Diálogo entre os textos: Medicina, Higiene e Educação Escolar de José G. Gondra e O Discurso Compete

(...) Se a sociedade, por sua desorganização e mau funcionamento, é causa de doença, a Medicina deve refletir e atuar sobre seus componentes naturais, urbanísticos e institucionais visando a neutralizar todo o perigo possível; nasce a periculosidade e com ela a prevenção.”[1]

 

Prevenir para não remediar. Esse era o “Discurso Competente” presente na sociedade brasileira ao longo do século XIX, onde os médicos chamados higienistas interferiram na organização espacial das cidades, de forma a retirar seus aspectos insalubres que causavam um certo “mal-estar social”.

Seguindo os ideais iluministas do médico-filósofo inglês John Locke e do pensador francês Jacques Rousseau, os médicos brasileiros iniciaram um discurso pautado no “único” saber: o científico. Passou-se então a valorizar somente o que é comprovado cientificamente, as demais práticas que visavam à cura das doenças, como a Homeopatia, a Helvética e a Medicina Oriental, foram banidas pela ordem médico-higienista.

Para que essas práticas se consolidassem, era preciso investir maciçamente na formação do futuro médico, de maneira a molda-lo àquela emergente visão social higienista. Instituiu-se nas faculdades de medicina um currículo extremamente restrito, objetivando a um “recrutamento” para a situação que se criara, culminado em muitas teses de doutoramento sobre temas que tratavam de questões de ordem moral e/ou sociais e os referentes a cirurgias e patologias específicas, e até teses que abordavam ambas as questões.

Esse novo modelo social passou a interferir no espaço urbano, em um empreendimento que envolvia a mudança de toda a estrutura física das cidades, sendo a escola um de seus componentes principais.

O ambiente familiar, segundo a ótica higienizadora, deveria também sofrer as devidas modificações para que se criassem os hábitos de higiene nas crianças, que já chegariam à escola com essa mentalidade; como nos aponta Gondra: “(...) para formar as novas gerações seria necessário uma intervenção não apenas no espaço público da escola, mas, também, no espaço privado da casa. Pais e mestres constituem-se, portanto, nos principais destinatários das prescrições médicas quando se trata da educação”.

Pouco a pouco foi se formando um ciclo que se propôs a formatar o pensamento social à lógica higienista, onde a família conscientizava a criança, que por sua vez, ia para a escola e lá encontrava todo um ambiente arejado, luminoso e livre das doenças; em um movimento que pretendia disciplinar as mentes e os corpos: mens sana in corpore sano.

Seja por honra e mérito do “Discurso Competente” ou pelos altos índices de mortalidade infantil registrados na época, o fato é que a cidade do Rio de Janeiro, entre outras cidades brasileiras, foi alvo de muitos casos de epidemias que matavam dezenas de pessoas, e isso não poderia continuar acontecendo. O que está em questão, não é o fato de higienizar os espaços públicos e privados, visto que sabemos o quanto isto é importante para a não-proliferação de doenças, mas a forma como essas práticas foram sendo impostas às pessoas, mudando radicalmente os seus modos de vida.

A reforma Pereira Passos (1902-1906) é um grandioso exemplo dessa “arrumação” social. Esta se justificou, de um lado, pela proposição de cunho sanitarista do microbiologista Oswaldo Cruz para erradicar as epidemias de febre amarela e de varíola, e por outro lado, embelezar o então Distrito Federal. Foi uma profunda destruição/construção do centro urbano; inúmeras ruas e avenidas foram abertas ou alargadas no centro e zona sul, arrasando áreas inteiras e espantando a população marginal que se alojava em cortiços e casas de cômodo. Além disso, os cariocas foram vacinados contra essas epidemias, e, ao criticar o caráter “autoritário” desta campanha, inssurgiram-se na chamada “Revolta da Vacina”[2]

A inteligência da população carioca era constantemente subestimada, o povo não era culto, ou seja, não possuía a cultura européia que resguardava as suas cidades como sendo extensão de suas casas. A cidade era comparada a uma grande e suja vala, o que pode ser percebido no seguinte trecho: “É como uma grande valla tortuosa em cujo leito se assentarão habitações, descurando-se de todas as condições de architectura e ventilação que a hygiene de nossos dias há sanccionado e aceito, e contra as quaes nenhum povo policiado e culto não tem nada a oppôr”.[3]

O “Discurso Competente”, segundo Marilena Chauí, é lacunar, isto é, “não pode ser preenchido”. Cria-se todo um pensamento de aceitação social de que tal ideologia é verdadeira e soberana, e nada mais existe ou pode ultrapassá-la. O discurso médico-higienista, embora tenha erradicado muitas doenças na época, é um exemplo desse tipo de lacuna de cunho etnocêntrico, onde a população se viu de repente retirada de suas casas, tendo que tomar vacinas que não tinham antes conhecimento, como se fossem cobaias de um laboratório não registrado no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica.

Entretanto, lutar contra o “Discurso Competente” contemporâneo brasileiro, é esbarrar com hierarquias burocratizantes pautadas nos ideais de “organização” da sociedade. Como vimos, Gondra e Chauí nos apontam o quanto o pensamento organizacional hegemônico acompanha cada contexto histórico-social brasileiro e nas demais nações, nos fazendo crer que uma única maneira de viver é possível. O discurso da educação como redentora de todos os males sociais, talvez seja muito radical. Contudo, investir em uma sociedade que ao menos esteja a par da existência do “Discurso Competente” para que possa ao menos dialogar com ele, se faz necessário.

 

 

Bibliografia:

 

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia – o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1982.

 

GONDRA, José G. Medicina, higiene e educação escolar. In: LOPES, Eliane M. T.; FARIA FILHO, Luciano M.; VEIGA, Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 2. ed.. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

 

Site: www.projetomemoria.art.br.

 

 

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[1] MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma – Medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 18.

[2] Revolta da Vacina - Movimento popular que surgiu no Rio de Janeiro em 1904 contra a vacinação obrigatória antivariólica determinada pelo governo. Maior cidade do país no início do século XX, a Capital Federal contava com uma população de 720 mil pessoas que, sem os serviços de saneamento básico, ficava exposta a epidemias de febre amarela e varíola. Vitimando principalmente os habitantes mais pobres, a falta de saúde pública transformou-se num dos maiores desafios do presidente Rodrigues Alves. Decidido a combater a febre amarela, convidou Osvaldo Cruz a assumir a Diretoria Geral da Saúde Pública. O cientista organizou uma campanha sanitária contra o mosquito transmissor da doença, com brigadas de "mata-mosquitos" tratando as águas paradas em terrenos baldios e entrando à força nas casas, desinfetando caixas d'água, esgotos e sarjetas. Mesmo contra a vontade, os doentes eram removidos para hospitais ou isolados. Desacreditando que o mosquito fosse a causa da doença e criticando o autoritarismo da campanha, grande parte da população se agitou. Mas a maior reação popular adveio quando foi instituída a campanha para debelar a varíola. Com uma vacina desenvolvida por Osvaldo Cruz e fabricada em larga escala acreditava-se que sua aplicação em massa eliminaria a doença. Em 31 de outubro de 1904 era aprovada pelo Congresso a lei que tornava a vacinação obrigatória. Cinco dias depois, a oposição criava a Liga contra a Vacina Obrigatória e, em menos de uma semana, tinham início violentos confrontos entre populares e forças policiais. No dia 14 de novembro os cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha também se rebelaram contra as medidas baixadas pelo governo federal. Derrotados os militares e contida a insurreição popular, Rodrigues Alves retomou o controle da cidade e a vacinação era reiniciada. Em pouco tempo a varíola desapareceria do Rio de Janeiro.

 

[3] AZEVEDO, Luiz Corrêa. “Concorrerá o modo porque são dirigidas entre nós a educação e instrução da mocidade para o benefico desenvolvimento physico e moral do homem?”In: Boletim da Academia Imperial de Medicina. Rio de Janeiro, 1872.


Publicado por: Priscilla Paixão Ferreira

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