Descriminalização do abortamento

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1. RESUMO

O trabalho apresenta dados sobre as complicações do aborto ilegal e inseguro realizado por milhares de mulheres brasileiras. O Código de Direito Penal nos artigos 124, 125, 126 e 127, tipifica o aborto como crime doloso. Em virtude dessa criminalização, milhares de mulheres, quando da necessidade de interromper a gravidez recorrem aos procedimentos clandestinos e perigosos, colocando em risco suas vidas no uso de medicamentos lesivos e recorrendo as internações em clínicas ilegais que não oferecem nenhuma segurança a elas. O Brasil tem um número expressivo de mortes em decorrência do aborto, especificamente nas regiões subdesenvolvidas. A igreja se posiciona totalmente contrária à interrupção da gravidez, independente do que venha a acontecer com a gestante. Esse conservadorismo religioso impede a liberdade de escolha da mulher e influencia nos atos estatais, apesar de garantido em nossa Constituição Federal a laicidade do Estado. O aborto só é permitido em caso de violência sexual e no caso em que não há como salvar a vida da gestante. É permitido também nos casos de anencefalia fetal, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento da ADPF 54. A descriminalização do abortamento evitaria a mortalidade materna, uma vez que a gestante poderia optar por tratamento seguro e autorizado pelo Estado.

Palavras-chave: Aborto ilegal. Igreja. Descriminalização.

ABSTRACT

The paper presents data on the complications of illegal and unsafe abortions performed by thousands of Brazilian women. The Code of Penal Law Articles 124, 125, 126 and 127, criminalizes abortion as a felony. By virtue of this criminalization, thousands of women, when the need to terminate a pregnancy resort to clandestine and dangerous procedures, endangering their lives in the use of harmful drugs and using illegal admissions in clinics that offer no security to them. Brazil has a large number of deaths due to abortion, especially in underdeveloped regions. The church stands totally opposed to abortion, regardless of what will happen to the pregnant woman. This religious conservatism impedes the freedom of choice and influence of women in the state acts, though guaranteed in our Constitution a secular state. Abortion is only allowed in cases of sexual violence and in the case that there is no way to save the mother's life. It is also allowed in cases of fetal anencephaly, as decided by the Supreme Court judgment in the ADPF 54. The decriminalization of abortion would prevent maternal mortality, since the mother could opt for safe treatment and authorized by the State.

Keywords: Illegal abortion. Church. Decriminalization.

2. INTRODUÇÃO

O assunto central a ser debatido é o aborto, um tema que vem introduzindo muitos embates morais, religiosos, biológicos, médicos, jurídicos, éticos, dentre outros de perspectiva de essência humana. Nesse dilema, as interpretações são ambíguas entre o direito da livre escolha da mulher e a proteção da “vida do feto”, sendo, portanto, um momento em que os direitos se confrontam.

O objetivo da pesquisa é trazer reflexões sobre as consequências da prática de aborto ilegal, tendo em vista que as estatísticas revelam que milhares de mulheres perderam suas vidas após terem sido submetidas aos métodos inadequados em clínicas clandestinas.

A pesquisa se justifica por se tratar de uma realidade que atinge todas as classes sociais, independente do nível cultural, social, religioso e econômico. Todavia as mulheres expostas ao estágio de pobreza, desprestígio econômico, negras e analfabetas são as principais vítimas dos procedimentos inseguros.

Na elaboração deste trabalho foi realizada uma pesquisa descritiva, com o objetivo de traçar os dados reais do quantitativo de mulheres vítimas do aborto ilegal, pois a partir desse método, foi possível descrever a gravidade e observar quão complexos são os problemas resultantes da clandestinidade abortiva.

A metodologia se fez por pesquisas bibliográficas com amparo em material acessível e publicado, como: livros, periódicos, artigos, jornais e julgado do STF.

O trabalho está organizado da seguinte maneira: primeiro constituiu-se um levantamento histórico acerca do aborto, que demonstrou diversidade cultural e de crença no decorrer das gerações, mostrando que o aborto sempre foi controverso, em virtude da defesa do direito à vida do feto e da liberdade da mulher em poder dispor de seu próprio corpo.

O segundo capítulo aborda conceitos e modalidades de aborto, conforme discriminado no Código Penal. Os artigos 124, 125, 126 e 127 dispõem que o aborto provocado pela gestante ou com o consentimento dela é caracterizado como crime doloso. Já no artigo 128, I e II, traz as hipóteses de excludente de ilicitude, chamadas pelos doutrinadores de aborto terapêutico e aborto sentimental, que só poderão ocorrer se houver risco de morte para a gestante e nos casos de gravidez resultante de estupro. Aborda também acerca do amparo legal para o aborto de feto anencéfalo.

Em seguida, destaca a interferência das instituições religiosas com fundamento de garantir o direito à vida, declarando seus ideais de moral, de ética e de costumes.

No quarto capítulo, são apresentadas as normas vigentes no Brasil, nos Estados Unidos da América, em Portugal, na Itália, no Uruguai e na Espanha. E é dessa comparação que se verifica a maior prova de que o aborto ilegal realizado de maneira inadequada traz consequências drásticas para a mulher, pois segundo os dados, 70.000 (setenta mil) mulheres morrem por ano no mundo, sendo que 95% (noventa e cinco por cento) acontece em países em desenvolvimento, onde a legislação restringe a prática do aborto. Todavia, nos países onde o aborto é permitido, como: Holanda, Espanha, Alemanha, Itália, Uruguai, Portugal e EUA, o índice de mortalidade é baixíssimo.

O quinto capítulo relata as consequências do aborto clandestino. As complicações ocorrem de várias formas, como: infecção, hemorragia, perfuração do útero, intoxicação sanguínea, dores abdominais, traumatismo da vagina, sangramento, má formação física e psíquica do bebê, depressão da gestante, tétano, esterilidade, além de muitos óbitos.

E por fim, o sexto capítulo discorre sobre a seletividade do Sistema Penal. O Estado adota mecanismos que privilegiam pessoas de maior nível cultural e sócio-econômico, que não cumprem as penas quando julgadas pelos seus atos lesivos. Por outro lado, as mulheres pobres e sem instrução que praticam aborto são tratadas como criminosas.

3. HISTÓRICO DO ABORTO

A história do aborto é um tanto quanto conflituosa, pois desde os tempos remotos vem causando muitas discussões e instâncias. Para se ter uma noção do que aconteceu ao longo dos anos, a Revista Eletrônica do Núcleo de Estados e Pesquisas do Protestantismo da EST, baseada na obra de Giulia Galeotti, publicou uma resenha na qual é feito um traço importante do que ocorreu ao longo da história.

Para Galeotti, a linha divisória fundamental da história do aborto encontra-se no século XVIII quando, a partir dos descobrimentos médicos e sob a ratificação dos Estados nacionais que se consolidaram após a Revolução Francesa, começou-se a privilegiar a vida do feto, futuro trabalhador e soltado. Antes desse marco, o aborto era fundamentalmente uma questão da mulher, a única que podia testemunhar acerca de sua gravidez. O feto, em geral, era considerado simples apêndice do corpo da mulher. Assim, no mundo grego-romano, por exemplo, a mulher que abortasse apenas era punida caso estivesse ferindo aos interesses de seu marido.1

A sociedade daquela época aceitava a prática do aborto, pois entendia que a mulher tinha autonomia em poder dispor de seu próprio corpo, desde que não afetasse os interesses do marido, ou seja, embora ela tivesse liberdade, sempre estava subordinada à vontade do seu cônjuge, e o feto não tinha importância, seria penas um elemento dispensável ou não.

Na Antiguidade greco-romana, o aborto era moralmente aceito e juridicamente lícito, mas a sua prática não podia contrariar a expectativa do pai, do marido ou do patrão, o que foi lembrado por Chico Buarque “mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/ geram pr’os seus maridos os novos filhos de Atenas/ Elas não têm gosto ou vontade/ Nem defeito nem qualidade/ Têm medo apenas/ Não têm sonhos, só têm presságios.2

Segundo DWORKIN, no mundo grego-romano, o aborto era comum, mas o assunto teve discussão no campo religioso dos primórdios do cristianismo. Os Santos Agostinho e Jerônimo também manifestaram sobre o assunto:

O aborto era comum no mundo grego-romano, mas em já em seus primórdios o cristianismo o condenou.“ No sec. V. Santo Agostinho referiu-se como “prostitutas” as mulheres, inclusive casadas, que para evitar as

consequências do sexo procuravam veneno que as esterilizassem e, quando estes não funcionam, destroem de algum modo o feto que trazem no útero, preferindo que seu filho morra antes de chegar a viver, ou se já estava vivo no útero, que seja morto antes de nascer. Nenhuma das primeiras denúncias contra o aborto pressupunha que o feto havia sido animado- dotado de alma por Deus – momento da concepção”. Santo Agostinho declarou-se inseguro quanto a esse ponto e assim admitiu que nos abortos feitos no início da gravidez um “filho” pode morrer “antes de chegar a viver”. São Jerônimo afirmou que as sementes formam-se gradualmente no útero, e [o aborto] não é considerado homicídio enquanto os elementos dispersos não adquirem sua aparência de seus membros”.3

A HUNGRIA também se pronunciou acerca da história do aborto:

No que se refere aos precedentes históricos, a prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, sendo comum entre as civilizações hebraicas e gregas. Em Roma, a lei das XII Tabuas e as leis da Republica não cuidavam do aborto, pois consideravam produto da concepção como parte do corpo da gestante e não como ser autônomo, de modo que a mulher que abortava nada mais fazia que dispor do próprio corpo. Em tempos posteriores o aborto passou a ser considerado uma lesão do Direito do marido a prole sendo sua pratica castigada. Foi então com o cristianismo que o aborto passou a ser efetivamente reprovado no meio social, tendo os imperadores Adriano, Constantino, e Teodósio, reformado o direito e assimilado o aborto criminoso ao homicídio.4

O filósofo católico do século III, São Tomás de Aquino, afirmou que o feto só adquire alma depois de um determinado tempo e de maneira diferente entre o homem e a mulher, conforme expõe DWORKIN:

O feto não tem uma alma intelectual ou racional no momento em que é concebido, mas que a adquire em algum momento posterior-quarenta dias no caso de um feto masculino, segundo a doutrina católica tradicional, e mais tarde no caso de um feto feminino.5

Ainda, segundo DWORKIN, São Tomás de Aquino negava que a alma humana estivesse no embrião, pois era considerado apenas como matéria prima de um ser humano:

Santo Tomás, portanto, negava que a alma humana já tivesse impregnada no embrião que o homem e uma mulher criam juntos por meio do sexo. Esse embrião inicial, pensava ele, é apenas a matéria prima de um ser humano cujo desenvolvimento é dirigido por uma série de almas, cada qual apropriada ao estágio que alcançou e cada qual corrompida e substituída

pela seguinte, até que o embrião finalmente alcance o desenvolvimento necessário a uma alma claramente humana.6

Por muitos séculos discutiu-se acerca da possibilidade de o feto ter uma alma ou não. Os argumentos do Santo Tomás continuaram: “[...] sustentou que o aborto nas primeiras semanas de gravidez, antes que o feto esteja “formado”, não é um assassinato porque a alma ainda não se acha presente”.7

Foi publicado, no século XIX, um manual importante sobre o aborto, objetivando a instrução dos seminaristas daquela época, que declarou que “apesar de não dotado de alma, o feto se dirige para a formação de um homem; sua ejeção constitui, pois, um homicídio antecipado".8

O aborto era considerado um “homicídio antecipado”, o que caracterizava um pecado, apesar de São Jerônimo achar que o feto não possuía alma.

O aborto prematuro era certamente tipo em conta de um grave pecado, como insiste a expressão “homicídio antecipado. Ainda que São Jerônimo não acreditasse que um feto prematuro tivesse alma, e que Santo Agostinho se mostrasse em dúvida quanto a essa questão, nenhum deles estabeleceu qualquer distinção entre a pecaminosidade do aborto prematuro e a do tardio.9

Na Idade Média, o aborto era constituído como homicídio e contra a dádiva divina: “o homicídio, era às vezes usado para designar qualquer crime, inclusive a contracepção, contra a ordem cutural da procriação, e portanto, contra a santidade da vida concebida como dádiva divina”.10

Em 1869, o Papa Pio IX publicou o Apostolicae Sedis, um documento que trazia na sua essência a excomunhão para aquelas mulheres que praticassem o aborto.

Muitos acreditam que um decreto papal de 1869, no qual Pio IX declarava que até mesmo o aborto prematuro podia ser punido com a excomunhão, marcou a primeira rejeição oficial da concepção tradicional de que o feto é

dotado de alma algum tempo depois da concepção, e a adoção oficial da concepção atual de animação imediata.11

Depois da Primeira Guerra Mundial, a legislação proibia com rigor o aborto e o coito interrompido, em decorrência da necessidade de se constituir família com grande quantitativo de pessoas, cujo objetivo era conquistar novos terrenos para implementar a economia.

Depois da Primeira Guerra Mundial, as nações, levadas pela vaga nacionalista, que pregava a necessidade de famílias numerosas, adotaram sanções normativas mais severas com relação à contracepção e ao aborto.12

Afirmava António Visco que o coitus interruptus “defrauda a natureza exaltando o egoísmo sexual e defrauda o Estado, na medida em que subtrai milhares e milhares de cidadãos à nação”. Obviamente, tal afirmação tinha um duplo componente ideológico: o crescimento demográfico como condição de desenvolvimento econômico nacional e o comportamento imperialista para o qual esse aumento é importante na óptica da conquista colonial e do alargamento territorial.13

No decorrer da Segunda Guerra Mundial, os nazistas pregavam o aperfeiçoamento da raça, afirmando ser necessário excluir os filhos de mulheres de raça inferior, de modo que a legislação permitia o aborto:

A legislação nazista, que tinha o objetivo de preservar o aperfeiçoamento da raça, afirmava que era preciso impedir que as mulheres de raça inferior tivessem filhos. Portanto, o aborto era permitido e incentivado nos territórios ocupados, pois, como dizia o Fürer, a e produção das populações não alemãs não se reveste de nenhum interesse para nós.14

Em meio a essas controvérsias, conforme verificado acima, nota-se que, na trajetória histórica do aborto, a proteção do feto ficou em segundo plano, visto que a posição sempre foi o interesse social e econômico para alavancar os países, razão pela qual se evitavam os abortos, assim como não se permitia o coito interrompido, não com o intuito de preservar a verdadeira essência da vida, mas sim para que houvesse mão-de-obra necessária e imprescindível para o crescimento econômico.

No Livro do Êxodo (1000 a.c.), o aborto foi condenado e o culpado passou a ser obrigado a indenizar a quantia estabelecida pelo marido da mulher ou por árbitros. Se houvesse dano grave, aplicava-se a Lei de Talião. Nessa época, a perda do feto era considerada um prejuízo econômico, porque o filho era uma mão-de-obra a mais para o sustento da família.15

A antiga União Soviética foi o primeiro país a introduzir a legalização do aborto. ´

Em 1917, a antiga União Soviética foi o primeiro país a suprimir a repressão ao aborto. Por quatro anos ele foi praticado indistintamente, até que por razões de saúde pública foi limitado apenas a clínicas e médicos custeados pelo Estado.16

O governo soviético tinha por objetivo recrutar as mulheres para o trabalho da mesma forma que os homens, de modo que incentivou às mulheres a terem liberdade tanto para o divórcio quanto para praticarem o aborto.

A União Soviética tornou-se o primeiro país do mundo a garantir às mulheres o direito ao aborto legal. Dois anos antes, em 1918, o Código da Família, promulgado pelos bolcheviques, havia instituído o casamento civil em substituição ao religioso e estabelecido o divórcio a pedido de qualquer um dos cônjuges. O governo que emergiu da Revolução comunista de 1917 também incentivou a educação feminina e encorajou as mulheres a assumirem os mesmos postos de trabalho que os homens pelos mesmos salários.17

Na década de 20, as mulheres soviéticas começaram a ocupar mais e mais postos de trabalho nas indústrias e creches e restaurantes estatais se encarregavam das tarefas antes consideradas domésticas. As novas condições materiais somadas à facilidade para se casar e se divorciar e ao acesso ao aborto permitiram o surgimento de novos arranjos familiares, baseados no amor livre, e não na dependência econômica.18

Por fim, entre uma história e outra, entre gerações e gerações, percebe-se que o aborto sempre foi questionado de modo peculiar, observando a diversidade cultural e crenças de cada momento. Entrementes, na atualidade o questionamento acerca da autonomia da mulher em poder dispor de seu próprio corpo está relativamente fundado nos aspectos religiosos, mediante as imposições das igrejas, que quase sempre dominaram e interferiram nas ações sócio-políticas dos Estados.

O movimento antiaborto é liberado por grupos religiosos, utiliza uma linguagem religiosa, invoca Deus o tempo todo e frequentemente atribui uma grande importância à oração.19

[...] Atualmente, a posição oficial da Igreja sobre a vida do feto encontra-se em sua Instrução sobre o respeito pela vida humana em sua origem e sobre a dignidade da procriação, publicada em 1987 pela Sagrada Congregação do Vaticano para a Doutrina da Fé, com o consentimento do Papa. A Instrução declara que “todo ser humano” tem direito à vida e à integridade física desde o momento da concepção até a morte.20

4. ABORTO

4.1. CONCEITOS DE ABORTO

Nas palavras de SALLES, aborto é “o aborto é a interrupção da gravidez com morte do feto, ou a destruição do produto da concepção (ovo, embrião ou feto)”.21

Aborto é entendido como o fim da gestação provocada pela morte do feto. “Aborto é a cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião”.22

O aborto pode se apresentar de algumas formas, entre uma delas, como o aborto econômico-social.

O aborto econômico social é a cessão da gestante, causando a morte do feto ou embrião por razões econômicas ou sociais, quando a mãe não tem condições de cuidar do seu filho, seja porque não recebe assistência do Estado, seja porque possui família numerosa, ou até por política estatal.23

Sobre essa classificação de NUCCI, é importante destacar que um dos principais motivos da prática do aborto está relativamente condicionado à situação de pobreza da gestante ou da família dela, evidenciando que o Estado não cria mecanismo político, social e econômico para que possa atender o indivíduo em situação de pobreza. Percebe-se que muitas vezes isso acontece não pelo fato da mãe não desejar o filho, mas pelas consequências financeiras que surgirão na vida da genitora e da sua família.

A Constituição da República declara como princípio fundamental, o princípio da dignidade da pessoa humana, que tem como escopo primordial a preservação do mínimo existencial, ou seja, o mínimo de recursos materiais necessários à subsistência dos indivíduos.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana.

Não obstante, na consagração da Carta Maior, a desigualdade social ainda é um grande desafio do Poder Público, que não se encontra organizado para atender de forma adequada e eficaz às pessoas que necessitam dele.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, aborto é “aborto é a interrupção da gestante antes de 20-22 semanas ou com peso inferior a 500 gramas”.24

Para alguns autores, aborto significa matar um embrião humano, que na opinião de DWORKIN, quando não ocorrido por força natural ou de maneira acidental, é caracterizado como um ato criminoso, haja vista a violação da lei.

Neste sentido, preceitua DWORKIN que “o aborto, que significa matar deliberadamente um embrião humano em formação”.25

Ainda, segundo o DWORKIN, a vida humana, em qualquer forma, tem um valor sagrado.

[...] é que a vida humana não tem apenas um valor intrínseco, mas também sagrado. A afirmação de que a vida humana é sagrada e por que tem uma base ao mesmo tempo secular e religiosa. Também tentarei demonstrar uma coisa ainda mais importante: em que sentido o pressuposto de que a maioria das pessoas aceita a santidade da vida humana, mas diverge de maneira complexa sobre suas implicações relativas ao aborto.

[...] qualquer criatura humana, inclusive o embrião mais imaturo, é um triunfo da criação divina ou evolutiva que produz, como se fosse do nada, um ser complexo e racional, e igualmente um triunfo daquilo que comumente chamamos de “milagre” da reprodução humana, que faz com que cada novo ser humano seja, ao mesmo tempo, diferentes dos seres humanos que o criaram e uma continuação deles.26

No campo moral, DWORKIN dá sua contribuição expondo da seguinte forma:

A exaltada teoria do movimento “pró-vida” parece pressupor a afirmação derivativa de que um feto já é, desde o momento de sua concepção, uma pessoa em sua plenitude moral, com direitos e interesses de importância igual aos de qualquer membro da comunidade moral. Muito poucas pessoas, porém, -mesmos aqueles que pertencem aos grupos mais radicalmente antiaborto, realmente acreditam nisso.27

4.2. MODALIDADES DE ABORTO

4.2.1. Aborto Natural

Aborto Natural trata-se do aborto espontâneo, que ocorre de maneira involuntária em decorrência de problema biológico, orgânico ou mesmo por uma deformidade do ovo. Por se considerado um ato involuntário, esse ato instintivo não constitui crime.

 

A maior parte dos abortos ocorre quando os cromossomos do espermatozóide encontram com os cromossomos do óvulo. Muitas vezes o bebê (também chamado de feto) não se desenvolve por completo, ou desenvolver-se de maneira anormal. Em casos como estes, o aborto é a maneira que o corpo termina a gravidez que não está se desenvolvendo normalmente. Outras causas possíveis de aborto incluem infecção do útero, diabetes sem controle, alterações hormonais, e problemas no útero. Excesso de cigarro, álcool e drogas ilegais como a cocaína também causam o aborto principalmente no início da gravidez quando os principais órgãos do bebê estão se desenvolvendo.28

Segundo a pesquisa realizada pela Medicinet, “o aborto natural normalmente ocorre nas 13 (treze) primeiras semanas de gravidez”, podendo ser evitado ou reduzido quando há possibilidade de identificar os problemas. A pesquisa ainda relata o acréscimo de abortamento espontâneo em decorrência da idade avançada da mulher.

Os abortos naturais geralmente acontecem ao longo das 13 primeiras semanas de gestação. Embora a probabilidade geral de aborto natural seja de 15 a 20%, estudos demonstram que a partir do momento em que a função cardíaca do feto é detectada, a probabilidade de aborto natural se reduz a menos de 5% [fonte: MedicineNet (em inglês)]. Infelizmente, o índice de abortos naturais pode mudar de acordo com a condição de saúde e a idade da mãe. As mulheres entre 35 e 45 anos têm entre 20 e 35% de probabilidade de aborto natural, e as mulheres com mais de 45 anos têm probabilidade de aborto natural de 50%. Passar por um aborto natural também eleva ligeiramente as chances de novas ocorrências similares. Uma mulher com menos de 35 anos que tenha sofrido um abordo natural tem 25% de probabilidade de sofrer um segundo [fonte: APA (em inglês)].29

4.2.2. Aborto Provocado

Conforme imposição do Código de Direito Penal, aborto provocado pela gestante ou com o consentimento dela é caracterizado como crime doloso. Tais crimes encontram-se disciplinados nos artigos 124, 125, 126 e 127, com penas variadas, conforme descrito:

Art. 124. - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque:

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 125. - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

Art. 126. - Provocar aborto com o consentimento da gestante

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante

fraude, grave ameaça ou violência.

Forma qualificada

Art. 127. - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte”

4.2.3. Aborto Necessário

O art. 128, I e II, do Código Penal cuida de duas hipóteses de excludente de ilicitude com relação ao aborto, chamados pelos doutrinadores de aborto terapêutico e aborto sentimental. O terapêutico trata-se de um procedimento realizado por um profissional médico com intuito de salvar a vida da gestante nos casos de gravidez de risco. Já o aborto sentimental ocorre quando a gravidez é resultado de estupro.

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

A Ministra CÁRMEM LÚCIA explicitou-se sobre o aborto necessário ou terapêutico da seguinte maneira:

A primeira hipótese é o denominado aborto necessário ou terapêutico justificável pelo estado de necessidade, em face de diagnósticos médicos que atestem inviabilidade da vida da gestante sem a interrupção da gravidez. Na escolha entre os dois bens jurídicos: a vida da gestante ou a do feto, opta-se pela certeza da vida adulta, afastando-se o que ainda é uma possibilidade, sobrevalorizando-se a vida da gestante em detrimento da do feto. Neste caso, o Código Penal não considera o ilícito do procedimento adotado, mesmo sem o consentimento da gestante, "se justificada por iminente perigo de vida" (art. 146, § 3°).30

Sobre esse assunto, COSTA JÚNIOR destacou alguns casos que há risco para a vida da gestante:

Casos mais freqüentes de aborto necessário são o estado epilético, graves vômitos incoercíveis, leucemia, cardioplastias, anemia perniciosa, polinefrite, hemorragias corpiosas etc. O aborto necessário pode ser terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo). Em qualquer caso, é o médico em quem deverá decidir, conferindo-lhe a lei. O ideal seria procurar salvar, praticando-se a cesariana, caso o feto já fosse dotado de suficiente maturidade, a mãe e o filho.31

Ainda nesse sentido, o legislador atual, quando do julgamento da ADPF 54, manifestou-se expondo a liberdade e a autonomia privada da mulher em relação à interrupção da gravidez quando se tratar de gestação em que há risco de morte para mãe e de gravidez resultada de estupro.

O legislador, no campo da exclusão de ilicitude, trouxe duas exceções a essa regra do art. 124 do Código Penal. No primeiro caso, quando a vida da mãe estiver em perigo – aborto necessário (art. 128, I). No segundo caso, quando a honra da mãe for violada de tal forma que torne insustentável para ela a manutenção da gravidez – aborto sentimental (art. 128, II). Em ambos os casos, é preciso ressaltar, a lei apenas exclui a ilicitude da conduta. Ou seja, a norma permite que a mãe decida se quer continuar com a gestação e deixa de punir sua conduta caso ela opte pela interrupção da gravidez. A lei preserva o direito de escolha da mulher, não atentando para a viabilidade ou inviabilidade do feto. Estamos, portanto, diante de uma tutela jurídica expressa da liberdade e da autonomia privada da mulher. Veja-se: a lei não determina que nesse ou naquele caso o aborto deva necessariamente ocorrer. A norma penal chancela a liberdade da mulher de optar pela continuidade ou pela interrupção da gestação. E, neste caso, não incrimina sua conduta. Em se tratando de feto com vida extrauterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extrauterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.32

4.2.4. Aborto de Feto Anencéfalo

O aborto do feto anencéfalo trouxe nos últimos anos muitas controvérsias, aguçando manifestações de diversos segmentos, principalmente na esfera social, religiosa e científica.

BARROSO definiu anencefalia na Petição Inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 54, da seguinte forma:

Anencefalia como má formação fetal congênita por defeito no fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico.33

A ADPF-54 teve o propósito de declarar a inconstitucionalidade da interpretação acerca da interrupção da gravidez de feto anencéfalo como conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Tal arguição trouxe muitos debates, haja vista versar sobre o direito à vida.

“O pedido principal é de, ante os preceitos fundamentais, declarar-se que os artigos 124, 126, 128, I e II, do Código Penal, interpretados a ponto de alcançar tal antecipação terapêutica, são inconstitucionais”.34

TEIXEIRA declarou, na ocasião da discussão, que concedeu liminar, possibilitando a interrupção da gestação. “A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero”.35

Para potencializar o assunto, HUNGRIA, em Comentários ao Código Penal, salientou:

Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto.36

Nas audiências públicas que foram realizadas para o desfecho da ADPF -54, as entidades dos mais diversos segmentos puderam se manifestar, causando grande diversidade de interpretação diante da complexidade que o tema aduziu.

Os representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tutelaram sobre a humanização do feto, mesmo como má-formação, assim como defenderam a expectativa de vida, evidenciando que o Estado não tem o direito de julgar o valor da vida.

[...] vida de cada indivíduo não é apenas um bem pessoal inalienável, mas também um bem social”, ou seja, cabe à própria sociedade a promoção e defesa dos direitos do feto portador de anomalia, não podendo o Estado julgar o valor intrínseco de uma vida pelas deficiências.37

O assunto que acentuou a discussão no plenário foi sobre o transplante dos órgãos dos fetos anencéfalos, conforme se verifica nas falas dos especialistas na área da medicina. Segue o posicionamento deles:

Associação Médica Americana não aceita a equivalência da anencefalia à morte encefálica, tendo proibido a possibilidade de retirada dos órgãos de

tais fetos para a realização de transplantes.38

A Associação Médico-Espírita do Brasil.[...], a neurociência demonstra que o anencéfalo tem substrato neural para desempenho de funções vitais e consciência, o que contraindica a interrupção da gravidez, possibilitando a disponibilização dos órgãos do recém-nascido para transplante. [...] defendeu que a vida do anencéfalo se sobrepõe a todos os outros direitos e que é um bem fundamental que lhe pertence. Afirmou não estar em discussão o direito da mulher, mas o direito à vida.39

O representante da Sociedade Brasileira de Genética Médica, RASKIN, esclareceu que os órgãos dos fetos anencefáticos são defeituosos, razão pela qual não podem ser doados. Segue sua explicação:

Os fetos anencefálicos não podem ser doadores de órgãos pelo que eu expus, porque são portadores, em grande parcela das vezes, de múltiplas malformações; referi-me àquelas que são detectáveis pelos métodos, sem falar nas alterações íntimas dos tecidos do corpo, que não podem ser detectadas, a não ser que se faça um exame extremamente complexo. Além disso, os órgãos dos fetos anencefálicos são menores, tanto que cerca de 80% dos anencefálicos nascem com retardo de crescimento intra-uterino. De modo que os órgãos deles não são órgãos que possam ser aproveitados para o transplante.40

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia também deu sua contribuição acerca dos problemas de saúde que podem ocorrer com as gestantes de fetos anencéfalos.

As mulheres gestantes de feto anencéfalo apresentam maiores variações do líquido amniótico, hipertensão e diabetes, durante a gestação, bem como aumento das complicações no parto e no pós-parto e consequências psicológicas severas, com oito vezes mais risco de depressão.41

A Sociedade Brasileira de Genética Clínica, por meio RASKIN, relatou os dados estatísticos de fetos anencéfalos no Brasil, e disse que a maior causa de má-formação congênita acorre nos três primeiros meses de gravidez. Disse ainda que a cada três horas nasce um bebê com esse defeito: “[...] a anencefalia é a maior causa de má-formação congênita no primeiro trimestre de gestação e que, a cada três horas, nasce, no Brasil, uma criança anencéfala”.42

PINOTTI salientou sobre a eugenia, assim como o elevado índice de mortes das gestantes de fetos anencéfalos, e expôs da seguinte maneira:

[...] não possuir a medicina fetal viés eugênico, pelo contrário, busca efetuar sempre procedimentos cirúrgicos dentro do útero a fim de tratar e proporcionar melhor condição de vida aos fetos. Insistiu na questão relativa ao aumento dos riscos para a mulher cuja gravidez é de feto anencéfalo e informou alcançar índices altíssimos a mortalidade materna no país.43

Estimar-se que se praticam no Brasil, anualmente, entre um milhão e um milhão e meio de abortos. Concluiu não ser adequado o uso da terminologia “aborto” para cuidar do caso da interrupção antecipada da gravidez de feto anencéfalo, haja vista não possuir o embrião potencialidade de vida.44

O Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, por meio de DINIZ, descreveu o diagnóstico nas mulheres grávidas de feto com anencefalia, evidenciando que o quadro dessa gravidez é de tortura, assim como destacou que a laicidade do Estado preserva o direito à saúde e à dignidade da pessoa humana.

Explanando assim:

[...] experiência da tortura a que são submetidas. Insistiu na necessidade de se entender a decisão pela antecipação do parto como matéria de ética privada, vale dizer, a escolha, apesar de dever ser protegida pelo Supremo, cabe a cada mulher. Concluiu, por fim, defendendo que a laicidade do Estado brasileiro significa reconhecer que, para a vida pública, a neutralidade é um instrumento de segurança e, nesse caso, de proteção à saúde e à dignidade das mulheres.45

A Associação Brasileira de Psiquiatria, representada por MORAES, também se manifestou sobre o caso, resumindo o drama enfrentado pela gestante do feto anencéfalo. Pronunciou ainda sobre a necessidade de o Estado em garantir assistência adequada a essas mulheres.

[...] a interrupção da gravidez aconteceu porque a vida do bebê não era viável e não porque a gravidez era indesejada. Realçou que, em nome da saúde mental da mulher, a Associação Brasileira de Psiquiatria defende a autodeterminação da gestante para decidir livremente sobre a antecipação terapêutica do parto em gravidez de feto anencéfalo e o dever do Estado em garantir-lhe assistência governamental em relação aos cuidados protetivos à respectiva saúde, em especial, à saúde mental. Esclareceu que a obrigatoriedade de levar a termo a gestação pode desencadear na mulher um quadro psiquiátrico grave, tido como forma de tortura.46

Embora a igreja tenha se posicionado em favor da humanização do feto, mesmo com má formação, o que prevaleceu foi a manifestação em favor da mulher gestante do feto defeituoso, conforme enfatizou MELLO:

Nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito não se submete à religião, e as autoridades incumbidas de aplicá-lo devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir processo de poder, quando no exercício de suas funções(qualquer que seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções religiosas.47

A Sociedade de Medicina Fetal, por meio de PETTERSEN, declarou que o feto anencéfelo é um natimorto neurológico. “[...] nós consideramos o feto anencéfalo um natimorto neurológico. Do ponto de vista técnico, ele não tem sequer o desenvolvimento do sistema nervoso central”.48

Por fim, foi julgado procedente o pedido que declarou a inconstitucionalidade da interpretação acerca da interrupção da gravidez de feto anencéfalo caracterizada como conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal. Tal decisão teve fulcro em posições científicas médicas e psiquiátricas, como mencionado, assim como jurídicas, que possibilitaram esclarecer o quão é lesante a realidade em que uma mulher seja obrigada a gerar um feto sem perspectiva de vida extrauterina.

5. A VISÃO DAS RELIGIÕES SOBRE O ABORTAMENTO

Entre um conceito e outro, percebe-se que as opiniões acerca do aborto estão fortemente influenciadas pelo aspecto moral e por convicções religiosas.

A luta do movimento de mulheres pela descriminação e legalização do aborto tem como maiores adversários os fundamentalismos morais e religiosos, em grande expansão hoje em dia. É condição para avançarmos rumo a uma sociedade mais justa e não discriminatória o respeito à autonomia e capacidade de decidir, em relação às esferas privada e pública de nossas vidas e, muito especialmente, quanto à sexualidade e à reprodução.49

A comunidade católica é totalmente contra o aborto, “independente das circunstâncias”, cujos fundamentos foram adotados pela igreja nos séculos passados.

O Catolicismo desde o século IV condena o aborto em qualquer estágio e em qualquer circunstancia, permanecendo até hoje como opinião e posição oficial da igreja católica. Com a encíclica Matrimonio cristão de Pio XI em 1930, ficou determinado que o direito à vida de um feto é igual ao da mulher, e toda medida anticoncepcional foi considerada um "crime contra a natureza" exceto os métodos que estabelecem a abstinência sexual para os dias férteis. Em 1976 o Papa Paulo VI disse que o feto tem "pleno direito à vida" a partir do momento da concepção; que a mulher não tem nenhum direito de abortar, mesmo para salvar sua própria vida. Essa posição se baseia em quatro princípios:1) Deus é o autor da vida.
2) A vida se inicia no momento da concepção.
3) Ninguém tem o direito de tirar a vida humana inocente.
4) O direito à vida é um elemento constitutivo da sociedade civil e de sua legislação.50

O Papa Francisco classificou o aborto como crime abominável.

O aborto e o infanticídio são crimes abomináveis. Todo o direito civil deve apoiar-se no reconhecimento do direito à vida. É importante reiterar a máxima oposição a qualquer ataque direito à vida, especialmente de inocente e sem defesa: o bebê no ventre materno é inocente por excelência. A vida, uma vez concebida, deve ser protegida.51

Como o assunto merece reflexão, a comunidade católica lançou uma cartilha com base em entrevistas e opinião de várias mulheres, cujo objetivo é de orientar as mulheres que enfrentam o problema do aborto. Nesse material, as mulheres expuseram suas opiniões confrontando o aborto com a ótica da bíblia e da consciência moral.

Dona Josefa: “Como tem mulheres fazendo aborto! E um crime tão grande, é o maior pecado que a gente pode cometer: tirar uma vida! Mas também tem um monte de mulheres esterelizando-se, outras, evitando! é uma loucura! parece que as mulheres esqueceram do que Deus fala pra gente na Bíblia!”

Dona Chica: “Eu acho que evitar filho não é pecado, ou não seria um pecado tão grave! tão grave como abortar. Porque muitas pessoas, que dizem assim: Lá na Bíblia está escrito: Crescei e multiplicai-vos, mas assim na Palavra de Deus, não é crescei tendo filho a cada ano, cada ano... como na carreira que eu ia e muitas iam; porque colocando a Palavra de Deus dessa maneira, a mulher vai se encher de filho. E como a mulher vai criar esse monte de filho, muitas vezes até sozinha? Porque tem marido que não presta! Então, evitar filho, é uma maneira melhor para a vida da gente, tudo ajudado por Deus, porque Ele tem a sabedoria e então não é pra gente ficar de braços cruzados... mas sim como Ele nos disse na Bíblia: Faça tua parte que eu te ajudarei. Por isso eu acho que evitar filho não é um pecado assim tão grave, mas, se for pecado... Deus vai perdoar, porque Ele tá vendo, Ele conhece melhor a nossa situação financeira aqui na terra.52

Em posicionamento contrário ao da comunidade católica, Dom ARNS, saiu em defesa das mulheres quando vitimadas de estupro. “Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, afirma: Uma pessoa estuprada deveria recorrer ao médico imediatamente, porque aí ela evita sofrimentos interiores, tanto dela como de uma criança que poderia nascer”.53

Na ideia da teóloga GEBARA, o feto não tem própria vontade, portanto, a mulher, quando acometida de problemas psicológicos, poderá ter a liberdade de interromper a gravidez.

Acho que a mãe tem algum direito sobre a vida que carrega no útero. O feto não pode sobreviver sem ela; é lícito considerar que o feto não tem própria vontade. Se a mãe não tem condições psicológicas de enfrentar a gravidez, tem o direito de interrompê-la.54

O Estado brasileiro não dispõe de religião oficial, o que permite, portanto, que as pessoas tenham total liberdade para expressar suas crenças religiosas. Essa imparcialidade é defendida no artigo 19, da Constituição Federal de 1988.

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

- estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Embora o Brasil seja um Estado laico, portanto desprendido do controle político e da sociedade religiosa, conforme preceituado na Constituição, ainda se vivencia uma imposição e total interferência da religião quando se trata de “saúde reprodutiva e sexual”. O comentário que fora feito no Seminário acerca do Estado Laico, cujos temas abordados foram: Contra os Fundamentalismos, por uma Convenção dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos e Campanha pela Legalização do Aborto.

Temos um programa de saúde das mulheres, saúde reprodutiva e saúde sexual, muito avançado. Mas, muitas vezes, esse programa social avançado é cerceado ideologicamente quando uma paciente chega ao serviço de saúde e é maltratada porque vai fazer um aborto. Profissionais de saúde se acham no direito de fazer um julgamento, em nome de uma moral religiosa. Ali acontece o que Richard Parker chama de “morte civil”, porque é retirado o direito da pessoa, é negada a sua condição de cidadã. Em resumo, para pensar em um Estado laico é preciso pensar mais profundamente no significado entre a ordem das igrejas e a sua dominação sobre a sociedade, e de como essa relação é remetida imediatamente para uma ordem de Estado, por meio do poder político. As mulheres em seus relatos sobre experiências da vida reprodutiva afirmam que fazem promessas e pedem a Deus que as protejam na hora do aborto. Mas elas não têm coragem de declarar isso publicamente, porque sabem que há uma sanção da sociedade, da igreja pela via do pecado.55

Da mesma forma que o Estado não pode promover e interferir em concepções e dogmas religiosos, as instituições religiosas também deveriam intensificar seus juízo e valores, observando a diversidade cultural, sem, contudo, impor uma moral perante uma “sociedade aberta, livre, diversa e plural. Sobre essa questão PIOVESAN, quando da análise da ADPF 54, disse o seguinte:

Estado laico é aquele que respeita a diversidade de pontos de vista dos diversos credos sem, contudo, deixar-se influenciar por algum dele sem específico. Para Flávia Piovesan,... O Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos, especialmente nos campos da sexualidade e reprodução. Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Os grupos religiosos tem o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não tem o direito a pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico. No Estado laico, marcado pela separação entre Estado e religião, todas as religiões merecem igual consideração e profundo respeito, inexistindo, contudo, qualquer religião oficial, que se transforme na única concepção estatal, a abolir a dinâmica de uma sociedade aberta, livre, diversa e plural. Há o dever do Estado em garantir as condições de igual liberdade religiosa e moral, em um contexto desafiador em que, se, de um lado, o Estado contemporâneo busca adentrar os domínios do Estado (ex: bancadas religiosas no Legislativo). Destacam-se, aqui, duas estratégias: a) reforçar o princípio da laicidade estatal, com ênfase à Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação com base em Intolerância Religiosa; e b) fortalecer leituras e interpretações progressistas no campo religioso, de modo a respeitar os direitos humanos.56

O Ministro AURÉLIO também se manifestou sobre a laicidade do Estado consagrada na Constituição Federal, quando do julgamento da ADPF 54.

Se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Vale dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual – ou a ausência dela, o ateísmo – serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade religiosa não se tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não professem o credo inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia desejem rever a posição até então assumida.57

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 18, funda seu argumento sobre a liberdade da consciência religiosa.

Tudo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.58

Essa ideia de liberdade de consciência e religião é reforçada no art. 5º, da Constituição Federal no seu inciso VI.

É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Contestando essa ideia de liberdade, a comunidade espírita possui pensamento totalmente antagônico em relação ao aborto.

Dizer que a mulher é dona do seu corpo e dele pode dispor como bem entender, não é verdade, porque ninguém é dono do corpo, tanto assim que quando desencarnamos o nosso corpo fica na Terra. Somos apenas usufrutuários do próprio corpo. Portanto, uma das argumentações preferidas, a de que "a mulher é dona do seu corpo", é radicalmente falsa e não pode ser aceita como pretexto para a prática do aborto.59

Em 2005, milhares de mulheres foram às ruas de São Paulo para reivindicar o direito de aborto. Enfatizaram o direito da autonomia delas em poder dispor de seu próprio corpo e destacaram que não são apenas “útero hospedeiro”.

No dia 08 de março de 2005, 30.000 mulheres do país inteiro de diversos setores sociais, manifestaram-se em São Paulo na partida da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, que percorrerá mais de 50 países. Na ocasião deram destaque ao direito aborto e enfatizaram a reivindicação de que o Estado deve proteger a autonomia das mulheres para decidir sobre o aborto. Cabe à mulher decidir como, quando e com quem, se desejar compartilhar essa decisão, de acordo com o contexto de suas vidas como sujeito de direitos reprodutivos e sexuais. Somente assim, retomando a luta pela liberdade reprodutiva em meio à criação de espaços públicos onde possam apresentar-se como sujeito integral, e não apenas útero hospedeiro, o direito civil de dispor do próprio corpo e de sua vida há muito conquistado pelas mulheres do primeiro mundo poderá tornar-se realidade.60

6. A LEGISLAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL E EM PAÍSES ESTRANGEIROS

6.1. ABORTO NO BRASIL

Segundo a Revista Brasileira de História das Religiões, a Constituição do Império do Brasil de 1824 considerou o aborto voluntário como um crime grave contra a vida humana.

Em 1824, segundo os ditames da norma constitucional então vigente, a interrupção voluntária da gestação era considerada como um crime grave contra a vida humana (SOUZA, 2009). No entanto, dado o cuidado que se tinha com a punição das mulheres à época, quando o aborto era praticado pela própria gestante ela era preservada do infligir de alguma pena.61

A interrupção da gravidez foi condenável no Código Penal do Império de 1830, apesar da prática abortiva já se encontrar condenável pelo catolicismo português na fase colonial, assim como na Constituição do Império.

Art. 197. Matar algum recém-nascido.

Penas - de prisão por tres a doze annos, e de multa correspondente á metade do tempo.

Art. 198. Se a propria mãi matar o filho recem-nascido para occultar a sua deshonra.

Penas - de prisão com trabalho por um a tres annos.

Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada.

Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos.

Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada.

Penas - dobradas.

Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique.

Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos.

Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes.

Penas – dobradas.

O Código Penal da República de 1890 passou a condenar, também, o aborto praticado por terceiros, com o consentimento da gestante, conforme preceitua os artigos 300, 301 e 302.

Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção:

No primeiro caso: - pena de prisão cellular por dous a seis annos.

No segundo caso: - pena de prisão cellular por seis mezes a um anno.

§ 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos meios empregados para provocal-o, seguir-se a morte da mulher:

Pena - de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos.

§ 2º Si o abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercicio da medicina:

Pena - a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação.

Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante:

Pena - de prissão cellular por um a cinco annos.

Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria.

Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia:

Pena - de prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação.

Com a edição do Código Penal de 1940, o aborto ficou tipificado como crime contra a vida, conforme estabelecido nos artigos 124 a 127, que passou a permitir somente em duas situações extremas: quando tiver risco de morte para a gestante e nos casos de estupro, consoante o art. 128:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Segundo o Ministro AURÉLIO, em manifestação ao julgamento da ADPF 54, o aborto provocado ou com o consentimento da gestante, na legislação vigente, possui um grau de reprovação diferente do infanticídio. Explicitou também acerca do aborto nos casos de estupro, em que o bem tutelado não é a vida.

Vê-se, claramente, que os graus de reprovabilidade são diferentes e que a situação da mãe ou gestante é levada em consideração. Praticar o infanticídio não gera penas tão graves quanto cometer um homicídio, que, por sua vez, é punível de forma mais exasperada do que a prática de um aborto. Ainda, é de se considerar que a lesão corporal grave tem uma pena máxima maior do que a do aborto. Também é importante frisar que o aborto provocado sem o consentimento da gestante tem pena de 3 a 10 anos, bem inferior à de homicídio. Assim, para fins de valoração da reprovabilidade, espera-se menos da relação da gestante e da sociedade com o feto do que na relação entre dois indivíduos já totalmente formados organicamente no que tange à proteção da vida e do direito à plenitude da integridade física como bens jurídicos. Lembre-se, ademais, que o estupro é causa de excludente de ilicitude do crime de aborto (art.128, II, do Código Penal), mesmo que o feto seja plenamente viável. Ou seja, no caso de estupro não há interesse em proteger o feto contra a gestante. Fica evidente que, para o direito penal, vida não é, em hipótese alguma, um valor único e absoluto.62

No campo da estatística, acredita-se que na Europa o índice de abortamento é alarmante, a ponto de causar sérios problemas econômicos com a consequente diminuição da população, comprometendo o consumo, assim como o serviço militar e prejudicando a não satisfação dos aposentados, em decorrência do reflexo na contribuição previdenciária.

Na Europa, o problema assume níveis catastróficos. Todos ou quase todos os países da Europa já aprovaram leis permissivas do aborto, sob a alegação de que a vida começa com o nascimento e não na concepção (fecundação ou união do esperma com o óvulo) e que cabe à mulher dispor sobre o seu próprio corpo. A Itália detém o recorde de crescimento negativo da população. Isso causa problemas econômicos, em face do envelhecimento da maioria aposentada, sem o correspondente crescimento da massa trabalhadora e consequente respaldo da contribuição previdenciária, incluindo o consumo e o serviço militar.63

6.2. ABORTO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

As mulheres dos Estados Unidos conquistaram o direito de interromper a gravidez há 40 anos. A legalização por lá teve um processo bastante questionado, pois envolveu o caso de uma mulher pobre, solteira e vítima de estupro. O fato teve uma grande repercussão e durou cerca de três anos, o chamado caso Roe versus Wade.

O último dia 22 de janeiro completou-se 40 anos da decisão que resultou na legalização do aborto nos Estados Unidos. A legalização foi conquistada em uma intensa luta que começou nas ruas e terminou na justiça com o caso conhecido como Roe versus Wade. Uma das maiores batalha jurídicas do século XX, iniciada no Texas e encerrada na Suprema Corte dos EUA. Jane Roe, Norma McCorvey, era uma mulher solteira, pobre, à margem da sociedade que em 1970, recorreu à justiça pelo direito de interromper a gestação resultado de um estupro. Ela não conseguiu interromper a gestação porque o processo judicial se estendeu por três anos. A criança foi adotada. No Texas, a pena para quem praticasse aborto era de cinco anos de prisão.64

Sobre essa polêmica da legalização do aborto nos Estados Unidos, DWORKIN

trouxe os diferentes argumentos político, religioso e moral sobre a repercussão do caso Roe versus Wade, o qual ensejou em liberdade de interrupção da gravidez em todos os estados daquele país.

Em 1973, no famoso caso Roe contra Wade, o Tribunal declarou (por uma votação de sete a dois) que a legalização do Texas, que criminalizava o aborto a não ser quando praticado para salvara a vida da mãe, era inconstitucional. Foi mais adiante: afirmou, de fato, que qualquer lei estadual que proibisse o aborto para proteger o feto nos dois primeiros trimestres de gravides- antes do sétimo mês – era inconstitucional. Declarou que os estados só podem proibir o aborto para proteger a vida do feto no terceiro trimestre(quando, de qualquer modo, a incidência de abortos é de apenas 0,01%, em sua maior parte por razões médicas). De um só golpe, em Washington, um tribunal de nove juízes que haviam sido nomeados e não eleitos para seus cargos, que nem foram unânimes em sua decisão, mudaram radicalmente as leis de quase todos os cinquenta estados norte-americanos. Muitas pessoas, sobretudo as mulheres, ficaram encantadas. Outras, em particular os membros de diferentes grupos religiosos, sentiram como se tivessem sido golpeados no estômago: um tribunal distante lhes havia tido para fecharem os olhos àquilo que seus instintos e suas religiões lhes diziam ser o assassinato em massa de crianças inocentes ainda em gestação. A guerra do aborto havia começado, e desde então só fez aumentar de intensidade.65

[...] a guerra do aborto parece mais acirrada e mais violenta nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar. Por quê? Parte da razão encontra-se no paradoxo característico da ambivalência desse país diante da religião. Ainda que o direito norte-americano insista em uma nítida separação formal entre a igreja e o Estado, e que o Supremo Tribunal tenha proibido as orações – mesmo as não confessionais – nas escolas públicas, os Estados Unidos estão entre os países modernos mais religiosos de todo o Ocidente, e dadas as características de alguns de seus mais poderosos grupos religiosos, são de longe o país mais fundamentalista. Essa religiosidade mistura-se de maneira explosiva aos movimentos feministas progressistas, que pretendem emancipar as mulheres de concepções religiosas tradicionais na esfera de suas responsabilidades e de sua sexualidade. Os movimentos feministas são também mais poderosos nos Estados Unidos do que em qualquer outro parte do mundo.66

Os conservadores protestaram e iniciaram uma campanha “pro-vida”, cujo objetivo era preservar a vida, uma vez que entendiam que o feto seria, desde a concepção, uma pessoa dotada de moral e direito.

A confusão que, acredito, tem envenenado a controvérsia pública sobre o aborto, tornando-a mais contenciosa e menos aberta à argumentação e à transigência do que deveria do que deveria ser, é a confusão entre esses dois tipos de razões para acreditar que o aborto é frequentemente, quando não sempre. moralmente errado. A exaltada retórica do movimento “pro-vida” parece pressupor a afirmação derivativa de que um feto já é, desde o momento de sua concepção, uma pessoas em sua plenitude moral, com direitos e interesses de importância igual aos de qualquer outro membro da comunidade moral.67

O movimento “pro-vida” ainda permanece nos Estados Unidos. Em 2013 foi lançado o filme “Blood Money”, o qual expõe a indignação de algumas mulheres que se viram obrigadas a interromper a gravidez e, como consequência, arrependimentos e transtornos que as perseguem.

O documentário Blood Money – aborto legalizado, dirigido por David Kyle, deixa claro qual é sua bandeira: rejeição total ao aborto e defesa incondicional da vida desde a concepção. O filme reúne depoimentos de padres, médicos, mulheres e da ex-proprietária de uma clínica de aborto para satanizar a lei que legalizou a prática do aborto nos EUA há 40 anos. Há uma única opinião, a do movimento pró-vida. Não há espaço para outras ideias.68

6.3. ABORTO EM PORTUGAL

Em Portugal, a interrupção da gravidez, por opção da gestante, foi aprovado por meio da Lei nº 16/2007, que deu nova redação ao artigo 142, do Código Penal. A nova lei trouxe o seguinte texto:

 

Artigo 142. [...].

1 -  Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúdeoficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando:

a)  ...

b)  ...

c)  Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformaçãocongénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, casoem que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;

d)  ...

e)  For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.

2 -  A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 -  Na situação prevista na alínea e) do n.º 1, a certificação referida no número anterior circunscreve-se à comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas.69

Para o procedimento do aborto em Portugal, a mulher pode ir a um hospital e simplesmente expor a sua pretensão em realizar o aborto. Não é necessário que justifique sua vontade. Além da técnica segura, com profissionais adequados, o serviço é gratuito.

O processo é relativamente simples, uma mulher só tem que se dirigir a um hospital ou a um posto de saúde e dizer que quer fazer um aborto. Primeiro terá que ir a uma consulta prévia onde fará um breve exame médico e será informada sobre os métodos de aborto. Nessa consulta lhe é oferecido aconselhamento psicológico que ela poderá aceitar ou não. Depois seguem-se três dias de reflexão obrigatória após os quais o aborto poderá ser realizado se for comprovado por ultrassom que a gravidez tem menos de 10 semanas. A partir daí todas as mulheres residentes em Portugal, de nacionalidade portuguesa ou não, podem ter acesso a um aborto seguro e gratuito no Serviço Nacional de Saúde (SNS).70

A gratuidade do procedimento abortivo realizado em Portugal contribuiu para a diminuição das consequências do aborto clandestino, uma vez que muitas mulheres sem recursos financeiros puderam interromper a gravidez sem colocar em risco suas próprias vidas.

A principal razão da redução drástica do aborto clandestino foi o fato deste ser gratuito no SNS, permitindo assim às mulheres trabalhadoras, que não têm recursos para pagar um aborto numa clínica privada, ter acesso a um aborto seguro. Estimava-se que se realizassem por ano entre 17000 a 20000 abortos em Portugal, por opção da mulher. Em 2009 realizaram-se 18951 abortos nestas condições, destes mais de 70% foram feitos no SNS. Esta foi uma das grandes bandeiras dos Médicos pela Escolha que sempre defenderam que tão ou mais importante que legalizar o aborto era garantir que este fosse acessível às mulheres trabalhadoras com menos recursos. São estas mulheres que mais necessidade têm de planejar a sua família e mais provavelmente poderão ter que recorrer ao aborto perante uma gravidez inesperada. 19% das mulheres que fizeram um aborto em Portugal, em 2009, eram trabalhadoras não qualificadas, 18% eram estudantes, 17% estavam desempregadas. Estas mulheres consideraram não ter as condições necessárias para criar um filho e ao contrário do que acontecia antes de 2007 puderam tomar essa decisão com dignidade, independentemente dos seus recursos econômicos.71

De acordo com uma pesquisa feita 03 anos depois da legalização do aborto em Portugal, não houve registro de morte de mulheres em decorrência de aborto clandestino. 

Depois de implementada a lei que permite a interrupção da gravidez por opção da mulher não foi registrada mais nenhuma morte por aborto e as complicações graves como perfuração do útero e sépsis tornaram-se extremamente raras. Passados 3 anos da implementação da lei a redução do número de abortos clandestinos foi drástica, havendo ainda um número reduzido, muito por falta de conhecimento da nova lei e também pelos casos em que as mulheres não conseguem fazer um aborto antes das 10 semanas. Segundo Mara dos MPE “continua a haver circulação ilegal de “cytotec” e acredito que a grande maioria dos abortos ilegais são medicamentosos, como já acontecia antes da legalização, e estes têm menos complicações que os abortos cirúrgicos, daí o grande decréscimo de complicações. Principalmente em relação a grupos mais vulneráveis (imigrantes, adolescentes) continua a ser urgente informar todas as mulheres do “novo” direito à escolha, assim como informar do acesso gratuito ao aborto e a confidencialidade de todo o processo”.72

6.4. ABORTO NA ITÁLIA

Na Itália se permite o aborto de forma incondicional. A lei nº 194/1978, deu liberdade às mulheres de o praticarem.

A 22 de Maio de 1978, o Parlamento italiano aprovava a lei n° 194 intitulada: "Normas em matéria de interrupção voluntária da gravidez e tutela social da maternidade". Esta lei, segundo os seus promotores, propunha-se evitar os abortos clandestinos. Propunha-se, além disso, favorecer a procriação consciente, ajudar a maternidade, tutelar a vida humana desde o seu início.73

6.5. ABORTO NO URUGUAI

No Uruguai, a partir de 2012, também foi consentido o aborto.

Na quarta-feira (17/10/12), o Senado uruguaio aprovou a descriminalização do aborto até o primeiro trimestre de gestação. A lei determina que mulheres (apenas cidadãs uruguaias) que queiram pôr fim à gravidez nesse período sejam submetidas a um comitê formado por ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais, que lhe informarão sobre riscos e alternativas ao aborto.

[...] se a mulher desejar prosseguir com o aborto mesmo assim, poderá realizá-lo imediatamente em centros públicos ou privados de saúde. Abortos que não sigam esses procedimentos continuarão sendo ilegais. Também é permitido o aborto em casos de riscos à saúde da mulher, de estupros ou de má-formação fetal que seja incompatível com a vida extrauterina, até 14 semanas de gestação.74

O Governo do Uruguai fez um levantamento após um ano de vigência da legalização do aborto. Os dados mostram que nesse período não correu nenhuma morte, uma

vez que os procedimentos foram realizados de forma segura.

Um balanço oficial do Governo Uruguaio informou que, no período de um ano de vigência da Lei de Interrupção da Gravidez (lei de aborto), foram realizados 6.676 abortos seguros – nenhuma mulher faleceu. Desde dezembro de 2012, as mulheres uruguaias podem realizar a interrupção da gravidez indesejada em segurança e na legalidade.75

 

6.6. ABORTO NA ESPANHA

A legalização do aborto na Espanha existe desde 1985. A prática por lá ocorre em situações diversas, como: evitar risco de morte para a gestante, para preservar à saúde física ou psíquica da mãe, por gravidez fruto de delito e nos casos de fetos com defeitos físicos e psíquicos.

 

Em 5 de julho de 1985, aprovou-se na Espanha a lei do aborto (Lei Orgânica 9/1985) pela qual se despenalizavam três supostos de sua prática: evitar um grave perigo para a vida ou a saúde física ou psíquica da grávida, que a gravidez fosse conseqüência de um ato constitutivo de um delito de violação --previamente denunciado-- e a suposição de graves defeitos físicos ou psíquicos no feto.76 

Em decorrência de alto índice de aborto realizado na Espanha, o Instituto de Política Familiar-IPF, publicou, em 2005, um informe realizado pelo Instituto Nacional de Estatística, do Ministério de Saúde e do Centro Nacional de Epidemiologia, com o escopo de conter a prática do aborto, e assim evitar a queda da natalidade naquele país.

Um balanço que reflete «uma verdadeira explosão dos abortos nos últimos anos», pois desde 1985 se produziram quase 850.000 (844.378) abortos na Espanha: em 5 anos (1998-2003) o aborto cresceu quase 50% (48,2%), em 10 anos (1993-2003) o crescimento foi de 75,3%. 
Cada dia 220 crianças deixam de nascer na Espanha por abortos, resume o IPF. À parte de refletir uma «queda vertiginosa da natalidade» --cuja retomada atual se deve «quase exclusivamente à natalidade da mãe estrangeira--, o documento recorda que nestas duas décadas as mortes aumentaram 22%. Mas se se consideram também as mortes produzidas por abortos, o aumento no número de mortes se eleva a 48,3%.77

O que de fato conferiu o crescido número de aborto na Espanha foi o deslocamento das portuguesas para aquele país, tendo vista que, antes de 2007, a legislação proibia tal procedimento em Portugal.

Desde a sua legalização, o número de abortos aumentou ao longo dos anos. Em 2005 foram registados mais de 90000 abortos. Este número também aumentou devido às mulheres portuguesas que viajaram para Espanha para abortar legalmente.78

 

Além dos países mencionados, deve-se ressaltar que o aborto foi legalizado em muitos países da Europa, conforme se averigua:

O abortamento a pedido da mulher, como já foi feito na Alemanha, na Lituânia, na Escócia, na Holanda, na Dinamarca, na Suécia, na Letônia, na Eslovênia, na Áustria, na República Checa, na Eslováquia, na Bulgária, na Romênia, na Grécia, na Hungria, na Itália, na Bélgica, na França, no Reino Unido e até mesmo em Portugal, que, recentemente, em referendo popular, reconheceu que não se pune o abortamento impunemente.79

 

7.  O ABORTO CLANDESTINO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

As consequências causadas pelo abortamento clandestino têm sido um dos principais motivos para se discutir o quão é importante a legalização do aborto, pois perante os dados estatísticos realizados, é possível verificar que existe um número alarmante de mulheres que se deparam com suas vidas transformadas em decorrência dos procedimentos inadequados e situações de desumanidade a que são submetidas. As sequelas em virtude desses procedimentos são extensas, como as infecções, perfuração do útero, hemorragia, traumatismo da vagina, e, em muitos casos, a morte. Além dessas consequências, há os danos de caráter psicológico, social e moral, conforme dito por VARELLA em artigo sobre as questões do aborto:

 

A técnica desses abortamentos geralmente se baseia no princípio da infecção: a curiosa introduz uma sonda de plástico ou agulha de tricô através do orifício existente no colo do útero e fura a bolsa de líquido na qual se acha imerso o embrião. Pelo orifício, as bactérias da vagina invadem rapidamente o embrião desprotegido. A infecção faz o útero contrair e eliminar seu conteúdo. O procedimento é doloroso e sujeito a complicações sérias, porque nem sempre o útero consegue livrar-se de todos os tecidos embrionários. As membranas que revestem a bolsa líquida são especialmente difíceis de eliminar. Sua persistência na cavidade uterina serve de caldo de cultura para as bactérias que subiram pela vagina, provoca hemorragia, febre e toxemia.80

 

Em virtude da criminalização e do preconceito pela prática do abortamento provocado, muitas mulheres revelam ter desenvolvido a depressão após a interrupção da gravidez, pois se sentem culpadas pelo ato, uma vez que não recebem apoio da família.

O aborto provocado em virtude de tabu e da criminalização faz com que muitas mulheres passem por todo o processo sozinhas e desemparadas, sem o poio do preconceito ou da família e, muitas vezes, sendo vítimas do preconceito. Desse modo, é vivenciado pela mulher de forma bastante conflituosa, contribuindo para o aparecimento dos sentimentos de culpa, angústia e tristeza, como também de quadros de ansiedade e depressão.81

No Brasil, os dados dão conta de número preocupante nas complicações de aborto realizado clandestinamente. Na pesquisa, detectou-se que em algumas capitais brasileiras e no Distrito Federal, o percentual chegou a “11,4% de óbitos maternos”. Já em outras regiões, como “Recife e Salvador, o número de óbito aumentou significativamente, somando um percentual de 36,4% e 22,5% dos óbitos”.

 

A única pesquisa de abrangência nacional, realizada nas capitais brasileiras e no Distrito Federal em 2002, evidenciou que 11,4% dos óbitos maternos foram devidos a complicações de aborto. Entretanto, proporções mais elevadas foram registradas em investigações locais, destacando-se Recife(Pernambuco)- onde, em meados dos anos 1990, o aborto representava uma das primeiras causas de óbito- e Salvador – onde o aborto manteve-se em 1993 e em 1998 como a principal causa isolada, responsável respectivamente por 36,4% e 22,5% dos óbitos maternos.82

As complicações decorrentes do abortamento clandestino são verificadas principalmente nas camadas sociais carentes e vulneráveis

As mortes do aborto atingem preferencialmente mulheres jovens, de estratos sociais desfavoráveis, residentes em áreas periféricas das cidades. São também mais acometidas as negras que apresentam um risco três vezes superior de morrer por essa causa, quando comparadas as brancas.83

Os dados estatísticos, de 2012, apontam que a causa de mortalidade de mulheres vítimas do aborto clandestino encontra-se em quarto lugar no Brasil. Os dados mostram ainda que a mortalidade atinge as mulheres pobres que não possuem condições de arcar com os procedimentos adequados.

 

E em relação a mortalidade de mulheres, de acordo com o site Católicas Pelo Direito de Decidir, o aborto é apontado como a quarta maior causa. E quando falamos em mortes femininas por aborto falamos de mulheres pobres, sem a possibilidade de pagar por um procedimento fora do país, em um local onde o aborto é legalizado, ou por uma clínica clandestina de boa qualidade. Essas mulheres são, na sua maioria, mulheres que não têm acesso a informação de contraceptivos, não têm dinheiro para pagar um ginecologista, um preservativo ou uma pílula anticoncepcional.84

Os métodos abortivos utilizados pelas mulheres evoluíram nos últimos anos. Atualmente usa-se o medicamente chamado misoprostol.

O início dos anos 1990 marcou uma mudança significativa no perfil dos métodos abortivos adotados pelas mulheres nas grandes cidades. Métodos encontrados nos estudos dos anos 1980, como venenos, líquidos cáusticos ou injeções, passaram a ser inexpressivos nos relatos das mulheres. O misoprostol se tornou o método preferencial para realizar o aborto em casa ou para iniciá-lo em casa e terminá-lo no hospital. É sobre a redução da heterogeneidade dos métodos abortivos que os estudos mais têm convergido nos últimos 20 anos. Entre as mulheres que declaram ter induzido o aborto, os estudos indicam que de 50,4% a 84,6% utilizaram o misoprostol, havendo maior prevalência do uso dessa substância no Nordeste e Sudeste. Considerando que os estudos de meados dos anos1980 registram entre 10% e 15% de uso de medicamentos como método abortivo e altas taxas de morbimortalidade por aborto induzido, a entrada do misoprostol no cenário das práticas abortivas provocou uma mudança: ele passou a ser o método preferencial das mulheres, pois traz menores riscos à saúde e implica menor tempo e custo de internação hospitalar pós finalização do aborto.85

A pesquisa realizada não detectou o quantitativo de mulheres que utilizam o medicamento misoprostol e abortam em suas residências, todavia, as estatísticas dão conta dos casos das mulheres que chegam aos hospitais em decorrência do insucesso na utilização do produto e a consequente complicação, após ter usado o remédio, cujos sintomas são: dores abdominais, sangramentos e infecções.

 

Os estudos não conseguem estimar quantas mulheres usaram o misoprostol e abortaram em casa, pois quase todos eles foram conduzidos com mulheres que chegaram aos hospitais em processo de abortamento. A magnitude da ocorrência do aborto com misoprostol é, portanto, estimada com base em entrevistas com mulheres que chegam aos hospitais com aborto incompleto ou com base nos prontuários de pacientes atendidas para finalização de aborto. Em relação às mulheres que finalizam o aborto nos hospitais,é nas primeiras 24 horas pós-uso do misoprostol que elas procuram um hospital público. Entre 70% e 79,3% delas apresentam como sintomas dores abdominais e sangramento, sendo diagnosticado o abortamento incompleto. Entre 63% e 82% estão com até 12 semanas de gestação. O tempo de internação é de 1 dia entre 30% e 85,9% das mulheres incluídas nas pesquisas. De 9,3% a 19% apresentam sinais de infecção.86

Quanto às adolescentes, além das sequelas atinentes à saúde, constatou-se que depois de um ano da realização do aborto, 25% delas engravidaram novamente e que 70% das que não interromperam a gravidez abandonaram os estudos. Verificou-se, ainda, que houve uma melhora de autoestima das meninas que induziram o aborto.

A pesquisa mostrou que 25% das adolescentes haviam engravidado novamente um ano após o aborto e que 70% das que levaram a gestação a termo haviam abandonado a escola. Exceto pelas adolescentes que induziram o aborto, todas expressaram julgamentos negativos sobre a gravidez um ano após a primeira entrevista. Além disso, houve melhora de auto-estima em todos os grupos de adolescentes entre a primeira e a última entrevista no período de um ano, mais acentuadamente no grupo das que induziram o aborto.87

Também foram avaliadas, durante cinco anos, as adolescentes que aderiram ao Programa de planejamento familiar e que tiveram orientação para o uso de método anticonceptivo. Tal adesão configurou um traço significante na vida dessas adolescentes, que passaram a planejar a gestação. Das meninas que aderiram ao programa, apenas 16,7% voltaram a engravidar.

 

Poucas pesquisas avaliam a adesão de adolescentes a programas de planejamento familiar. Um estudo acompanhou durante cinco anos adolescentes com experiência prévia de abortamento em programas de planejamento familiar e orientação para uso de métodos anticonceptivos. Do total das participantes do programa, apenas 16,7% voltaram a engravidar, 50% das quais planejaram a gestação.88

A pesquisa revelou ainda os motivos que levam às mulheres a praticarem o abortamento. Muitas agem por falta de dinheiro, outras por terem muitos filhos, outras ainda porque poderiam perder o emprego, outras por serem vítimas de estupradores, outras pelo risco de vida e por vários outros motivos. Elas narraram assim:

Porque o dinheiro não dá; porque tenho muitos filhos; porque eu perderia o emprego; porque dá medo assumir sozinha uma criança; porque meu corpo foi usado por um macho, sem amor; porque fui estuprada; porque corro risco de vida; porque o feto tem má-formação; porque falharam os anticoncepcionais; porque teria de abandonar meus estudos; porque teria de abandonar minha casa; pela pressão do preconceito da sociedade por eu ser mãe solteira.89

A coação social, moral e religiosa faz com que a mulher seja obrigada a levar à frente uma gravidez, não importando o seu histórico.

Algumas vezes, a gravidez veio num momento inoportuno e incompatível om os atuais projetos de vida; algumas mulheres estão solteiras ou em relacionamento instáveis e não querem arcar com a responsabilidade de cuidar de uma criança sozinha. Enfim, são inúmeras as razão que uma mulher pode ter para não desejar um filho e recorrer ao aborto, no entanto, o que acontece é uma imposição social, moral e religiosa de que se a mulher está grávida, precisa levar adiante o seu fruto não importando o contexto de vida dessa mulher e os significados e sentidos envoltos nessa gestação. 90

Os dados mostram que nos países onde a legislação permite o aborto, como “Holanda, Espanha, Alemanha e Uruguai”, a taxa de mortalidade dessas mulheres é bem reduzida. Ademais, os governantes desses países introduziram uma política voltada para o planejamento familiar, o que contribui significativamente para que não seja necessária a interrupção de gravidez indesejada.

Nos países onde o aborto não é crime como Holanda, Espanha e Alemanha, nós observamos uma taxa muito baixa de mortalidade e uma queda no número de interrupções, porque passa a existir uma política de planejamento reprodutivo efetiva.91

Todavia quando se trata de aborto clandestino em decorrência das restrições da lei, como nos casos dos países em desenvolvimento, o número de morte é alarmante.

O aborto inseguro tem uma forte associação com a morte de mulheres – são quase 70 mil todos os anos. Acontece que estas 70 mil não estão democraticamente distribuídas pelo mundo; 95% dos abortos inseguros acontecem em países em desenvolvimento, a maioria com leis restritivas.92

Para comprovar o quantitativo de mortes por abortamento, o Governo do Uruguai apresentou um relatório sobre essa questão, um ano após a legalização, cujos registros apontam não ter ocorrido nenhum caso de morte materna fruto de aborto.

O Uruguai, que descriminalizou o aborto em outubro de 2012, também tem experimentado quedas vertiginosas tanto no número de mortes maternas quanto no número de abortos realizados. Segundo números apresentados pelo governo, entre dezembro de 2012 e maio de 2013, não foi registrada nenhuma morte materna por consequência de aborto e o número de interrupções de gravidez passou de 33 mil por ano para 4 mil. Isso porque, junto da descriminalização, o governo implementou políticas públicas de educação sexual e reprodutiva, planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva.93

O ginecologista e obstetra representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA), DREZETT, que há mais de 10 anos coordena um serviço de abortamento legal no país, explicou que as mortes em decorrência do aborto inseguro estão relacionadas às questões de higiene e principalmente pelas técnicas incorretas realizadas por pessoas sem o devido conhecimento.

Só para contextualizar nós temos hoje, segundo a OMS, 20 milhões de abortos inseguros sendo praticados no mundo. Por aborto inseguro, a Organização entende a interrupção da gravidez praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos necessários ou em ambiente sem condições de higiene.94

Conforme dito por VARELLA, em artigo sobre a Questão do Aborto, o temor pelo comportamento da família, das indagações nos hospitais, das críticas dos vizinhos, assim como a falta de conhecimento acerca das consequências impedem que essas mulheres procurem o serviço médico no momento adequado, de maneira que o quadro clínico delas se torna gravoso.

A natureza clandestina do procedimento dificulta a procura por socorro médico, logo que a febre se instala. Nessa situação, a insegurança da paciente em relação à atitude da família, o medo das perguntas no hospital, dos comentários da vizinhança e a própria ignorância a respeito da gravidade do quadro colaboram para que o tratamento não seja instituído com a urgência que o caso requer.95

 

Muitos profissionais da saúde colocam suas crenças pessoais acima de seus ofícios técnicos.

 

Após o abortamento, é o momento em que as mulheres mais precisam de apoio e orientação, e os profissionais de saúde precisam estar preparados para acolher essa mulher de forma digna, sem julgamento e preconceito, caso contrário, estes poderão intensificar o seu sofrimento. [...] é muito comum que os profissionais de saúde coloquem suas crenças pessoas acima de seus deveres éticos, o que se deve, em grande parte, a uma formação iminentemente técnica e dividida do ser humano, no qual se busca a restauração da saúde e da qualidade de vida somente tratando a doença, não considerando a pessoa do paciente, sua singularidade e seu contexto social e cultural. Diante disso, considera-se de extrema importância a implantação de programas de amparo a essas mulheres, por meio de uma equipe especializada, que possa minimante diminuir os impactos que a experiência do aborto provoca.96

 

Quanto ao aspecto moral, VARELLA disse que não se justifica o sofrimento e morte de gestantes em nome da moral e da filosofia.

 

Não há princípios morais e filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de família de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento, enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do instante que a alma se instala num agrupamento de células embrionárias, quando quem está morrendo são as filhas dos outros.97

Segundo DWORKIN, as pessoas se divergem quanto à questão moral e metafísica.

 

A maioria das pessoas supõe que a grande polêmica sobre o aborto é, no fundo, um debate sobre uma questão moral e metafísica: saber se mesmo um embrião recém-fertilizado já é uma criatura humana com direitos e interesses próprios.98

 

Como já bem explicado, o aborto clandestino traz dramática consequência para a mulher, acarretando números altíssimos de riscos e danos, além dos óbitos. Nesse sentido, necessário se faz adotar uma política de saúde pública, assim como o planejamento educacional reprodutivo, dando meios de acesso aos métodos anticonceptivos, ou seja, uma política voltada para o planejamento familiar.

 

Nessa acepção, explica o magistrado TORRES que o abortamento é um problema de saúde pública e que o fato de restringir tal prática, por meio legal, é um “equívoco”. Assim destaca o magistrado:

 

O abortamento é um gravíssimo problema de saúde pública e deve ser enfrentado fora do âmbito das políticas repressivas, excludentes, fortalecedoras da violência e reprodutoras de dor e sofrimento, ou seja, deve ser enfrentado exclusivamente no âmbito das políticas públicas de saúde, com fomento à educação sexual e reprodutiva e com o acesso pleno e informado aos meios anticonceptivos. O abortamento, seja qual for a sua natureza, não é um evento desejável. É evidente que todos os esforços devem ser feitos para evitar a gravidez indesejada e para garantir às mulheres o livre exercício de sua sexualidade sem que jamais se vejam na situação constrangedora da opção pelo aborto diante da inexistência de outras alternativas. E é necessário afirmar e repetir, em alto e bom som, que o abortamento é um problema de saúde pública e que, por isso, a mantença de sua criminalização tem sido um brutal e inexcedível equívoco.99

 

Sobre essa questão de saúde pública, VARELLA também se pronunciou, destacando que o aborto é um problema de saúde pública e que necessita ser resolvido com urgência. “Os legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um problema grave de saúde pública, que exige solução urgente”.100

 

O planejamento familiar é de grande importância para a redução de gravidez indesejada.

O planeamento familiar é uma das estratégias mais eficazes e garantidas para salvar as vidas das mulheres e crianças e também melhorar a sua saúde. O planeamento familiar melhora, em geral, a saúde materna A utilização de contracetivos modernos e o acesso aos serviços de planeamento familiar permitem que mulheres e casais previnam gravidezes não desejadas; o que é crucial, pois mais de 40% de todas as gravidezes no mundo são indesejadas.101

 

O programa de planejamento familiar introduzido no Brasil colocou vários métodos gratuitos de contraceptivos.

 

No Brasil, a Política Nacional de Planejamento Familiar foi criada em 2007.  Ela inclui oferta de oito métodos contraceptivos gratuitos e também a venda de anticoncepcionais a preços reduzidos na rede Farmácia Popular.102

 

Além da inclusão dos mecanismos de prevenção de gravidez, o programa de planejamento familiar introduziu também educação voltada para saúde sexual e reprodutiva.

 

O planeamento familiar refere-se a um conjunto variado de serviços, medicamentos essenciais e produtos que possibilitam às pessoas individuais e em casal alcançar e planear o número de filhos desejados, o espaçamento e programação dos nascimentos. O planeamento familiar inclui métodos contraceptivos modernos tais como pílulas, injectáveis, implantes hormonais, métodos de barreira vaginal e preservativos masculinos e femininos. Os serviços de planeamento familiar incluem cuidados de saúde, aconselhamento, informação e educação relacionados com a saúde sexual e reprodutiva.103

 

Apesar de tanto sofrimento, o aborto continua sendo um assunto ignorado pela sociedade.

 

O aborto é considerado um tema polêmico e estigmatizado, sendo abordado sob diversas óticas, tais como: bioética, jurídica, religiosa, moral, política, etc. Apesar de ser um fenômeno antigo, ainda é visto como um tabu na maioria das sociedades, principalmente quando é uma voluntariamente provocado.104

8. O PODER PUNITIVO DO ESTADO

O poder público, que deveria consagrar o direito de forma justa e igualitária, simplesmente nega tais direitos e estabelece meio de isolar o indivíduo de modo a não lhe dar a devida segurança necessária.

Para demonstrar sua ufania, o Estado escolhe as pessoas mais desfavorecidas, pessoas que não têm oportunidade de melhores e mais satisfatórios graus de instrução, são, por tais consequências, as mais fragilizadas e, mesmo assim - por mais que sejam as próprias vítimas de tal sistema – acabam por serem as pessoas que apoiam diretamente o poder público, se tornando, naturalmente, às vítimas diretas do poder punitivo do Estado.

No sentido do texto, ZAFFARONI diz: “as classes mais desfavorecidas são mais vitimizadas e acabam apoiando as propostas de controle social mais autoritárias e irracionais” 105

Reafirmando o que foi dito anteriormente, é de conhecimento público, que as punições são aplicadas aos menos favorecidos econômica e financeiramente, o que atinge quase sempre os pobres, negros e cidadãos que não foram agraciados com oportunidades de acesso a um bom grau de instrução. “o sistema penal opera, pois, em forma de filtro para acabar selecionando tais pessoas”.106

O poder punitivo do Estado, portanto, seleciona grupo de pessoas mais vulneráveis. “A seleção não só opera sobre os criminalizados, mas também sobre os vitimizados.”107 ou seja, as vítimas do sistema penal são as pessoas miseráveis, estereotipadas, que não têm uma estrutura familiar adequada. Por outro lado, as pessoas que têm um poder aquisitivo favorável têm privilégios, fazendo com que na maioria das vezes se quer haja uma investigação sobre supostas infrações e, caso haja tal procedimento, o resultado final dos processos penais envolvendo os mais favorecidos, quase sempre tem um desfecho parecido, qual seja, com a absolvição dos acusados.

Nessa acepção, NEPOMUCENO faz seu comentário acerca da seletividade.

O poder de repressão foca em uma espécie de criminalidade, deixando-a visível aos olhos de todos, por outro lado não reprime a maioria das condutas criminalizadas em lei, especialmente as perpetradas por camadas sociais imunes à repressão do sistema. Logo, pessoas pertencentes a determinados nichos societários que possuem algum tipo de poder não vão ser 'escolhidas' para sofrerem a repressão do sistema pelo cometimento de condutas consideradas socialmente negativas pela lei penal.108

O estágio de pobreza e a desigualdade social e, consequentemente o desprestígio faz com que muitas mulheres deixam de procurar o serviço médico por temerem as punições, humilhações e abusos a que serão submetidas.

Os efeitos da criminalização do aborto se distribuem de modo desigual na sociedade brasileira. A pobreza representa maior vulnerabilidade para as mulheres que recorrem ao aborto clandestino, sem condições de buscar procedimentos seguros. A desigualdade atinge especialmente as mulheres muito pobres, negras e jovens. A pobreza representa também maior vulnerabilidade às denúncias, punições, humilhações e abusos quando recorrem aos serviços públicos de saúde com abortamento incompleto. Por medo, muitas evitam chegar aos serviços.109

Sobre essa questão de pobreza e da desigualdade, o magistrado VALOIS também expôs sua crítica. Concluindo assim:

Politicamente se afirma que os ricos continuam praticando aborto seguro, em clínicas seguras, sem serem incomodados, enquanto a proibição agrava a situação do pobre, obrigado a recorrer a procedimentos perigosos e sob a mira da polícia, o que sempre leva à possibilidade de extorsão ou prisão.110

Na opinião de VALOIS, a ligação da mãe com o feto seria apenas um “pedaço de carne”. E, em decorrência de imposição ditada pelo poder normativo, a mãe não pode dispor de sua própria vontade. Assim menciona o magistrado:

O que liga a mãe ao filho seria apenas esse pedaço de carne, que a mãe é obrigada por lei a manter até o nascimento da criança, não importando sua condição, suas circunstâncias e, enfim, sua vida. Ou a mãe teria o direito de cortar esse cordão porque faz parte de seu corpo e ninguém pode dizer a forma de usá-lo, nem mesmo se o corte levar ao fim da possibilidade de vida de um feto.111

[...] ainda segundo Luis Carlos Valois, o feto é uma possibilidade de vida. Assevera também que se o aborto é a cessação de uma vida, consequentemente um homicídio, e que nesse caso, as penas teriam que ser menores. Vejam as palavras dele: Digo possibilidade de vida, porque o aborto, nem na lógica que tentam imprimira ao debate, pode ser considerado o fim de uma vida. Vejamos, se o aborto fosse o fim de uma vida, seria homicídio, com as penas do homicídio, e não aborto, que, por sinal, tem sanções menores justamente porque o que ele deve estar protegendo é a expectativa de vida de um feto.112

O autor em comento faz uma análise acerca da vida e o amor, evidenciando que a mãe deve estar ligada ao filho por afeto e não por um cordão umbilical, uma vez que o amor não se rompe por um simples corte. O mesmo amor que liga filho e genitora deveria ser o amor que liga a “criança à sociedade. Para que uma criança crença com dignidade é necessário que haja respeito e garantia dos seus direitos. O autor frisa que amor não se impõe.

Mas do amor ninguém fala. A mãe deveria estar ligada ao filho, seja feto seja filho, não por um cordão qualquer, mas por amor. O corte desse cordão de amor ninguém pode impedir, nem a lei mais rigorosa do mundo, com os exércitos mais bem armados para impor a sua execução. O mesmo amor que deveria ligar o feto à mãe, deveria também ligar a criança à sociedade. Se o cordão de ligação deve ser um cordão de amor, pratica-se aborto toda hora. Se o desenvolvimento sadio de uma criança precisa do amor, o respeito aos seus direitos quando jovem também precisa de amor, não bastam leis de papel para isso. O reconhecimento do adulto, a necessidade de se sentir especial na sociedade, tudo isso precisa do amor, sentimento tão escasso quanto o perdão. Não se estabelece o amor com decreto. Assim, a única resposta é a punição, não se consegue pensar diferente desse paradigma. Se ninguém ama mais nada além de si mesmo e suas posses, que se puna quem não possuir, quem não quis possuir e andou contra a corrente, que se puna quem cortou o cordão de amor e se puna depois quem viveu sem amor. Que se puna sem amor a falta de amor.113

O artigo 196 da Constituição Federal dispõe que a saúde é um bem de todos e obrigação do Estado, o qual deverá promover os meios de reduzir o risco e doença de forma igualitária para todos os que necessitarem dessa proteção. Todavia, tal direito se encontra ultrajado e transgredido pelas autoridades públicas, em total desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Nesse quadro em que a vontade política de fazer valer os direitos constitucionais é praticamente inexistente, o Poder Judiciário, enquanto responsável pela manutenção da supremacia da Constituição, é frequentemente chamado para dirimir conflitos em que, de um lado, está o cidadão lutando para que as promessas constitucionais sejam efetivamente cumpridas, e, de outro lado, está o Poder Público que, por ideologia, má-gestão ou mesmo por falta de recursos, deixa de cumprir seu dever constitucional.114

9. CONCLUSÃO

De acordo com os estudos e levantamentos, foi possível perceber com muita clareza que o aborto praticado de forma clandestina traz consequências de extrema gravidade, pois as técnicas utilizadas para praticá-lo trazem sequelas de caráter físico grave como: infecção, perfuração do útero causada por agulha ou sonda, obstrução das trompas, esterilidade, hemorragia, lesão na bexiga e intestino, além de muitos óbitos. O estado psicológico da mulher também é afetado, uma vez que ela se sente culpada pelo ato praticado.

No Brasil, o aborto é censurado pelos aspectos socioculturais, e principalmente por razões de valores religiosos, o que caracteriza um ponto difícil de enfrentar, pois se trata de arrimos extremantes consistentes, em virtude de discursos voltados para a espiritualidade, com enfoque “pecado”. Ademais, a igreja foi constituída por família tradicional “patriarcal sem que a mulher pudesse dar sua contribuição e participar dos direitos inerentes a ela.

Não obstante, a evolução da história e a dos acontecimentos sociais, as instituições religiosas se comportam de maneira egoísta quanto ao nosso assunto, não permitindo uma observação objetiva e racional perante o novo conceito de sociedade.

O aborto é praticado tanto por mulheres pobres quanto por mulheres financeiramente privilegiadas, “brancas e negras, adolescentes e maduras”. Diante dessa realidade, é necessário diretrizes políticas e sociais que visem garantir a saúde, planejamento familiar, controle de natalidade, assistência às mulheres que praticaram o aborto em decorrência do fruto de violência, assim de feto anencéfalo ou de outra deformidade, projeto educacional para a conscientização, além da educação para que a mulher seja respeitada e tenha garantia de liberdade em poder dispor do seu próprio corpo.

O Estado, em decorrência de sua vaidade, procura sempre usar seus métodos de restrição de maneira ineficaz e até mesmo covarde, pois ao invés de utilizar meios que enfoquem a educação e prevenção, prefere promover a punição. Além de sua repulsa em relação à prevenção e educação, bem como não garantir de forma segura e humanizada os procedimentos de interrupção de gravidez, escolhe o protótipo de pessoas a serem submetidas à criminalização, conforme dito pelo conceituadíssimo ZAFFARONI, são pessoas “em situação de vulnerabilidade que estão expostas a serem recrutadas ao sistema penal.

A Constituição Federal garante a igualdade entre as pessoas, mas a realidade nos mostra que as mulheres, ainda, não se encontram nesse patamar de igualdade. Infelizmente, a mulher é quem mais sofre perante as situações discriminatórias em decorrência de uma cultura de concepção machista, o que dificulta ainda mais levantar a bandeira pela descriminalização do aborto, haja vista que tal situação é encarada como liberdade da mulher em poder dispor do seu próprio corpo. Além do mais, por se tratar de um tipo penal imputado a elas, deduz-se que, para os homens, há um certo conforto, pois tal situação não os atinge.

O que se espera com este estudo é que as convicções religiosas adotadas hoje, e o aspecto legal vigente, não sejam suplantados diante das consequências graves que o aborto pode trazer. Trata-se de questões de justiça social, de vidas que estão sendo ceifadas, de filhos abandonados por falta de planejamento familiar. Trata-se de saúde pública que precisa de remédio urgente.

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5 DWORKIN, Ronald. Domínio... p. 56.

6 DWORKIN, Ronald. Domínio..., p. 56.

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20 Ibid., p. 54.

21 SALLES JR, Romeu de Almeida, Código Penal Interpretado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 341.

22 NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal, 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 625.

23 Ibid., p. 626

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106 Ibid., p. 49.

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Publicado por: ANA SILVEIRA DE RESENDE DE CAMPOS

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