue matar um homem que se fantasiava de Batman, uma juíza, o então comissário de polícia e outros dois policiais. Pressionado pela situação embaraçosa, Batman decide se entregar, mas é surpreendido pelo promotor de justiça, Harvey Dent 21, que assume ser Batman e é levado preso. Mais tarde, a farsa serviu para atrair o Coringa para uma emboscada com o intuito de prendê-lo.

Na segunda ocasião, o Coringa captura Harvey Dent e Rachel Dawes 22, propondo que Batman escolha um dos dois para salvar, pois, ambos estão amarrados a bombas-relógio cercadas de barris de gasolina, em diferentes localidades. O palhaço diz: “Há apenas minutos restantes. Então você terá que jogar meu joguinho se quiser salvar um deles. (...) Matar é fazer uma escolha. (…) Escolha entre uma vida ou outra: seu amigo da promotoria ou a noivinha ruborizada dele” (tradução nossa).23 Ao que Batman o espanca tentando arrancar a localização dos dois raptados, o Coringa ri, como alguém que ri da mais engraçada anedota, e diz: “Você não tem nada, nada com o que me ameaçar, nada a fazer com toda a sua força” (tradução nossa) 24.

O Coringa fornece as localizações e Batman escolhe salvar Rachel enquanto o comissário Gordon vai atrás de Harvey Dent. Chegando ao prédio, ao abrir a porta ele se encontra com Harvey ao invés de Rachel: o Coringa deu os endereços trocados. Gordon não chega a tempo: Rachel está morta.

O terceiro dilema se dá quando um funcionário das empresas Wayne chamado Coleman Reese, ao descobrir a identidade secreta de Batman, decide ir até a televisão para entregar o Morcego. O Coringa não gosta da ideia e telefona para a emissora de TV que está fazendo a transmissão e, ao vivo, ameaça:

Eu tive a visão de um mundo sem o Batman. A máfia conseguia um lucrinho e a polícia tentava pegá-los um quarteirão de cada vez. E isso era tão... chato. Eu mudei de ideia. Não quero o Sr. Reese estragando tudo… mas porque eu deveria ter toda a diversão? Vamos dar chance a outros. Se Coleman Reese não estiver morto em 60 minutos... então eu explodo um hospital” (tradução nossa) 25

O problema é que muitos cidadãos possuem parentes internados nos hospitais, incluindo os policiais. É então que começa uma caça a Reese. O já promovido comissário Gordon, com a ajuda de Batman, consegue evacuar os hospitais a tempo e conservar a vida de Coleman Reese que quase morre pelas mãos de cidadãos com parentes nos hospitais.

Por fim, no quarto dilema, ele convida a cidade para entrar em seu jogo. Quando os cidadãos estão sendo retirados de uma determinada ilha da cidade, são usadas duas embarcações. Na ocasião, uma embarcação carrega prisioneiros perigosos que o promotor Harvey Dent havia prendido, enquanto a outra leva cidadãos comuns. Coloca barris de gasolina nas duas barcas e deixa um detonador remoto para cada uma. Entrando na freqüência de rádio das embarcações, o Coringa se comunica com ambas ao mesmo tempo:

“Esta noite, vocês todos farão parte de um experimento social. Através da magia do combustível diesel e do nitrato de amônia, estou pronto agora pra explodir vocês pro céu. Se alguém tentar sair de sua barca, eu mato todos. Cada um tem um detonador para explodir o outro barco. À meia-noite eu explodo a todos. Se, entretanto, um de vocês apertar o botão, eu deixarei essa barca viver. Então quem vai ser? A coleção dos mais procurados do Harvey Dent ou os doces e inocentes civis? Vocês escolhem! Oh, é bom decidirem logo porque as pessoas no outro barco talvez não sejam tão nobres”. (tradução nossa) 26

Enquanto o relógio corre marcando quinze minutos para a meia noite, a barca com os cidadãos entra em uma discussão para decidir se apertam ou não o botão. O segurança diz que o detonador não será ativado. Um cidadão fala que não cabe a ele decidir. Outra diz que os prisioneiros da outra barca já tiveram as chances deles e não

souberam aproveitar e outro propõe uma votação: todos concordam. Ao final da votação os resultados foram 140 contra e 396 a favor da detonação. Ao perceber que ninguém se levanta para apertar o botão, um cidadão diz: “Ninguém quer sujar as mãos. Ótimo. Eu faço. Aqueles homens no outro barco? Eles fizeram suas escolhas. Escolheram matar e roubar. Não faz nenhum sentido termos que morrer também”. 27 Ao dizer isso, ele pega o detonador, titubeia, devolve-o e volta a seu lugar sem coragem de fazê-lo.

Na outra barca, a dos criminosos, o segurança também não tem coragem de apertar o botão, mesmo com a maioria dos prisioneiros gritando para que ele o faça e rápido. Até que um dos prisioneiros se dirige para o segurança dizendo: “Você não quer morrer... mas você não sabe como tirar uma vida. Dê isso a mim. Estes homens vão te matar e tomar de qualquer jeito. Dê pra mim. Você pode dizer que eu tomei à força. Me dê e eu farei o que você deveria ter feito a 10 minutos atrás”.28 O segurança entrega para o criminoso, que por sua vez joga o detonador pela janela.

Porque tanta satisfação em estabelecer esses dilemas e se contentar com o sofrimento trágico do outro? Em outra ocasião o Coringa afirma: “Você quer saber porque eu uso uma faca? Armas são muito rápidas. Você não consegue saborear todas as pequenas emoções. Em seus últimos momentos, as pessoas te mostram quem realmente elas são.”29

Neste filme, o diretor Christopher Nolan não apresenta a cena da queda no tanque de líquido químico que provocou a brancura na pele, o avermelhamento dos lábios, os cabelos verdes e a contração na face em um sorriso constante, o que seria convencional. Aqui, o Coringa mesmo pinta os cabelos de verde, usa maquiagem no rosto e rasga as bochechas em formato de sorriso. E de fato, o produto químico, nas versões anteriores, funciona apenas como explicação para o rosto de palhaço.

Ter o rosto de palhaço simboliza sua postura diante da vida: a saber, diante da tragédia da vida que mesmo sendo cruel e sem sentido, merece um sorriso. Ao se referir às cicatrizes em seu rosto, no formato de um sorriso, ele explica:

Meu pai era um bêbado e um viciado. Certa noite, ele fica mais louco que de costume. Mamãe pega a faca de cozinha para se defender. Ele não gosta disso... nem um pouco. Então, comigo assistindo, ele enfia a faca nela, rindo enquanto faz isso. Ele se vira pra mim e diz: “porque tão sério?”. Ele vem até mim com a faca: “Porque tão sério?”. Enfia a lâmina na minha boca: “Vamos colocar um sorriso neste rosto”. 30

Em outra ocasião, ainda no filme, ele conta sobre suas cicatrizes:

Eu tinha uma esposa. Ela era linda. (…) Me dizia que eu me preocupava demais. Me dizia que eu tinha que sorrir mais. Ela jogava e se envolveu até o pescoço com agiotas. Um dia retalharam o rosto dela. E não tínhamos dinheiro para cirurgias. Ela não agüenta! Eu só queria vê-la sorrindo outra vez. Eu só queria que ela soubesse que eu não me preocupo com as cicatrizes. Então... eu enfio uma navalha na minha boca e faço isso comigo mesmo. E sabe o que acontece? Ela não agüenta olhar pra mim. Ela vai embora! Agora eu vejo o lado engraçado: agora eu estou sempre sorrindo! 31

Essas duas explicações trágicas corroboram com a versão de Allan Moore, em “A Piada Mortal”, na qual sua esposa grávida morre em um acidente doméstico tolo. Corroboram no sentido de expressarem exemplos comuns que acontecem nos dias atuais: maus tratos a criança, violência contra a mulher, alcoolismo, vício em jogos, abandono, falta de emprego, fracasso profissional, acidente doméstico. São exemplos que causam repulsa, náuseas. E o Coringa pôde superá-los e o demonstra por meio do riso.

Essa postura de deboche perante o trágico e suas investidas para criar situações de dilema mostram as pretensões do Coringa em causar caos a partir do medo, deixando as pessoas vulneráveis e pressionadas a tomarem uma decisão difícil ou simplesmente por diversão. Por mais que sejam situações estratégicas, elas estão longe de serem planejamentos comuns de controle e segurança: é justamente contra o controle, segurança, bem-estar, conservação e estabelecimento que o Coringa opera. Ele se define bem:

Eu realmente pareço um cara com planos? Sabe o que eu sou? Eu sou um cachorro correndo atrás de carros. Eu não saberia o que fazer se eu pegasse um. (...) Eu apenas faço coisas! A mafia tem planos. Os policiais tem planos. Gordon tem planos. Eles são esquematizadores. Esquematizadores tentando controlar seus mundinhos. Eu não sou um esquematizador. Eu tento mostrar aos esquematizadores o quanto suas tentativas de controlar as coisas realmente são patéticas.32

O fator simplório e patético dos planejamentos de controle são motivos de zombaria para o Coringa. Ele se diverte com eles. Tudo que é ordenado, regrado e estabelecido, motiva o personagem a impor uma contrapartida. Ele continua:

Olha o que eu fiz a esta cidade com uns barris de gasolina e algumas balas. Sabe o que eu percebi? Ninguém entra em pânico quando as coisas vão de „acordo com os planos‟. Mesmo que o plano seja terrível. Se amanhã eu digo à imprensa que um arruaceiro vai levar um tiro, ou um caminhão de soldados vai ser explodido... ninguém entra em pânico. Porque isso tudo faz parte do plano. Mas quando eu digo que um velho prefeitinho vai morrer... então todo mundo perde a cabeça. Introduza uma pequena anarquia. Perturbe a ordem estabelecida… e tudo se torna caos. Eu sou um agente do caos. E sabe uma coisa a respeito do caos? Ele é justo.33

A justiça no próprio caos: conceber a desordem como justa, cabível, algo dado. Trata-se de uma força desregrada, sem limites, despreocupada. Tal concepção vai de choque à concepção de justiça do restante da sociedade que investe defensivamente ou com inibição: com força reativa. Portanto, o esforço das delegações de segurança do Estado (Gotham), que possuem a função de ordenar o desordenado, entram no “jogo” do Coringa como força de inibição e escudo de defesa que atingem seu grau máximo de força contrária e estabelecedora da ordem, na pessoa do Batman.

NIETZSCHE E A ANÁLISE DA MORAL

E o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer.

Nietzsche

Valorações morais

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em suas concepções acerca da Moral, fez uma busca minuciosa até as origens 34 do tipo de valoração moral, tentando entender seu desdobramento e conseqüente repercussão em seu tempo: a saber, o final do século XIX no contexto cultural europeu.

A problemática para ele, e para nós também, é de, simplesmente, entender esta luta histórica que se apresenta ao homem sob as formas de bem e mal que têm se imposto como dilema dramático de escolha. Parece que cabe a filósofos, antes de fazer opções, conhecer os objetos para posicionar-se a favor, contra ou deixá-los. Com isso podemos perguntar, acompanhando Nietzsche:

(...) sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor „bom‟ e „mau‟? e que valores têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? (GM, p. 09)

Para isso, ele se utilizou de método genealógico, lançando mão de conhecimento histórico, filológico e análises psicológicas profundas no tocante às disposições do homem na formulação de tal valor: “encontrei e arrisquei respostas diversas, diferenciei épocas, povos, hierarquias dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas nasceram novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades”. (GM, p. 09)

Tais análises se encontram, mais sistematizadas, em seu livro Genealogia da Moral no qual Nietzsche frisa bem sua intenção em dissipar preconceitos acerca da moral que até então foram tomados por apenas um ponto de vista. É justamente colocando em questão esse ponto de vista vigente e hegemônico que o filósofo empreenderá sua busca pela origem (surgimento) de tais preconceitos sob o pressuposto de nova exigência:

Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (...), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. (GM, p. 12)

Faz-se importante salientar que Nietzsche não leva em conta a metafísica como acessório para a empresa de analisar as origens da moral e muito menos pensa em tê-la como fundamento inerente ao próprio homem que justifique o desenvolvimento da moral como opção saudável à vida. Por que para Nietzsche a moral só pode ser conhecida a partir de um nascimento, sob circunstâncias de desenvolvimento e transformação. O próprio valor da moral é colocado como problema. Ele pretende analisar o que é entendido até então como não analisável. É que sua filosofia “se constrói, em medida considerável, em contra-dicção, como um contra discurso em relação tanto à tradição da história da metafísica quanto, numa perspectiva de confronto e crítica cultural, como uma radical oposição à modernidade”. (GIACÓIA, 2008, p. 190)

As razões desta crítica podem ser compreendidas observando-se uma corrente filosófica e religiosa que se pretende universal em plano moral. Isso se encontra no platonismo e consequentemente no Cristianismo35, por serem, ambos, determinadores de “supremas referências axiológicas que determinam o horizonte normativo e a substância ética da modernidade”. (GIACÓIA, 1997, p 13)

Esse valor substancial é tido como dado e incontestável. De modo direto: aquilo que é “bom” sendo elevado no valor em relação ao que é “mau” estaria acima de qualquer questionamento, não havendo hesitações ou dúvidas em considerá-lo como tal. Por isso Nietzsche propõe uma troca de perspectiva na consideração:

E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?... (GM, p. 12-13)

Com essa consideração nova, Nietzsche investiga, imediatamente, o surgimento do conceito e juízo “bom” a partir de um espírito histórico. Desconsidera a ideia inglesa36 de que o conceito “bom” tenha sido criado por aqueles a quem se tenham praticado ações não egoístas, a quem tenham sido úteis, desdobrando-se em louvores e agradecimentos e que com o tempo foram se acostumando em chamar atos altruístas de “bons”.

Mas Nietzsche propõe outra coisa: foram os homens superiores, os nobres, os senhores quem criaram o conceito “bom” a partir deles mesmos, tendo eles mesmos como referência. É como se o nome brotasse como extensão de seu próprio brilho, o brilho nobre. Diferentemente da ideia inglesa acima que cria a partir da ação de outro e, por hábito, continuam a atribuir o nome “bom” esquecendo-se de sua origem.

Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. (GM I § 2)

Esses homens superiores deram nome ao valor. O que lhes era caro, precioso, querido, desejado, agradável, saboroso, etc., recebeu o nome de “bom” como distintivo. E logo esse “bom” só pode estar em contrapartida ao que é barato, indesejado, desagradável, não precioso, etc. Em contraposição criaram o nome “ruim”.

O pathos da nobreza e da distância (...), o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um “sob” – eis a origem da oposição “bom” e “ruim”. (O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem “isto é isto”, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas). (GM I § 2) 

Para chegar a essa origem o filósofo levou em conta a etimologia do conceito em diversas línguas e verificou que em todas elas, o fator senhorial foi base para o desenvolvimento conceitual e definidor do valor em questão, sempre em crescimento paralelo com o fator contrário, o do escravo:

(...) em toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu “bom”, no sentido de “espiritualmente nobre”, “aristocrático”, de “espiritualmente bem- nascido”, “espiritualmente privilegiado”: um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz “plebeu”, “comum”, “baixo” transmutar-se finalmente em “ruim”. (GM I § 4)

Nietzsche se refere aos senhores de várias formas: poderosos, nobres, fortes, superiores, bem logrados etc. Assim como aos escravos: plebeus, baixos, fracos, malogrados etc. Mas quem são esses senhores? Porque são importantes dentro da compreensão de valoração moral para Nietzsche?

Em sua obra Além do Bem e do Mal, é apresentada as características desse tipo de homem capaz de estabelecer valores, cunhar nomes:

Homens de uma natureza ainda natural, bárbaros em toda terrível acepção da palavra, homens de rapina, ainda possuidores de energias de vontade e ânsias de poder intactas (...) A casta nobre sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não estava primariamente na força física, mas na psíquica – eram os homens mais inteiros (o que em qualquer nível significa também “as bestas mais inteiras”. (ABM § 257)

Nietzsche observa que houve uma inversão no então conceito de “bom” e, por conseguinte no seu oposto “ruim”. É o que ele chama de tresvaloração de valores. Aquilo que inicialmente era tido como bom passa a ser entendido como ruim e vice-versa. Mas, mais que isso: a dupla de antônimos “bom” e “ruim”, ganha um terceiro participante, o “mau”. Acontece, portanto, uma nova maneira de valorar, baseada em um fator novo: o ressentimento dos fracos.

Os fracos, em sua impotência perante os fortes, assumem para si uma vontade de vingança carregada de ódio embutido: um veneno conservado que espera o momento certo para aniquilar o inimigo. Trata-se de um tipo de valoração que não parte de si mesmo (do fraco) como parâmetro para valorar, mas olha para o outro e o nega.

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação no fundo é reação. (GM, I § 10)

A valoração do forte é diferente:

O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes! (GM I § 10)

As duas citações acima esboçam os modos valorativos do que Nietzsche chama de moral dos senhores e moral dos escravos37, como dois tipos básicos dentre várias outras morais possíveis. Podemos aventar que elas são acentuadas pelo filósofo pelo fato de serem as mais predominantes na cultura ocidental, aquelas que se cruzam e entram em conflito de perspectiva, que têm gerado guerras.

Com relação ao modo valorativo escravo é, portanto, o ressentimento que gera o novo valor moral em questão. É de um constatar-se impotente perante um potente, fraco perante um forte, que o ódio cresce e toma proporções de vingança. A impotência do fraco, com relação ao forte, cria um novo tipo de valoração: o forte, segundo a perspectiva do fraco, torna-se “mau”.

Nietzsche irá salientar a importância de distinguir estes conceitos antagônicos para “bom” que são aparentemente iguais: a saber, o “bom” contrapondo “ruim” e o “bom” contrapondo “mau”:

Este “ruim” de origem nobre e aquele “mau” que vem do caldeirão do ódio insatisfeito – o primeiro uma criação posterior, secundária, cor complementar; o segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral escrava – como são diferentes as palavras “mau” e “ruim”, ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de “bom”: perguntemo-nos quem é propriamente “mau”, no sentido da moral do ressentimento.  A resposta, com todo o rigor: precisamente o “bom” da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento. 

O filósofo se utilizará de uma pequena fábula para expressar esta tresvaloração escrava. Ele compara o senhor a uma ave de rapina e o escravo a uma ovelha: animais que possuem características similares às apresentadas para cada tipo de valorador moral: o fraco e o forte. As aves de rapina são conhecidas por sua habilidade em caçar suas presas, enquanto as ovelhas são as caças:

Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: “essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha – este não deveria ser bom?”, não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si mesmas: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha”. (GM I § 13)

A filósofa Maria Cristina Ferraz (2008) caracteriza o discurso das ovelhas e das aves de rapina apontando a perspectiva de Nietzsche na elaboração da fábula:

Como se pode observar, o problema aqui não reside nem na diferença nem nos inevitáveis embates que ela em geral suscita, mas nessa necessidade de censurar, de culpabilizar (...) A postura dos cordeiros, a censura que dirigem às aves de rapina e o próprio ato de julgar já implicam, portanto, a valoração moral. A perspectiva de quem conta a fábula introduz, por sua vez, uma primeira distância em relação ao cordeiro, distância necessária para a avaliação dos valores que este promove (FERRAZ, 2008, p 149).

Com isso, Nietzsche criticará a ideia de sujeito atuante na escolha de ser forte ou fraco. Para ele, a ave de rapina não escolhe se vai devorar a ovelha ou não, ela simplesmente tem força para tal e o faz: “Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força” (GM I § 13). Não há justificativa para que o fraco exija do forte uma decisão livre em ser forte ou não, justamente porque não existe um fundamento, uma essência no forte que o “dirija” para exercer a força. Não existe um eu no sentido de sujeito. Nietzsche usa uma metáfora para sustentar isso:

Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe „ser‟ por trás do fazer, do atuar, do devir; o „agente‟ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo38 (GM I § 13).

O corisco e o clarão seriam a mesma coisa. O povo, ou a moral do povo, ou a moral escrava (de rebanho) é que faz a distinção e ela é necessária para ter o que culpar. Uma vez que esse sujeito não existe, não há necessidade de culpabilizar: “Só a crença nesse sujeito „por trás‟ possibilita tanto a atribuição de mérito quanto a condenação moral por aquilo que se fez, ou deixou de fazer” (FERRAZ, 2008, p 153).

Entramos no conceito de vontade de potência, que definirá, explicitamente, caso não se tenha percebido até agora, de que lado Friedrich Nietzsche estará no modo de valoração:

Aqui devemos pensar radicalmente até o fundo, e guardarmo-nos de toda fraqueza sentimental: a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração (...) A „exploração‟ não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como teoria – como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto! (ABM § 259)

Com relação às aves de rapina, há de se observar que seu discurso se apresenta como afirmador de si mesmo, não tomando o outro como referência, mas verificando sua potência e prazer no “comer”. A vontade de potência das aves de rapina, apenas justifica a vida, a “essência do que vive”. Somente aqui se possa falar em essência, portanto: vontade de domínio, ação/fazer. Há uma inocência também: sua força dominante é desprovida de culpa, portanto, cabe o riso. O deboche entra como ridicularização da moral porque “trata-se, antes, de uma afirmação direta, sem rodeios ou segundas intenções, que expressa bom humor e ausência de rancor” (FERRAZ, 2008, p 156).

Rebelião dos escravos e religião

Mesmo que o tipo de valoração senhorial tenha sido a responsável por criar os conceitos originais do que é bom e ruim, o modo de valoração escrava tomou a frente e por meio da tresvaloração dos valores, definiu o que era mau e atribui aos senhores o título de maus. Tal titulação coloca o forte em estado de titubeio perante o fraco e o que antes era força se torna fraqueza e o que era tido como desprezível e baixo se torna digno de louvor, uma virtude a ser alcançada em vista de algo mais, algo além do que se pode ver, tocar, cheirar, ouvir, enfim, sentir. Justamente porque, em seu mais alto grau de criação imaginativa ressentida, inventou ideais.

Estas características do homem fraco são expressas, em Nietzsche, na figura do sacerdote. A casta sacerdotal, em confronto com a casta senhorial guerreira, é derrotada, em termos de constituição física, e a constatação de sua impotência gera uma estratégia de dominação por vias diferentes, não menos subjugadoras. Essas vias consistem em atos de vingança não com a mesma moeda, o que seria impraticável aos sacerdotes, mas em nomear os guerreiros e poderosos como maus.

Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos – por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes. (GM I § 7)

Este ódio ressentido e entranhado dos escravos, aos pés da potência humilhante dos felizes senhores, encontrará espaço na religião. O sacerdote da religião será o responsável por desdobrar na história da cultura mundial, sua valoração moral em luta contra as forças que denominou como más. Nietzsche enxerga no povo judeu o expoente perfeito que caracteriza e oferece ao mundo as marcas da valoração moral escrava:

Assim convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber: “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem aventurança – mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!...”. (GM I § 7)

Isso inicia o que Nietzsche chama de a revolta/rebelião dos escravos na moral:os judeus e “os seus profetas fundiram „rico‟, „ateu‟, „mau‟, „violento‟ e „sensual‟ numa só definição, e pela primeira vez deram cunho vergonhoso à palavra „mundo‟” (ABM, p 83). Na inversão percebe-se os fatores econômico, religioso, moral, biológico e sexual: todos tidos naqueles pólos, como maus, pejorativamente do mundo, pagão. O povo judeu se desenvolve e com ele seu modo de valorar cria estruturas e pretensões universais, principalmente com o surgimento de Jesus Cristo e sua Igreja. Ele é um judeu que consegue espalhar os ideais de compaixão e misericórdia, de amor incondicional ao próximo e aos inimigos sob a recompensa de uma futura vida eterna. Jesus é considerado o redentor dos homens e Nietzsche se refere a ele nestes termos:

Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo do amor, esse “redentor” portador da vitória e da bem-aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores – não era ele a sedução em sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa para justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal? Não teria Israel alcançado, por via desse “redentor”, desse aparente antagonista e desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança? (GM I § 8)

O Cristianismo, como ramo direto da raiz judaica39 e, por conseguinte, herdeiro do tipo de valoração entendida por Nietzsche como escrava e fraca, acaba por espalhar, de maneira expansiva40 os valores sacerdotais e adquire, assim, preeminência cultural na história do homem: “... aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e que hoje perdemos de vista, porque – foi vitoriosa...” (GM, p 26)

Contudo, no decorrer da história, e apesar da hegemonia escrava, os valores senhoriais parecem não ter desfalecido e impõem guerra. Nietzsche deixa isso bem claro quando evidencia a luta desses dois tipos de valorações e de maneira icônica estabelece os nomes para a batalha dessas duas culturas distintas, essa oposição moral:

(...) um verdadeiro campo de batalha para esses dois opostos. O dístico dessa luta, escrito em caracteres legíveis através de toda a história humana, é “Roma contra Judéia, Judéia contra Roma”: – não houve, até agora, acontecimento maior do que essa luta, essa questão, essa oposição moral. Roma enxergou no judeu algo como a própria antinatureza, como que seu monstro antípoda; em Roma os judeus eram tidos por „culpados de ódio a todo gênero humano‟(...) Quanto aos judeus, o que sentiam ante os romanos? Percebe-se por mil indícios; mas basta trazer à lembrança o Apocalipse de João, a mais selvagem das invectivas que a vingança tem na consciência. (GM I § 16)

Depois de vistas as características indispensáveis para entender a origem e o desenvolvimento das valorações morais, tendo em vista os dois antípodas valoradores da cultura que persistem em caminhar em um paralelo conflituoso, cabe agora uma observação daquilo que incorpora tal conflito moral, porque tais morais podem coexistir “até mesmo num homem, no interior de uma só alma”(ABM § 259): a saber, o homem que lembra e é capaz de prometer.

Promessa

A capacidade do homem de prometer, de dar sua palavra, de calcular e projetar suas ações para o futuro por meio de um acordo no presente, o qual durante o fluxo do tempo deve se remeter ao passado fundado em uma lembrança de promessa. A isso, Oswaldo Giacóia Jr. chama de “uma espécie de dilação temporal do querer” 41, ou seja, uma prorrogação da vontade presente, somente possível por meio de uma memorização. 

“Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento”. (GM II § 1)

A tarefa se apresenta paradoxal, pois pretende lutar contra a força ativa e voraz do esquecimento. Este, compreendido por Nietzsche como faculdade positiva e saudável à ordem psíquica para que “haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar” (GM II § 1).  O esquecimento, aqui, é tratado como instrumento revigorante: “com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento” (GM II § 1). 

Ao que Nietzsche chega a comparar aqueles que possuem a faculdade do esquecimento danificada, a dispépticos, que sofrem de má digestão, que obstrui e dificulta um ciclo digestivo tão importante e acrescenta:

Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecimento é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade: de modo que entre o primitivo “quero”, “farei”, e a verdadeira descarga da vontade, seu ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer. (GM II § 1)

Ou seja: um querer que se sustenta e se mantém mesmo com uma enxurrada de acontecimentos, disposições, vontades, contra-vontades, alegrias e desapontamentos. Não se trata mais de “não poder esquecer” e sim de “não querer esquecer”. Note que “não-mais-poder-livar-se da impressão”, cede lugar a “não-mais-querer-livrar-se da impressão”: o “não poder” dá lugar ao “querer não esquecer”. É uma atitude quase que imperativa de querer não esquecer. Eis o que garante a promessa: o não querer livrar-se, o memorizar a vontade inicial e levá-la até o ponto de, finalmente, realizá-la, ou não realizá-la, é o caso da vontade de querer o nada42. 

“Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar – para isso, quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir!”. (GM II § 1)

Em outras palavras: o homem tornou-se complexo e em meio a isso se construiu, trabalhou a si mesmo em um movimento de interiorização. Aos poucos foi moldando a sua confiabilidade, sua constância digna de crédito. Tornou-se confiável a duro processo:

Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois “autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização. Este liberto ao qual é permitido prometer, este senhor do livre-arbítrio, este soberano. (GM II § 2)

Este indivíduo soberano é certamente o homem moderno, aquele com a habilidade de responder por si mesmo, o homem da responsabilidade. No entanto, para que alcançasse tal estado de consciência e consequente capacidade de fazer promessas ele carrega em si toda uma história de desenvolvimento, todo um procedimento para chegar onde está. É aonde entra a pergunta de Nietzsche: “Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?” (GM II § 3). O filósofo antecipa ao leitor que a resposta para tal problema não é suave. É justamente por meios duros e terríveis que se cria uma memória: pela dor. Trata-se de uma dor que perdura porque “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” (GM II § 3). Portanto, a mnemotécnica (técnica de memorização) do homem, é fundamentada em impressões fortes:

Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) – tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica. (GM II § 3)

Nietzsche ainda ressalta alguns procedimentos de punição e tortura como o apedrejamento, o empalamento, a roda, o dilaceramento ou pisoteamento por cavalos, a fervura do criminoso em óleo ou vinho, o esfolamento, a excisão da carne do peito e a exposição da pessoa banhada em mel às moscas sob o sol ardente. (Cf. GM II § 3) Tais procedimentos cruéis, segundo o filósofo, têm por objetivo a garantia do convívio social: “Com ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis „não-quero‟, com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade” (GM II § 3). Desse modo é possível, para Nietzsche, fixar na memória o evento doloroso que ao ser lembrado torna-se fator condicionante da ação presente e que coincide com a promessa dada.

(...) com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente „à razão‟! – Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as „coisas boas‟! (GM II § 3)

Relação credor/devedor, castigo e má consciência

Assim, Nietzsche parte diretamente para a origem da consciência da culpa encontrando sua gênese na relação entre credor e devedor. Ele afirma que por longo período da história, o castigo era praticado como desafogo de raiva sob aquele que causou dano. Quem sofre o dano é tomado por sentimento de raiva e castiga. No entanto, o sentimento de raiva vai sendo mantido, com o tempo, em certos limites e posteriormente se transmuta na ideia de que todo dano sofrido pode ter um equivalente compensador.

Torna-se vantajoso cobrar por um dano sofrido. Assim é estabelecida a relação entre credor e devedor: por meio de contrato o devedor assume pagar o dano sofrido com terras, dinheiro, bens e etc. Para dar garantias de sua palavra e fixar em sua própria consciência o dever da restituição, o devedor coloca garantias caso falte com a palavra. Essas garantias aparecem na forma de posses como sua mulher, sua liberdade, seu corpo ou até mesmo sua própria vida. Nietzsche ainda percebe que o credor podia submeter seu devedor a tipos de humilhações e torturas. Ele cita o fator cruel da lei das Doze Tábuas da antiga Roma e acrescenta:

Tornemos clara para nós mesmos a estranha lógica dessa forma de compensação 43. A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa – a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, a volúpia de „faire le mal pour le plaisir de le faire‟, o prazer de ultrajar (...) Através da „punição‟ ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como „inferior‟ – ou então, no caso em que o poder de execução da pena já passou à „autoridade‟, poder ao menos vê-lo desprezado e maltratado. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade 44. (GM II § 5)

A questão da crueldade, aqui, emerge como satisfação para o credor. Uma vez que o seu dano, ou sua dor, pode ser compensado, porque não compensá-lo de maneira prazerosa? Nietzsche apresenta a crueldade de acordo com o contexto da era antiga, na qual a alegria de uma festa dependia de sofrimento e derramamento de sangue:

(...) “como pode fazer-sofrer ser uma satisfação?” (...) Parece-me que repugna à delicadeza, mais ainda à tartufice dos mansos animais domésticos (isto é, os homens modernos, isto é, nós), imaginar com todo vigor até que ponto a crueldade constituía o grande prazer festivo da humanidade antiga, como era um ingrediente de quase todas as suas alegrias; e com que ingenuidade se apresentava a sua exigência de crueldade, quão radicalmente a “maldade desinteressada” (ou, na expressão de Espinoza, a sympatia malevolens [simpatia malévola] era vista como atributo normal do homem – : logo, como algo a que a consciência diz Sim de coração!. (GM II § 6)

Com o tempo, afirma Nietzsche, o homem passou a ter vergonha de si mesmo, especificamente: vergonha de seus instintos, de suas tendências à crueldade, ao prazer em fazer sofrer, em causar dor. Vergonha, até mesmo, de seu cheiro, de sua secreção, de sua urina, de seu excremento. (GM II § 7) O sofrimento, hoje, diz Nietzsche, é argumento contra a existência, mas “é bom recordar as épocas em que se julgava o contrário, porque não se prescindia do fazer-sofrer; e via-se nele um encanto de primeira ordem, um verdadeiro chamariz à vida”. (GM II § 7) Todavia, tal “ingrediente” feliz e chamativo ainda parece persistir, mesmo com o “amolecimento” do animal-homem.

Talvez possamos admitir que o prazer na crueldade não esteja realmente extinto: apenas necessitaria, pelo fato de agora doer mais a dor, de alguma sublimação e sutilização, isto é, deveria aparecer transposto para o plano imaginativo e psíquico, e ornado de nomes tão inofensivos que não despertassem suspeita nem mesmo na mais delicada e hipócrita consciência (a „compaixão trágica‟ é um desses nomes; um outro é “les nostalgies de la croix” [as nostalgias da cruz]. (GM II § 7)

Tendo isso em vista, as relações básicas entre credor e devedor ocupam toda a dimensão da gênese de conceitos morais como culpa, consciência, dever, sacralidade do dever (cf. GM II § 6), e dessa forma é possível acompanhar a metodologia genealógica de Nietzsche. Entraremos, imediatamente, no estudo da má consciência, justamente sob a mesma perspectiva da relação entre credor e devedor que se desdobra na ideia de comunidade, donde o sentimento de culpa tem sua origem e se apresenta na cultura ocidental. Veremos como Nietzsche sustenta tal origem.

A relação entre credor e devedor, segundo Nietzsche, ocupa os mais variados espaços das relações pessoais, porque ela faz o animal-homem, transpô-la para o âmbito social, ou seja, a comunidade mantém essa mesma relação com seus membros. O membro que comete falta contra a comunidade é afastado dos benefícios dela e é cobrado. A comunidade (credor) perante o criminoso (devedor) passa a ter o direito de compensação:

O “castigo”, nesse nível dos costumes, é simplesmente a cópia, mimus [reprodução] do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, prostrado, que perdeu não só qualquer direito e proteção, mas também qualquer esperança de graça; ou seja, é o direito de guerra e a celebração do Vae victus! [ai dos vencidos!] em toda a sua dureza e crueldade – o que explica por que a própria guerra (incluindo o sacrifício ritual guerreiro) forneceu todas as formas sob as quais o castigo aparece na história. (GM II § 9)

É preciso distinguir dois aspectos no castigo, a saber, o que é duradouro e o que é fluido. O que dura é “o costume, o ato, o „drama‟, uma certa sequência rigorosa de procedimentos” (GM II § 13). Aquilo que é fluido é o “sentido, o fim, a expectativa ligada à realização desses procedimentos” (GM II § 13). Vejamos alguns sentidos para o castigo elencados por Nietzsche, que são pertinentes à proposta do presente trabalho:

Castigo como neutralização, como impedimento de novos danos (...) Castigo como isolamento de uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento da perturbação. Castigo como inspiração de temor àqueles que determinam e executam o castigo (...) Castigo como festa, ou seja, como ultraje e escárnio de um inimigo finalmente vencido. Castigo como criação de memória, seja para aquele que sofre o castigo – a chamada correção – , seja para aqueles que o testemunham (GM II § 13).

Além dos sentidos para castigo apontados acima, Nietzsche acrescenta e dá atenção a um, que comumente é tomado de maneira errônea. Segundo o filósofo, atribui-se ao castigo o sentido de despertar no castigado um sentimento de culpa – castiga-se para que o condenado sinta remorso, má consciência – e o que segue é precisamente o contrário: o castigo detém o sentimento de culpa, o impede. O castigo, portanto, não faz o criminoso se sentir culpado, ele não é instrumento de sentimento de culpa. Não é por ser castigado que sentirá peso na consciência e “de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um „culpado‟. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento do destino” (GM II § 14).

O castigo, de acordo com Nietzsche, provoca outras coisas:

Falando de modo geral, o castigo endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância; aumenta a força de resistência. Quando sucede de ele quebrar a energia e produzir miserável prostração e auto-rebaixamento, um tal sucesso é sem dúvida ainda menos agradável que o seu efeito habitual: que se caracteriza por uma seca e sombria seriedade. (GM II § 14).

E ainda:

O que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna “melhor” – com maior razão se afirmaria o contrário. (“O prejuízo torna prudente”, diz o povo: tornando prudente, torna também ruim. Mas felizmente torna muitas vezes tolo. (GM II § 15).

Mas o que viria a provocar a má consciência, o sentimento de culpa então? Nietzsche, ao ver a má consciência como uma profunda doença, atribui sua origem a uma transformação radical à qual o homem se submeteu: a origem se encontra no momento em que “ele se viu encerrado no âmbito da sociedade e da paz” (GM, II § 16). Quando o homem deixa para trás suas aventuras selvagens no contato com a natureza e com a guerra na qual extravasava sua energia instintiva, passando a suspender esses mesmos instintos e desvalorizá-los, inutilizá-los, acontece uma redução de sua qualidade vital.

Ora, suspender os instintos não significa anulá-los, extirpá-los. Eles se mantêm, só que de maneira diferente, em movimento interiorizado, não mais colocados para fora em atos de extravaso: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua „alma‟” (GM II § 16). 

A inibição, esse campo de força que impede a descarga do instinto para fora, gera um universo interior (alma) dentro do qual vive uma força (instinto) que precisa atacar algo. Neste caso, o ataque é feito à própria consciência:

Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. Esse homem que por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência” (GM II § 16).

O extravasamento da vontade de poder acontece não a outro, mas a si, o “eu” 45 é o alvo de toda descarga de crueldade. Verifica-se, ainda, o prazer no fazer sofrer, só que, aqui, voltado contra si. Trata-se de uma sublimação: “Em sentido psicológico, a má-consciência é constituída pela vontade de causar dano a si mesmo, de afligir-se de modo permanente e, dessa maneira, criar condições „subterrâneas‟ para a descarga dos impulsos hostis” (GIACÓIA, 2008, p. 217).

Eis que se forma um paradoxo: existe um prazer no fazer sofrer a si mesmo. Toda abnegação, sacrifício, desprendimento de si, altruísmo, doação e seus sinônimos, são satisfações em fazer sofrer, nesse caso, a si mesmo, àquele “sujeito” criado pela valoração escrava.

Isso ao menos tornará menos enigmático o enigma de como se pôde insinuar um ideal, uma beleza, em noções contraditórias como ausência de si, abnegação, sacrifício; e uma coisa sabemos doravante, não tenho dúvida – de que espécie é, desde o início, o prazer que sente o desinteressado, o abnegado, o que se sacrifica: este prazer vem da crueldade (...) Somente a má consciência, somente a vontade de maltratar-se fornece a condição primeira para o valor do não-egoísmo. (GM, II §18)

Com isso, Nietzsche promete apresentar aonde esta má consciência culminará, mas antes retoma a relação entre credor e devedor para verificar sua aplicação na relação entre os vivos e seus antepassados. Ele percebe que a devoção das comunidades tribais primitivas aos seus antepassados, é uma extensão dessa relação entre credor e devedor. Aos antepassados eram oferecidos sacrifícios para que mantivessem o sustento da comunidade, uma vez que foram eles, os antepassados, que iniciaram e ergueram o que no presente subsiste:

A geração que vive sempre reconhece para com a anterior, e em especial para com a primeira, fundadora da estirpe, uma obrigação jurídica (...) A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e às realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes pagar isso com sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld], que cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e adiantamentos a partir de sua força. (GM II § 19)

De acordo com Nietzsche, esta mesma lógica de dívida é aplicada em dimensões mais amplas, nas quais as figuras divinas ocupam o lugar do credor. Na medida em que a comunidade cresce e com ela sua força de dominação e poder, os ícones divinos vão tomando proporções universais, assim como o sentimento de culpa para com eles: quanto maior o poder da divindade, maior dívida terá de ser paga pelo devedor.

O sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às alturas o conceito e o sentimento de Deus (...) o progresso em direção a impérios universais é também o progresso em direção a divindades universais; o despotismo, com seu triunfo sobre a nobreza independente, sempre abre o caminho para algum monoteísmo (...) O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. (GM, II § 20).

Uma vez que ao Deus cristão é atribuído o valor absoluto, a dívida, também absoluta, torna-se impagável pelos devedores:

até que subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no qual a humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe de gênio do cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!... (GM II § 22)

Logo se percebe que ao tratar pormenorizadamente os conceitos de bom e ruim, bom e mau, ressentimento, tresvaloração de valores, moral dos senhores e moral dos escravos, revolta dos escravos na moral, promessa, relação entre credor e devedor, castigo, sentimento de culpa, vontade de potência, crueldade e má consciência, Nietzsche pretende desenhar um quadro de tudo aquilo que tem se remetido ao tema da moral e que aparece e se desenvolve na história do homem, de modo especial, na cultura ocidental: seu campo de pesquisa e elaboração filosófica.

Com o intuito de canalizar e deixar clara a pretensão do presente trabalho, que aqui encontra seu ponto culminante, é preciso dizer que todos os conceitos acima citados e que tomaram forma no corpo deste capítulo serão relacionados, imediatamente, no capítulo seguinte, com os personagens Batman e Coringa, no intuito de estabelecer um diálogo entre a obra artística dos fenômenos Batman e Coringa e a filosofia nitzscheana sobre, especificamente, a moral.

UMA FORÇA IRREFREÁVEL E UM OBJETO IMÓVEL

Os dois valores contrapostos, “bom” e “ruim”, “bom” e “mau”, travaram na terra uma luta terrível, milenar; e embora o segundo valor há muito predomine, ainda agora não faltam lugares em que a luta não foi decidida.

Nietzsche

Promessas e cargas

O ponto decisivo da gênese e da contínua recriação do personagem Batman se dá, como já visto, a partir de uma promessa. A lembrança do cruel assassinato de seus pais o impele a comprometer-se em combater o crime em Gotham City. Essa será a motivação primária do mito de Batman sem a qual o personagem não possui sustento. O que se tem, a partir desta promessa, são histórias de um homem que luta na defesa de seus princípios, utilizando-se de meios violentos e polêmicos, que de modo paradoxal, colocam em questão sua finalidade: a possibilidade de Gotham como um lugar melhor.

O filósofo Friedrich Nietzsche entendeu que a promessa retira a vontade de seu tempo presente e transporta-a para o futuro sob a influência de uma memória. A palavra dada sempre será lembrada por um ato de vontade, uma adesão ao querer lembrar-se. Contudo, Nietzsche atribui à força contrária a da memória, o esquecimento, uma qualidade saudável, ativa, positiva. (GM II § 1)

Como primeira provocação, oferecemos uma observação atenta sobre o fenômeno Batman e a ideia de Nietzsche em perceber a dispepsia que ocorre naqueles que fazem promessas. (cf. GM II § 1) A metáfora fisiológica consiste em inferir que a má digestão é fator degenerativo da saúde: o que implica dizer que a promessa carrega em si um peso que resulta no mau funcionamento do organismo psíquico.

Quando o pequeno Bruce decide dedicar-se na luta contra criminosos, ele está imprimindo em si mesmo o peso de dar uma resposta constante a uma promessa feita à memória de seus pais. A promessa de Batman torna-se sua tarefa primordial, a qual nada poderá atrapalhá-la, contrapô-la, vencê-la: “Fiz uma promessa no túmulo dos meus pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que tirou suas vidas”. (LOEB, 1998, p.29)

A saúde encontrada no esquecimento do qual Nietzsche se refere consiste em:

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: como o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue “dar conta”... (GM II § 1)

De certa forma Batman é um dispéptico. Sua promessa é carregada como alimento não digerido, donde se percebe os sintomas de uma doença por ele mesmo querida. Não vemos cores vivas em Batman. Seu traje é apresentado nos quadrinhos e nos filmes em variações de cinza, azul escuro e preto 46. A caverna na qual treina e planeja suas missões, além de ser por si um lugar afastado e subterrâneo, é escura: o homem morcego é sombrio. Ele aparenta ser marcado por um passado que gostaria de não ter vivido, no qual uma criança se encontra solitária, sem sorriso no rosto, apenas com a morte em sua frente. Tal imagem o toma em todos os momentos, está arraigada em sua memória.

Nietzsche afirma que para se obter uma memória que garanta e sustente uma promessa é necessário atravessar a dor: “„Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória‟– eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra”. (GM II § 3)

O fator doloroso na memória de Batman é bem expresso na HQ O Cavaleiro das Trevas (1986), na qual os detalhes do assassinato de seus pais aparecem de maneira terrível em suas lembranças: o colar de sua mãe espatifa-se no chão espalhando as pequenas e lindas pérolas pelo chão sujo e úmido. Mais tarde em Ano Um (1987), o garoto ajoelhado contempla os corpos dos pais ensanguentados sem poder fazer nada. Em poucas situações se vê Batman com um sorriso no rosto.

Pode-se mesmo dizer que em toda parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o mais distante, duro, profundo passado, que nos alcança e que reflui dentro de nós, quando nos tornamos “sérios”. Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória. (GM II § 3)

A memória da perda de seus pais acoplada à crueldade do acontecimento dá um tom dramático à promessa e se expressa na personalidade do personagem. Pouco se fala da promessa nos meios em que Batman é tratado como estrela47. As atitudes heróicas, sua destreza em resolver problemas, sua inteligência em operar acessórios tecnológicos, sua imponência estética ao plainar por sobre os prédios: são muito mais apreciados e louvados. Assim como a razão de um homem é apreciada e louvada: “Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as „coisas boas‟!...”. (GM II § 3)

Em Inimigos Públicos (2009), após um dia inteiro de luta contra Lex Luthor, Superman e Batman se encontram no alto de um prédio enquanto Louis Lane se aproxima de helicóptero. A simples menção de uma possível comemoração da vitória, entre amigos, já coloca Batman em estado defensivo, afirmando que já era tarde e precisava voltar para casa48, mesmo que este em nada recorde um lar. Até mesmo seu parceiro Robin reclama a falta de senso de humor no Batman. Apenas Hollywood, como sempre, é a exceção49.

Desde sua juventude, quando ele viveu a dramática e horrível experiência de testemunhar o assassinato de seus pais, ele se dedicou de corpo e alma ao mais severo regime de autodesenvolvimento e à mais centrada missão de combater o crime. Ele é o último paradigma de um homem em uma missão, e nada pode desviá-lo dela. Seu preparo para tal missão, e a execução dela, criou um espírito independente, um enfoque austero ao extremo e um senso de alienada solidão, sem igual entre seus colegas combatentes fantasiados do crime. Ele é obscuro, ameaçador, apático e até assustador. Esse não é o sujeito com que você gostaria de sair para jogar boliche ou comer pizza. (MORRIS, 2009, p. 108)

É o que Nietzsche chamou de indivíduo/homem soberano, aquele capaz de fazer promessas, senhor do livre arbítrio, confiável, constante, uniforme, necessário. Fruto maduro da moralidade do costume e da camisa de força social. (cf. GM II § 3)

O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante – como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano o chama de sua consciência... (GM II § 2)

A promessa é, portanto, um dever, uma dívida: é necessário ser fiel à palavra dada. Pensando na carga patrimonial herdada por Bruce de seus pais, tal promessa ganha maior peso. Não se trata apenas de uma promessa feita a duas pessoas às quais se tem amor, mas a todo um patrimônio construído por gerações.

Em Batman Begins, Alfred Pennyworth, o fiel mordomo, relembra que a mansão Wayne, abrigou seis gerações da família que é a mais tradicional de Gotham. Em outra ocasião, Thomas Wayne, o pai de Bruce, conta ao filho que construiu um sistema de transporte público barato para facilitar a locomoção da população mais pobre, assim como apresenta a torre Wayne, sede majestosa das empresas que leva o nome da família.

Em diálogo com Batman, Alfred critica os métodos perigosos dos quais o Morcego se utiliza e deixa bem clara a questão do patrimônio familiar tão pertinente à promessa. Alfred diz:

- Você está se perdendo dentro deste seu monstro..

- Estou usando esse monstro para ajudar outras pessoas, assim como meu pai fazia.

- Mas o ajudar de Thomas Wayne não era para provar algo para alguém. Inclusive a ele mesmo.

- É a Rachel Alfred, ela estava morrendo.

- Bem, nós dois nos importamos com a Rachel senhor, mas o que você faz precisa estar além disso. Não pode ser pessoal, ou você é apenas um vigilante.

- Fox ainda está aqui?

- Sim senhor.

- Precisamos mandar aquelas pessoas embora agora.

- Aquelas são convidadas de Bruce Wayne. Você tem um nome a manter.

- Não me importo com meu nome!

- Não é apenas o seu nome senhor. É o nome do seu pai! E isso é tudo que restou dele. Não o destrua. (NOLAN, 2005) 50

Quando Nietzsche apresenta a relação entre credor e devedor e a aplica às relações que as comunidades primitivas mantinham com seus antepassados, é possível observá-la na postura que Batman possui para com seus pais e todo o patrimônio que deles herdou. Não se trata apenas de um patrimônio material, mas de todo um legado moral do qual a honra emerge como rendição de homenagem à memória dos antepassados com respeito e devoção a tudo que construíram.

Nietzsche afirma: “A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes pagar isso com sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld]” 51. (GM II § 19) Da mesma forma que as primitivas comunidades tribais ofereciam realizações em louvor aos antepassados, Batman por meio do cuidado com o nome da família a ser zelado e da atenção em colocar as empresas Wayne nas mãos de administradores confiáveis, oferece à memória de seus pais o que a eles deve. Quando a mansão Wayne vem a baixo por conta de um incêndio provocado pelo rival Ra‟s Al Ghul, Alfred afirma: “O legado Wayne é mais do que tijolos e argamassa”52. (NOLAN, 2005)

Assim como a realização em honra aos pais, o sacrifício pode ser compreendido, em Batman, como a atitude de abdicar-se de uma vida comum. Muitos privilégios poderiam ser aproveitados com a herança milionária que o órfão Bruce herdou sem esforço. Contudo, os benefícios luxuosos que o dinheiro poderia lhe dar, são sacrificados para sua secreta missão, sua promessa. Um Bruce Wayne que ostenta luxo e poder é apenas um homem que encena um personagem para esconder sua identidade secreta. Poderíamos até dizer que seu rosto verdadeiro é a própria máscara de morcego, uma vez que ela representa e define suas ações. Batman afirma: “Não é o que eu sou por baixo, mas o que eu faço que me define”. 53 (NOLAN, 2005)

A promessa engloba, portanto, as realizações de honra, o sacrifício da herança, e a luta contra o crime. Todos voltados para a memória dos pais, o nome da família, seus antepassados. O peso desta promessa faz de Batman um homem pesado, sério e sombrio. Ele não se dá a luxos. Seus relacionamentos pessoais e amorosos são muito conturbados 54. Para Batman existe um foco, um objetivo que precisa ser realizado. Sua disciplina no treinamento físico e intelectual é impecável.

Credor/devedor: Gotham e seus produtos

Levando em consideração a lógica estabelecida entre credor/devedor e a ideia de Nietzsche em ver a comunidade como o grande credor que pune seus membros uma vez que quebram o contrato e, portanto, passam a ser devedores, a cidade de Gotham City não apenas se engrandece no ofício de credor como também serve os melhores e mais inusitados devedores. Em Gotham, as dívidas sobressaem-se em relação às punições do credor. Gotham, como narrada nas HQs, é um “chão fecundo para o sofrimento e a injustiça” 55, “onde o crime e a alta sociedade vivem promiscuamente e tudo está à venda” 56, “um covil de iniqüidade” 57.

O maior detetive dentre os heróis, o mais inteligente, o planejador por excelência da Liga da Justiça58 também se apresenta como o castigador nesta cidade incrível: o causador do medo aos infratores que causam medo às vítimas.

Negro contra um fundo de logomarcas tão grandes quanto casas, um espectador se encontra num parapeito de ferro e mármore a oitenta metros de altura no topo do Gotham Center. Ele se cobre de sombras, lê os sinais fumacentos observando as luzes de carros que saem da barriga da Besta. Ele sente o cheiro da noite e suas nove milhões de vidas, inspira seus feromônios, sua química, suas emoções individuais levadas como moléculas de odor na respiração da cidade. Ele se funde em sua transpiração, em sua força animal, sente o gosto de seu humor, de seus metais.

Batman sente o cheiro de medo acima de tudo. O medo está subindo das ruas da mesma forma que bexigas sobem em correntes de ar quente. Um esmagador. Como um antílope nas savanas, os cidadãos de Gotham podem sentir um predador acordando faminto, vagando no perímetro onde as coisas selvagens estão... (MORRISON, 2007, p. 54)

Batman usa o castigo em dois sentidos sob a perspectiva de sua promessa: como compensação pela perda que sofreu, a de seus pais, e compensação pelos crimes cometidos contra as leis de Gotham. Esta última, é claro, apresenta-se como complemento e extensão da primeira, uma vez que a promessa consiste em “limpar Gotham do mal que tirou suas vidas”. (LOEB, 1998, p.00)

Compreendendo a cidade de Gotham como o credor e seus membros criminosos como o devedor (GM II § 9), percebe-se que Batman se posiciona como força inibidora máxima dos que devem à cidade e o fato de que o Estado democrático não dá conta de fazer frente aos infratores por meio das forças oficiais de segurança, a democracia é suspensa dando lugar à força que se mostra competente, o produto de Gotham: Batman.

No filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), em uma conversa à mesa, a bailarina russa Natascha questiona o promotor de justiça de Gotham, Harvey Dent: “Eu falo de um tipo de cidade que idolatra um vigilante mascarado”. Dent responde: “Gotham City é orgulhosa de ter um cidadão comum que se levanta para fazer o que é certo”. Natascha insiste: “Gotham precisa de heróis como você, eleitos oficiais, não um homem que pensa estar acima da lei...”. Bruce Wayne interfere cinicamente: “Exatamente! Quem indicou o Batman?”. Dent argumenta: “Nós indicamos! Todos nós que ficamos parados deixando que a escória tome controle de nossa cidade”. Natascha tenta pela última vez: “Mas isso é uma democracia Harvey!”. Dent afirma: “Quando seus inimigos chegavam aos portões, os romanos suspendiam a democracia e apontavam um homem para proteger a cidade. Não era considerado honra, era considerado um serviço público”. (NOLAN, 2008)

Com relação ao castigo, Nietzsche demonstra dois sentidos históricos para o ato de castigar que corroboram com os sentidos de Batman, usados em sua metodologia de combate ao crime, a saber: “Castigo como inspiração de temor àqueles que determinam e executam o castigo (...) Castigo como criação de memória, seja para aquele que sofre o castigo – a chamada „correção‟ –, seja para aqueles que o testemunham”. (GM II § 13)

Amarrar um criminoso pelos pés e puxá-lo até as alturas de um prédio, jogar outro de uma altura suficiente para que as pernas sejam quebradas, pendurá-los de cabeça para baixo, pelados e machucados, são técnicas de tortura para conseguir informações, imprimir medo ou artifício para intimidar outros bandidos. Técnicas usadas por Batman.

Com tudo isso, em Batman Begins, o Morcego prendeu toda a máfia italiana que dominava a cidade, em Batman: O cavaleiro das Trevas foi possível entregar à polícia 549 criminosos de uma só vez com a ajuda do promotor Harvey Dent. “Pense em tudo que você poderia fazer com 18 meses de ruas limpas?” Disse Dent ao prefeito de Gotham que por sua vez o alerta: “Todos eles virão atrás de você agora. Não apenas a Máfia: políticos, jornalistas, policiais. Qualquer um cuja carteira começar a ficar mais leve. Você está preparado para isso?”. (NOLAN, 2008)

Com estes dois exemplos, podemos afirmar que: o espírito de “justiça” de Batman que também é compartilhado pelo promotor Harvey Dent e o fiel comissário Gordon foi capaz de empreender tal façanha da “justiça”. É uma vitória significativa. De fato os criminosos puderam ser presos, puderam pagar pela dívida usurpada de acordo com as leis jurídicas e no entendimento do direito penal. A cidade é recompensada pelo dano que sofreu: a compensação do credor é efetivada. Mas o problema em tudo isso é apontado no alerta do prefeito e também com Nietzsche. Tanto o castigo quanto a prisão dos criminosos são garantias de uma Gotham City “melhor”?

Nietzsche atenta para uma pretensa utilidade atribuída ao castigo que encontra crédito na consciência popular. É a ideia de que o castigo venha a servir como promotor do sentimento de culpa e a partir disso obter do criminoso um arrependimento, uma recuperação.

(...) sem hesitação poderemos afirmar que o desenvolvimento do sentimento de culpa foi detido, mais do que tudo, precisamente pelo castigo – ao menos quanto às vítimas da violência punitiva. Não subestimemos em que medida a visão dos procedimentos judiciais e executivos impede o criminoso de sentir seu ato, seu gênero de ação, como repreensível em si: pois ele vê o mesmo gênero de ações praticado a serviço da justiça, aprovado e praticado como boa consciência: espionagem, fraude, uso de armadilhas, suborno, toda essa arte capciosa e trabalhosa dos policiais e acusadores, e mais aquilo feito por princípio, sem o afeto sequer para desculpar, roubo, violência, difamação, aprisionamento, assassínio, tortura, tudo próprio dos diversos tipos de castigo – ações de modo algum reprovadas e condenadas em si pelos juízes, mas apenas em certo aspecto e utilização prática. (GM II § 14)

E complementa: “(...) de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um „culpado‟. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento do destino”. (GM II § 14)

Do mesmo modo, a ideia de justiça, pensada nos moldes de Batman e Harvey Dent, seria, para Nietzsche, um ideal característico do ressentimento: uma vingança, portanto. Pois “não surpreende ver surgir (...) tentativas como já houve bastantes (...) de sacralizar a vingança sob o nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar-ferido – e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos”. (GM, II § 11)

Batman pretende vingar-se e se ilude com a ideia de “um lugar melhor”, estático, no qual crianças não são ofendidas, violentadas, exploradas e nem perdem os pais. Pois para Nietzsche, como função básica, “a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter”. (GM II § 11)

Mesmo a criação do Estado, já que falamos em comunidade, para Nietzsche, foge à ideia de contrato pacífico:

(...) algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. (GM II § 17)

Justamente por que:

“Para uma filosofia centrada na noção de vontade de poder, não é pelo medium pacificador de um contrato social fundante, nem como resultado de um progresso natural ou lógico da espécie humana, que se institui o estado, mas sim a partir de relações de domínio” (GIACOIA, 2008, p. 209)

Contudo, Batman impõe ordem em Gotham. Sua luta é contínua, nunca definitiva. Ela encontra conflitos também com o Estado uma vez que “se sobrepõe na luta contra o crime” 59 e consequentemente deixa clara a incapacidade ou a falta de interesse das autoridades de segurança. Um diferencial importante deixado exposto em Batman: O Cavaleiro das Trevas é sua posição insistente com relação à Gotham e sua promessa: “Ele é um guardião silencioso, um protetor zeloso: um Cavaleiro das trevas” 60.

Além de ter um sentido de fidelidade à palavra proferida aos pais, a promessa de Batman precisa de um fundamento. Um fundamento que a preceda, portanto, um princípio, no qual, mesmo com tudo e todos o influenciando para quebrar a palavra, ele persista inabalável. Este princípio é o valor moral. Valor que seu maior inimigo tentará atacar com deboche e crueldade: o Coringa.

Esquecimento e crueldade

Para compreender essa luta de valores entre Batman e Coringa é preciso inseri-los, estes personagens emblemáticos, na lógica de valoração que a Genealogia da Moral de Nietzsche apresenta, justamente por conta de sua pertinência quanto às disposições axiológicas que permanecem na cultura ocidental. Tais disposições se enxertam nas produções artísticas que procuram, nem todas, atender à demanda de entretenimento requerida pela sociedade.

Com relação às Histórias em Quadrinhos, por volta dos anos de 1950, nos Estados Unidos, quadrinhos de horror causaram comoção na sociedade sendo que o Congresso americano determinou a criação de um código no qual todos os editores de revistas em quadrinhos deveriam seguir.

Uma cláusula-chave do Código de Quadrinhos original declarava que: “Em todos os casos, o bem deve triunfar contra o mal e o criminoso [será] punido por suas más ações”. Apesar de o código perder sua relevância com o passar do tempo, foi efetivo durante décadas, impondo restrições básicas ao conteúdo e ao tom da história. Qualquer um que conheça o histórico do Código pode ser tentado a dizer que os super-heróis tradicionais “se tornavam bons” apenas porque os protagonistas nos quadrinhos tinham de ser criados em conformidade com o Código. (BRENZEL, 2009, p. 147-148)

Mesmo com a restrição legal, é interessante perceber que as pessoas se interessavam pelos bons heróis, senão não teriam feito tanto sucesso, os leitores não teriam comprado. O foco é observar que o bem é preferência hegemônica na cultura, “ou seja, nós, o público, pagamos pelos super-heróis bons e os aceitamos”. (BRENZEL, 2009, p. 148)

De acordo com Nietzsche, como já visto anteriormente, as noções de bem e mal são concepções posteriores às de bom e ruim. Estas nascem a partir de uma valoração ativa, sob o poder dos fortes em cunhar nomes tendo a eles mesmos como referência de valoração. Aquelas nascem como reação às forças dominadoras da valoração forte, a partir do ressentimento dos fracos que, por vingança, atribuem valor negativo ao forte, tresvalorando o valor inicial.

Fica claro, portanto, que o motivo pelo qual a preferência da maioria por heróis que se adaptam à concepção de bem e mal, se dá, de modo geral, por conta da hegemonia dessa concepção que possui preeminência na cultura atual. O que é pertinente na análise de Nietzsche a respeito da moral é a possibilidade de trocar a perspectiva unilateral que a moral vigente impõe e vislumbrar o outro lado numa atitude de curiosa e instigante pesquisa.

Na lógica editorial apresentada acima, Batman é tido como um super-herói, enquanto o Coringa é tratado como um super vilão. A dicotomia é clara: herói e vilão equivalem a bem e mal respectivamente. Logo se vê que o enxerto cultural/moral é feito aos personagens. Mas, tais atribuições atualmente não são tão cristalizadas, os dois pólos não estão bem definidos. No último filme sobre Batman, por exemplo, o Morcego não sai vitorioso e o Coringa não é derrotado. O que se tem é uma complexa relação entre esses dois antagonistas mortais, na qual a própria ideia de vitória não fica clara, mas, trataremos deste filme, em específico, mais tarde.

No entanto essa é a percepção de quem vê de fora. É o espectador quem faz esse tipo de juízo. É o público que enxerga a complexidade e a analisa. O que nos interessa aqui, é analisar a visão dos personagens. É o fenômeno de suas performances que será útil para este trabalho, justamente por se tratar de um tema polêmico e delicado. Com isso cabe a pergunta: Batman vê a si mesmo como bom e ao Coringa como mal? E o Coringa? Ele se vê como mal e ao Batman como bom? Talvez outra pergunta englobe mais a questão: Batman e Coringa qualificam suas próprias atitudes como saudáveis a si mesmos?

Sem dúvida Batman adere ao tipo de valoração tida por Nietzsche como escrava, que nasce do ressentimento, precisamente reativa. Sua promessa: “Fiz uma promessa no túmulo dos meus pais... Eu jamais descansaria enquanto não limpasse Gotham do mal que tirou suas vidas”. (LOEB, 1998, p.00) O mal, para Batman, aparece como algo que precisa ser limpo, exterminado, combatido.

Em outra ocasião ele afirma: “E eu juro, pelo espírito de meus pais, vingar a morte deles e devotar o resto de minha vida combatendo todos os criminosos”. (Detective Comics # 33, 1939 apud JENSEN, 2008, p. 86) Aqui, o combate é contra todos os criminosos. Vê-se, portanto, uma equivalência no objeto a ser combatido: criminosos e mal se fundem, são os alvos de Batman. Mesmo que Batman não tenha se vingado diretamente de seus pais, ou seja, não tenha tirado a vida do assassino, é possível falarmos de um desdobramento da vingança, uma espécie de canalização na qual o rosto do assassino é visto, por Batman, em todos os outros criminosos. A adesão de Batman ao cumprimento da lei penal torna-se expressão de uma vingança imaginária.

A rebelião escrava da moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtém reparação. (GM I § 10)

Esta afirmação de Nietzsche se acopla perfeitamente à atitude de Batman, aliás, à sua não atitude. Sua verdadeira vingança não é possível, ele não pode cobrar com a mesma moeda aquilo que foi tirado de si. O assassino fugiu, nunca foi encontrado, seu devedor é nulo.

Em Batman Begins, o diretor Christopher Nolan, remexe a ferida de Batman. Lá o assassino é Joe Chill e ele é preso pela polícia. No julgamento do criminoso, Bruce Wayne comparece e leva consigo uma arma. Sua intenção é matar o assassino de seus pais. Mas a máfia italiana chega à frente e o elimina com um tiro a queima roupa. Sua verdadeira reação é negada, seu querido ato de vingança não é realizado. Batman apenas o imagina sob as formas da lei penal e do castigo61. Sua missão como guardião de Gotham é uma longa estratégia de vingança que é conduzida por um ódio entranhado: todo criminoso é Joe Chill.

Batman diz: “Quando eu era menino, meu pai e minha mãe foram assassinados diante dos meus olhos. Dediquei minha vida a deter esse criminoso, independentemente da forma ou rosto que ele tenha. De fato, a forma não tem importância” 62. A forma não tem importância porque ele já transpôs, de maneira imaginativa, seu alvo perdido para todos os criminosos de Gotham.

Para Nietzsche “A moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação”. (GM I § 10) A reação de Batman é conduzida por seu ódio. Sua promessa é feita, também, motivada por ódio. Sua memória é marcada pela dor e pelo sofrimento. Nietzsche escreve um retrato perfeito do homem ressentido que equivale em todos os detalhes ao Batman:

(...) o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de través, ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria. (GM I § 10)

Já falamos da inteligência de Batman e sua habilidade com a estratégia e planejamento. Nietzsche relaciona tal capacidade aos homens ressentidos:

Uma raça de tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa medida muito maior: a saber, como uma condição de existência de primeira ordem. (GM I § 10)

O Coringa é totalmente o oposto do Batman com relação à valoração. Ele assume o crime como valor bom. É necessária uma troca de perspectiva para considerar a maneira do Coringa. Aquele conceito bom e ruim é a perspectiva do Coringa, que nasce, no entendimento de Nietzsche, com os senhores, os poderosos.

Nietzsche fala que

toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma (...) ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!” (GM I § 10)

É certo que seu passado é tão trágico quanto o de Batman: era um artista frustrado que não conseguia emprego e depois perde a esposa grávida em um acidente doméstico. Contudo sua atitude diante da tragédia não é reativa. Ele não é marcado por essa dor, o sofrimento não é encontrado em sua memória. Ele não possui memória, não faz promessas: ele simplesmente esquece. Não há ressentimento, portanto. O Coringa dirá: “Eu não guardo rancor” 63. Sua atitude é ativamente deveniente. Não possui local fixo ou fundamento para suas atitudes, ele apenas faz. Seu passado? Ele explica: “Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha! Ah, ah, ah!” 64.

Em Asilo Arkham ele é entendido da seguinte forma:

O Coringa é um caso especial. Muitos de nós acreditam que ele está além de qualquer tratamento. Na verdade, não estamos sequer certos de que ele possa ser definido como insano. (...) É bem possível que estejamos diante de um caso de super-sanidade. Uma nova e brilhante modificação da percepção humana. Mais adequada à vida urbana no fim do século vinte (...) Diferente de você ou de mim, o Coringa não parece ter controle sobre as informações sensoriais que recebe do mundo externo. Por isso, alguns dias ele é um palhaço infantil. Outros, um psicopata assassino. Ele não tem verdadeira personalidade. Ele cria uma diferente por dia. O Coringa se vê como o mestre do desgoverno, e o mundo como um teatro do absurdo. 65

Em outra ocasião, Batman fala sobre o Coringa: “Ele mudou novamente. Você sabe como ele muda depois de alguns anos. (...) Ele não tem nenhuma personalidade real, lembre-se, apenas uma série de „superpersonas‟” 66. Esta ideia justifica o próprio nome do Coringa que é associada à carta do jogo de baralhos que se instala a vários tipos de disposições dentro de um jogo.

A figura do homem nobre é muito bem levantada por Nietzsche. Atribuamos tal figura e perspectiva de valoração ao personagem Coringa. Aquele que promete, que dá sua palavra e a lança para o futuro na esperança de cumpri-la, seria, para Nietzsche, um dispéptico, um doente no qual a seriedade e o peso de seu fardo o impedem de rir. O Coringa pergunta: “Porque tão sério?” 67. Não há dispepsia aqui, não há o que ficar digerindo, nutrindo-se com veneno: 

Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus mal feitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora de esquecimento (...) Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”. (GM I § 10)

E de fato o Coringa ama o Batman. Ele diz: “Mesmo que me levassem bem alto, num helicóptero. E alinhassem todos os corpos no chão, todos dispostinhos num adorável padrão geométrico, não ia adiantar nada. Eu perdi a conta dos mortos. Mas você, não. Você não perdeu. Eu te amo por isso”. (MILLER, 1986)

Lembrando o que Nietzsche falou, “Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência, para que novamente haja lugar para o novo (...) eis a utilidade do esquecimento” (Gm II § 1), o Coringa se recria a todo o momento, ele abre espaço para o novo no qual uma memória apenas seria impedimento. Ele não rumina sentimentos de ódio, não se lembra de dores. Ele dirá:

Lembrar é perigoso... eu vejo o passado como um lugar cheio de ansiedade. O “pretérito imperfeito”, como você chamaria. Ah, ah, ah, ah! As memórias são traiçoeiras! Num momento, você está perdido num carnaval de prazeres, com o aroma da infância, os neons da puberdade... No outro, elas te levam a lugares onde a escuridão e o frio trazem à tona coisas que você gostaria de esquecer! As memórias podem ser vis, repulsivas, brutais... como crianças. Ah, ah, ah! Mas podemos viver sem elas? A razão se sustenta nelas. Não encarar as memórias é o mesmo que negar a razão! Mas e daí? Quem nos obriga a ser racionais? Não há cláusula de sanidade. Assim, quando você estiver dentro de um desagradável trem de recordações, seguindo pra lugares do seu passado onde o riso é insuportável... lembre-se da loucura. Loucura é a saída de emergência! Você só precisa dar um passo pra trás e fechar a porta com todas aquelas coisas horríveis que aconteceram... presas lá dentro... pra sempre. (MOORE, 1988)

O roteirista de quadrinhos Grant Morrison (2007), faz uma bela descrição da disposição psíquica do Coringa em O Palhaço à Meia Noite.

Talvez ele seja uma nova mutação humana, fruto das águas industriais pegajosas, gerado num mundo de cancerígenos brilhantes e chuvas ácidas. Talvez ele seja o modelo do multihomem do século 21, embaralhando egos como um funcionário de cassino embaralha cartas, para aliviar os choques e trabalhar alguma alquimia que possa talvez transformar o chumbo da tragédia e horror no cruel e caótico ouro da gargalhada do amaldiçoado. Talvez ele seja especial e não apenas um homem terrivelmente amedrontado e mentalmente doente, viciado num interminável ciclo de violência autodestrutiva. Coisas mais estranhas já aconteceram (MORRISON, 2007) 

Na história da descrição acima o Coringa está fugindo do Asilo Arkham e decide trocar de personalidade. Assim como um artista reinventa uma obra já existente e velha, o Coringa se olha no espelho e decide não apenas trabalhar um novo rosto, mas também uma nova postura. Pega um bisturi e se mutila extendendo um grande sorriso em sua bochecha. A recriação psíquica também é descrita por Morrison.

O seu corpo entra em convulsão. Suas entranhas se apertam como se forças gravitacionais tivessem conspirado e se moldado para fazê-lo se ajoelhar. Então, ele deita de lado, gemendo horrivelmente. Seu gemido é o sinal, o rádio, o novo som de si sendo projetado como uma frequência. “Eu sou uma barata!”, ele grita, e primeiro move uma perna, depois a outra, interpretando um cancã de contrações, dores de trabalho de parto e nascimento enquanto o alarme do Asilo dispara loucamente. “La cucaracha! La cucaracha! A dor é terrível! Eu quero morfina! Estou tendo um filho!”, ele ofega, depois gargalha, depois tosse, como uma dançarina de cabaré dando à luz um asno no palco. “La cucaracha-hahahahaha!” Vozes múltiplas do Coringa disputam seu controle conforme ele se prepara para dar à luz a si mesmo como a Palavra de Deus invertida. O seu único arrependimento é que Batman não está aqui para testemunhar este acontecimento obsceno, sua exuberante patologia em pleno florescimento (MORRISON, 2007)

O Coringa é um assassino: “Eu agora faço o que outras pessoas apenas sonham. Eu faço arte... até alguém morrer. Eu sou o primeiro artista homicida do mundo totalmente em exercício” 68. Ele é cruel, sádico e impiedoso. Ele surrou um dos Robins com um pé de cabra e o explodiu 69, atirou a queima roupa em Bárbara Gordon deixando-a paraplégica, torturou psicologicamente o comissário Gordon mostrando as fotos de sua filha nua e agonizante 70, arrancou a pele de um homem deixando-o apenas com os músculos à mostra 71, envenenou milhares com o seu gás do riso e etc. Tudo isso sem qualquer tipo de remorso.

Quando Nietzsche usa a fábula dos cordeiros e das aves de rapina (GM I § 13), seu foco é tratar a força de expressão ativa presente nas aves de rapina levando em conta a falta do sujeito atuante que seria culpável de acordo com a perspectiva das ovelhas. Ele afirma que: “Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força”. (GM I § 13) 

Essa afirmação coloca as aves de rapina dentro de um campo de atuação na qual elas não podem escolher serem fortes ou fracas: elas simplesmente são fortes e expressam essa força por meio do ataque às ovelhas. A ideia de sujeito livre, que decide atacar ou não, seria, para Nietzsche, uma ficção inventada pelas ovelhas para que as aves de rapina recuem no ataque. Ou seja, a criação da alma é uma ficção criada pelos fracos para imputar nos fortes um sentimento de culpa.

O sujeito (ou falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito. (GM I § 13)

Sem sujeito/alma não pode haver o que culpar. Não há quem, apenas o que: a saber, a ação, o fazer. Se o Coringa tivesse de culpar-se pelos atos de crueldade que praticou, ele deveria culpar uma multidão de superpersonas que criou ao longo de sua vida. No caso do Coringa deveria haver vários sujeitos atuantes, várias almas: uma legião! As ovelhas amedrontadas, conscientes de sua derrota olham para um tipo como o Coringa e o nomeiam como mau: “Eu apenas faço as coisas”72, dirá o Coringa.

Esta “audácia” das raças nobres, a maneira louca, absurda, repentina como se manifesta o elemento incalculável, improvável, de suas empresas (...), sua indiferença e seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua terrível jovialidade e intensidade do prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade – para aqueles que sofriam com isso, tudo se juntava na imagem do “bárbaro”, do “inimigo mau”, como o “godo”, o “vândalo”. (GM I §11)

Reparemos nesta fala do Coringa pronunciada a um policial: “Você quer saber por que eu uso uma faca? Armas são muito rápidas. Você não consegue saborear todas as pequenas... emoções” 73. Agora a fala das aves de rapina na fábula de Nietzsche: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha”. (GM I § 13)

Zombaria e crueldade se casam nestas duas falas. A alegria do cômico mistura-se com o sofrimento alheio. A satisfação no fazer sofrer do Coringa tem sido sua marca. Ele possui uma arte de fazer seus crimes terem uma teatralidade. Gotham City 74 é a cidade de criminosos teatrais: Mulher Gato, Pingüim, Charada, Duas Caras, Espantalho, Senhor Frio, Hera Venenosa, Crocodilo, Chapeleiro Louco, Cara de Barro, Scarface, Ventríloquo. Todos artistas do crime. Promotores da diversão e da criatividade no fazer sofrer tendo o Coringa na vanguarda. 

Dentre todos estes personagens, eis que surge a seriedade encarnada: Batman, o homem morcego que procura evitar e lutar contra toda essa barbárie que assola Gotham. Contudo, as salas de cinema vibraram quando Batman arremessou um homem de um prédio com altura suficiente para que ele quebrasse as pernas e na agonia da dor pudesse confessar uma informação. Batman derrama bastante sangue também: ele castiga. “Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo!”. (GM II § 6)

Nietzsche fala em uma “crescente espiritualização e „divinalização‟ da crueldade, que atravessa toda a história da cultura superior (e até a constitui, num sentido significativo).” (GM II § 6) Em Além do Bem e do Mal, ele fala do ingrediente constitutivo da tragédia deixando a tese de que o animal selvagem não está morto.

(...) eis a minha tese; esse “animal selvagem” não foi abatido absolutamente, ele vive e prospera, ele apenas – se divinizou. O que constitui a dolorosa volúpia da tragédia é a crueldade; o que produz efeito agradável na chamada compaixão trágica, e realmente em tudo sublime, até nos tremores supremos e mais delicados da metafísica, obtém sua doçura tão-só no ingrediente crueldade nele misturado. O que o romano, na arena, o cristão, nos êxtases da cruz, o espanhol, ante as fogueiras e as touradas, o japonês de hoje, quando corre às tragédias, o operário de subúrbio parisiense, com saudade de revoluções sangrentas, a wagneriana que, de vontade suspensa, “deixa-se tomar” por Tristão e Isolda – o que todos eles apreciam, e procuram beber com misterioso ardor, é a poção bem temperada da grande Circe “crueldade”. (ABM § 229)

Judéia vs Roma: Batman vs Coringa

Nas obras A Piada Mortal, O Palhaço à Meia Noite e Batman: O Cavaleiro das Trevas temos o confronto entre Batman e Coringa são elevados a graus extremos, onde os dois personagens se encontram numa agonia filosófica, num dilema trágico no qual sangue e gargalhadas se entrelaçam de maneira paradoxal.

Estes dois antagonistas traduzem um confronto épico. No entanto, não se pretende aqui elencar mocinho e bandido, herói e vilão, o bem e o mal. Este maniqueísmo parece há muito ter sido superado. Trata-se de observar, através da filosofia nitzscheana, concernente à visão do filósofo a respeito do que ele chamou de preconceitos morais 75, os mitos de Batman e Coringa. 

A primeira obra, A Piada Mortal, inicia-se com a seguinte fala de Batman direcionada ao Coringa:

Olá, eu vim conversar. Estive pensando muito ultimamente. Sobre você e eu. Sobre o que vai acontecer com a gente no fim. Vamos matar um ao outro, não? Talvez você me mate. Talvez eu te mate. Talvez mais cedo. Talvez mais tarde. Eu só queria estar certo de ter realmente tentado mudar as coisas entre nós. Só uma vez. (MOORE, 1988)

Interessante perceber a consciência de Batman em se dirigir ao seu maior inimigo e cogitar a possibilidade de uma trégua. Mais tarde ele é ainda mais direto:

Eu não quero machucar você! Não quero que nenhum de nós mate o outro no fim... Mas estamos esgotando as alternativas e ambos sabemos disso! Talvez tudo dependa desta noite. Talvez esta seja nossa última chance de parar. Se você não aproveitar, entraremos numa rota suicida que levará nós dois à morte. Não precisa terminar assim. Não sei o que tirou você dos trilhos mas... quem sabe? Talvez eu também tenha estado lá também. Talvez eu possa ajudar. Podíamos trabalhar juntos. Eu podia reabilitar você. Não precisa ficar sozinho. Não precisamos nos matar. (MOORE, 1988)

Esta consciência de um perigo maior, ou seja, do perigo da morte iminente, desta força pavorosa que é a morte, é sentida pelo órfão Bruce Wayne que logo a quer afastar. A luta de Batman também é contra a morte: essa força agressiva, impiedosa, injusta, incontrolável que tira a vida daqueles aos quais se tem amor, afeto. Batman tenta estar no controle da vida, quer apartar de si o sofrimento que a morte de seus pais lhe causou, contudo, a morte aparece em seu caminho sempre.

O filósofo francês Gilles Deleuze, leitor de Nietzsche, define a consciência nestes termos:

Em Nietzsche, a consciência é sempre consciência de um inferior em relação ao superior ao qual se subordina ou “se incorpora”. A consciência nunca é consciência de si, mas consciência do um eu em relação ao eu que não é consciente. Não é consciência do senhor, mas consciência do escravo em relação a um senhor que não tem de ser consciente. “A consciência habitualmente só aparece quando um todo quer subordinar-se a um todo superior... A consciência nasce em relação a um ser de que nós poderíamos ser função” 76. É assim o servilismo da consciência: testemunha apenas “a formação de um corpo superior”. (DELEUZE, ANO, p. 62)

O fato de Batman ter consciência da morte é justamente porque ela é não consciente. A morte é senhor enquanto Batman é escravo. Por isso ele tem consciência dela. Mas, e o Coringa? Qual sua relação com a morte? A princípio, é lícito dizer que ele não a teme. Na HQ O Cavaleiro das Trevas, o roteirista Frank Miller desenha uma luta forte entre Batman e Coringa, na qual Batman contorce o pescoço do Coringa quase o levando à morte. Coringa diz: “Eu estou muito desapontado com você, querido. O momento era tão perfeito e você não teve coragem. Estou paralítico. Uma pressãozinha a mais e eu teria...” 77. Em outra ocasião ele chegar a pedir que o Batman o acerte com o bat-pod ao que o Morcego desvia. 78

O Coringa é autodestrutivo, não se importa em morrer, contudo se satisfaz e tem muito prazer em viver a vida de várias maneiras, recriando-se a cada momento, testando possibilidades. De certa forma, dentre estas várias possibilidades de acoplagem, próprias de uma carta coringa no baralho, uma delas é a de se colocar como não consciente, justamente a mesma falta de consciência tratada por Deleuze logo acima. O Coringa adentra no território do não controle, no caos, alternando-se entre agente e produto do caos. Muitas vezes, também, agindo como o próprio caos, precisamente nos momentos denominados como loucura, insanidade: não consciência. 79

É difícil a observação desta alternância entre estados, mas, uma passagem pelas histórias mostra bem tais saltos, próprias de uma personalidade ativa, deveniente, aberta ao novo, repentina, incalculável, improvável, indiferente, com “intensidade do prazer em destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade”. (GM I § 11) O Coringa afirmará: “Aquilo que não te mata simplesmente te faz mais estranho” 80.

“O que é ativo? Tender para o poder” 81. Apropriar-se, apoderar-se, subjugar, dominar são as características da força ativa. Apropriar-se quer dizer impor formas, criar formas explorando as circunstâncias 82. Nietzsche critica Darwin, porque este interpreta a evolução, e mesmo o acaso na evolução, de um modo completamente reativo. Admira Lamarck, porque Lamarck pressentiu a existência de uma força plástica verdadeiramente ativa, primeira em relação às adaptações: uma força de metamorfose. Acontece em Nietzsche o mesmo que na energética, aí se chama “nobre” à energia capaz de se transformar. O poder de transformação, o poder dionisíaco, é a primeira definição de atividade. (DELEUZE, ANO, p. 66)

Enquanto a morte é senhor e Batman escravo, o Coringa é senhor com a morte: eles são amigos, pares, por isso não se temem. Neste ponto, parece ficar clara nossa pretensão em associar a força ativa ao personagem do Coringa em toda sua capacidade expansiva, criativa e exploratória e caótica. Parece estar clara também a compreensão de Batman como a força contrária, reativa, dependente da força Coringa, nobre em sua atividade de transformação.

Mas sempre que marcarmos assim a nobreza da ação e a sua superioridade sobre a reação, não devemos esquecer que a reação designa tanto um tipo de forças como a ação: simplesmente, as reações não podem ser concebidas, nem cientificamente concebidas como forças, se não as referirmos às forças superiores que são precisamente de um outro tipo. Reativa é uma qualidade original da força, mas que só pode ser interpretada enquanto tal em relação ao ativo, a partir do ativo. (DELEUZE, ano, 66)

O Coringa, dentro da noção nitzscheana de confronto moral, no qual a valoração escrava contrapõe a valoração do senhor, é o antípoda perfeito para o Batman se colocarmos ambos dentro de cada valoração e estabelecermos a dominação e prostração próprias das forças ativas e reativas respectivamente. O diretor Christopher Nolan entendeu algo disso. Em entrevista ele afirma: “Penso que o Coringa é a resposta lógica para um personagem como o Batman”.83 Talvez, ele precisaria apenas inverter a posição das forças: o Batman é a resposta lógica para um personagem como o Coringa. Responder é sempre uma reação. Batman responde ao crime enquanto o Coringa diz: “Saúde ao crime!” 84.

Nietzsche verá na tresvaloração dos valores, uma vitória do tipo de valoração escrava, sendo que existe, ainda, uma luta entre os dois tipos e atribui nome à luta: Roma contra Judéia.

Pois os romanos eram os fortes e nobres, como jamais existiram mais fortes e nobres, e nem foram sonhados sequer: cada vestígio, cada inscrição deles encanta, se apenas se percebe o que escreve aquilo. Os judeus, ao contrário, foram o povo sacerdotal do ressentimento par excellence, possuído de um gênio moral-popular absolutamente sem igual (...) Quem venceu temporariamente, Roma ou Judéia? Mas não há dúvida: considere-se diante de quem os homens se inclinam atualmente na própria Roma, como a quintessência dos mais altos valores – não só em Roma, mas em quase metade do mundo, em toda parte onde o homem foi ou quer ser domado – diante de três judeus, como todos sabem, e de uma judia (Jesus de Nazaré, o pescador Pedro, o tapeceiro Paulo e a mãe do dito Jesus, de nome Maria). Isto é muito curioso: Roma sucumbiu, não há sombra de dúvida. (GM I § 16)

Vejamos a luta traduzida para os quadrinhos, para as telas de cinema, sob as formas de sanidade contra loucura. Deixemos que os antagonistas falem. O Coringa diz ao Batman:

Só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Essa é a distância entre o mundo e eu... apenas um dia ruim. Você teve um dia ruim uma vez não é? Eu sei como é. Agente tem um dia ruim e tudo muda. Senão, porque você se vestiria como um rato voador? Seu dia ruim o deixou tão louco quanto qualquer um. Só que você não admite. Prefere continuar fingindo que a vida faz sentido... que vale a pena todo esse esforço! Você me dá vontade de vomitar! Queria saber qual é a sua. O que fez você ficar desse jeito? Namorada estuprada por viciados, talvez? Irmão esquartejado por assaltantes? Aposto que alguma coisa assim... do gênero. Foi assim que aconteceu comigo, sabe... Bem, eu não tenho certeza absoluta. Algumas vezes me lembro de um jeito. Outras vezes, de outro... Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha! Ah, ah, ah! Mas meu ponto é... meu ponto é... eu fiquei louco. Quando vi que piada de mau gosto era este mundo, preferi ficar louco. Eu admito! E você? Você não é nenhum burro, não é imbecil! Só precisa ver a realidade. Sabe quantas vezes estivemos perto da terceira guerra mundial? Sabe? Sabe o que disparou a última grande guerra? Uma discussão sobre quantos postes telegráficos a Alemanha devia aos seus credores de guerra! Postes telegráficos! Ah, ah, ah, ah, ah! É tudo uma piada! Tudo pelo que as pessoas lutam e dão valor não passa de uma monstruosa e insensata anedota! Então, porque você não vê o lado engraçado? Porque não está rindo? (MOORE, 1988)

Batman responde à questão:

Porque eu já ouvi isso antes e não foi engraçado da primeira vez. Talvez pessoas comuns não se quebrem à toa. Talvez agente não precise ficar caído no chão só porque levou um tombo. Talvez a fraqueza seja só sua. Talvez seja apenas você o tempo todo. (MOORE, 1988)

Batman pronuncia muito talvez. Seu comedimento é interessante. Na HQ Coringa de Brian Azzarello, um Coringa recém saído do Asilo Arkham, aterroriza Gotham. Ele fala ao Batman:

Você exibe sua vergonha como um distintivo porque não tem colhões pra conseguir um de verdade. É... olha pra você... Desesperado pra ser temido... quer ser visto como um monstro vestido de preto. Porém deixa essa janelinha. Um vislumbre da perfeição por baixo. Óbvia... A beleza bem delineada... não é o queixo, a boca de um monstro... Porque deixa que vejam? Me conta porque? (AZZARELLO, ANO, P)

A resposta de Batman: “Pra zombar de você”. Na mais recente longa-metragem sobre Batman, os antagonistas são colocados frente a frente num diálogo revelador 85. O Coringa inicia:

- Aqueles tolos da Máfia querem você morto para que as coisas voltem a ser do jeito que eram. Mas eu sei a verdade. Não há volta. Você mudou as coisas para sempre.

- Então porque você quer me matar? (Risadas do Coringa)

- Eu não quero te matar! O que eu faria sem você? Voltar a roubar os negociantes da Máfia? Não, não, não, não! Você... você me completa!

- Você é lixo que mata por dinheiro.

- Não fale como um deles, você não é!86 Mesmo se quisesse ser. Para eles você é apenas uma aberração, como eu. Eles precisam de você agora, mas quando não precisarem mais eles vão te lançar fora como a um leproso. Veja, as morais deles, o código deles... é uma piada ruim, caída ao primeiro sinal de problema. Eles apenas são bons na medida em que o mundo os permite ser. Eu te mostro: quando as fichas caírem, essas “pessoas civilizadas” irão comer umas às outras. Veja! Eu não sou um monstro! Eu apenas estou a frente da curva (...) Você tem todas essas regras! Você pensa que elas irão te salvar?

- Eu tenho apenas uma regra.

- Oh e esta é a regra que você terá que quebrar para saber a verdade!

- Qual é?

- Que a única maneira sensata de viver neste mundo é sem regras e esta noite você irá quebrar a sua única regra. (NOLAN, 2008)

Esse diálogo oferece ponto de engate crucial para a culminância da relação entre Batman e Coringa. É aqui que o problema filosófico na moral encontrará seu ponto máximo. É aqui que o Coringa começa sua intensa empresa sádica e filosófica de colocar o Batman contra a parede. O Batman não mata: eis a sua única regra. Em Batman Begins ele diz: “Não sou um carrasco”. Em Ano Um suas palavras são: “Não sou assassino”.

Até que ponto o Morcego pode ser conduzido sem que rompa com seus princípios morais? Sua promessa é baseada em um valor moral que sendo quebrado esse valor, não matar, ele simultaneamente cumpre a promessa feita aos pais “limpar Gotham City do mal” e quebra seu princípio mesmo. Ou seja: matar criminosos é a única forma de “limpar Gotham City do mal”, uma vez que a lei penal não resolve, mas este ato aniquila seu princípio moral. Dito de outra forma: seu princípio moral contradiz a possibilidade de cumprir a promessa feita aos pais. Está dada a tragédia.

Vejamos o discurso niilista do próprio Batman em Mais Sombrio que a Morte de Bruce Jones:

Existe escuridão maior que a morte? Gotham City, minha cidade. Ame-a ou deixe-a. Só não fique indiferente. Entretanto, ultimamente venho pensando no que faz falta. Estranho, não? Falta algo aqui? Gotham tem os melhores espetáculos, a melhor comida e serve o melhor do crime. O que falta é a música. Claro que temos nossa própria produção musical. Mas se você pensa em Nova York, pensa logo em Sinatra. (...) Mas e Gotham? Nada. Silêncio. Preto profundo. Impenetrável. Escrevem-se canções sobre amor, dor de cotovelo e perdas. Mas nenhuma sobre desesperança, sobre o fundo do poço da derrota ou a morte lenta da alma. Talvez seja a visão daquela moça fugidia e sofrida, talvez seja ver a futilidade de mais um grupo de vândalos somando sua cota de marginalidade e ódio a uma cidade outrora gloriosa. Talvez seja mais um blecaute em mais um verão já sufocante de umidade e desumanidade. Mas alguma coisa hoje me deixa vazio e morto por dentro, como em nenhuma outra noite. Algo que nenhuma letra de música pode abranger. Não há letra que aplaque todas as noites solitárias... de observar e esperar sozinho. Tão só quanto aquela garota ameaçada... ou mesmo seus agressores. Tudo culmina numa vida inteira de vigilância vazia, espera vazia e, no fim das contas, violência vazia. Na vazia jornada de volta para casa e para a cama mais vazia ainda. Existe escuridão maior que a morte? Eu creio que existe. (JONES, 2006, p. 03-07)

Esta tragédia do homem morcego é percebida pelo Coringa que não hesita em ir direto à ferida de seu inimigo. Na HQ Morte em Família, o Coringa mata o pupilo de Batman, o Robin Jason Todd 87. Contudo, misteriosamente, anos depois, Jason Todd volta à vida. Em Acerto de Contas com a Morte, o Robin ressuscitado prende o Coringa e coloca Batman em um dilema: tirar a vida do Coringa definitivamente. Eis a conversa dos três:

Batman- Eu sei que falhei com você. Mas eu tentei salvá-lo Jason.

Robin- É por isso que você acha que estamos aqui? Por você ter me deixado morrer? Eu não sei o que torna o seu julgamento pior. Sua culpa ou seu antiquado senso moral. Bruce, eu te perdôo por não ter me salvado. Mas por que... por que em nome de Deus? Ele ainda está vivo?

Coringa- Agora temos uma festa legal! Todos juntos outra vez! Quem tem uma câmera? Drácula, você deve ter uma digital nessa loja de ferramentas que usa na cintura. Primeiro, tire uma de mim e do garoto. Depois, você e eu. Depois, nós três. Então, uma com o pé de cabra 88.

Robin- Ou você fica quieto ou eu meto uma bala na sua boca.

Coringa- Estraga prazer. Não vai comer bolo! (...)

Robin- Eu pensei... eu pensei que depois de me matar... você não o deixaria machucar mais ninguém. Se tivesse sido você quem ele deixou em agonia. Se ele tivesse levado você deste mundo... eu não teria feito outra coisa nesta vida além de caçar este lixo e mandar o desgraçado pro inferno.

Batman- Você não entende. Acho que nunca entendeu.

Robin- O quê? O seu código moral não permite isso? É difícil demais “passar do limite”?

Batman- Não. Santo Deus... não. Seria fácil demais. Tudo que eu sempre quis fazer foi matá-lo. Por anos não houve um único dia sem que eu me imaginasse agarrando-o, levando-o e passando um mês inteiro fazendo-o sofrer as torturas mais terríveis e excruciantes do mundo. Tudo isso para no final ele estar surrado, despedaçado e mutilado... implorando, gritando... no pior tipo de agonia, indo de encontro a uma monstruosa morte.

Coringa- Ah entendi, eu pensei nisso também!

Batman- Eu o quero morto, talvez mais do que eu jamais quis qualquer coisa. Mas se eu fizer isso, se eu me permitir me rebaixar a esse ponto... eu nunca voltarei.

Robin- Por quê?

Batman- O que?

Robin- Porque todo escoteiro fantasiado sempre diz isso? “Se eu passar do limite não há volta?”. Eu não estou falando em matar o Pingüim, ou o Espantalho, ou o Cara de Barro. Nem o Charada ou Dent... estou falando dele. Só dele. (WINICK, 2006)

Batman não fere seus princípios. Ele não define o que vai encontrar ao ultrapassar a linha. Porque não há volta? Ele não responde. O Coringa ri disso. Em Batman o Cavaleiro das Trevas, o diálogo final entre os dois, encerra uma espécie de conclusão para os antípodas. Após conseguir se livrar do Coringa, Batman o lança do alto de um prédio. Enquanto cai, o Coringa dá gargalhadas de satisfação como que provando sua teoria: o Batman mata, ele quebra seu princípio moral. Esta constatação é inclusive mais importante para o Coringa do que o fato de que está caindo de um prédio e em segundos irá morrer. Contudo, Batman lança seu bat-arpão e draga o Coringa de volta. Vejamos o que ele diz:

Oh você... você não poderia me soltar, poderia? Isto é o que acontece quando uma força irrefreável encontra-se com um objeto imóvel. Você verdadeiramente é incorruptível, não é? Você não me matará por causa de um utópico senso de retidão própria e eu não te matarei porque você é divertido demais. Eu penso que você e eu estamos destinados a fazer isso para sempre. (NOLAN, 2008)

Em O Palhaço à Meia Noite, Grant Morrison encerra sua obra apresentando um Coringa definitivamente feliz em olhar para Batman e enxergar a beleza do único ser capaz de completá-lo. Aqui fica expresso o que Morrison chamou de “A Insuportável Necessidade de Batman e Coringa” 89. O príncipe palhaço do crime diz a Batman:

Todos me perguntavam, “O que faz o Coringa rir?”, e eu apontava para você. Todos nós ríamos de você e de seus estúpidos batbrinquedos pelas suas costas. Nós dois tentando encontrar significado num mundo sem sentido! Por que ser um pária desfigurado quando posso ser um notório Deus do Crime? Por que ser um órfão quando se pode ser um super-herói? Você não pode me matar sem se tornar como eu. Eu não posso te matar sem perder o único ser humano que pode comigo. Isto não é irônico? (MORRISON, 2007)

O Batman não mata o Coringa por conta de seus princípios morais que, até onde vimos, se baseiam em algo incerto: Batman fala de não ultrapassar linha, mas não especifica. Em outra situação dirá que o criminoso precisa ser julgado 90. Um julgamento que se desdobra em aplicação de penas/castigos que não reabilitam. Quando em Batman Begins, Bruce escolhe não matar um criminoso, alegando que ele precisa ser julgado, Ra‟s Al Ghul interfere: “Por quem? Burocratas corruptos? Os criminosos zombam das leis da sociedade. Você sabe disso mais que a maioria”. (NOLAN, 2005) A esse argumento Bruce abaixa a cabeça, literalmente.

Há uma ocasião em que Batman argumenta os motivos por não matar. No filme Batman Eternamente, o primeiro Robin, Dick Grayson, quer tirar a vida do assassino de seus pais, na ocasião, Harvey Dent, o Duas Caras. Batman diz ao garoto:

Então você está querendo tirar uma vida? Então vai acontecer desta forma: você mata. Mas sua dor não morre com Harvey, ela cresce. Então você sai pela noite para encontrar outro rosto, e outro, e outro. Até que em uma terrível manhã você acorda e percebe que sua vida inteira se tornou vingança. E você não saberá por que. (BURTON, 1995)

Analisemos imediatamente uma narração de Batman há pouco citada:

Tudo culmina numa vida inteira de vigilância vazia, espera vazia e, no fim das contas, violência vazia. Na vazia jornada de volta para casa e para a cama mais vazia ainda. Existe escuridão maior que a morte? Eu creio que existe. (JONES, 2006, p. 03-07)

Segundo a perspectiva de Nietzsche, levando em conta o castigo, a relação credor/devedor e a tartufice do ressentido, as citações acima expressam a mesma coisa. A questão aqui não é o matar, mas a vingança. Entre a seqüência de “vários rostos que se mata” na primeira citação e a sequência de “várias noites com vigilância vazia” da segunda, não há diferença. Matar como vingança equivale a cumprir a lei como vingança.

Se limpar o mal de Gotham, consiste em colocar criminosos na cadeia para que sejam condenados à prisão sem que haja arrependimento dos atos praticados, ou seja, sem que haja o arrependimento pretendido pela penalização, é o mesmo que, de acordo com o dito popular, tapar o sol com uma peneira. É certo que a prisão, assim como o castigo, podem manter a ordem por um determinado tempo e em determinado espaço, mas não resolvem o problema querido pela moral: melhorar o homem dito mau, melhorar o mal de Gotham.

Tão pouco a chamada “educação dos bons costumes” que pretende domesticar e suprimir os instintos, ou seja, a vontade de potência, resolveria. Por que “todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro”. (GM II § 16) Toda “a hostilidade, crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência”. (GM II § 16) Má consciência que se expressa em Batman que quando olha para o Coringa e lembra-se de todas as coisas que seu inimigo mau lhe fez, simplesmente volta toda a carga de ódio e crueldade contra si mesmo. Falta-lhe coragem, porque é covarde. Na precisão dos dois termos, sem tresvaloração. Coragem como força, bravura, intrepidez. E covardia como medo, timidez, fraqueza. Pois para Batman seu mérito e louvor na ação são bons enquanto os atos do Coringa são maus.

Se os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos outros, dizendo, a vingativa astúcia da impotência: “sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons” E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos” – isto não significa, ouvido friamente e sem prevenção, nada mais que: “nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante”; mas esta seca constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos possuem (os quais se fazem de mortos para não agir “demais”, em caso de grande perigo), graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos – isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível realidade – fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito. (GM II § 13)

Por outro lado o Coringa não mata o Batman, simplesmente porque se o fizer, estará eliminando um de seus pares, talvez o único: “Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal reverência é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a desprezar, e muito a venerar!”. (GM I § 10)

O Coringa venera a incorruptibilidade moral de Batman e zomba dela, pois é o único que pode estar a seu nível e ser chamado, com reverência, de inimigo: “Em contrapartida, imaginemos „o inimigo‟ tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu „o inimigo mau‟, „o mau‟, e isto como imagem equivalente, um “bom” – ele mesmo”. (GM I § 10) Batman não venera o Coringa, ele o quer longe. Não só o Batman, mas toda a cultura hegemônica que teme os vândalos, os bárbaros, a vida. E assim, Batman sempre se esforça em prender o Coringa. Pois quanto mais esforço em direção ao nada, mais engraçada será a piada.

Gostaríamos de finalizar com uma piada contada pelo Joker 91.

Escute só... tinha dois caras num hospício.
Uma noite eles decidiram que não queriam mais viver lá...
E resolveram escapar para nunca mais voltar.
Aí, foram até a cobertura do Asilo e viram, ao lado,
O telhado de um prédio apontando para a lua...
Então, um dos sujeitos saltou sem problemas pro outro telhado,
Mas seu amigo se acovardou...
É...ele tinha medo de cair.
Aí o primeiro cara teve uma ideia.
Ele disse: “Ei! Estou com minha lanterna aqui.
Vou acendê-la sobre o vão dos prédios,
E você atravessa pelo facho de luz!”
Mas o outro sacudiu a cabeça e disse:
“O que acha que eu sou? Louco?
E se você apagar a luz quando eu estiver no meio do caminho?”92

“Vida...” “... e morte.”

“A piada...” “... e o fim da piada” 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A filosofia nitzscheana é tão dura quanto atrativa. O confronto icônico entre Batman e Coringa traduz um dilema moral que perpassa a história da humanidade e que por falta de conhecimento e honestidade é ignorado. A indiferença perante as possibilidades limitam horizontes e de certa maneira causam sofrimentos desnecessários. O filósofo que não ama a sabedoria acaba por se tornar escravo dela ao invés de ser senhor com ela: amiga dela, portanto.

Parece haver ter-se deixado de lado preconceitos com relação a quadrinhos e heróis, tidos, com bastante freqüência, como destinados para o público infantil exclusivamente. A pertinência do tema da moral nesse tipo de mídia é sintoma de um cerceamento social e de uma canalização dos instintos que encontram na arte sua possibilidade de expressão.

Com relação ao cinema: há muito se fala de moral, ela está escancarada nas telas. Contudo, existe um tipo de tartufice social e econômica que reduz as obras cinematográficas a meras fontes de entretenimento e lucro, como se entre elas e o cotidiano civil existisse uma corroboração pacífica. É preciso olhar por cima e ser honesto consigo mesmo para ver os sintomas e a emergência de uma guerra.

REFERÊNCIAS

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BORBA, Francisco da Silva. Melhoramentos: dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1988.

BRENZEL, Jeff. Por que os super-heróis são bons? Os quadrinhos e o anel de Giges. In: IRWIN, William (org.). Super-heróis e a filosofia. São Paulo: Madras, 2009.

BRUBAKER, Ed. O homem que ri. São Paulo: Panini Comics, 2005.

______________. Sombras do passado. Rio de Janeiro: Panini Comics, 2002.

COSTA, André Augusto. Cavaleiro das trevas: uma leitura sócio-cultural e ideológica de um mito das histórias em quadrinhos. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2001.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de janeiro: Editora Rio, 1976.

FERRAZ, Maria Cristina. A genealogia e suas vozes: o cordeiro e a ave de rapina. In: PASCHOAL, Antônio Edmilson (org.). 120 anos de para a genealogia da moral. Ijuí: Editora Unijuí, 2008.

FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 23.ed. São Paulo: Edições Graal, 2007.

GALE, Bob. No man’s land. Nova York: DC Comics, 1999.

GIACÓIA, Oswaldo. Labirintos da alma: Nietzsche e a auto-supresão da moral. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

________________. Moralidade e memória: dramas do destino da alma. In: PASCHOAL, Antônio Edmilson (org.). 120 anos de para a genealogia da moral. Ijuí: Editora Unijuí, 2008.

JENSEN, Randall. M. A promessa de Batman. In: IRWIN, William (org.). Batman e a filosofia. São Paulo: Madras, 2008.

JONES, Bruce. Mais sombrio que a morte. São Paulo: Panini Comics, 2006.

KANE, Bob. O homem por trás do elmo vermelho. In: MANN, Carlos. Batman e Coringa através das décadas. São Paulo: DC Comics, 2003.

LIEBERMAN, A.J. A carta. São Paulo: Panini Comics, 2007.

LOEB, Jeph. O longo dia das bruxas. São Paulo: Editora Abril S.A. Divisão Jovem, 1998.

MALLOY, Daniel P. Os melhores... amigos (?) do mundo: Batman, Super-Homem, e a natureza da amizade. In: IRWIN, William (org.). Batman e a filosofia. São Paulo: Madras, 2008.

MILLER, Frank. Batman: Ano Um. São Paulo: Panini Comics, 1987.

_____________. O cavaleiro das trevas. São Paulo: DC Comics, 1986.

MOORE, Alan. A piada mortal. São Paulo: Panini Comics, 1988.

MORRISON, Grant. Asilo Arkham. São Paulo: Abril Jovem, 1990.

_____________. O palhaço à meia-noite. São Paulo: Panini Comics, 2007.

MORRIS, Matt. Batman e amigos: Aristóteles e o círculo interno do Cavaleiro das Trevas. In: IRWIN, William (org.). Super-heróis e a filosofia. São Paulo: Madras, 2009.

SPANAKOS, Tony. Governando Gotham. In: IRWIN, William (org.). Batman e a filosofia. São Paulo: Madras, 2008.

STARLIN, Jim. Morte em família. São Paulo: Panini Comics, 1988.

WINICK, Judd. Ajuste de contas com a morte. São Paulo: Panini Comics, 2006.

VIDEOS

BERKOWITZ, Stan. Superman e Batman: Inimigos públicos. Warner Brothers, 2009.

BURTON, Tim. Batman. Warner Brothers, 1989.

NOLAN, Christopher. Batman Begins. Warner Brothers, 2005.

___________________. Batman: O cavaleiro das trevas. Warner Brothers, 2008.

SCHUMACHER, Joel. Batman Eternamente. Warner Brothers, 1995.

DOCUMENTÁRIO: Batman Desmascarado. History channel, 2008.

ANEXOS


MORTE EM FAMÍLIA


O CAVALEIRO DAS TREVAS


1 Exceto no seriado “Batman” de 1966 estrelado por Adam West e produzido por William Dozier, no qual era apresentada uma estética “camp”, infiel às pretensões originais de Bob Kane e Bill Finger (COSTA, 2001). Ver contraste de personalidade entre Batman e Superman por exemplo.

2 Os anos trinta marcaram um período de instabilidade econômica nos Estados Unidos devido à grande quebra (Crack) da bolsa de valores de Nova York em 1929. Também se via um clima de medo na sociedade: a II Guerra Mundial era iminente. O nacional socialista Adolf Hitler, líder da Alemanha, invadiu, em 1939, a Polônia dando início à guerra.

3 A promessa de Batman será exaustivamente citada. Ela será relacionada com a filosofia de Nietzsche ao longo do terceiro capítulo, por conta de sua pertinência à constituição moral do personagem.

4 A mnemotécnica será tratada no segundo capítulo com base nas propostas de Nietzsche.

5 “Justice is about harmony. Revenge is about you making yourself better. Which is why we have an impartial system”. (NOLAN, 2005)

6 Cf.: Ano Um de Frank Miller (1987) e Batman Begins de Christopher Nolan(2005).

7 “People need dramatic examples to shake them out of apathy. And I can‟t do that as Bruce Wayne. As a man… I‟m flash and blood. I can be ignored, I can be destroyed. But as a symbol... As a symbol I can be incorruptible. I can be everlasting (...) Something elemental, something terrifying. (NOLAN, 2005)

8 “Bats frighten me. It‟s time my enemies shared my dread”. (NOLAN, 2005)

9 JONES, 2006.

10 MILLER 1987.

11 “- But first, you must demonstrate your commitment to justice.
- No. I‟m no executioner.
- Your compassion is a weakness your enemies will not share.
- That‟s why it‟s so important. It separates us from them.
- You want to fight criminals? This man is a murderer.
- This man should be tried.
- By whom? Corrupt bureaucrats? Criminals mock society‟s laws. You know this better than most. (…)
- I will go back to Gotham and I will fight men like this… But I will not become an executioner.” (NOLAN, 2005)

12 “The man who laghs”, filme de Paul Leni. É uma adaptação do romance homônimo de Victor Hugo. (www.cineplayers.com/filme.php?id=981)

13 No baralho, a carta possui a função de mudar de valor de acordo com as pretensões do jogador ou com as disposições do jogo. Ela pode preencher o lugar de qualquer outra carta. (Melhoramentos, 1988)

14 “I now do what other people only dream. I make art... until someone dies. I am the world‟s first fully-functionning homicidal artist”. (BURTON, 1989)

15 Do inglês smile que significa “sorriso”. Trata-se de um produto químico que contrai os músculos faciais no formato de um sorriso constante.

16 “Some men aren‟t looking for anything logical, like money. They can‟t be bought, bullied, resoned or negociated with. Some men just wanna watch the world burn”. (NOLAN, 2008)

17 Famoso asilo de Gotham City que abriga os “criminosos insanos” que Batman prende.

18 Nome dado ao herói ou heroína que assume o posto de parceiro de Batman. Mais conhecidos: Dick Grayson, Jason Todd, Timothy Drake e Carrie Kelley.

19 BORBA, 1988, p. 335

20 “You want order in Gotham... Batman must take off his mask and turn himself in. Oh, and everyday he doesn‟t, people will die. Starting tonight. I‟m a man of my word!” (NOLAN, 2008)

21 Promotor de Justiça de Gotham City. Posteriormente se transformará em inimigo de Batman, também conhecido como Duas Caras.

22 Amiga de infância de Bruce Wayne. Bruce irá se apaixonar por ela.

23 “There‟s only minutes left. So you‟re gonna have to play my little game if you wanna save one of them.(…) Killing is making a choice.(…) Choose between one life or the other: You‟re friend, the district attorney, or his blushing bride-to-be”. (NOLAN, 2008)

24 “You have nothing, nothing to threaten me with. Nothing to do with all your strength”. (NOLAN, 2008)

25 “I had a vision of a world without Batman. The Mob ground out a little profit and the police tried to shut them down one block at a time. And it was so… boring. I‟ve had a change of heart. I don‟t want Mr. Reese spoiling everything... but why should I have all the fun? Let‟s give someone else a chance. If Coleman Reese isn‟t dead in 60 minutes… then I blow up a hospital”. (NOLAN, 2008)

26 “Tonight, you‟re all gonna be a part of a social experiment. Through the magic of diesel fuel and ammonium nitrate, I‟m ready right now to blow you all sky-high. If anyone attempts to get off their boat, you all die. Each of you has a remote to blow up the other boat. At midnight I blow you all up. If, however, one of you presses the botton, I‟ll let that boat live. So who is it gonna be? Harvey Dent‟s most-wanted scumbag collection or the sweet and innocent civilians? You choose! Oh, and you might wanna decide quickly because the people on the other boat may not be quite so noble”. (NOLAN, 2008)

27 “No one wants to get their hands dirty. Fine. I'll do it. Those men on that boat? They made their choices. They chose to murder and steal. It doesn‟t make any sense for us to have to die too”. (NOLAN, 2008)

28 “You don‟t wanna die... but you don‟t know how to take a life. Give it to me. These men will kill you and take it anyway. Give it to me. You can tell them I took it by force. Give it to me, and I'll do what you should‟ve did 10 minutes ago”. (NOLAN, 2008)

29 “Do you wanna know why I use a knife? Guns are too quick. You can‟t savor all the little emotions. You see… in their last moments people show you who they really are”. (NOLAN, 2008)

30 “My father was a drinker and a fiend. And one night, he goes off crazier than usual. Mommy gets the kitchen knife to defend herself. He doesn‟t like that... not one bit. So, me watching, he takes the knife to her, laughing while he does it. He turns to me and he says: „why so serious?‟ He comes at me with the knife: „why so serious?‟ He sticks the blade in my mouth: „Let‟s put a smile on that face‟”. (NOLAN, 2008)

31 “I had a wife. She was beautiful. (…) Who tells me I worry too much. Who tells me I ought to smile more. Who gambles and gets in deep with the sharks. One day they carve her face. And we have no money for surgeries. She can‟t take it. I Just wanna see her smile again. I Just want her to know that I don‟t care about the scars. So… I stick a razor in my mouth and do this to myself. And you know what? She can‟t stand the sight of me. She leaves. Now I see the funny side. Now I‟m always smiling”. (NOLAN, 2008)

32 “Do I really look like a guy with a plan? You know what I am? I‟m a dog chasing cars. I wouldn‟t know what to do with one if I caught it. (…) I Just do things! The Mob has plans. The cops have plans. Gordon‟s got plans. You know, they‟re schemers. Schemers trying to control their little worlds. I‟m not a schemer. I try to show the schemers how pathetic their attempt to control things really are”. (NOLAN, 2008)

33 “Look what I did to this city with a few drums of gas and a couple of bullets. You know what I noticed? Nobody panics when things go „according to plan‟. Even if the plan is horrifying. If tomorrow I tell the press that, like, a gangbanger will get shot… or a truckload of soldiers will be blowing up… nobody panics. Because it‟s all part of the plan. But when I say that one little old mayor will die… well, then, everyone loses their minds. Introduce a little anarchy... upset the stablished order... and everything becomes chaos. I‟m an agent of chaos. Oh, and you know the thing about chaos? It‟s fair”. (NOLAN, 2008)

34 O termo origem precisa ser tomado com cuidado para estar de acordo com uma genealogia. Segundo Michel Foucault, Nietzsche, enquanto genealogista, rejeita o uso de Ursprung por designar uma origem da essência, do descobrimento de algo imóvel, um princípio, um fundamento e, por tanto, não histórico. “Termos como Entestehung ou Herkunft marcam melhor do que Ursprung o objeto próprio da genealogia”. (FOUCAULT, 2007, p. 20) Herkunft: proveniência. “A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel”. (FOUCAULT, 2007, p. 21) Para Entestehung temos emergência, o ponto de surgimento, o qual vem à luz após uma luta. “A emergência se produz sempre em um determinado estado das forças (...) é portanto a entrada em cena das forças”. (FOUCAULT, 2007, pp. 23-24)

35 Conferir documento da Comissão Teológica Internacional: Em busca de uma ética universal, novo olhar sobre a lei natural. (2008) O documento pretende a consideração de uma solidariedade global da qual a unidade do gênero humano seria seu fundamento.

36 Dos psicólogos ingleses, genealogistas da moral, cujo expoente maior é Paul Rée com o livro A origem das impressões morais de 1877.

37 Cf. ABM § 260

38 “Aber es gibt kein solches Substrat; es gibt kein “Sein” hinter dem Tun, Wirken, Werden; “der Täter” ist zum Tun bloss hinzugedichtet – das Tun ist alles. Observe-se que a mesma palavra foi traduzida como “o fazer” e “a ação”. Trata-se do verbo tun (“fazer”; do, em inglês), transformado em substantivo no texto, e por isso escrito com maiúscula (todo verbo pode ser substantivado no alemão). Os outros verbos ai substantivados, termos importantes em Nietzsche, são wirken – “atuar, operar, causar um efeito” – e werden – “devir, vir a ser, tornar-se” (Paulo César de Souza, nota 17 da primeira dissertação de Genealogia da Moral, p. 154).

39 Cf. Rm 9, 1-5.

40 Se levarmos em conta o fenômeno da expansão marítima globalizada na qual a Igreja terá acesso aos novos continentes explorados, firmando a catequese cristã aos nativos.

41 GIACÓIA, 2008, p. 198.

42 A vontade de nada é tratada por Nietzsche na terceira dissertação de Genealogia da Moral, na qual o ideal ascético é visto como aquele que dá sentido ao sofrimento do homem, mesmo que esse ideal resulte em nada, daí a frase: “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”. (GM III § 28)

43 Cf. O Mercador de Veneza de William Shakespeare. (Século XVI)

44À citação em francês: “Faire le mal pour le plaisir de le faire: literalmente, „fazer o mal pelo prazer de fazê-lo‟; segundo Colli e Montinari, trata-se de uma citação do romancista Prosper Merimée, extraída de Lettres à une inconnue, I, 4 (Paris, 1874). (GM, p. 156)

45 Esse “eu”, deve ser compreendido como aquele sujeito atuante da força, acreditado pelas ovelhas como alvo de culpabilização. Para Nietzsche este sujeito não existe. (Cf. GM I § 13)

46 Tanto o Superman quanto a Mulher Maravilha possuem as cores azul claro e vermelho em seus uniformes que remontam à bandeira norte americana. O uniforme do Flash é todo ele em vermelho.

47 Referimo-nos às abordagens de Batman em Hollywood e nas campanhas publicitárias cujos fatores heróicos e fantásticos sobressaem-se. Por exemplo: em Batman Begins, por mais que o filme tenha se aproximado mais das abordagens feitas nas HQs, o diretor Christopher Nolan preferiu centralizar a história na temática do medo anulando a promessa.

48 Lex Luthor: principal inimigo de Superman. Louis Lane: a repórter do Planeta Diário, namorada e futura esposa de Clark Kent, o Superman.

49 No cinema, é mais comum encontrar um Batman com senso de humor, que faz piada. As HQs o mostram mais centrado, mais sombrio.

50 - You‟re getting lost inside of this monster of yours.
- I‟m using this monster to help other people, just like my father did.
- But Thomas Wayne helping others wasn‟t about proving anything to anyone. Including himself.
- It‟s Rachel Alfred, she was dying.
- Well we both care for Rachel sir, but what you‟re doing has to be beyond that. It can‟t be personal, or you‟re just a vigilante.
- Is Fox still here?
- Yes sir.
- We need to send these people away now.
- Those are Bruce Wayne‟s guests. You have a name to maintain.
- I don‟t care about my name!
- It‟s not just your name sir. It‟s your father‟s name! And it‟s all that‟s left of him. Don‟t destroy it. (NOLAN, 2005)

51 “„Culpa‟ e „dívida‟: em alemão há uma só palavra para as duas, Schuld. Ter presente essa identificação é essencial para acompanhar o argumento de Nietzsche. E é bom recordar, a propósito, a mudança introduzida na oração do „Padre Nosso‟ pela igreja Católica: „perdoai nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores‟ deu lugar a „perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido‟”. (Nota 04 de GM II)

52 The Wayne legacy is more than bricks and mortar. (NOLAN, 2005)

53 It‟s not who I am underneath, but what I do that defines me. (NOLAN, 2005)

54 Com relação às amizades e amores de Batman, conferir artigo de Matt Morris Batman e amigos: Aristóteles e o círculo interno do cavaleiro das trevas em Super Heróis e a Filosofia, 2009.

55 (NOLAN, 2005)

56 (MORRISON, 2007)

57 Den of iniquity. (GALE, 1999, p.40)

58 Liga formada pela união de heróis da DC Comics tendo Superman, Batman e Mulher Maravilha como líderes.

59 Batman Desmascarado (Batman Unmasked). Documentário exibido por History Channel em 2008.

60 He‟s a silent guardian, a watchful protector: a Dark Knight. (NOLAN, 2008)

61 No alemão Bestrafung designa tanto castigo quanto pena.

62 (Justiça, 2006, apud, JENSEN, 2008, p. 87)

63 (LIEBERMAN, 2006, p. 28)

64 (MOORE, 1988)

65 (MORRISON, 1990)

66 (MORRISON, 2007).

67 “Why so serious?”. (NOLAN, 2008)

68 (BURTON, 1989)

69 (STARLIN, 1988)

70 (MOORE, 1988)

71 (AZZARELO, 2009)

72 “I just do things”. (NOLAN, 2008)

73 NOLAN, 2008

74 Explicar a escolha do nome Gotham.

75 Cf. GM p. 08

76 Esta citação, Deleuze a retira da obra de Nietzsche Vontade de Potência, II, § 227.

77 MILLER, 1986

78 Nome da motocicleta usada por Batman.

79 Com relação ao caos, verificar o final do primeiro capítulo no qual apresentamos os quatro dilemas aos quais o Coringa submete o Batman e a cidade de Gotham. É precisamente nesta posição de agente do caos que haverá a possibilidade de entendê-lo como uma força nobre não consciente.

80 Whatever doesn‟t kill you simply makes you stranger. (NOLAN, 2008)

81 Vontade de Potência, II § 43

82 ABM § 259 e Vontade de Potência II § 63

83 Batman Desmascarado

84 MOORE, 2008

85 Este filme rendeu um Oscar póstumo ao ator Heath Ledger pela interpretação do Coringa. Antes do lançamento do filme nos cinemas, o ator australiano foi encontrado morto no quarto de um hotel nos Estados Unidos, por conta de uma overdose de medicamentos ansiolíticos.

86 Refere-se aos policiais.

87 Nesta HQ o público participou da escolha do final. Eles tinham que telefonar e escolher se Robin morreria ou não. A maioria quis a morte de Jason Todd.

88 Foi com um pé de cabra que o Coringa surrou e matou Jason Todd em Morte em Família.

89 MORRISON, 2007.

90 NOLAN, 2005.

91 Coringa em inglês. Joke: piada. Joker: piadista.

92 MOORE, 1988.

93 MORRISON, 2007.


Publicado por: Paulo Vinícius Souza Machado

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